Acessibilidade / Reportar erro

Síndrome antifosfolípide e dermatomiosite/polimiosite: uma rara associação

Resumos

A associação entre a síndrome antifosfolípide e as miopatias inflamatórias idiopáticas tem sido raramente descrita na literatura. No presente trabalho relatamos dois pacientes com síndrome antifosfolípide diagnosticados com dermatomiosite ou polimiosite. Realizamos também uma revisão da literatura acerca dessa sobreposição de duas entidades autoimunes sistêmicas.

dermatomiosite; polimiosite; síndrome antifosfolipídica; relatos de casos


The association between antiphospholipid syndrome and idiopathic inflammatory myopathies has been rarely reported in the literature. In this paper we report two patients with antiphospholipid syndrome diagnosed with concomitant dermatomyositis or polymyositis. We also reviewed the literature on this overlapping of two systemic autoimmune entities.

dermatomyositis; polymyositis; antiphospholipid syndrome; case studies


CASE REPORT

Síndrome antifosfolípide e dermatomiosite/polimiosite: uma rara associação

Fernando Henrique Carlos de SouzaI; Maurício Levy-NetoII; Samuel Katsuyuki ShinjoIII

IReumatologista, Médico-Assistente do Serviço de Reumatologia, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HC/FMUSP

IIDoutor em Medicina; Médico-Assistente do Serviço de Reumatologia, HC/FMUSP; Professor Colaborador da Disciplina de Reumatologia, FMUSP

IIIDoutor em Ciências; Médico-Assistente do Serviço de Reumatologia, HC/FMUSP; Professor Colaborador da Disciplina de Reumatologia, FMUSP

Correspondência para Correspondência para: Samuel Katsuyuki Shinjo Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 455, 3º andar - sala 3150 CEP: 01246-903. São Paulo, SP, Brasil E-mail: samuel.shinjo@gmail.com

RESUMO

A associação entre a síndrome antifosfolípide e as miopatias inflamatórias idiopáticas tem sido raramente descrita na literatura. No presente trabalho relatamos dois pacientes com síndrome antifosfolípide diagnosticados com dermatomiosite ou polimiosite. Realizamos também uma revisão da literatura acerca dessa sobreposição de duas entidades autoimunes sistêmicas.

Palavras-chave: dermatomiosite, polimiosite, síndrome antifosfolipídica, relatos de casos.

INTRODUÇÃO

A síndrome antifosfolípide (SAF) pode ser primária ou secundária a uma série de condições, tais como neoplasias, doenças infecciosas, drogas1 ou, ainda, a outras doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico (LES).2,3 A dermatomiosite (DM) e a polimiosite (PM) também ocorrem isoladamente ou em associação a outras doenças autoimunes, das quais o LES e a síndrome de Sjögren são as mais frequentemente observadas.4

Entretanto, há poucos trabalhos que mostram a associação entre a SAF e a DM ou a PM5-7 - há apenas quatro casos que ilustram a SAF cursando com PM,5-7 dos quais dois são associados a mielite transversa,7,8 além de um relato de caso de SAF com DM.5

Devido à raridade dessa sobreposição, apresentamos dois pacientes com SAF e DM ou PM simultaneamente, e realizamos uma revisão da literatura.

RELATO DE CASO

Caso 1

Paciente do gênero masculino, 40 anos, com história de fraqueza muscular proximal dos quatro membros e sintomas constitucionais há cerca de três meses. Na ocasião, apresentava aumento de enzimas musculares [creatinoquinase (CK): 1.876 U/L (valor de referência: 26-190 U/L) e aldolase de 146 U/L (valor de referência: até 7,6 U/L)], com eletroneuromiografia (ENMG) e biópsia muscular do bíceps braquial compatíveis com miopatia inflamatória. Foram afastadas causas infecciosas e neoplásicas. Com a hipótese de PM, iniciou-se prednisona 1 mg/kg/dia e metotrexato (dose máxima: 25 mg/semana). Posteriormente, pela refratariedade clínico-laboratorial, associou-se um segundo imunossupressor, azatioprina (dose máxima: 3 mg/kg/dia), com controle da atividade da doença.

Após um ano do diagnóstico da PM o paciente apresentou trombose venosa profunda (TVP) do membro inferior direito (MID), confirmado por ultrassonografia doppler, sem causa aparente. Naquela ocasião apresentava anticardiolipina IgM de 110 MPL (valor de referência: < 20 MPL) e, portanto, iniciou-se cumarínico com controle adequado de coagulograma. O valor de anticardiolipina IgM, após 12 semanas do evento trombótico, foi de 100 MPL, confirmando o diagnóstico de SAF.

Atualmente, o paciente encontra-se estável clínico-laboratorialmente, sem uso de prednisona há apenas um ano, em uso de azatioprina 3 mg/kg/dia e metotrexato 10 mg/semana, além de varfarina 5 mg/dia.

Caso 2

Paciente do gênero feminino, 48 anos, com quadro de fraqueza proximal nos quatro membros, heliótropo e sinal de Gottron há sete meses. Apresentava, na primeira avaliação médica, CK de 3.500 U/L e aldolase de 376 U/L, tendo sido submetida à biópsia muscular de bíceps braquial compatível com DM. Iniciou-se prednisona 1 mg/kg/dia e azatioprina (dose máxima: 3 mg/kg/dia, peso de 50 kg). Entretanto, após seis meses, devido a pouca resposta clínico-laboratorial, optou-se por pulsoterapia com metilprednisolona (1 g/dia por três dias consecutivos), além da associação de metotrexato, com aumento progressivo da dose até 25 mg/semana.

Durante o seguimento houve recidivas da doença após redução do corticosteroide, realizando-se então dose única de imunoglobulina intravenosa humana (1 g/kg/dia por dois dias consecutivos), com melhora do ponto de vista clínico-laboratorial. Associou-se, no mesmo período, ciclosporina 100 mg/dia, com boa resposta.

Dois anos após o diagnóstico da DM a paciente apresentou TVP do MID, confirmado por ultrassonografia doppler, sem causa aparente. Além disso, apresentava histórico de aborto na 16ª semana de gestação e um óbito neonatal, com feto morfologicamente normal. Após reavaliação clínica, observou-se presença de anticoagulante lúpico positivo (duas amostras positivas com intervalo superior a 12 semanas), tendo sido iniciado cumarínico, com controles satisfatórios, sem demais episódios trombóticos.

Atualmente a paciente encontra-se em uso de ciclosporina 200 mg/dia, azatioprina 75 mg/dia (dose reduzida devido à linfopenia já revertida) e prednisona 15 mg/dia, com dificuldade de redução de dose; a última recidiva foi há cinco anos.

DISCUSSÃO

Somando aos poucos casos clínicos disponíveis na literatura, apresentamos dois casos de pacientes com SAF, cursando simultaneamente com miopatia inflamatória idiopática (DM ou PM).

A associação entre SAF e outras doenças autoimunes sistêmicas tem sido descrita na literatura. Tarr et al.8 relataram cerca de 30% da SAF em seus 362 pacientes com LES. Além disso, quando há essa sobreposição, há maiores índices de TVP, acidente vascular cerebral/ataque isquêmico transitório, perda fetal recorrente e infarto agudo do miocárdio, quando comparados aos pacientes que apresentam apenas LES.

A coexistência da SAF é relatada também em 10% dos pacientes com síndrome de Sjögren que apresentam anticorpos antifosfolípides.9 Esses pacientes apresentam mais Raynaud, lesões de pele (púrpura e livedo reticular), bem como citopenias.9

A SAF também tem sido descrita em pacientes com doença mista do tecido conectivo (DMTC).10-12 No entanto, mesmo nesses casos, quando os achados PM-símile foram incluídos, o diagnóstico de DMTC estava firmado, devido à existência de elevados níveis de anticorpos específicos.

No entanto, a associação entre SAF e miopatias inflamatórias idiopáticas é extremamente rara. Até o presente momento, há apenas cinco casos (quatro com PM e um com DM) descritos dessa sobreposição.5-7 Esses casos estão ilustrados na Tabela 1.

Ainda não se sabe se a associação entre SAF e DM/PM é marcada por anticorpos miosite-específicos, nem se há algum papel patogênico desses nas miopatias, sendo o dano endotelial indubitavelmente o processo patogênico base da DM.13

O que observamos em nossos pacientes e nos relatados na literatura é a comum refratariedade às terapêuticas realizadas, todos tendo recebido altas doses de corticosteroide por via oral ou em forma de pulsoterapia,5-7 dos quais quatro apresentaram recidiva de doença e necessidade de uso de pelo menos dois imunossupressores (azatioprina, metotrexato e/ou ciclosporina).5-7

Fica a dúvida se a associação dessas entidades torna a DM/ PM de pior prognóstico. São necessários trabalhos futuros para tal esclarecimento.

A imunoglobulina intravenosa pode ser uma opção de tratamento para os pacientes que demonstram a coexistência de SAF e a miopatia refratárias, sendo atualmente aceita no tratamento da DM/PM, com algumas descrições de seu uso na SAF.14,15 Nosso paciente com DM, devido à refratariedade à terapia medicamentosa convencional, recebeu imunoglobulina intravenosa com boa resposta clínico-laboratorial.

Em síntese, a coexistência de SAF e DM/PM é raramente descrita na literatura. No presente estudo, apresentamos dois casos que, a exemplo dos casos já descritos, mostraram curso da miopatia relativamente mais agressiva.

Recebido em 30/01/2011.

Aprovado, após revisão, em 08/05/2012.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Disciplina de Reumatologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP.

  • 1
    Asherson RA, Cervera R. "Primary", "secondary" and other variants of the antiphospholipid syndrome. Lupus 1994;3(4):29-38.
  • 2
    Asherson RA, Cervera R, Pitte JC, Shoenfeld Y. The antiphospholipid syndrome: history, definition, classification and differential diagnosis. Boca Raton: CRC Press, 1996;3-12.
  • 3
    Mitrović D, Popović M, Stefanović D, Cirković M, Glisić B, Pavlica L et al Antiphospholipid syndrome in systemic connective tissue diseases. Vojnosanit Pregl. 1998;55(2 Suppl):29-33.
  • 4
    Ng KP, Ramos F, Sultan SM, Isenberg DA. Concomitant diseases in a cohort of patients with idiopathic myositis during long-term follow-up. Clin Rheumatol 2009;28(8):947-53.
  • 5
    Sherer Y, Livneh A, Levy Y, Shoenfeld Y, Langevitz P. Dermatomyositis and polymyositis associated with the antiphospholipid syndrome - a novel overlap syndrome. Lupus 2000;9(1):42-6.
  • 6
    Mori A, Nodera H, Nakane S, Kaji R. Transverse myelitis and polymyositis associated with antiphospholipid antibody syndrome. Clin Neurol Neurosurg 2010;112(8):713-6.
  • 7
    Ponyi A, Constantin T, Dankó K. Antiphospholipid and antisynthetase syndrome in a patient with polymyositis-rheumatoid arthritis overlap. Clin Rheumatol 2004;23(4):371-2.
  • 8
    Tarr T, Lakos G, Bhattoa HP, Szegedi G, Shoenfeld Y, Kiss E. Primary antiphospholipid syndrome as the forerunner of systemic lupus erythematosus. Lupus 2007;16(5):324-8.
  • 9
    Ramos-Casals M, Brito-Zerón P, Font J. The overlap of Sjögren's syndrome with other systemic autoimmune diseases. Semin Arthritis Rheum 2007;36(4):246-55.
  • 10
    Jackson J, McDonald M, Casey E, Kelleher S, Murray A, Temperley I et al Mixed connective tissue disease with arterial thrombosis, antiphospholipid antibodies and heparin induced thrombocytopenia. J Rheumatol 1990;17(11):1523-4.
  • 11
    Perinbasekar S, Chawla K, Rosner F, Depestre M. Complete recovery from renal infarcts in a patient with mixed connective tissue disease. Am J Kidney Dis 1995;26(4):649-53.
  • 12
    Zuber M, Kranzhöfer N, Lindemuth R, Hartmann F. A patient with mixed collagen disease, antiphospholipid syndrome and Sjögren syndrome. Med Klin (Munich) 1998;93(1):34-8.
  • 13
    Crowson AN, Magro CM. The role of microvascular injury in the pathogenesis of cutaneous lesions of dermatomyositis. Hum Pathol 1996;27(1):15-9.
  • 14
    Krause I, Blank M, Kopolovic J, Afek A, Goldberg I, Tomer Y et al Abrogation of experimental systemic lupus erythematosus and primary antiphospholipid syndrome with intravenous gamma globulin. J Rheumatol 1995;22(6):1068-74.
  • 15
    Bakimer R, Guilburd B, Zurgil N, Shoenfeld Y. The effect of intravenous gama-globulin on the induction of experimental antiphospholipid syndrome. Clin Immunol Immunopathol 1993;69(1):97-102.
  • Correspondência para:

    Samuel Katsuyuki Shinjo
    Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
    Av. Dr. Arnaldo, 455, 3º andar - sala 3150
    CEP: 01246-903. São Paulo, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      30 Jan 2011
    • Aceito
      08 Maio 2012
    Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: sbre@terra.com.br