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Fotossensibilidade amplificada? Relato de porfiria cutânea tarda associada a lúpus eritematoso sistêmico

Resumos

A associação de porfiria cutânea tarda (PCT) e lúpus eritematoso sistêmico (LES) é rara. O LES, de fisiopatologia complexa e manifestações clínicas pleomórficas, assemelha-se à PCT pela fotossensibilidade. Um achado que pode diferenciar as duas doenças são as lesões cutâneas bolhosas, raras no LES, mas características da PCT. Descrevemos um caso de associação de PCT e LES e revisamos a literatura, enfatizando questões fisiopatológicas, clínicas e terapêuticas. Um dado relevante para a prática clínica concerne ao tratamento do lúpus com antimaláricos, o que pode oferecer riscos para a PCT.

lúpus eritematoso sistêmico; porfiria cutânea tarda; porfirias


The association of porphyria cutanea tarda (PCT) and systemic lupus erythematosus (SLE) is rare. Systemic lupus erythematosus, of complex pathophysiology and pleomorphic clinical manifestations, is similar to PCT regarding photosensitivity. One finding that can differentiate both diseases is the presence of cutaneous blisters, which are rare in SLE, but characteristic of PCT. We report one case of the association of PCT and SLE and revise the literature, emphasizing pathophysiological, clinical and therapeutic aspects. One relevant information for clinical practice relates to the treatment of SLE with antimalarials, which is a risk for PCT.

systemic lupus erythematosus; porphyria cutanea tarda; porphyrias


RELATO DE CASO

Fotossensibilidade amplificada? Relato de porfiria cutânea tarda associada a lúpus eritematoso sistêmico

Scheila FritschI; Adma Silva de Lima WojcikII; Lilian SchadeI; Milton Marcio Machota JuniorIII; Fabiane Mulinari BrennerIV; Eduardo dos Santos PaivaV

IMédico Residente em Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná - HC-UFPR

IIDermatologista, HC-UFPR

IIIMédico Residente em Patologia Médica, HC-UFPR

IVDermatologista; Mestre em Medicina Interna; Professora do Serviço de Dermatologia, HC-UFPR

VReumatologista; Professor-Assistente de Reumatologia, UFPR

Correspondência para Correspondência para: Scheila Fritsch Rua Mauá, 360, apto 304 - Alto da Glória CEP: 80030-200. Curitiba, PR, Brasil E-mail: scheilaf@gmail.com

RESUMO

A associação de porfiria cutânea tarda (PCT) e lúpus eritematoso sistêmico (LES) é rara. O LES, de fisiopatologia complexa e manifestações clínicas pleomórficas, assemelha-se à PCT pela fotossensibilidade. Um achado que pode diferenciar as duas doenças são as lesões cutâneas bolhosas, raras no LES, mas características da PCT. Descrevemos um caso de associação de PCT e LES e revisamos a literatura, enfatizando questões fisiopatológicas, clínicas e terapêuticas. Um dado relevante para a prática clínica concerne ao tratamento do lúpus com antimaláricos, o que pode oferecer riscos para a PCT.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico, porfiria cutânea tarda, porfirias.

INTRODUÇÃO

As porfirias são doenças metabólicas causadas por anormalidades enzimáticas na via de formação do heme, necessário para a síntese de hemoglobina e citocromos.1 Dependendo da mutação responsável pela alteração enzimática, acumulam-se metabólitos diferentes. São conhecidos oito tipos de porfirias,1 que são classificadas em hepáticas ou cutâneas (dependendo de onde os precursores se acumulam em maior quantidade) ou ainda em porfirias agudas, recessivas raras ou cutâneas. Neste último grupo está a porfiria cutânea tarda (PCT), doença bolhosa de marcante fotossensibilidade. Sua associação com o lúpus eritematoso sistêmico (LES) já foi relatada, e apesar de não haver dados sobre o prognóstico da associação, tal associação pode ter implicações terapêuticas. Por isso, relatamos um caso de associação de LES e PCT e revisamos a literatura sobre o tema.

RELATO DE CASO

Homem de 50 anos, porteiro, previamente hígido, sem uso de medicação prévia à apresentação ou história familiar significativa. Referia hiperpigmentação cutânea de áreas fotoexpostas há quatro anos. Relatava surgimento de bolhas na pele dos membros superiores e na face há um ano, que ao se romperem originavam lesões exulceradas, crostosas, que cicatrizavam com hiperpigmentação e formação de milia (Figura 1). A dosagem urinária de porfirinogênio foi de 3 mg/24h (referência < 1,5 mg), e uma biópsia de lesão vesiculosa em dorso de mão foi compatível com porfiria (Figura 2). Após flebotomias, houve cicatrização das lesões. Seis meses depois, o paciente apresentou hipertensão arterial, plaquetopenia (76.000 plaquetas) e proteinúria nefrótica (8,25 g/24h). Diagnosticou-se sorologia positiva para hepatite C (HCV), com transaminases normais, HCV-RNA negativo e ecografia de abdômen sem evidência de hipertensão portal. As sorologias para hepatite B e HIV eram negativas, e o ferrograma apresentava-se normal. A investigação adicional revelou fator antinuclear (FAN) com título de 1:640, padrão nuclear pontilhado grosso, anti-RNP positivo, nível de C3 normal e C4 consumido e anti-DNA positivo (1:80). A biópsia renal evidenciou glomerulonefrite mesangioproliferativa, com imunofluorescência rica em depósitos granulares de IgG, IGA e C3, com índice de atividade 4 e de cronicidade 2. Devido a proteinúria em altos níveis, hipertensão arterial, positividade do anti-DNA e consumo de complemento, iniciou-se pulsoterapia mensal com ciclofosfamida e metilprednisolona (0,75 mg/m2 e 1 g endovenoso, respectivamente). Não houve reativação do HCV (PCR quantitativo permaneceu indetectável), e conseguiu-se melhora da proteinúria.



DISCUSSÃO

A PCT, forma mais frequente de porfiria, é causada pela deficiência da enzima uroporfirinogênio decarboxilase (UROD). O diagnóstico baseia-se em exame físico, excreção urinária de porfirinas e detecção de isocoproporfirina nas fezes.2 As lesões, restritas a áreas fotoexpostas, são principalmente bolhas que evoluem com crostas e milias e cicatrizam em semanas a meses, deixando áreas atróficas ou hiperpigmentadas. Hipertricose, placas esclerodérmicas e alopécia cicatricial também são descritas.2 Histopatologicamente, a pele apresenta fendas subepidérmicas com festonamento (projeção das papilas dérmicas para o interior das fendas). No ácido periódico de Schiff (PAS) com digestão observa-se espessamento da parede de vasos na derme superficial - local de maior dano pela fotoexposição1 e infiltrados linfomononucleares perivasculares.3 Sob imunofluorescência, detectam-se depósitos de imunoglobulinas, principalmente IgG.4 A disfunção hepática, frequente na PCT, varia em gravidade, principalmente se houver abuso de álcool e/ou excesso de ferro. A fisiopatologia da doença pode ser explicada pelo acúmulo de porfirinas na pele, que são "fotossensibilizadoras".4 As moléculas estimuladas pela luz transferem energia para moléculas adjacentes, promovendo peroxidação de membranas lipídicas e oxidação de ácidos nucleicos, além da ação das porfirinas na ativação de complemento, estimulação de polimorfonucleares e indução da produção de colágeno por fibroblastos.5 Além da luz ultravioleta, a PCT está associada a outros fatores que contribuem para inativação/inibição da enzima UROD, como estrógenos, álcool, acúmulo de ferro, HCV e HIV. O tratamento com hidroxicloroquina também já foi relacionado à PCT.5 O controle da doença envolve total proteção à exposição solar, cessação do etilismo e estrógenos. Em pacientes com PCT e hemocromatose, flebotomias são o tratamento mais adequado. Pacientes sem excesso de ferro podem beneficiar-se de baixas doses de cloroquina (100-200 mg duas vezes por semana), pois essa droga mobiliza porfirinas hepáticas e favorece sua excreção urinária.

As lesões de pele do LES podem ser específicas ou inespecíficas.6 Destas últimas, as lesões bolhosas são raras (menos de 5% dos casos),7 devendo levar à suspeição de outras entidades (como PCT, pênfigos, dermatite herpetiforme, epidermólise bolhosa adquirida e lesões farmacoinduzidas).4,6,7 Se as bolhas forem causadas pelo lúpus, elas costumam ser crônicas, disseminadas, subepidérmicas e habitualmente não deixam cicatriz.7

O caso relatado apresentou padrão histológico de nefrite lúpica mesangio-proliferativa ou classe II,8 que habitualmente manifesta-se com proteinúria não nefrótica, sem alterações de pressão arterial, complemento, função renal, além da negatividade do anti-DNA - diferente do observado neste caso. O HCV (detectado pela sorologia, com PCR quantitativo sempre negativo) também pode desencadear glomerulonefrite mesangioproliferativa.9 Como o HCV não explica os outros achados de LES neste caso, e há a possibilidade de o anti-HCV ser falsamente positivo, consideramos o quadro renal compatível com nefrite lúpica. Entretanto, esse vírus poderia estar relacionado ao aparecimento de lesões da PCT neste paciente.

A PCT já foi associada a várias doenças autoimunes. A maior casuística já publicada sobre a associação de PCT e LES data de 1998.5 Naquela coorte, dentre 676 pacientes com porfiria (todos os tipos), 2% tinham LES, com a maioria dos pacientes adultos na quarta década. O diagnóstico de LES antecede o da porfiria na maior parte dos relatos, 5 o que é contrário ao nosso caso. Possíveis explicações para a coexistência de LES e porfirias já foram sugeridas por Harris et al.,10 como alterações genéticas comuns, gatilho de resposta autoimune pela porfiria ou erros metabólicos desencadeados pelo LES que levem à porfiria. Quanto à primeira hipótese, sabe-se que o gene para a enzima UROD, defeituosa na PCT, está no cromossomo 1, e outra região desse mesmo cromossomo, 1q41-q42, já foi implicada na imunogenética do LES.7 Outro fato que suporta uma patogênese comum é a simultaneidade de ocorrência das doenças em alguns pacientes.5 Essa segunda hipótese pressupõe que porfirinas fotoestimuladas agem sobre células do sistema imune, levando a dano celular e exposição de autoantígenos. Apesar de atraente, ela não explica todos os casos (já que o LES pode anteceder a porfiria), e não há aumento significativo de autoanticorpos em pacientes com PCT.5 Para corroborarmos a terceira hipótese (LES desencadeante da porfiria), seria necessário o estudo de vias metabólicas da síntese do heme em pacientes com LES, o que não existe na literatura. A ocorrência de fatores de risco em comum, como a exposição à luz ultravioleta e anticoncepcionais orais, poderia explicar apenas parte dos casos.

Não há dados para definir se a concomitância é pura coincidência ou associação verdadeira de doenças,4,5 tampouco definição de fatores de risco de evolução de uma doença para outra, ou do prognóstico desses pacientes. Além do gênero masculino, seria a associação com PCT outro fator de gravidade para o prognóstico sistêmico do LES? Isso poderia corroborar porque, apesar de a biópsia renal demonstrar nefrite classe II, o paciente teve curso clínico-laboratorial mais agressivo que o esperado.

A associação traz consequências terapêuticas. A proteção solar deve ser mais intensa, pois as lesões da PCT são desencadeadas por comprimentos de onda maiores que do LES.5 O uso rotineiro de antimaláricos no LES pode oferecer riscos à PCT. Esses riscos são dose-dependentes, e vários autores contraindicam as posologias diárias indicadas para LES, pelo risco de porfirinúria maciça (febre, náuseas e lesão hepatocelular, inclusive com descrições de necrose hepática).1,4,5,7 Por isso, nos casos de associação de PCT e LES, indica-se o uso de baixas doses de antimaláricos (metade da dose usual e apenas duas vezes por semana).4

Na prática clínica, um paciente lúpico com fotossensibilidade marcante e lesões bolhosas deve ser sempre avaliado para porfirias, visto a implicação terapêutica da associação dessas doenças.

Recebido em 22/04/2011.

Aprovado, após revisão, em 05/09/2012.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Universidade Federal do Paraná - UFPR.

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  • Correspondência para:

    Scheila Fritsch
    Rua Mauá, 360, apto 304 - Alto da Glória
    CEP: 80030-200. Curitiba, PR, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      22 Abr 2011
    • Aceito
      05 Set 2012
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