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Dois pares de irmãos com artrite idiopática juvenil (AIJ): relato de casos

Resumos

Relato de casos de ocorrência de Artrite Idiopática Juvenil (AIJ) em dois pares de irmãos acompanhados no serviço de reumatologia pediátrica da Universidade Federal da Bahia. O envolvimento genético na patogênese da AIJ está claro e o risco de recorrência entre irmãos corrobora esta contribuição. Um importante marco dessa descoberta envolve a confirmação da contribuição dos polimorfismos do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) na susceptibilidade ao desenvolvimento da AIJ. Apesar de muitos progressos, os inúmeros estudos existentes ainda não são capazes de explicar diversos mecanismos implícitos na patogênese da AIJ.

Artrite idiopática juvenil; Irmãos; Crianças


This is a case report of juvenile idiopathic arthritis in two pairs of brothers followed in the Department of Pediatric Rheumatology, Universidade Federal da Bahia. Genetic involvement in juvenile idiopathic arthritis pathogenesis is clear and the risk of recurrence among siblings supports this contribution. An important landmark of this discovery involves the acknowledgment of major histocompatibility complex polymorphism contribution to juvenile idiopathic arthritis development susceptibility. Despite many advances, the numerousavailable studies cannot explain several implicit mechanisms in juvenile idiopathic arthritispathogenesis yet.

Juvenile idiopathic arthritis; Siblings; Children


Introdução

A Artrite Idiopática Juvenil (AIJ) refere-se a um grupo de artropatias crônicas da infância que se inicia antes dos 16 anos de idade, com etiologia ainda desconhecida, mas com uma influência multifatorial ligada a fatores imunológicos, infecciosos e genéticos.1Berent P,Salvatore A, Alberrto M. Juvenile idiopathic arthritis. Lancet. 2011;377:2138-49.

A literatura evidencia uma maior prevalência da doença em irmãos, assim como em parentes de primeiro grau que são portadores de outras doenças reumáticas, demonstrando a importância do fator genético nessa enfermidade.2Bukulmez H, Fife M, Tsoras M, Thompson SD, Twine NA, Woo P, et al. Tapasin gene polymorphism in systemic onset juvenile rheumatoid arthritis: a family-based case-control study. Arthritis Res Ther. 2005;7:R285-90. Published online 2005 January 11. doi: 10.1186/ar1480.
https://doi.org/10.1186/ar1480...
Vários estudos genéticos têm-se centrado na compreensão da contribuição dos polimorfismos do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) na susceptibilidade ao desenvolvimento da AIJ. Os resultados desses estudos demonstraram associações entre a AIJ com os genes que codificam o HLA e não-HLA.3Prahalad S. Genetics of juvenile idiopathic arthritis an update. Curr Opin Rheumatol. 2004;16:588-94. Porém, identificar fatores genéticos envolvidos na patogênese da AIJ tem sido difícil por várias razões, incluindo uma baixa prevalência de casos familiares e a falta de estimativas populacionais do seu risco de recorrência. Assim, os estudos têm sido poucos e muitas vezes baseados em um pequeno número de casos.4Prahalad S, O'brien E, Fraser AM, Kerber RA, Mineau GP, Pratt D, et al. Familial aggregation of juvenile idiopathic arthritis. Arthritis Rheum. 2004;50:4022-7.

Os autores descrevem a ocorrência de AIJ em dois pares de irmãos não gemelares.

Relato de casos

1° Relato

NSF, masculino, 11 anos e oito meses, com poliartrite em articulações interfalangianas proximais (IFP) de mãos, joelhos e tornozelos, associada à febre irregular, de início aos oito meses de idade. Ao exame físico: espessamento sinovial e edema em IFP do 4° quirodáctilo de ambas as mãos, joelhos e tornozelos, com a amplitude dos movimentos preservada. Fator antinúcleo (FAN) e Fator reumatoide (FR) não reagentes. Paciente não aderiu ao tratamento por problemas socioeconômicos, com abandono do seguimento médico, retornando ao serviço com doença em atividade clínica, após nove anos, neste momento acompanhado do irmão mais novo, JPSF, masculino, cinco anos e 10 meses, com febre irregular e artrite em articulações metatarsofalangianas, joelhos e tornozelos desde os nove meses de idade. Ao exame: marcha claudicante, espessamento sinovial em punhos e cotovelos, artrite em joelhos e deformidade tipo “botoeira” em 5° quirodáctilo. FAN e FR não reagentes. Após exclusão de doenças infeciosas, neoplásicas e outras doenças do colágeno, realizado o diagnóstico de AIJ poliarticular (ILAR) para ambos os irmãos, que se encontram no momento em uso regular de naproxeno, metotrexate e etanercepte (fig. 1).

Figura 1
Irmãos com AIJ poliarticular; caso clínico 1

2° Relato

IJS, masculino, oito anos, com história de febre (38 °C-39 °C) diária, rash cutâneo evanescente, poliartrite aditiva em articulações de punhos, cotovelos, joelhos, tornozelos e interfalangianas proximais desde os 11 meses de idade. Ao exame físico: fígado a 6 cm do rebordo costal direito (RCD), baço a 4 cm de rebordo costal esquerdo (RCE), artrite em joelhos, tornozelos e interfalangianas distais e proximais e nódulo em 3° quirodáctilo esquerdo em IFP. Feito o diagnóstico de AIJ sistêmica (ILAR), FAN e FR negativos, após exclusão de doenças infecciosas, neoplásicas e outras colagenoses. Vem evoluindo afebril, sem rash e rigidez matinal e com melhora clínica e laboratorial do quadro articular. Em uso de metotrexato, naproxeno, prednisolona, ácido fólico e etanercepte. Três anos após o diagnóstico supracitado, o irmão mais novo, masculino, cinco anos, foi atendido com queixa de dores articulares generalizadas há cinco meses, associadas a edema em punho e joelho direitos e febre alta vespertina iniciada dois meses antes do quadro articular. Apresentava ainda anorexia e perda de peso. Ao exame: fígado a 3 cm do RCD, edema em punho e joelho direitos com calor local e dor à mobilização ativa e passiva. FAN e FR negativos. Após exclusão de outras doenças, feito diagnóstico de AIJ sistêmica e iniciado o tratamento com indometacina, metotrexato, ácido fólico. Apresenta boa resposta clínica e laboratorial ao tratamento. Apresentaram evolução, respectivamente, para AIJ poliarticular e pauciarticular (fig. 2).

Figura 2
Irmãos com AIJ, pauci e poliarticular, 8 e 5 anos(da esquerda para direita); caso clínico 2

Discussão

Apesar da não realização de estudos genéticos nos pacientes descritos, as evidências sugerem que a AIJ é um transtorno complexo influenciado por múltiplos fatores genéticos e ambientais. A prevalência de AIJ entre indivíduos que possuem irmãos com a doença é de 15 a 30 vezes maior do que a prevalência na população geral e o risco de recorrência entre irmãos corrobora a contribuição genética para a doença. Além disso, estudos demonstram que pares de irmãos acometidos com AIJ apresentam antígenos leucocitários humanos (HLA) e características clínicas semelhantes, sendo a taxa de concordância entre gêmeos monozigóticos de 25%, sugerindo uma prevalência 250 vezes maior que a prevalência na população.4Prahalad S, O'brien E, Fraser AM, Kerber RA, Mineau GP, Pratt D, et al. Familial aggregation of juvenile idiopathic arthritis. Arthritis Rheum. 2004;50:4022-7.

Há relatos na literatura sobre os efeitos da genética sobre pares de irmãos acometidos, ou, menos frequentemente, sobre os gêmeos. Baum et al. foram os primeiros a descrever um casal de gêmeos concordantes para AIJ e com grau de identidade no genoma confirmado. A partir de então, outros estudos relataram a AIJ em gêmeos e, alguns destacaram o início da doença em um menor intervalo de tempo nos irmãos gemelares do que em outros pares de irmãos acometidos.5Prahalad S, Ryan MH, Shear ES, Thompson SD, Glass DN, Giannini EH. Twins concordant for juvenile rheumatoid arthritis. Arthritis Rheum. 2000;43:2611-2. Estudos ainda evidenciaram o mesmo subtipo de início e curso da doença entre os irmãos e outros diferentes padrões de início, mas com o curso subsequente semelhante, pondo ênfase na influência e na complexidade dos efeitos genéticos sobre a AIJ sem serem capazes de explicar os mecanismos implícitos.5Prahalad S, Ryan MH, Shear ES, Thompson SD, Glass DN, Giannini EH. Twins concordant for juvenile rheumatoid arthritis. Arthritis Rheum. 2000;43:2611-2.,6Ozcakar L, Dincer F, Ozcakar ZB. Juvenile chronic arthritis in a monozygotic twin couple. Rheumatol Int. 2003;23:149-50.

Em um estudo de revisão realizado por Prahalad et al. ressalta-se a influência genética no desenvolvimento da AIJ, tanto dentro como fora da região HLA.7Prahalad S, Glass DN. A comprehensive review of the genetics of juvenile idiopathic arthritis. Pediatr Rheumatol Online J. 2008;21:6-11.

Säilä et al. estudaram AIJ em pacientes provenientes de famílias multicasos e observaram que a única diferença significativa entre os casos familiares e esporádicos foi um início mais precoce da doença nos casos familiares, não tendo havido nenhuma diferença essencial em características clínicas da doença entre os pacientes de ambos os grupos.8Saila HM, Savolainen HA, Kotaniemi KM, Kaipiainen-Seppanen OA, Leirisalo-Repo MT, Aho KV. Juvenile idiopathic arthritis in multicase families. Clin Exp Rheumatol. 2001;19:218-20.

Maroldo et al. investigaram os fenótipos clínicos e as características demográficas de 183 pares de irmãos acometidos com AIJ para determinar se existem diferenças entre os fenótipos clínicos no coorte de pares de irmãos em comparação com coorte de pacientes com doença esporádica. Os resultados confirmaram as conclusões de estudos anteriores, que mostram uma alta proporção de concordância entre pares de irmãos para o tipo de início da doença, exceto para o subgrupo de pacientes com doença sistêmica.9Moroldo MB, Chaudhari M, Shear E, Thompson SD, Glass DN, Giannini EH. Juvenile rheumatoid arthritis affected sibpairs: extent of clinical phenotype concordance. Arthritis Rheum. 2004;50:1928-34. Em relação ao presente estudo, houve concordância do tipo de início apenas para o primeiro relato de caso.

Um fato que se destaca nos presentes relatos, é o início da doença em idades muito precoces. Al-Mayouf et al., com o objetivo de comparar pacientes com AIJ familiar versus esporádica com relação a variáveis clínicas e laboratoriais, observaram resultados semelhantes aos anteriores com relação à idade de início: os pacientes com AIJ familiar foram significativamente mais novos no início da doença e foram diagnosticados mais cedo do que pacientes do grupo esporádico. Porém, o alto grau de concordância com relação ao tipo de início visto na casuística foi incompatível com os relatórios anteriores. Uma explicação pode estar no fato, de que, os dados foram coletados em um hospital que é o principal centro de referência para todo o país e pode representar uma coorte de pacientes com a forma grave da AIJ.1010 Al-Mayouf SM, Madi SM, AlMane K, Al Jummah S. Comparison of clinical and laboratory variables in familial versus sporadic systemic onset juvenile idiopathic arthritis. J Rheumatol. 2006;33:597-600.

Recentemente, Prahalad et al., analisando um maior banco de dados até então existente, verificaram que irmãos e primos de primeiro grau de indivíduos com AIJ têm um risco aumentado para desenvolvimento da doença. Os riscos relativos (RRs) para cada classe de parentesco foram calculados por meio de regressão logística condicional: o RR em irmãos e primos de primeiro grau foi elevado comparado ao de controles, o que não ocorreu com o RR de primos de segundo grau.1111 Prahalad S, Zeft AS, Pimentel R, Clifford B, McNally B, Mineau GP, et al. Quantification of the familial contribution to juvenile idiopathic arthritis. Arthritis Rheum. 2010;62: 2525-9.

Em resumo, o envolvimento genético na patogênese da AIJ está claro, no entanto, a habilidade para catalogar os genes envolvidos, e compreender a contribuição dos produtos do gene para a patogênese, dependerá de estudos bem planejados em larga escala, assim como da compreensão da contribuição ambiental no desencadeamento e perpetuação da doença.

Referências

  • 1
    Berent P,Salvatore A, Alberrto M. Juvenile idiopathic arthritis. Lancet. 2011;377:2138-49.
  • 2
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    » https://doi.org/10.1186/ar1480
  • 3
    Prahalad S. Genetics of juvenile idiopathic arthritis an update. Curr Opin Rheumatol. 2004;16:588-94.
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    Saila HM, Savolainen HA, Kotaniemi KM, Kaipiainen-Seppanen OA, Leirisalo-Repo MT, Aho KV. Juvenile idiopathic arthritis in multicase families. Clin Exp Rheumatol. 2001;19:218-20.
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    Al-Mayouf SM, Madi SM, AlMane K, Al Jummah S. Comparison of clinical and laboratory variables in familial versus sporadic systemic onset juvenile idiopathic arthritis. J Rheumatol. 2006;33:597-600.
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    Prahalad S, Zeft AS, Pimentel R, Clifford B, McNally B, Mineau GP, et al. Quantification of the familial contribution to juvenile idiopathic arthritis. Arthritis Rheum. 2010;62: 2525-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2012
  • Aceito
    21 Maio 2013
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