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Vasculite testicular: uma manifestação rara de artrite reumatoide

Resumos

A vasculite testicular é uma manifestação extra-articular muito rara da artrite reumatoide (AR). Descrevemos o caso de um homem de 53 anos com diagnóstico de AR por oito anos, sem controle adequado da doença. O paciente desenvolveu vasculite reumatoide, manifestada por úlceras de membros inferiores e neuropatia periférica. Apresentou ainda meningite neutrofílica aguda, tendo sido tratado com antibióticos e posterior pulsoterapia endovenosa com metilprednisolona (500 mg/dia) por três dias, seguida de ciclofosfamida (2 mg/kg/ dia) e prednisona orais. O paciente apresentou melhora do quadro, mas 15 dias após a alta hospitalar, houve reativação da meningite bacteriana. O paciente foi reinternado e tratado novamente com antibióticos. Três dias depois da segunda admissão hospitalar, o paciente apresentou dor, aumento de volume do testículo esquerdo e posteriormente gangrena. Foi realizada orquiectomia unilateral e o exame anatomopatológico revelou vasculite linfocítica. O paciente faleceu dois dias após a cirurgia devido a pneumonia aspirativa. Esse caso ilustra a vasculite testicular como uma manifestação rara e grave da vasculite reumatoide.

Artrite reumatoide; Vasculite reumatoide; Doenças testiculares; Sepse


Testicular vasculitis is a very rare extra-articular manifestation of rheumatoid arthritis (RA). We describe the case of a 53-year-old man diagnosed with RA for eight years, who was poorly controlled and developed rheumatoid vasculitis, which manifested as leg ulcers and peripheral polyneuropathy. The patient also had acute neutrophilic meningitis and was treated with antibiotics and intravenous pulse therapy with methylprednisolone (500 mg daily) for three days, followed by oral cyclophosphamide (2 mg/kg daily) and prednisone. Overall improvement was observed, and the patient was discharged. But 15 days later, the meningitis recurred, and the patient was readmitted and treated again with antibiotics. Three days later, he developed pain and enlargement of his left testicle with gangrene. Unilateral orchiectomy was performed, revealing lymphocytic vasculitis. The patient died two days later due to aspiration pneumonia. This case illustrates a rare and severe manifestation of rheumatoid vasculitis.

Arthritis, rheumatoid; Rheumatoid vasculitis; Testicular diseases; Sepsis


RELATO DE CASO

Vasculite testicular - uma manifestação rara de artrite reumatoide

Alexandre Wagner S. de Souza* * Autor para correspondência. E-mail: alexandre_wagner@uol.com.br (A.W.S. Souza). ; Daniela Pereira Rosa; Ana Letícia Pirozzi Buosi; Ana Cecília Diniz Oliveira; Jamil Natour

Disciplina de Reumatologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

A vasculite testicular é uma manifestação extra-articular muito rara da artrite reumatoide (AR). Descrevemos o caso de um homem de 53 anos com diagnóstico de AR por oito anos, sem controle adequado da doença. O paciente desenvolveu vasculite reumatoide, manifestada por úlceras de membros inferiores e neuropatia periférica. Apresentou ainda meningite neutrofílica aguda, tendo sido tratado com antibióticos e posterior pulsoterapia endovenosa com metilprednisolona (500 mg/dia) por três dias, seguida de ciclofosfamida (2 mg/kg/ dia) e prednisona orais. O paciente apresentou melhora do quadro, mas 15 dias após a alta hospitalar, houve reativação da meningite bacteriana. O paciente foi reinternado e tratado novamente com antibióticos. Três dias depois da segunda admissão hospitalar, o paciente apresentou dor, aumento de volume do testículo esquerdo e posteriormente gangrena. Foi realizada orquiectomia unilateral e o exame anatomopatológico revelou vasculite linfocítica. O paciente faleceu dois dias após a cirurgia devido a pneumonia aspirativa. Esse caso ilustra a vasculite testicular como uma manifestação rara e grave da vasculite reumatoide.

Palavras-chave: Artrite reumatoide; Vasculite reumatoide; Doenças testiculares; Sepse

Introdução

A vasculite reumatoide (VR) é considerada uma complicação associada com artrite reumatoide (AR) de longa duração, em geral mais de 10 anos.1 A VR está relacionada a pior prognóstico devido ao aumento de morbimortalidade.2,3 Costuma se apresentar como infartos digitais, úlceras de membros inferiores, manifestações sistêmicas e mononeurite multiplex, mas pode envolver qualquer leito vascular, em especial as artérias mesentérica, coronárias e cerebrais. A VR é mais comum em homens, e alguns fatores preditivos, tais como tabagismo, nódulos reumatoide e fatores genéticos, foram identificados.1,4 A incidência de VR ao longo de 30 anos foi estimada em 3,6% entre pacientes com AR.5 Uma possível abordagem para o diagnóstico de VR é o uso dos critérios diagnósticos propostos; embora útil, esses critérios não foram ainda validados.4,6,7

Sabe-se que a inflamação testicular é uma manifestação de vasculites sistêmicas graves, como púrpura de Henoch-Schönlein e poliarterite nodosa, ou pode ocorrer como uma forma isolada de vasculite testicular.8-10 Na VR, o envolvimento testicular é extremamente raro e, até onde sabemos, existe um relato de caso descrevendo tal complicação em um paciente com AR e um outro em um paciente com artrite crônica juvenil.11,12 Descrevemos um caso de VR em um paciente com AR mal controlada e altos títulos de fator reumatoide (FR).

Relato de caso

Paciente masculino, branco, de 53 anos de idade, admitido no hospital universitário, queixando-se de úlceras, formigamento, adormecimento e fraqueza nos membros inferiores e piora da dor e edema de pequenas e grandes articulações nas últimas três semanas. O paciente informou ainda que, cinco dias antes da admissão, começou a apresentar febre, cefaleia intensa e vômitos. Já tinha o diagnóstico de AR há oito anos, com poliartrite simétrica e positividade para o FR (640 UI/mL). Além disso, tinha história anterior de hipertensão sistêmica, diabetes mellitus tipo 2 e tabagismo. Após o diagnóstico de AR, foi tratado com glicocorticoides (GC) e metotrexato, e depois com metotrexato e leflunomida (20 mg/dia), obtendo alguma melhora das queixas articulares por quatro anos. O paciente não fez acompanhamento ambulatorial pelos três anos seguintes, tendo usado apenas 20 mg de prednisona, uma vez ao dia, sem qualquer imunossupressor associado.

Ao exame físico, o paciente mostrava-se febril, com leves características cushingoides e duas úlceras profundas, com margens elevadas e deposição de fibrina, na perna esquerda. Apresentava edema e aumento da sensibilidade nas articulações interfalangeanas proximais e metacarpofalangeanas, punhos, cotovelos e joelhos. Seu escore DAS-28 era de 5,0. O exame neurológico revelou status mental normal, rigidez de nuca, redução dos reflexos profundos dos tendões em membros inferiores, comprometimento da sensibilidade abaixo dos joelhos e pé esquerdo caído. A análise do líquido cerebroespinhal (LCE) foi sugestiva de meningite bacteriana: 2.832 células/mm3 (98% de neutrófilos); proteína, 376,5 mg/dL; glicose, 69 mg/dL. A coloração de Gram e as culturas do LCE para bactérias aeróbicas, fungos e micobactérias foram negativas. A sorologia do LCE para toxoplasmose, sífilis, citomegalia, herpes simplex e criptococose foi também negativa. A biopsia incisional de pele revelou úlcera inespecífica com vasculite neutrofílica em uma pequena artéria. A eletromiografia mostrou polineuropatia sensitiva e motora axonal. O FR permaneceu positivo (1.280 UI/mL), sendo também positivos os anticorpos antiprofilagrina (título: 1/320). Os seguintes anticorpos foram negativos: fator antinuclear (FAN), anticitoplasma de neutrófilo (ANCA) e crioglobulinas. Os testes sorológicos para HIV, hepatite B e hepatite C foram negativos.

O paciente foi tratado com ceftriaxona (4 g/dia) por dez dias, tendo recebido pulsoterapia intravenosa com metilprednisolona (500 mg/dia) por três dias, seguida por prednisona oral (60 mg/dia) e ciclofosfamida oral (2 mg/kg/dia). Houve uma melhora geral das úlceras de perna, meningite, queixas articulares e neuropatia periférica.

Quinze dias após a alta, o paciente apresentou recorrência da febre, cefaleia e vômitos. Retornou ao hospital, foi submetido a outra punção lombar, tendo a análise do LCE mostrado: 4.640 células/mm3 (84% de neutrófilos); proteína, 276,5 mg/dL; e glicose, 116 mg/dL. Tais resultados confirmaram a recidiva da meningite. Suspeitou-se de infecção causada por Listeria monocytogenes, sendo o paciente tratado com meropenem e ampicilina, e a combinação de prednisona e ciclofosfamida temporariamente suspensa. Três dias após a admissão, o paciente queixou-se de dor escrotal e aumento do testículo esquerdo, e sinais de gangrena surgiram poucas horas mais tarde. O parecer da urologia recomendou cirurgia, sendo realizada orquiectomia radical unilateral. A avaliação histopatológica do espécime revelou vasculite linfocítica transmural nos ramos arteriais justa-funiculares com proliferação miointimal (fig. 1). O paciente desenvolveu pneumonia aspirativa e sepse após a cirurgia, a despeito do tratamento com antibióticos, drogas vasoativas e ventilação mecânica. Morte ocorreu dois dias mais tarde, devido a choque séptico.


Discussão

Este relato de caso ilustra o início de uma VR comprovada por biopsia com envolvimento de pele, nervos periféricos e artérias testiculares em um paciente com AR mal controlada e altos títulos de FR. Embora tenha apresentado melhora geral após o início de terapia imunossupressora com ciclofosfamida e GC, o paciente desenvolveu infecção grave, que foi considerada a principal causa de morte. Até onde sabemos, este é o segundo relato de caso de VR com envolvimento testicular em um paciente adulto com AR. Este caso é semelhante ao previamente relatado quanto ao início da VR em paciente masculino de meia-idade com AR soropositiva de longa duração e pouca adesão ao tratamento. Houve acometimento de pele e nervos periféricos nos dois casos, tendo o envolvimento testicular ficado aparente após uma melhora inicial com GC e ciclofosfamida. Nosso paciente, no entanto, apresentou vasculite linfocítica nos ramos arteriais justa-funiculares dos testículos em lugar da vasculite leucocitoclástica testicular observada no caso previamente relatado.11 A demonstração histopatológica de vasculite é considerada o padrão-ouro para o diagnóstico de VR e na maioria dos casos os espécimes patológicos apresentavam vasculite leucocitoclástica.4 O achado histopatológico mais típico de VR é a necrose medial circundada por proliferação de células intimais e adventícias em um arranjo radial semelhante ao nódulo reumatoide. Infiltrados em torno de vasos normais e necrosados são também vistos com frequência em pacientes com VR.4,13

É importante ainda notar a dificuldade para tratar a VR do nosso paciente, devido às várias complicações infecciosas observadas, tais como a meningite bacteriana antes da terapia imunossupressora, sua recorrência após o início do tratamento para VR com suspeita de listeriose e a pneumonia por aspiração, que evoluiu para sepse e morte. Infelizmente, tais fatos dificultaram o tratamento adequado da VR em nosso paciente, e os efeitos da combinação de GC e ciclofosfamida podem ter determinado a recorrência da meningite. O tratamento da VR é empírico, sendo a combinação de altas doses de GC e ciclofosfamida uma terapia reconhecida. Em um estudo aberto,7 21 pacientes em uso endovenoso de metilprednisolona e ciclofosfamida foram comparados com 24 pacientes usando outras terapias que incluíam azatioprina, D-penicilamina, clorambucil e altas doses de prednisolona. A resposta clínica foi significativamente melhor, sendo a taxa de recidiva mais baixa no grupo da ciclofosfamida.7 Terapias biológicas com agentes anti-TNFα e rituximabe foram usadas para tratar VR em relatos de casos e séries de casos com algum sucesso.14,15 Podem ser uma alternativa para pacientes com VR grave quando os agentes citotóxicos estão contraindicados ou não conseguem controlar as manifestações de vasculite.1

Concluindo, o envolvimento testicular é uma manifestação rara de VR, e os reumatologistas devem estar cientes dessa potencial complicação, em especial quando o paciente se queixa de dor e aumento de volume testicular no contexto de VR. Embora a maioria dos pacientes com VR apresente vasculite cutânea e neuropatia periférica, os órgãos internos podem ser afetados, sendo a pronta investigação e o tratamento adequado importantes para a obtenção de melhores resultados.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Recebido em 20 de novembro de 2011

Aceito em 14 de maio de 2013

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  • *
    Autor para correspondência. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Nov 2011
    • Aceito
      14 Maio 2013
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