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Osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais: relato de caso e revisão da literatura

Resumos

A osteocondrose é uma falha na ossificação subcondral com predileção pelo esqueleto imaturo e cuja etiologia permanece indefinida. Pode afetar os côndilos femorais (geralmente o medial), e o acometimento é, na maioria, unilateral. Os autores chamam a atenção desse diagnóstico, geralmente tardio por sua ocorrência infrequente, e relatam o caso raro de uma criança com osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais, ressaltando que, até o presente momento, apenas um caso semelhante foi descrito na literatura.

osteocondrose; pediatria; reumatologia; ortopedia; osteocondrite


Osteochondrosis is an injury on subchondral ossification with predominance of immature skeleton and whose etiology remains unknown. It may affect the femoral condyles (usually the medial condyle) and the involvement is mostly unilateral. The authors draw the attention to this usually late diagnosis due to its infrequent occurrence and report a child's rare case of bilateral osteochondrosis on lateral femoral condyles, stressing that just one similar case has been described in the orthopaedic literature up to the present time.

osteochondrosis; pediatrics; rheumatology; orthopedics; osteochondritis


RELATO DE CASO

Osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais: relato de caso e revisão da literatura

Blanca Elena Rios Gomes BicaI; Danilo Garcia RuizII; Fernanda Frade ParanhosIII; Antônio Vítor de AbreuIV; Mário Newton Leitão de AzevedoV

IProfessora-Adjunta, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

IIReumatologista; Mestre em Clínica Médica, UFRJ; Professor do curso de Medicina, Faculdade ITPAC Porto Nacional

IIIPós-Graduada em Reumatologia, UFRJ

IVProfessor-Associado, Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Faculdade de Medicina, UFRJ

VProfessor-Associado, Faculdade de Medicina, UFRJ

Correspondência para Correspondência para: Danilo Garcia Ruiz Rua 02, quadra 07 S/N, Jardim dos Ipês Porto Nacional, TO, Brasil. CEP: 77500-000 E-mail: danilogruiz@hotmail.com

RESUMO

A osteocondrose é uma falha na ossificação subcondral com predileção pelo esqueleto imaturo e cuja etiologia permanece indefinida. Pode afetar os côndilos femorais (geralmente o medial), e o acometimento é, na maioria, unilateral. Os autores chamam a atenção desse diagnóstico, geralmente tardio por sua ocorrência infrequente, e relatam o caso raro de uma criança com osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais, ressaltando que, até o presente momento, apenas um caso semelhante foi descrito na literatura.

Palavras-chave: osteocondrose, pediatria, reumatologia, ortopedia, osteocondrite.

INTRODUÇÃO

A osteocondrose é uma enfermidade caracterizada pelo desprendimento de um segmento cartilaginoso conjuntamente com o osso subcondral adjacente em determinada articulação. Pode ser definida como uma falha na ossifi cação subcondral.1 Mecanismos traumáticos,2 isquêmicos,3 hereditários,1 metabólicos e nutricionais4 têm sido estudados e propostos como fatores causais, porém sua etiologia permanece indefinida.

Todas as articulações podem ser acometidas. Em relação aos fêmures, a osteocondrose mais comum acomete a epífise femoral proximal (doença de Legg-Calvé-Perthes), mas pode acometer os côndilos femorais, geralmente os mediais. Em sua maioria é unilateral, podendo ser multifocal em alguns casos.5 A osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais é uma apresentação incomum e, por isso, os autores chamam a atenção desse diagnóstico, frequentemente tardio.

Relatamos o caso de uma criança com osteocondrose bilateral de côndilos femorais laterais, ressaltando que, até o presente momento, apenas um caso semelhante foi descrito na literatura.6

RELATO DE CASO

Paciente masculino, eutrófico e previamente hígido, com trauma contuso em joelho direito aos 10 anos de idade evoluindo com aumento de volume lento e progressivo em ambos os joelhos durante um ano, associado a calor local e limitação funcional sem resposta a repouso e a anti-infl amatórios não hormonais.

Após seis meses de investigação diagnóstica inconclusiva em outro hospital, chegou ao Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro apresentando volumoso edema em joelhos associado à dor e deformidade em valgo bilateral (Figura 1). Negava queixas relacionadas a outras articulações e tampouco referia sintomas constitucionais como febre e perda de peso. A biópsia do terço proximal da tíbia não apresentou alterações ósseas significativas.


A investigação laboratorial revelou aumento dos marcadores inflamatórios (velocidade de hemossedimentação de 74 mm/h e proteína C-reativa de 12,71 mg/L). Hemograma, funções hepática e renal, eletroforese de proteínas e de hemoglobina e ferritina estavam normais. A pesquisa de micobactérias, fungos e bactérias no líquido sinovial foi negativa. Doenças hormonais e osteometabólicas foram descartadas pela endocrinologia pois as dosagens séricas de cálcio, fósforo, albumina, fosfatase alcalina, paratormônio, TSH, 25(OH)vitamina D, além de calciúria e fosfatúria de 24 horas estavam normais. Siringomielia e osteocondrodisplasias foram descartadas com ressonância magnética da coluna lombossacra, radiografias e tomografia computadorizada (TC) dos joelhos, assim como a hipótese de artrite idiopática juvenil.

ATC dos joelhos evidenciou diferença de altura e esclerose dos côndilos femorais laterais, irregularidade da superfície articular, derrame articular e distensão da bursa suprapatelar bilateralmente, além de espessamento sinovial com calcificações lineares (Figura 2a). A ressonância magnética de joelhos evidenciou sinovite, derrame articular e erosão óssea principalmente em compartimento lateral de fêmures.


Devido à rápida progressão do desalinhamento e grande dificuldade na marcha, o paciente foi submetido à cirurgia para correção de genovalgismo bilateral (epifisiodese com parafuso canelado, Figura 2b) e realizada nova biópsia, dessa vez das epífises distais femorais, a qual evidenciou osteocondrose de côndilos femorais.

Quatro meses após a epifisiodese, ainda se observava progressão do desvio do eixo dos membros, quando foi realizado novo procedimento para redução do valgismo de joelhos por meio da colocação de fixador externo bilateral. Houve a necessidade de outros dois procedimentos ortopédicos após 11 meses para liberação de aderências do joelho esquerdo e osteotomia de fêmur direito, seguida de montagem transarticular femorotibial de aparelho de Ilizarov e neurólise do nervo fibular comum. Após quatro meses, realizou-se a osteossíntese com fixador externo em tíbia esquerda.

Atualmente, após 36 meses do início do quadro, o paciente encontra-se assintomático, portando fixadores externos bilaterais em membros inferiores e deambulando com auxílio de muletas.

DISCUSSÃO

O diagnóstico de osteocondrose é de extrema importância para o clínico, principalmente para o pediatra. Sabe-se que é uma condição muito heterogênea quanto à apresentação clínica e à gravidade. Não obstante, as osteocondroses estão descritas na literatura médica há um longo tempo.

Os primeiros relatos de Osteochondritis deformans juvenalis datam das décadas iniciais do século XX e são posteriores às descrições de Legg, Perthes e Calvé para definir um defeito na linha de fechamento epifisário da região proximal dos fêmures.7 Posteriormente, outros sítios anatômicos que compartilhavam características clínicas semelhantes foram identificados e nomeados conforme os estudiosos que os relataram: o acometimento da cabeça do segundo metatarso recebeu a denominação de Doença de Freiberg; o acometimento do calcâneo foi denominado Doença de Sever, entre outros.1

O termo osteocondrose surge, então, para unificar e descrever um grupo de desordens que inclui a predileção pelo esqueleto imaturo e o envolvimento preferencial de osso epifisário, além de fragmentação, colapso ósseo e reossificação com reconstituição do contorno ósseo.8 Publicações mais recentes optam por classificar as osteocondroses baseadas no local anatômico de acometimento, gerando as divisões em osteocondrose do esqueleto axial, das extremidades superior e inferior do esqueleto apendicular.9

Sua etiologia foi motivo de diversos estudos, mas permanece desconhecida. Em 1915, Allison acreditava que um distúrbio circulatório explicaria o defeito na linha de fechamento epifisário na região proximal dos fêmures7 e a má perfusão sanguínea foi demonstrada por diversos estudos em modelos animais.3 Na década de 1930 descreveu-se uma possível associação de hipotireoidismo com retardo no fechamento epifisário e osteocondrite em meninos,10 e hoje sabe-se da importância de fatores endócrinos, metabólicos e nutricionais tanto na fisiologia quanto na patologia da cartilagem.4

Na década de 1960 surgiram relatos de osteocondrite da cabeça umeral similar à Doença de Perthes dos quadris sem associação etiológica com traumas,11 mas o transcorrer da história mostrou que esforço repetitivo e traumas têm papel definitivo na patogênese da osteocondrose.2

Quanto aos locais de acometimento, a osteocondrose da porção distal do fêmur afeta mais frequentemente os côndilos femorais mediais unilateralmente (85% dos casos),1 mas pode desenvolver-se em locais variados - os relatos vão desde osteocondrose bilateral de patela12 à osteocondrose múltipla.5

A apresentação clínica crônica, progressiva e deformante do caso relatado mostrou-se um desafio. Houve necessidade de se considerar diversos diagnósticos diferenciais, como artrite idiopática juvenil, doenças infecciosas crônicas, anemia falciforme, doenças osteometabólicas e siringomielia.

As osteocondrodisplasias, apesar de compreenderem centenas de entidades clínicas, apresentam características próprias não observadas em nosso paciente. As displasias espondiloepifisárias, por exemplo, afetam múltiplos ossos; a acondroplasia cursa com membros curtos e lordose lombar aumentada; a encondromatose é um distúrbio da placa de crescimento geralmente unilateral e que afeta o desenvolvimento de ossos longos.13

Outro importante diagnóstico diferencial por também afetar os côndilos femorais é a osteocondrite dissecante.14 Contudo, ela atinge preferencialmente os côndilos mediais, geralmente é limitada à epífi se femoral,15 está associada a trauma repetitivo (como em decorrência de corridas), e não são frequentes a necrose óssea nem a agressividade clínica, como no relato apresentado. Pode haver ainda associação com meniscos e/ou anormalidades ligamentares como frouxidão.15 A ressonância magnética é o método diagnóstico de escolha por demonstrar as alterações ósseas e cartilagíneas mais precocemente que a radiografi a convencional.16

O tratamento da osteocondrite dissecante e da osteocondrose de côndilos femorais é semelhante. Há boa resposta quando se propõe manejo conservador (manutenção das atividades cotidianas e fortalecimento dos quadríceps) para lesões identificadas antes do fechamento epifisário e cirúrgico para os casos com evidências de fragmentos livres intra-articulares e prejuízo funcional.14

O presente estudo relata o caso clínico de uma criança com achados clínicos, radiológicos e histopatológicos compatíveis com o diagnóstico de osteocondrose bilateral de côndilos femorais, diagnosticado após 12 meses de evolução, que evoluiu com graves deformidades e necessidade de múltiplas cirurgias pelo longo retardo diagnóstico. Até o momento, apenas outro caso de osteocondrose femoral deformante e bilateral foi descrito na literatura médica, com a diferença de afetar predominantemente os quadris.6

Recebido em 15/03/2011

Aprovado, após revisão, em 27/06/2012

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Serviço de Reumatologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

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  • Correspondência para:

    Danilo Garcia Ruiz
    Rua 02, quadra 07 S/N, Jardim dos Ipês
    Porto Nacional, TO, Brasil. CEP: 77500-000
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      15 Mar 2011
    • Aceito
      27 Jun 2012
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