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Retocolite ulcerativa e artrite reumatoide: uma rara associação - relato de caso

Resumos

A retocolite ulcerativa é uma desordem autoimune de etiologia desconhecida. Embora o intestino grosso represente o principal foco de autoimunidade, trata-se, na verdade, de uma doença sistêmica com inúmeras manifestações extraintestinais, inclusive articulares. A associação frequente entre diversas doenças autoimunes em um mesmo paciente é descrita na literatura. No entanto, é rara a coexistência entre retocolite ulcerativa e artrite reumatoide. Os autores relatam um caso de retocolite ulcerativa associada à artrite reumatoide em que a colite precedeu em 12 anos o aparecimento da artropatia inflamatória.

artrite reumatoide; proctocolite; espondiloartropatias


Ulcerative colitis is an autoimmune disorder of unknown etiology. Although the large intestine is the major focus of autoimmunity, resulting in chronic diarrhea, that is actually a systemic disease, with numerous extraintestinal manifestations, such as articular involvement. The frequent association of a number of autoimmune diseases in the same patient has been described. However, the coexistence of ulcerative colitis and rheumatoid arthritis is rare. The authors report a case of ulcerative colitis associated with rheumatoid arthritis, in which colitis occurred 12 years before the onset of inflammatory arthropathy.

rheumatoid arthritis; ulcerative colitis; spondyloarthritis


RELATO DE CASO

Retocolite ulcerativa e artrite reumatoide: uma rara associação - relato de caso

Vitor Alves CruzI; Lúcio YamaguchiII; Carolina Nazeozeno RibeiroIII; Vanessa de Oliveira MagalhãesIV; Jozelia RegoV; Nilzio Antonio da SilvaVI

IReumatologista; Médico-Assistente do Serviço de Reumatologia e Coordenador do Ambulatório de Artrite Reumatoide, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - HC-UFG

IIResidente (R1) de Reumatologia, HC-UFG

IIIResidente (R2) de Reumatologia, HC-UFG

IVReumatologista; Médica-Assistente do Serviço de Reumatologia, HC-UFG

VReumatologista; Doutora em Ciências da Saúde, UFG; Professora-Adjunta da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina, UFG

VIDoutor em Reumatologia, Universidade de São Paulo - USP; Professor Titular da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina, UFG

Correspondência para Correspondência para: Vitor Alves Cruz Departamento de Clínica Médica - Serviço de Reumatologia 1ª Avenida, s/n - Setor Leste Universitário CEP: 74605-020. Goiânia, GO, Brasil E-mail: vitorcruz@msn.com

RESUMO

A retocolite ulcerativa é uma desordem autoimune de etiologia desconhecida. Embora o intestino grosso represente o principal foco de autoimunidade, trata-se, na verdade, de uma doença sistêmica com inúmeras manifestações extraintestinais, inclusive articulares. A associação frequente entre diversas doenças autoimunes em um mesmo paciente é descrita na literatura. No entanto, é rara a coexistência entre retocolite ulcerativa e artrite reumatoide. Os autores relatam um caso de retocolite ulcerativa associada à artrite reumatoide em que a colite precedeu em 12 anos o aparecimento da artropatia inflamatória.

Palavras-chave: artrite reumatoide, proctocolite, espondiloartropatias.

INTRODUÇÃO

A retocolite ulcerativa (RCU) é uma doença inflamatória sistêmica, de causa desconhecida e de natureza essencialmente autoimune. Afeta predominantemente o cólon e o reto, resultando em diarreia crônica. Embora a associação entre doenças autoimunes seja conhecida, é rara a coexistência de retocolite e artrite reumatoide (AR).1

O envolvimento articular ocorre tanto na RCU quanto na doença de Crohn, observado em até 30% dos casos. São descritos dois padrões de acometimento: a forma espondilítica e a forma periférica. Ambas podem preceder o quadro intestinal, embora geralmente a artropatia se manifeste posteriormente à colite.2

A forma espondilítica é clínica e radiologicamente similar à espondilite anquilosante. A artropatia periférica costuma apresentar-se como oligoartrite assimétrica, afetando predominantemente os membros inferiores. É geralmente de curso mais agudo em relação à AR, não erosiva e, em geral, o controle da inflamação intestinal induz sua remissão. No entanto, pode ser crônica e erosiva em 10% dos pacientes - Norton et al.3 descreveram pacientes com artropatia atípica, com erosões, destruição e deformidades em associação à doença de Crohn. Na maioria dos casos é soronegativa, embora o fator reumatoide (FR), em baixo título, possa ocorrer eventualmente. Não há descrição de associação com o autoanticorpo contra as proteínas citrulinadas (anti-CCP). É rara a artrite das pequenas articulações das mãos e dos punhos. Tal envolvimento torna obrigatório o diagnóstico diferencial com a AR - especialmente quando o FR é positivo.2-4

Em muitos casos, torna-se um desafio o diagnóstico diferencial entre a artropatia secundária à própria doença inflamatória intestinal, também chamada de enteropática, e a ocorrência de manifestações articulares relacionadas a outras entidades nosológicas concomitantes à RCU.

Os autores relatam um caso de associação entre RCU e AR, em que a colite precedeu em 12 anos o aparecimento da artropatia inflamatória.

RELATO DE CASO

IOR, mulher, natural e procedente de Santana, Bahia, procurou o Ambulatório de Reumatologia em maio de 2005 com queixas de dor e edema em segundo, terceiro e quarto interfalangeanos proximais (IFP) de ambas as mãos e punhos, com rigidez matinal de 1h e 30 min. Referia início dos sintomas em 2001. Negava outras queixas articulares, síndrome seca, fotossensibilidade, úlceras orogenitais, erupção cutânea e fenômeno de Raynaud. Relatou quadro de diarreia crônica em tratamento com coloproctologista. Antecedentes: diagnóstico de RCU em 1989. Na época, apresentava diarreia líquida com muco, pus e sangue há seis meses, com colonoscopia evidenciando pancolite, úlceras longitudinais e pseudopólipos. A biópsia exibia infiltração intensa de polimorfonucleares na mucosa, com abscessos de cripta. Fazia uso regular de sulfassalazina 2 g/dia.

Ao exame físico, apresentava artrite em segundo, terceiro e quarto IFP das mãos e punhos, sem outras anormalidades. Os exames complementares apresentaram hemograma normal, velocidade de hemossedimentação 60 mm, proteína C-reativa positiva, função renal e hepática normais, FR 451 UI/mL, anti-CCP 439,5 UI/mL, fator antinuclear 1:40 padrão nuclear pontilhado fino, ANCA negativo. Raio x de mãos mostrou acentuada redução do espaço articular no carpo e erosões marginais no processo estiloide da ulna, bilateralmente (Figura 1). Concluiu-se por AR associada à RCU. Foi prescrito metotrexato 15 mg/semana, com melhora do quadro articular. Em dezembro de 2009 houve reativação dos quadros intestinal e articular. Foi rediscutida a abordagem terapêutica e optou-se pelo início de terapia anti-TNF, com melhora significativa dos sintomas tanto articulares quanto intestinais.


DISCUSSÃO

Não é incomum a coexistência entre a AR e outras doenças autoimunes, como tireoidite autoimune, vitiligo e lúpus eritematoso sistêmico. A principal associação relatada é com a síndrome de Sjögren, ocorrendo em até 30% dos casos. A associação com doença inflamatória intestinal é raramente observada.2,5

A associação entre AR e RCU é uma descrição rara na literatura. Aoyangi et al.,6 em coorte prospectiva realizada entre 1980 e 1989 com pacientes portadores de RCU, não observaram nenhum caso de sobreposição com AR. Utsunomiya7 encontrou em seu estudo prevalência de 0,4% de AR em 5.833 pacientes portadores de RCU. Sawada8 identificou a mesma prevalência em estudo menor, com 1.433 pacientes. Snook et al.9 descreveram apenas sete casos de AR em 858 pacientes com RCU. Na maioria dos relatos, a RCU complicava o curso da AR estabelecida.5-9

Em nosso estudo, o início insidioso, o envolvimento das pequenas articulações de mãos e punhos, os achados radiológicos e o FR e o anti-CCP positivos sustentam a hipótese da coexistência de AR e RCU. O anti-CCP está raramente presente em outras doenças reumáticas, como a artrite psoriásica. Parece estar diretamente relacionado ao tabagismo, que amplifica o processo de citrulinação de autoantígenos. Até 1% dos controles saudáveis, e de 2%-5% dos controles doentes, têm reatividade ao anti-CCP, geralmente em títulos baixos, com valor médio de 39 UI/mL. Altas concentrações do anti-CCP são quase exclusivamente associadas à AR.10

A relação entre AR e RCU não está claramente definida. Supõe-se que determinados genes poderiam predispor simultaneamente às duas condições. Até o momento, porém, nenhum fator de risco genético foi apontado. Estudos realizados em pacientes portadores de RCU e controles sugerem que o HLA-DR4 atuaria como fator protetor para colite. Tal fato poderia justificar a rara associação, uma vez que tal antígeno do complexo principal de histocompatibilidade classe II tem papel importante na patogênese da AR.11

O uso de imunossupressores no tratamento da RCU também pode exercer papel relevante na baixa frequência da associação com a AR. Fármacos como a sulfassalazina e os corticosteroides inibem a resposta inflamatória sistêmica, o que justificaria a menor incidência de outras patologias autoimunes concomitantes à doença inflamatória intestinal.

A resposta imune anormal a bactérias intestinais foi demonstrada em diferentes tipos de artrite. Alguns estudos em modelos animais revelaram que fragmentos da parede celular bacteriana, principalmente os complexos de polissacarídeos, podem desencadear tanto sinovite quanto colite por meio da ativação das células T. A infecção no trato gastrintestinal pode, portanto, ter papel relevante tanto na RCU quanto na AR.12,13 Asada et al.2 descreveram a associação RCU/AR concomitantemente à deficiência seletiva de IgA. Tal alteração predispõe a quebra da barreira contra a flora intestinal, ampliando a exposição das células imunes da mucosa a antígenos bacterianos.2

A confirmação do aumento da expressão de interleucina 15 na mucosa intestinal - tal como ocorre na sinóvia reumatoide - e ainda a fraca evidência do predomínio da resposta Th2 na RCU, sustentam o elo entre as duas entidades. No entanto, tais achados são ainda insuficientes para a total compreensão dos mecanismos envolvidos na coexistência entre as duas doenças.12,13

Recentemente, Amezcua et al.14 descreveram um caso de RCU em paciente portador de AR após uso do abatacepte. Especula-se que o uso de tal fármaco modificaria o balanço de mediadores pró-inflamatórios e o perfil linfocítico, favorecendo a ocorrência de uma nova doença autoimune. O bloqueio à coestimulação poderia interferir na manutenção e no desenvolvimento das células T regulatórias, que controlam a inflamação intestinal.14

A colite pode complicar o curso da AR. Nesse caso, ocorrência de vasculite reumatoide, colite fármaco-induzida, amiloidose secundária e ainda colites infecciosas (colite pseudomembranosa e colite por citomegalovírus) devem ser consideradas.13,14

Em pacientes nos quais a AR ocorre no curso da RCU estabelecida, o principal diagnóstico diferencial é com a artropatia secundária à própria doença inflamatória intestinal.13

Na ocorrência de artrite periférica em pacientes com doença inflamatória intestinal, o diagnóstico de artropatia enteropática deve ser aventado com cautela. Embora até 30% dos pacientes possam apresentar tal manifestação sistêmica, diagnósticos diferenciais como sobreposição com AR não devem ser negligenciados. Mais estudos são necessários para melhor compreensão dos mecanismos fisiopatogênicos determinantes nessa rara associação.

Recebido em 07/02/2011.

Aprovado, após revisão, em 08/05/2012.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Serviço de Reumatologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - UFG

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  • Correspondência para:

    Vitor Alves Cruz
    Departamento de Clínica Médica - Serviço de Reumatologia
    1ª Avenida, s/n - Setor Leste Universitário
    CEP: 74605-020. Goiânia, GO, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      07 Fev 2011
    • Aceito
      08 Maio 2012
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