Introdução
A febre familiar do Mediterrâneo (FFM) é doença hereditária e autoinflamatória predominantemente caracterizada por repetidos ataques de febre, dores abdominais, dor torácica pleurítica, artrite e eritema erisipeliforme. A doença é mais prevalente entre judeus não Ashkenazis, árabes, turcos e armênios.1 A patogênese se fundamenta principalmente na ausência ou na insuficiência de produção de pirina, que é um peptídeo envolvido na cascata inflamatória e que inibe o complemento 5 a (C5a). Ainda não ficaram estabelecidos quais são os principais mecanismos deflagradores dos ataques de FFM. Colchicina é ainda a viga-mestra no tratamento da doença. Essa substância previne completa ou parcialmente ataques de FFM e a subsequente amiloidose reativa que é considerada como a complicação mais importante da FFM.2
Curiosamente, a resistência à colchicina (RC) é prevalente em aproximadamente 10% dos pacientes com FFM. A frequência ou intensidade dos ataques pode prosseguir comfrequência e intensidade similares ou declinantes. Os pacientes com RC podem ser divididos em não respondentes completos ou parciais. Muitos fatores podem estar envolvidos na RC, inclusive predisposição genética, além de fatores ambientais e psiquiátricos. Ainda assim, pouco se sabe acerca da etiologia absoluta da RC em pacientes com FFM. Supõe-se que a fidelidade ao tratamento e razões potenciais, por exemplo, fatores demográficos, situação socioeconômica, fatores clínicos e laboratoriais e a dinâmica psiquiátrica, sejam fatores contributivos.
O Beck Depression Inventory (BDI) foi desenvolvido por Becket al. (1979) e adaptado para o idioma turco por Hisli (1988). BDI é uma escala autoinformada de 12 itens que avalia os sintomas emocionais, somáticos, cognitivos e motivacionais exibidos na depressão. A escala não pretende diagnosticar a depressão, mas sim determinar objetivamente a gravidade dos sintomas depressivos. Os coeficientes de correlação da escala entre as versões nos idiomas inglês e turco foram calculados como sendo 0,81 e 0,73 (validade da linguagem); a confiabilidade pelo método das metades partidas foi 0,74, e a validade relacionada a critérios com o MMPI-D (Minnesota Multiphasic Personality Inventory) foi 0,63. Foi relatado que escores BDI≥ 17 discriminam, com acurácia superior a 90%, uma depressão que pode necessitar de tratamento. O escore de cada item varia de 0 a 3, e o escore para depressão é obtido pela soma do escore de cada item. O valor mais alto é 63.3,4
Em consequência, existem diferentes estratégias terapêuticas para limitação da RC em pacientes com FFM. Neste estudo,objetivamos investigar os aspectos da depressão e dos ataquesem pacientes com FFM portadores de RC.
Pacientes e métodos
O grupo em estudo consistia de 59 pacientes com FFM portadores de RC (nove mulheres e nove homens) e de respondentes completos à colchicina (29 mulheres/12 homens). Pacientes portadores de outras doenças concomitantes, inclusive infecções, malignidades, doenças autoimunes ou metabólicas, e pacientes que previamente tinham sido diagnosticados com depressão e com subtratamento com antidepressivos foram excluídos. O diagnóstico foi conferido, ainda, uma vez mediante reinquirição dos pacientes, em conformidade com os critérios de Livneh para FFM.5
RC foi definida como dois ou mais ataques em um período de seis meses em seguida a 12 meses de terapia regularmente administrada. Pacientes com ≤ 1 ataque de FFM dentro dos seis meses ou ausência de ataque ao longo de 12 meses foram randomizados no grupo de controle. Os pacientes no grupo de resistência à colchicina estavam sendo medicados com 2 mg/dia ou com doses ainda maiores; no grupo de controle os pacientes estavam usando colchicina em doses abaixo de 2 mg/dia. Foram registrados os dados demográficos, a fidelidade ao tratamento, os aspectos clínicos e dos ataques da doença, inclusive dores nas pernas e amiloidose, achados laboratoriais e escores BDI, uso de álcool e de narcóticos. Um escore BDI > 17 foi considerado significativo para depressão severa necessitando de tratamento.
A idade de surgimento da doença e também o diagnóstico e o período de tempo transcorrido entre os sintomas e o diagnóstico foram cuidadosamente inquiridos. Os dados demográficos foram aspectos socioeconômicos, por exemplo, renda mensal, educação e alfabetização, estado civil, número de filhos e emprego. Para a classificação da situação econômica, os pacientes foram comparados com o salário mínimo do país. Com relação ao nível educacional, pacientes pós-graduados foram comparados entre si. A urina foi avaliada com dipsticks durante os ataques, e os dados foram coletados do prontuário.
O comitê de ética local aprovou o protocolo do estudo e todos os participantes assinaram o formulário de consentimento informado. Os testes t de Student e ANOVA unilateral foram utilizados para a comparação das médias. Análises de correlação de Pearson foram efetuadas para a avaliação dos demais fatores. Um valor p < 0,05 foi considerado como estatisticamente significativo.
Resultados
Embora os pacientes com RC estivessem implementandoregularmente o protocolo terapêutico durante o seguimentode seis meses, 40% dos pacientes no grupo de controle estavamusando equivocadamente os medicamentos. As características demográficas basais dos dois grupos estão listadas na tabela 1. Não houve diferença estatisticamente significativaentre os grupos no que diz respeito a: renda mensal, níveleducacional, estado civil, número de filhos e emprego. A distribuição dos pacientes com história familiar de FFM foi similar. A idade no surgimento da doença foi significativamente mais baixa no grupo RC, em comparação com os controles (12,3 anos vs. 16,9 anos; p = 0,03) e a duração da doença foi significativamente maior no grupo RC (212 meses vs. 133 meses; p = 0,01). Com relação ao tempo transcorrido desde o início da doença até o diagnóstico, os resultados foram similares; e a diferença não foi significativa entre os grupos. Ao comparar as queixas que acompanharam os ataques, dor torácica pleurítica, eritema erisipeliforme e dores nas pernas associadas a esforço foram significativamente mais frequentes no grupo CR (83% vs. 51%; p = 0,02; 16,6% vs. 2,4% p = 0,04;88% vs. 60%; p = 0,04; respectivamente). Além disso, proteinúria e hematúria temporárias foram significativamente mais frequentes no grupo RC (p = 0,006). Não foi observada diferença significativa entre grupos, no que diz respeito às dores abdominais e à artrite (tabela 2). Não havia história de álcool ou narcóticos em ambos os grupos. O número de pacientes com amiloidose nos dois grupos foi similar (tabela 2). Não foi diagnosticada insuficiência renal em qualquer dos grupos. Pacientes com escores BDI superiores a 17 pontos foram mais frequentes no grupo RC, em comparação com os controles (50% vs. 34,1%; p < 0,001).
Tabela 1 Características demográficas dos grupos RC e de controle
Grupo RC (n = 18) | Grupo de Controle (n = 41) | P | |
---|---|---|---|
Idade atual (idade ± DP) | 30,1 ± 10,5 | 28,2 ± 9,3 | 0,5 |
Gênero (M/H) | 9/9 | 29/12 | 0,12 |
Renda mensal (× 1000 LT) | 5 (27,7%) | 10 (24,3%) | 0,78 |
# pacientes casados | 5 (27,7%) | 22 (53,6%) | 0,59 |
Nível educacional (não formados) | 5(27,7%) | 9 (21,9%) | 0,62 |
# de pacientes desempregados | 2 (11,1%) | 8 (19,5%) | |
# de filhos (número ± DP) | 1 ± 1,5 | 0,9 ± 1,3 | 0,8 |
Pacientes com história familiar de FFM | 13 (72,2%) | 27 (65,8%) | 0,6 |
Idade no diagnóstico de FFM | 20,6 ± 8,6 | 21,9 ± 10 | 0,6 |
Tempo transcorrido entre o início e o diagnóstico (meses) | 92 | 59,3 | 0,2 |
Duração da doença (meses) | 212 | 133 | 0,01 |
RC, Resistente à colchicina; LT, Lira Turca.
Tabela 2 Características sintomáticas de todos os pacientes
Grupo RC (n = 18) | Grupo de Controle (n = 41) | P | |
---|---|---|---|
Ataque abdominal | 16 (88,8%) | 39 (95,1%) | 0,38 |
Ataque articular | 14 (77,7%) | 30 (73,1%) | 0,7 |
Ataque torácico | 15 (83,3%) | 21 (51,2%) | 0,02 |
Eritema erisipeliforme | 3 (16,6%) | 1 (2,4%) | 0,04 |
Dor nas pernas associada a esforço | 15 (83,3%) | 25 (60,9%) | 0,04 |
Presença de hematúria e proteinúria temporárias durante os ataques | 8 (44,4%) | 5 (12,1%) | 0,006 |
de pacientes com amiloidose | 3 (16,6%) | 2 (4,8%) | 0,13 |
de membros da família com amiloidose | 2 (11,1%) | 1 (2,4%) | 0,16 |
Discussão
Neste estudo prospectivo, tentamos avaliar os fatores que podem levar à RC entre pacientes com FFM. A idade no início da doença foi significativamente mais baixa no grupo RC, em contraste com o grupo de controle; a duração da doença foi significativamente maior no grupo RC. Os resultados do questionário demonstraram que os pacientes no grupo RC estavam sendo regularmente medicados, com integral cooperação farmacológica. Pacientes com ataques infrequentes esqueceram de tomar a colchicina. Ademais, não havia história de álcool ou narcóticos entre os pacientes com RC. Na verdade, os principais fatores etiológicos deflagradores subjacentes à RC são desconhecidos. Em um estudo prévio, Lidar et al. verificaram que pacientes com um prognóstico grave para FFM exibiam mais RC.6 Esses achados concordam bastante com nosso estudo. Obviamente, pacientes com doença de longa duração e com elevados escores BDI foram mais frequentes no grupo RC. E os ataques nesse grupo foram mais severos do que no grupo de controle. Ao compararmos as queixas concomitantes aos ataques, dor torácica pleurítica, eritema erisipeliforme e dores nas pernas associadas a esforço foram mais frequentes no grupo RC, bem como a presença de proteinúria e hematúria durante os ataques. Lidar et al. também demonstraram que ataques abdominais, dor torácica e artrite foram mais frequentes no grupo RC, enquanto que ataques de eritema erisipeliforme tiveram frequência similar nos dois grupos. A presença de depressão poderia aumentar a frequência dos ataques de FFM, ou a combinação de ataques frequentes de FFM e dor inflamatória poderiam causar depressão. Especulou-se que a atividade da cascata inflamatória serotonérgica provocaria os ataques de FFM.7 Foi demonstrado que a introdução de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) diminui a frequência de ataques de FFM em pacientes com RC.8 Nessa linha de raciocínio, foi demonstrado que fatores estressantes facilitam a depressão e aumentam a secreção decitocinas inflamatórias.9 Foram publicados estudos discutindo o papel da depressão na gravidade da FFM, e o tratamento da depressão também diminui o número de ataques. Esses achados revelam o papel da depressão na RC.8
Exacerbações na inflamação podem afetar a fisiopatologia da depressão.8 Em estudos de FFM abordando citocinas, as concentrações plasmáticas de interleucina (IL)-2, IL-12, IL-18 e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) estavam elevadasem pacientes deprimidos.10,11 A citocina proinflamatória, IL-12, estava elevada tanto durante os ataques como no período livre de episódios, contrastando com os estudos em controles saudáveis.12 Além da secreção de IL-12, linfócitos T citotóxicos, IL-2, IFN-γ e TNF-α também aumentaram em pacientes com FFM. Essas citocinas estavam elevadas tanto na FFM como na depressão. Nosso estudo tem uma limitação para as mutações do gene MEFV nos pacientes, não determinadas para todos os pacientes recrutados. Mas o nosso objetivo foi investigar outros fatores que afetam a RC.
Em consequência, podemos argumentar que a depressão é razão importante entre os fatores que podem levar à RC. Coerentemente com estudos precedentes, constatamos que os achados de depressão em pacientes com RC são mais graves,em comparação com os controles. Os clínicos devem levar em consideração a introdução de SSRIs em pacientes com resistência à colchicina. Verificamos que, nos pacientes com RC, a idade no início da doença era mais baixa e que a duração da doença era maior. Além disso, os ataques de pleurite, a hematúria microscópica e a proteinúria temporárias foram mais frequentes em pacientes com RC durante os episódios de ataque. É preciso que sejam conduzidos estudos em maior escala.