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Policondrite recidivante com perda auditiva severa

Resumos

Policondrite recidivante é uma condição rara, imunomediada, caracterizada por episódios de inflamação de estruturas cartilaginosas, principalmente orelhas, nariz, articulações e sistema respiratório. Acomete também estruturas ricas em proteoglicanos como olhos, coração, vasos sanguíneos e ouvido interno. Em torno de 1/3 dos casos apresentam associação com outras doenças como vasculites sistêmicas, doenças do tecido conectivo ou síndrome mielodisplásica. Desordens do ouvido interno ocorrem em 40%-50% dos pacientes. Perda auditiva profunda é rara. O objetivo do estudo foi descrever o caso de uma paciente com diagnóstico de policondrite recidivante associado à perda auditiva severa bilateral e manifestações clínicas de vasculite sistêmica. Este trabalho reforça a importância do diagnóstico precoce e do tratamento imediato em caso de manifestações severas da doença.

Policondrite; Perda auditiva; Vasculite


Relapsing polychondritis is an uncommon, immune-mediated condition characterized by episodes of inflammation of cartilaginous structures, especially the ears, nose, joints and respiratory tract. RP also affects proteoglycan-rich structures such as the eyes, heart, blood vessels and inner ear. Around one third of cases are associated with other diseases such as vasculitides, connective tissue diseases or myelodysplastic syndrome. Disorders of the inner ear occur in 40–50% of patients. Profound hearing loss is rare. The aim of this study was to describe the case of a patient with relapsing polychondritis associated with severe bilateral hearing loss and clinical manifestations of systemic vasculitis. This study reinforces the importance of an early diagnosis and immediate treatment in case of severe manifestations of the disease.

Policondritis; Auditive loss; Vasculitis


Introdução

Policondrite recidivante (PR) é uma condição rara, imunomediada, caracterizada por episódios de inflamação de estruturas cartilaginosas, principalmente orelhas, nariz, articulações e sistema respiratório. Também acomete estruturas ricas em proteoglicanos como olhos, coração, vasos sanguíneos e ouvido interno. A doença foi inicialmente descrita em 1923 por Jaksch-Wartenhorst, usando o nome policondropatia. Pearson et al. introduziram o termo policondrite em 1960.1Pearson MC, Kline MH, Newcomer DV. Relapsing polychondritis. N Engl J Med. 1960;263:51–8. A condição afeta homems e mulheres igualmente, podendo ser vista em todas as raças. O pico de incidência é entre 40 e 60 anos.2Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38.

A etiologia da PR é desconhecida. A predisposição genética é sugerida pela associação com antígeno leucocitário HLA-DR4.3Zeuner M, Straub RH, Rauh G, Albert ED, Schölmerich J, Lang B. Relapsing polychondritis: clinical and immunogenetic analysis of 62 patients. J Rheumatol. 1997;24:96–101. Há evidências de surgimento de autoimunidade, tanto humoral como celular, contra componentes da matriz da cartilagem, como colágeno tipo II, tipo IX, XI e matrilina-1.2Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38.

Relatamos caso de PR associado à perda auditiva severa e lesões cutâneas vasculíticas.

Relato de caso

DMD, 31 anos, feminino, com febre diária há dois meses, associada a calafrios, astenia, poliartrite, perda progressiva bilateral da audição, zumbido e episódios de tontura. Há um mês evoluiu com aparecimento de lesões cutâneas em mãos e membros inferiores, edema bilateral em pálpebras e orelhas, além de dor contínua em região distal 2° quirodáctilo da mão direita.

Ao exame, apresentava artrite em punhos, cotovelos, tornozelos e interfalangeanas proximais bilateralmente. As lesões cutâneas caracterizavam-se por pápulas, pústulas e placas purpúreas em mãos, pés e região anterior das pernas. Na orofaringe eram observadas úlceras aftosas. Notava-se também edema e dor à palpação em pavilhões auriculares, poupando lóbulos, e edema e eritema bilateral em conjuntiva. Na região distal do 2° quirodáctilo direito observava-se cianose fixa, dolorosa associada à redução de temperatura (fig. 1).

Figura 1
À esquerda, lesão vasculítica no 2 quirodactilo da mão direita. À direita, edema em pavilhão auricular poupando lóbulo.

Os exames complementares evidenciaram anemias normocítica e normocrômica (hemoglobina 7,9 g/dL), leucocitose de 16.000 mm3 sem desvio e elevação de provas inflamatórias: proteína C reativa (PCR, 196 mg/L), velocidade de hemossedimentação (VHS, 45 mm na 1ª hora). As sorologias para hepatites B e C e HIV foram não reagentes e a pesquisa de autoanticorpos (fator antinuclear, anticorpo anticitoplasma de neutrófilo, fator reumatoide) e crioglobulinas foi negativa, assim como a pesquisa de BAAR na linfa. Coombs direto, dosagem de complementos, sumário de urina, função hepática e renal apresentavam-se dentro dos padrões de normalidade. Endoscopia digestiva alta, radiografia de tórax, ultrassom abdominal e doppler de membros foram normais. Ecocardiograma não mostrou alterações. Nas hemoculturas e urinocultura não houve crescimento de microorganismos. Foram realizadas biópsias da lesão cutânea em 2° quirodáctilo direito e do pavilhão auricular.

O diagnóstico de policondrite recidivante foi proposto baseado nas manifestações clínicas encontradas e resultado de exames complementares. Mediante esses achados, tratamento com prednisona 1 mg/kg/dia foi iniciado. A paciente evoluiu com resolução da febre, das lesões em conjuntiva e do quadro articular, porém sem melhora do quadro de surdez e de isquemia em 2º quirodáctilo após uma semana de tratamento. Nesse momento, foi decidido iniciar pulsoterapia com metilprednisolona 1 g/dia por três dias.

O estudo histopatológico do pavilhão auricular evidenciou cartilagem com infiltrado linfocítico e neutrofílico associado à degeneração da matriz hialina (fig. 2). O histopatológico da lesão cutânea da mão direita evidenciou necrose com grande infiltrado de neutrófilos e linfócitos.

Figura 2
Cartilagem hialina auricular contendo numerosas células inflamatórias com degeneração da matriz. (Hematoxilina-eosina – 100×). No detalhe, aumentode 400× evidencia infiltrado composto por numerosos neutrófilos associado a linfócitos e histiócitos.

Após pulsoterapia paciente evoluiu com melhora do quadro cutâneo e desaparecimento de dor isquêmica em 2° quirodáctilo, porém já com perda importante de tecido por necrose distal. Foi observada normalização das provas inflamatórias (VHS, 10 mm na 1ª hora; PCR, 5 mg/L) e do nível de hemoglobina (12 g/dL). Apesar da resolução completa do edema e da dor em pavilhões auriculares, permanecia com hipoacusia grave. Avaliação otorrinolaringológica demonstrou perda auditiva neurossensorial de grau severo a profundo bilateral, sendo, então, iniciada pulsoterapia com ciclofosfamida. Após seis meses de terapia mensal com ciclofosfamida, a paciente permanecia com hipoacusia severa bilateral.

Discussão

Pacientes com policondrite recidivante apresentam um largo espectro de sinais clínicos e sintomas que frequentemente elevam o desafio diagnóstico. Os critérios diagnósticos foram propostos por MacAdam, e requerem três ou mais das seguintes características clínicas: condrite auricular bilateral, poliartrite soronegativa não erosiva, condrite nasal, inflamação ocular, condrite do trato respiratório e disfunção vestibulococlear.4McAdam LP, O'Hanlan AM, Bluestone R, Rearson CM. Relapsing polychondritis: prospective study of 23 patients and a review of the literature. Medicine. 1976;55:193–215. Uma modificação recente desses critérios sugere que o diagnóstico pode ser feito pela presença de pelo menos um dos critérios de MacAdam associado à confirmação histológica de dano à cartilagem ou à condrite em duas regiões anatômicas distintas com resposta a corticoide ou dapsona.5Damiani JM, Levine HL. Relapsing polychondritis e report of ten cases. Laryngoscope. 1979;89:929–46.

A paciente descrita apresentava condrite bilateral do pavilhão auricular, conjuntivite bilateral, poliartrite não erosiva soronegativa, perda auditiva neurossensorial e achados histopatológicos compatíveis, reunindo critérios para o diagnóstico de PR. A biópsia de pavilhão auricular foi realizada, porém o histopatológico nem sempre é necessário para a confirmação diagnóstica.

O diagnóstico precoce é difícil. Trentham e Le relataram que o tempo médio para estabelecê-lo é de 2,9 anos.6Trentham DE, Le CH. Relapsing polychondritis. Ann Intern Med. 1998;129:114–22. A manifestação clínica mais frequente é a inflamação da cartilagem auricular uni ou bilateral com incidência variando de 43%-83%. Artrite é a segunda manifestação mais comum. Em torno de 1/3 dos casos ocorrem em associação com outras doenças, como vasculites sistêmicas, doenças do tecido conectivo ou síndrome mielodisplásica.2Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38. No caso relatado, além de condrite auricular e poliartrite, a paciente apresentava perda auditiva neurossensorial severa e manifestações cutâneas compatíveis com vasculite.

Desordens do ouvido interno ocorrem em 40%-50% dos pacientes. Perda auditiva profunda é rara.3Zeuner M, Straub RH, Rauh G, Albert ED, Schölmerich J, Lang B. Relapsing polychondritis: clinical and immunogenetic analysis of 62 patients. J Rheumatol. 1997;24:96–101.,7Cody DTR, Sones DA. Relapsing polychondritis: audiovestibular manifestations. Laryngoscope. 1971;81:208–22. Foi relatada associação de vasculite cutânea e perda auditiva severa, porém a patogênese da lesão neurossensorial ainda é incerta. Há hipótese de uma vasculite obliterativa na artéria auditiva interna causando lesão otológica.8Schuknecht H. Ear pathology in autoimmune disease. Adv Oto Rhino Laryngol. 1991;46:50–70.,9Michet C. Vasculitis and relapsing polychondritis. Rheum Dis Clin North Am. 1990;16:441–4. Outra hipótese, levantada por Issing et al., seria a presença de anticorpos antilabirinto no soro de pacientes com disfunção audiovestibular.1010 Issing WJ, Selover D, Schulz P. Anti-labyrinthine antibodies in a patient with relapsing polychondritis. Eur Arch Otorhinolaryngol. 1990;256:163–6.

Manifestações mucocutâneas ocorrem em mais de 50% dos casos, sendo as úlceras aftosas a alteração mais comum.2Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38. Avaliação histológica das lesões cutâneas tem evidenciado, com maior frequência, vasculite leucocitoclástica, infiltrados neutrofílicos e trombose dos vasos da pele.1111 Frances C, el Rassi R, Laporte JL, Rybojad M, Papo T, Piette JC. Dermatologic manifestations of relapsing polychondritis. A study of 200 cases at a single center. Medicine. 2001;80:173–9.

Vasculite é observada histologicamente em 14%-25% dos casos, podendo ser indolente ou fulminante, e pode surgir de forma simultânea ou independente de outras manifestações.1212 Barzegar C, Vrtovsnik F, Devars JF, Mignon F, Pradalier A. Vasculitis with mesangial IgA deposits complicating relapsing polychondritis. Clin Exp Rheumatol. 2002;20:89–91.

O tratamento medicamentoso em pacientes que apresentam condrite ou artrite deve ser iniciado com anti-inflamatórios não hormonais, dapsona ou corticosteroides. Para os pacientes com manifestações severas, vasculite sistêmica ou perda auditiva neurossensorial, o uso de prednisona 1 mg/kg/dia ou pulsoterapia com metilprednisolona é o tratamento de escolha. Em casos de resistência a esteroides, outros agentes imunossupressores, incluindo azatioprina, metotrexato e ciclofosfamida, são relatados como sendo úteis. Há relato de casos isolados com resultados potencialmente benéficos à terapia com antagonistas do fator de necrose tumoral.2Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38. No caso relatado, foi iniciado prednisona 1 mg/kg/dia para paciente com quadro clínico compatível com vasculite cutânea e lesão severa em ouvido interno. Como não evoluiu com melhora esperada das manifestações mais graves, foi decidido pela pulsoterapia com metilprednisolona e ciclofosfamida.

Estima-se que a sobrevida em cinco anos é de 74%. Pacientes com idade menor que 51 anos e vasculite sistêmica apresentam pior prognóstico.1313 Michet CJ Jr, McKenna CH, Luthra HS, O'Fallon WM. Relapsing polychondritis: survival and predictive role of early disease manifestations. Ann Intern Med. 1986;104:74–8.

A policondrite recidivante é uma doença multissistêmica, de apresentação variável, que, em seu espectro de manifestações, pode levar a lesões graves irreversíveis em órgãos-alvo. É provável que no caso relatado, a permanência de sequela auditiva severa, mesmo com instituição de terapia agressiva, seja explicada pelo tempo prolongado percorrido, do início das manifestações clínicas, até o diagnóstico e a instituição da terapia. Um diagnóstico precoce associado a uma terapia agressiva, em casos de manifestações severas, pode trazer efeitos benéficos na prevenção de sequelas graves.

Referências

  • 1
    Pearson MC, Kline MH, Newcomer DV. Relapsing polychondritis. N Engl J Med. 1960;263:51–8.
  • 2
    Gergely P Jr, Poor G. Relapsing polychondritis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2004;18:723–38.
  • 3
    Zeuner M, Straub RH, Rauh G, Albert ED, Schölmerich J, Lang B. Relapsing polychondritis: clinical and immunogenetic analysis of 62 patients. J Rheumatol. 1997;24:96–101.
  • 4
    McAdam LP, O'Hanlan AM, Bluestone R, Rearson CM. Relapsing polychondritis: prospective study of 23 patients and a review of the literature. Medicine. 1976;55:193–215.
  • 5
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  • 6
    Trentham DE, Le CH. Relapsing polychondritis. Ann Intern Med. 1998;129:114–22.
  • 7
    Cody DTR, Sones DA. Relapsing polychondritis: audiovestibular manifestations. Laryngoscope. 1971;81:208–22.
  • 8
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  • 9
    Michet C. Vasculitis and relapsing polychondritis. Rheum Dis Clin North Am. 1990;16:441–4.
  • 10
    Issing WJ, Selover D, Schulz P. Anti-labyrinthine antibodies in a patient with relapsing polychondritis. Eur Arch Otorhinolaryngol. 1990;256:163–6.
  • 11
    Frances C, el Rassi R, Laporte JL, Rybojad M, Papo T, Piette JC. Dermatologic manifestations of relapsing polychondritis. A study of 200 cases at a single center. Medicine. 2001;80:173–9.
  • 12
    Barzegar C, Vrtovsnik F, Devars JF, Mignon F, Pradalier A. Vasculitis with mesangial IgA deposits complicating relapsing polychondritis. Clin Exp Rheumatol. 2002;20:89–91.
  • 13
    Michet CJ Jr, McKenna CH, Luthra HS, O'Fallon WM. Relapsing polychondritis: survival and predictive role of early disease manifestations. Ann Intern Med. 1986;104:74–8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2013
  • Aceito
    20 Mar 2014
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