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Manifestações articulares atípicas em pacientes com febre reumática

Resumos

Objetivos:

Descrever as características clínicas e a ocorrência de artrite atípica em crianças com diagnóstico de febre reumática (FR) acompanhadas em ambulatórios terciários em Salvador, Bahia.

Metodologia:

Estudo descritivo, de uma série de casos, do quadro clínico inicial ou recorrência de 41 crianças com diagnóstico de FR.

Resultados:

Dos pacientes estudados (n=41), 61% eram do sexo masculino; com média de idade de 9,2 anos e idade no momento do diagnóstico entre 5 e 16 anos. Artrite esteve presente em 75,6% dos pacientes; cardite em 75,6%; coreia em 31,7%; eritema marginado em 14,6% e nódulos subcutâneos em 4,9%. Um padrão atípico foi observado em 22 dos 31 casos com artrite (70,9%): envolvimento de pequenas articulações e/ou esqueleto axial em 12 casos (38,7%); duração maior que três semanas em nove (29%); resposta inadequada ao AINH em dois (6,5%); oligoartrite (≤ quatro articulações) em 22/31 (71%), sendo monoartrite em 6/31 (uma em pés, uma em tornozelo e quatro em joelho). A febre esteve presente em 78% dos casos e 82,9% dos pacientes utilizavam a profilaxia secundária de forma regular.

Conclusão:

Artrite atípica esteve presente na maioria dos pacientes que cursaram com acometimento articular, constituindo um fator de confundimento diagnóstico e atraso terapêutico adequado.

Febre reumática; Critérios de Jones; Acometimento articular atípico; Crianças; Adolescentes


Objectives:

To describe the clinical characteristics and the occurrence of atypical arthritis in children diagnosed with rheumatic fever (RF) and followed in tertiary care clinics in Salvador, Bahia, Brazil.

Methodology:

A descriptive study of a case series, of the initial clinical presentation, and of recurrence in 41 children diagnosed with RF.

Results:

Of the patients studied (n=41), 61% were male, mean age of 9.2 years, and mean age at diagnosis between 5 and 16 years. Arthritis was present in 75.6% of patients; carditis in 75.6%; chorea in 31.7%; erythema marginatum in 14.6%; and subcutaneous nodules in 4.9%. An atypical pattern was observed in 22 of 31 cases of arthritis (70.9%): involvement of small joints and/or axial skeleton in 12 cases (38.7%); >3 weeks of duration in 9 (29%); inadequate response to NSAIDs in 2 (6.5%); oligoarthritis (≤4 joints) in 22/31 (71%), with monoarthritis in 6/31 (1 in the foot, 1 in the ankle, and 4 in the knee). Fever was present in 78% of the cases, and 82.9% of patients were regularly on secondary prophylaxis.

Conclusion:

Atypical arthritis was present in most patients presenting with joint involvement, being a confounding factor against a proper diagnosis and of therapeutic delay.

Rheumatic fever; Jones criteria; Atypical joint involvement; Children; Adolescents


Introdução

A febre reumática (FR) é complicação tardia, inflamatória, não supurativa da infecção das vias aéreas superiores pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A.1Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90.

Ferriane VPL. Manifestações articulares da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:18-27.

Habib GS, Saliba WR, Mader R. Rheumatic fever in the Nazareth area during the last decade. Isr Med Assoc J (IMAJ). 2000;433-7.
-4Carcellera A, Tapiero B, Rubin E, Miró J. Fiebre reumática aguda: 27 años de experiência em los hospitales pediátricos en Montreal. An Pediatr (Barc). 2007;67:5-10. Pode acometer diferentes tecidos, incluindo coração, articulação e sistema nervoso central4Carcellera A, Tapiero B, Rubin E, Miró J. Fiebre reumática aguda: 27 años de experiência em los hospitales pediátricos en Montreal. An Pediatr (Barc). 2007;67:5-10., e ocorre, principalmente, em crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos de idade e geneticamente predispostos.4Carcellera A, Tapiero B, Rubin E, Miró J. Fiebre reumática aguda: 27 años de experiência em los hospitales pediátricos en Montreal. An Pediatr (Barc). 2007;67:5-10.

Carapetis JR, Currie BJ. Rheumatic fever in a high incidence population: the importance of monoarthritis and low grade fever. Arch Dis Child. 2001;85:223-7.
-6Vinker S, Zohar E, Hoffman R, Elhayany A. Incidence and clinical manifestations of rheumatic fever: A 6 Year Community-Based. Isr Med Assoc J (IMAJ). 2010;12:78-81.

O diagnóstico da FR continua sendo um dos mais difíceis em pediatria, devido ao polimorfismo do seu quadro clínico e à falta de exames laboratoriais específicos ou patognomônicos da doença.7Terreri MTR, Hilário MOE. Diagnóstico da febre reumática: os critérios de Jones continuam adequados? Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;28-33.

Kiss MHB. Tratamento clínico da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:53-8.

Pileggi GCS, Ferriane VPL. Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática. J Pediatr (Rio J). 2000;76:49-54.
-1010 Hilário MO, Len C, Goldenberg J. Febre reumática: manifestações articulares atípicas. Rev Assoc Med Bras 1995;8:214-6.

Os critérios de Jones foram estabelecidos em 1944 com o objetivo de reduzir a ocorrência de erros e atrasos diagnósticos.1111 Lilic N, Kumar P. A timely reminder-rheumatic fever. N Z Med J. 2013.19:126:88-90. Apesar de sua utilidade na prática clínica, não contemplam todas as dificuldades encontradas para estabelecimento do diagnóstico da FR, sobretudo na presença de manifestações clínicas articulares atípicas, o que pode induzir a erros ou atrasos no diagnóstico.7Terreri MTR, Hilário MOE. Diagnóstico da febre reumática: os critérios de Jones continuam adequados? Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;28-33. Essa dificuldade diagnóstica se acentua naqueles pacientes que cursam com artrite como única manifestação clínica isolada da doença.4Carcellera A, Tapiero B, Rubin E, Miró J. Fiebre reumática aguda: 27 años de experiência em los hospitales pediátricos en Montreal. An Pediatr (Barc). 2007;67:5-10.,1212 Khriesat I, Najada A, Al-Hakim F, Abu-Haweleh A. Acute rheumatic fever in Jordanian children. La Revue de Santé de La Méditerrané e orientale. 2003;9:981-7.,1313 Keitzer R. Akutes Rheumatisches Fieber (ARF) und Poststreptokokken reactive arthritis (PSRA). Z Rheumatol. 2005;64:295-307.

A descrição clássica da artrite da FR consiste em um quadro de poliartrite migratória, principalmente de grandes articulações dos membros inferiores e que surge em torno de duas a três semanas após a infecção estreptocócica de orofaringe. A dor, tipicamente intensa, responde bem ao uso de anti-inflamatórios não hormonais (AINH) e, geralmente, não ultrapassa três semanas de duração.2Ferriane VPL. Manifestações articulares da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:18-27.,8Kiss MHB. Tratamento clínico da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:53-8. As articulações mais frequentemente acometidas são os joelhos e os tornozelos.

Cada vez mais têm sido descritas na literatura manifestações articulares atípicas, que se caracterizam por quadros monoarticulares, duração superior a seis semanas, resposta insatisfatória aos salicilatos, artrite aditiva, além de acometimento de articulações pouco habituais, como quadris, coluna cervical e pequenas articulações.1Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90.,7Terreri MTR, Hilário MOE. Diagnóstico da febre reumática: os critérios de Jones continuam adequados? Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;28-33.,9Pileggi GCS, Ferriane VPL. Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática. J Pediatr (Rio J). 2000;76:49-54. Este possível padrão de acometimento articular na FR, foi inicialmente citado em 1975, por Stollerman, quando o autor observou que 32% das crianças portadoras de febre reumática não apresentavam o padrão clássico do acometimento articular.1414 Stollerman GH. Rheumatic fever and streptococcal infection. New York: Grune and Stratton. 1975. Terreri et al. avaliaram o padrão articular em 93 pacientes com FR: a artrite foi aditiva em 27% dos casos; pequenas articulações, como as metacarpofalangeanas e as interfalangeanas proximais e distais, foram acometidas com frequência de 2% a 8%; artrite com duração maior que seis semanass foi observada em 10%; a não resposta ao ácido acetilsalicílico ocorreu em 15% das artrites e, monoartrite foi encontrada em 6% dos pacientes.7Terreri MTR, Hilário MOE. Diagnóstico da febre reumática: os critérios de Jones continuam adequados? Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;28-33.

Essas manifestações atípicas dificultam ainda mais o diagnóstico de FR, principalmente se o médico não se atentar para a possibilidade desses tipos de manifestações.

O presente estudo foi realizado com o objetivo de avaliar as características do acometimento articular e a ocorrência de artrite atípica em crianças durante surto inicial e recorrência de FR.

Pacientes, materiais e métodos

Foram analisados, retrospectivamente, 41 prontuários médicos de crianças e adolescentes com diagnóstico de FR atendidos nos ambulatórios de reumatologia pediátrica do Hospital Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia e de cardiologia pediátrica do Hospital Ana Nery, na cidade de Salvador, Bahia. O estudo abrangeu um período de três anos, de março de 2009 a dezembro de 2012. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico de FR baseado nos critérios de Jones modificados (1992) e idade até 21 anos. As variáveis utilizadas no estudo foram: sexo; idade; presença e características dos critérios maiores e menores de Jones; características do acometimento articular; informações sobre a evidência de infecção prévia pelo estreptococo (ASLO) e exames laboratoriais. Para considerar o comprometimento articular de padrão atípico foi necessária a presença de pelo menos uma das seguintes características: duração maior que três semanas; acometimento de pequenas articulações e/ou de coluna cervical e/ou de articulação coxofemoral; monoartrite e resposta insatisfatória aos salicilatos. O processamento e a análise dos dados foram realizados com o auxílio do programa licenciado Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 12.0, com análise descritiva dos dados. Foram analisadas a média de idade dos pacientes e as frequências absolutas e relativas das seguintes variáveis: sexo; critérios maiores e menores de Jones; número de articulações envolvidas; manifestações articulares atípicas; descrição de cada característica atípica e regularidade da profilaxia secundária.

O projeto foi aprovado no comitê de ética do HUPES (071/2009, resolução no CNS 196/96).

Resultados

Foram revistos os prontuários de 41 crianças, 25 do sexo masculino e 16 do feminino (relação 1,6:1,0). A idade dos pacientes no momento do diagnóstico variou de cinco a 16 anos, com uma média de idade de 9,2 anos.

A frequência dos sinais maiores de Jones foi: artrite em 31 pacientes; cardite em 31; coreia em 13; nódulos subcutâneos em dois e eritema marginatum em seis (fig. 1). A artrite foi isolada em seis dos 31 casos que cursaram com esse sintoma (19,4%).

Figura 1
Frequência dos sinais maiores dos critérios diagnósticos de Jones em 41 pacientes com diagnóstico de febre reumática

Quanto às características do acometimento articular, padrão atípico foi observado em número considerável dos casos com artrite 22/31 (70,9%). Envolvimento de pequenas articulações e/ou esqueleto axial ocorreu em 12 casos (38,7%); duração maior que três semanas em nove (29%); resposta inadequada ao AINH em dois (6,5%); oligoartrite (≤ quatro articulações) em 22/31 (71%), sendo monoartrite em 6/31 (um em pés, um em tornozelo e quatro em joelho) (fig. 2). A presença de poliartrite (≥ cinco articulações) ocorreu em 9/31 pacientes (29%).

Figura 2
Percentual das manifestações articulares atípicas em 41 pacientes com diagnóstico de febre reumática

Desses 22 casos atípicos, artrite isolada foi encontrada em seis casos (19,4%); artrite associada à cardite foi encontrada em 12 casos (57,1%); artrite associada à cardite e coreia em quatro casos (19%); artrite, cardite, eritema marginado e nódulos subcutâneos em um caso (4,8%); artrite, cardite, coreia e eritema marginado em um caso (4,8%).

Febre esteve presente em 78% dos casos e 82,9% dos pacientes utilizavam a profilaxia secundária de forma regular.

Discussão

Em 1982, Goldsmith e Long1515 Goldsmith DF, Long SS. Poststreptococcal disease of childhood - changing syndrome. Arthritis Rheum. 1982;25:S18. destacaram a presença de quadro clínico de artrite com características não habituais (simétrica, duração mais prolongada, curto período de latência após infecção estreptocócica e má resposta aos salicilatos), sendo sugerida uma resposta imunológica alterada a algum tipo de modificação antigênica do estreptococo beta-hemolítico do grupo A.

Desde então, diversos autores vêm se referindo a quadros clínicos de artrites após infecção pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A, com as características descritas, não habituais ao padrão descrito pelos critérios de Jones.

Os estudos presentes na literatura acerca dessa forma de apresentação de artrite após infecção pelo estreptococo são relativamente escassos e heterogêneos, muitas vezes baseados em relatos ou séries de casos, o que limita o conhecimento claro da causalidade dessa forma de apresentação.

Baseado nos resultantes conflitantes da literatura surgiu a curiosidade de mapear o perfil dos pacientes com diagnóstico de FR do nosso serviço, com maior ênfase no padrão de apresentação do acometimento articular.

No presente estudo, a idade dos pacientes no momento do diagnóstico variou de 5 a 16 anos, com uma média de idade de 9,2 anos, o que é semelhante a resultados descritos anteriormente em outras regiões do Brasil.1Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90.,9Pileggi GCS, Ferriane VPL. Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática. J Pediatr (Rio J). 2000;76:49-54. De acordo com a literatura, a incidência da FR é maior entre 5 e 15 anos, tanto para o primeiro surto quanto para recidivas.1616 Taranta A, Markowitz M. Rheumatic fever. 2 ed. Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989. Não houve, portanto, variações de idade de início da doença para a FR com padrão articular atípico.

Dos pacientes estudados, 61% eram do sexo masculino (proporção 1, 6:1). Este é um resultado contraditório à maioria dos autores, que evidenciam maior prevalência da FR no sexo feminino, entre 55%-60,5%.1Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90.,2Ferriane VPL. Manifestações articulares da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:18-27.,1717 Ozkutlu S, Hallioglu O, Ayabakan C: Evaluation of subclinical valvar disease patients with rheumatic fever. Cardiol Young. 2003;13:495-9.

Quanto aos critérios maiores de Jones, não houve predomínio da artrite sobre a cardite, como na maioria dos estudos da literatura, com prevalências semelhantes para ambas as manifestações clínicas (75,6%), o que pode ser justificado pela inclusão de pacientes oriundos de um centro de referência em cardiologia pediátrica (fig. 1).

A prevalência da artrite diverge na literatura, mas nossos resultados foram semelhantes aos estudos de Motta e Meira1818 Meira ZMA, Goulard EMA, Colosimo EA, Mota CCC. Long-term follow up of rheumatic fever and predictors of severe rheumatic valvar disease in Brazilian children and adolescents. Heart. 2005;91:1019-22. e Terreri et al.,1Terreri MTR, Caldas AM, Len CL, Ultchak F, Hilário MOE. Características clínicas e demográficas de 193 pacientes com febre reumática. Rev Bras Reumatol. 2006;46:385-90. que evidenciaram artrite em 71,4% e 70, 5% dos pacientes estudados, respectivamente.

No presente estudo, 51,6% dos pacientes apresentavam acometimento em mais de uma e até em cinco articulações; 19,4% em apenas uma articulação, e 29% dos pacientes em mais de cinco articulações. Esse resultado revelou no nosso meio, uma alta prevalência de apresentação oligoarticular na FR no nosso meio, e estas formas de apresentação sem dúvida geram dificuldades diagnósticas e atrasos terapêuticos.

A tabela 1 ilustra a frequência de monoartrite na FR em diferentes estudos, chamando a atenção para essa possibilidade no cortejo clínico da FR, em contrapartida ao definido pelos critérios de Jones.1212 Khriesat I, Najada A, Al-Hakim F, Abu-Haweleh A. Acute rheumatic fever in Jordanian children. La Revue de Santé de La Méditerrané e orientale. 2003;9:981-7.,1919 Carapetis JR, Currie BJ. Rheumatic fever in a high incidence population: the importance of monoarthritis and low grade fever. Arch Dis Child. 2001;85:223-7.

20 Ralph A, Jacups S, McGough K, McDonald M, Currie BJ. The challenge of acute rheumatic fever diagnosis in a high-incidence population. Heart Lung and Circulation. 2006;15:111-13.

21 Harlan GA, Tani LY, Byington CL. Rheumatic Fever Presenting as Monoarticular Arthritis. Pediatr Infect Dis J. 2006;25:743-6.
-2222 Olgunturk R, Olgunturk R, Canter B, Tunaoglu FS, Kula S. Review of 609 patients with rheumatic fever in terms of revised and updated Jones criteria. Int J Cardiol. 2006;112:91-8. Um exemplo na prática clínica é a suspeição de artrite séptica nos casos de monoartrite em vigência de febre, acarretando perda de tempo com procedimentos diagnósticos e intervenções terapêuticas invasivas e desnecessárias. Mataika et al. descreveram três casos de monoartrite tratados inicialmente como artrite séptica, com diagnóstico posterior de FR, na vigência do desenvolvimento de cardite.2323 Mataika R, Carapetis JR, Kado J, Steer AC. Acute Rheumatic fever an importance differential diagnosis of septic arthritis. J Trop Pediatr. 2008;54:205-7.

Tabela 1
Percentual de monoartrite na febre reumática segundo diferentes autores

Dentre as articulações mais envolvidas nos pacientes com acometimento monoarticular, têm sido descritas o joelho, seguido de articulações do esqueleto axial e do tornozelo. Harlan et al.2121 Harlan GA, Tani LY, Byington CL. Rheumatic Fever Presenting as Monoarticular Arthritis. Pediatr Infect Dis J. 2006;25:743-6. avaliaram 92 pacientes com FR e, destes, três apresentaram monoartrite (quadril em um paciente e joelhos em dois) semelhante à Pileggi et al.9Pileggi GCS, Ferriane VPL. Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática. J Pediatr (Rio J). 2000;76:49-54., que também encontraram três casos de monoartrite, dois em joelho e outro em articulação coxofemoral. No presente estudo, o acometimento monoarticular ocorreu nas seguintes articulações: joelho (4/6), articulação do pé (1/6) e tornozelo (1/6).

O envolvimento de pequenas articulações, como metacarpofalangianas e metatarsofalangianas e de articulações do esqueleto axial, como coluna, sacroilíaca e quadril, são manifestações descritas,9Pileggi GCS, Ferriane VPL. Manifestações articulares atípicas em crianças com febre reumática. J Pediatr (Rio J). 2000;76:49-54.,1010 Hilário MO, Len C, Goldenberg J. Febre reumática: manifestações articulares atípicas. Rev Assoc Med Bras 1995;8:214-6. podendo gerar dificuldades diagnósticas com a artrite idiopática juvenil e as espondiloartrites juvenis (tabela 2). O envolvimento de pequenas articulações esteve presente em 18% dos casos analisados por Lin Chen et al.2424 Lin C, Xujing X, Jiero G, Li X, Buyung Y. Changes of manifestations of 122 patients with rheumatic fever in South China during last decade. Rheumatol Int. 2009;30:239-43. e, em 38,7% dos pacientes do presente estudo, ocorrendo principalmente em pés e mãos, e, em menor número, nas articulações do esqueleto axial.

Tabela 2
Articulações acometidas em pacientes com febre reumática de acordo com diferentes autores

Alguns pacientes com diagnóstico de FR não apresentam resposta clínica favorável após o uso adequado de AINH, necessitando do seu uso prolongado pela presença de artrite de evolução prolongada. No presente estudo, a despeito do uso precoce dessa medicação, nos primeiros dias após o diagnóstico de artrite, 4,9% dos pacientes apresentaram-se como mal responsivos ao AINH. Tal achado ocorreu, por sua vez, em 19,56% dos pacientes do estudo de Ferriani et al.2Ferriane VPL. Manifestações articulares da febre reumática. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;15:18-27.

É ainda considerada manifestação clínica não habitual e que dificulta e prolonga diagnóstico final de FR, a presença de artrite como única manifestação clínica, que ocorreu em 19,4% dos pacientes (6/31). Harlan et al.2121 Harlan GA, Tani LY, Byington CL. Rheumatic Fever Presenting as Monoarticular Arthritis. Pediatr Infect Dis J. 2006;25:743-6. demostraram que o tempo para diagnóstico de FR foi superior a quatro semanas em 59% dos pacientes com artrite atípica em comparação a 35% nos outros pacientes.2121 Harlan GA, Tani LY, Byington CL. Rheumatic Fever Presenting as Monoarticular Arthritis. Pediatr Infect Dis J. 2006;25:743-6.

Outro aspecto que dificulta o diagnóstico da FR é o diagnóstico laboratorial. Além de inespecíficas, as alterações laboratoriais podem não estar presentes em um percentual relevante de pacientes, seja por fatores diversos, desde ao período da coleta, uso de antibioticoterapia prévia e acessibilidade à realização dos exames em tempo hábil, entre outros. Considerando especificamente os pacientes que cursaram com manifestações atípicas, as provas de atividade inflamatória foram positivas em apenas 56% dos pacientes e o ASLO em 44%.

Os resultados revelam, portanto, um considerável percentual de pacientes com manifestações articulares atípicas, corroborando para o que vem sendo observado há algum tempo por outros autores (fig. 3) e chamando atenção mais uma vez para a necessidade de ter em mente essa possibilidade de apresentação articular na FR.

Figura 3
Comparação do percentual de manifestações atípicas entre diversos autores

Conclusão

A partir dos resultados do presente estudo, pode-se destacar a importância do reconhecimento por reumatologistas, pediatras e até mesmo clínicos, de apresentações articulares atípicas no quadro clínico da FR, evitando atrasos diagnósticos desnecessários e, por consequente, atraso terapêutico, com risco de sequelas cardíacas irreversíveis.

Essa suspeição diagnóstica deve ser aventada, diante de pacientes com evidência de infecção pelo estreptococo beta -hemolítico do grupo A, que não preenchem os critérios de Jones modificados para o diagnóstico de FR e desenvolvem quadro clínico de artrite de início agudo, oligo ou monoarticular, simétrica ou assimétrica, usualmente não migratória, podendo acometer qualquer articulação e com má resposta ao ácido acetilsalicílico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2013
  • Aceito
    10 Fev 2014
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