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Rubéola e autoimunidade

EDITORIAL

Rubéola e autoimunidade

O mimetismo molecular foi proposto como um mecanismo patogênico para a doença autoimune. A hipótese baseia-se em estudos epidemiológicos, clínicos e experimentais e na evidência de uma associação entre agentes infecciosos e doença autoimune, na qual se observa reação cruzada de agentes imunológicos com antígenos do hospedeiro e determinantes microbianos.1

Estudos recentes revelaram que o mimetismo do carboidrato do lipooligossacarídeo bacteriano com o gangliosídeo humano é uma importante causa de síndrome de Guillain-Barré. Esse novo conceito de que o mimetismo do carboidrato pode causar uma doença autoimune dá uma pista para a patogênese de doenças imunomediadas.1

O mimetismo molecular baseia-se na semelhança estrutural entre um patógeno ou metabólito e a própria estrutura do elemento em questão. A semelhança poderia ser expressa como o compartilhamento de sequências de aminoácidos ou uma estrutura conformacional semelhante entre um patógeno e um autoantígeno.2 A forte associação entre vírus e diabetes tipo 1 (DT1) envolve espécies de enterovírus, dos quais algumas cepas podem induzir ou acelerar doença autoimune em modelos animais.

Foram propostos vários mecanismos hipotéticos para explicar como os vírus afetam a autoimunidade contra a ilhota pancreática e a destruição de células beta.3 Uma infecção viral pode servir como fator acelerador, que, somado à insulinite avançada, culmina rapidamente em hiperglicemia. O vírus da rubéola é um agente ambiental que pode estar envolvido no desencadeamento de autoimunidade contra ilhotas pancreáticas, levando à DT1. Respostas com autoanticorpos foram encontradas em 239 meninas de 10 anos que receberam vacina contra rubéola com vírus vivo atenuado, das quais 61 (26%) não tinham imunidade prévia contra rubéola.4 A infecção pode promover a expressão de retrovírus endógenos humanos por meio de mimetismo molecular ou mimetismo funcional.5 Há ainda outros mecanismos que podem controlar a expressão de retrovírus endógenos humanos, tais como o estado epigenético do genoma.6

A DT1 desenvolve-se ao longo de meses ou anos, durante os quais a autoimunidade contra a ilhota destrói as células beta produtoras de insulina no pâncreas. Tal período é marcado pela presença de anticorpos contra a insulina, descarboxilase do ácido glutâmico e tirosina fosfatase IA-2, assim como por células T reativas às ilhotas. No entanto, ainda não se sabe ao certo como a autoimunidade contra as ilhotas se inicia e é acelerada. A incidência de DT1 em muitos países tem crescido rapidamente nos últimos 30-50 anos, principalmente entre os jovens. Aventa-se a hipótese de que se trate de um aumento da pressão ambiental nos genótipos de suscetibilidade.

Um rápido aumento na prevalência de infecção viral poderia talvez explicar esse fenômeno com a elevação da frequência de infecções diabetogênicas. Os seguintes critérios foram propostos para causalidade da doença:

• Relação temporal: a exposição precede a doença - o único critério absolutamente essencial.

• Força estatística de associação: quanto maior, mais convincente.

• Relação dose-resposta: aumentando-se a exposição, aumenta-se o risco.

• Consistência: replicação de resultados por diferentes métodos ou em diferentes populações.

• Plausibilidade: até que ponto os dados concordam com os atuais conceitos dos mecanismos patológicos.

• Consideração e/ou rejeição de outras explicações alternativas.

• Experimentos: os achados podem ser reproduzidos experimentalmente?

• Especificidade: o critério mais fraco. A falta de especificidade de dose não nega a causalidade, mas, quando presente, fortalece a reivindicação.

• Coerência: a associação é compatível com o conhecimento existente?

A rubéola preenche os critérios para causalidade de DT1, com associação temporal estatisticamente forte, sendo consistente, plausível e específica. A despeito dos achados sólidos e da associação entre HLA e suscetibilidade à DT1, o mecanismo de associação entre rubéola e DT1 permanece pouco claro, não sendo a vacinação contra a rubéola a resposta para a prevenção de DT1.7

Sabe-se que a infecção pelo vírus da rubéola durante a gravidez atinge o feto na maioria das mães soronegativas. Quando a infecção ocorre no primeiro trimestre gestacional, o risco de graves lesões em órgãos fetais é alto. Uma grande variedade de anomalias clínicas pode ser vista na síndrome da rubéola congênita, incluindo distúrbios endócrinos, tais como a doença de Addison, deficiência de hormônio do crescimento e frequência aumentada de diabetes.8

No caso de desencadeante viral de DT1 autoimune, certos vírus (retrovírus em camundongos NOD, vírus da rubéola em hamsters e seres humanos) podem transformar um antígeno de célula beta que existe normalmente em uma forma imunogênica ou podem induzir um novo antígeno, levando a diabetes mellitus insulinodependente com autoimunidade específica para células beta. Além disso, outros vírus podem gerar células T efetoras antígeno-específicas, que podem ter uma reação cruzada com um autoantígeno que é célula beta-específico.9

Uma outra questão levantada nos últimos anos é se a vacinação pode induzir autoimunidade. As reações autoimunes à vacinação raramente podem ser induzidas por mimetismo molecular ou mecanismos de ativação bystander em indivíduos predispostos. As reações autoimunes associadas com imunização incluem a síndrome de Guillain-Barré após a vacinação contra a gripe suína em 1976 e a púrpura trombocitopênica imunológica após a vacinação contra sarampo/caxumba/rubéola.10-13

As vacinas podem causar eventos adversos, com efeitos colaterais em sua maioria leves e transitórios. No entanto, reações como hipersensibilidade, indução de infecção e autoimunidade ocorrem. A raridade e a apresentação subaguda dos fenômenos autoimunes após vacinação contribuem para a dificuldade em se afirmar a existência de causalidade entre esses eventos. Além disso, o período de latência entre vacinação e autoimunidade varia de dias a anos.12

No seguinte modelo animal experimental foi examinada a relação causal entre vacinas e achados autoimunes: em filhotes saudáveis de cães imunizados com vacinas comumente administradas, documentou-se uma variedade de autoanticorpos, mas nenhuma doença autoimune foi encontrada. Esses achados também poderiam representar uma ativação policlonal (reação ao adjuvante).

Os mecanismos das reações autoimunes que se seguem a imunizações não foram elucidados. Como mencionado anteriormente, uma das possibilidades é o mimetismo molecular, quando existe uma semelhança estrutural entre um antígeno viral e o autoantígeno.11 A participação de vários fatores ambientais na patogênese de doenças imunomediadas já está bem-estabelecida. Desses fatores, aqueles que apresentam uma atividade imune adjuvante, tais como agentes infecciosos, silicone e sais de alumínio, foram associados com doenças imunomediadas definidas e não definidas, tanto em modelos animais quanto em seres humanos. Recentemente, uma síndrome denominada ASIA (do inglês, Autoimmune Syndrome Induced by Adjuvants), consistindo em quatro condições (siliconose, síndrome da guerra do Golfo, síndrome da miofasciite macrofágica e eventos pós-vacinais), foi relacionada com exposição prévia a um adjuvante.14 Estudos epidemiológicos são necessários para a obtenção de mais dados sobre as questões aqui levantadas.

Arie Altman MD, PhD

Yehuda Shoenfeld MD FRCP

Centro de Doenças Autoimunes, Departamento de Medicina B, Sheba Medical Center, afiliado à Faculdade de Medicina Sackler, Universidade de Tel Aviv

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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