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Neuromielite óptica em uma adolescente com dermatomiosite juvenil

Introdução

A neuromielite óptica, também conhecida como doença de Devic, é classificada como uma doença inflamatória autoimune desmielinizante do sistema nervoso central, distinta da esclerose múltipla, que afeta principalmente o nervo óptico e a medula espinal.11 Jacob A, Matiello M, Wingerchuk DM, Lucchinetti CF, Pittock SJ, Weinshenker BG. Neuromyelitis optica: changing concepts. J Neuroimmunol. 2007;187:126-38. Demonstrou-se que a neuromielite óptica é decorrente da presença de anticorpos contra a proteína de canal de água aquaporina-4 da barreira hematencefálica.22 Hino-Fukuyo N, Takahashi T, Haginoya K, Uematsu M, Tsuchiya S. Clinical features of Japanese pediatric patients with anti-aquaporin 4 antibody. No To Hattatsu. 2011;43:359-65.

Há relatos de neuromielite óptica na infância,33 Jeffery AR, Buncie JR. Pediatric Devic's neuromyelitis optica. J Pediatr Ophthalmol Strabismus. 1996;33:223-9.,44 Gokce G, Ceylan OM, Mutlu FM, Altinsoy HI, Koylu T. Relapsing Devic's disease in a child. J Pediatr Neurosci. 2013;8:146-9. mas há poucas associações notificadas de neuromielite óptica com outras doenças. A associação entre a neuromielite óptica e a dermatomiosite ainda não foi descrita na literatura.

Relato de caso

Uma paciente procurou nosso serviço aos sete anos com manifestação de edema bipalpebral com hiperemia ocular nos últimos quatro meses. Também apresentava edema nas mãos e nos pés; dor nos punhos, cotovelos e joelhos; e fraqueza muscular. Na ocasião, também tinha uma febre intermitente que perdurava havia 15 dias.

O exame físico revelou heliotropo, sinal de Gottron, artrite no joelho e tornozelo esquerdo e fraqueza muscular nos membros superiores e inferiores (escore de avaliação da miosite na infância de 14/52).55 Lovell DJ, Lindsley CB, Rennebohm RM, Ballinger SH, Bowyer SL, Giannini EH, et al. Development of validated disease activity and damage indices for the juvenile idiopathic inflammatory myopathies. II. The Childhood Myositis Assessment Scale (CMAS): a quantitative tool for the evaluation of muscle function. The Juvenile Dermatomyositis Disease Activity Collaborative Study Group. Arthritis Rheum. 1999;42:2213-9.

Foram feitos exames gerais, que obtiveram os seguintes resultados: hemoglobina de 10,4 g/dL, contagem de leucócitos de 4.400 com um diferencial normal, velocidade de hemossedimentação de 70 mm na primeira hora e um aumento das enzimas musculares (aspartato alanina transferase de 712 [valor normal de 10 a 35], creatina quinase de 187 [valor normal de 10 a 155] e lactato desidrogenase de 1.150 [valor normal de 240 a 480]).

Os ensaios para anticorpos antinucleares, anticorpos anti-DNA, anticorpos anti-ENA (antígenos nucleares extraíveis) e anticorpos anticardiolipina foram negativos e o nível do complemento era normal. A biópsia muscular mostrou uma atrofia perifascicular típica da dermatomiosite. O videodeglutograma era normal e a capilaroscopia periungueal demonstrou um padrão de esclerodermia com depleção capilar significativa e ectasia. Foi estabelecido o diagnóstico de dermatomiosite juvenil.66 Bohan A, Peter JB. Polymyositis and dematomyositis (two parts). N Engl J Med. 1975;292:344-7.

Ao longo de dois anos, a paciente recebeu 11 pulsoterapias com metilprednisolona, prednisona e metotrexato, até que foi alcançado o controle clínico e laboratorial da dermatomiosite. A paciente abandonou o tratamento por quatro anos e então retornou à clínica de reumatologia pediátrica há quatro anos, aos 13, sem evidências clínicas (escore de avaliação da miosite na infância de 41/52) 55 Lovell DJ, Lindsley CB, Rennebohm RM, Ballinger SH, Bowyer SL, Giannini EH, et al. Development of validated disease activity and damage indices for the juvenile idiopathic inflammatory myopathies. II. The Childhood Myositis Assessment Scale (CMAS): a quantitative tool for the evaluation of muscle function. The Juvenile Dermatomyositis Disease Activity Collaborative Study Group. Arthritis Rheum. 1999;42:2213-9. nem laboratoriais de atividade da dermatomiosite juvenil; nenhuma medicação foi necessária.

Há dois anos, aos 15, a paciente sentiu uma dormência no braço esquerdo, sem fraqueza muscular, que durou 10 dias e resolveu-se espontaneamente. Depois de dois meses, evoluiu com parestesia e fraqueza muscular proximal e distal nos quatro membros, além de dificuldade para caminhar e fazer atividades de vida diária. O neurologista solicitou uma tomografia computadorizada do encéfalo, com resultado normal, e nenhuma medicação foi prescrita. A paciente abandonou o seguimento novamente e depois de nove meses desses sintomas iniciais teve um episódio de visão turva e fraqueza distal nos quatro membros.

O exame neurológico revelou reflexos tendinosos profundos hiperativos no membro superior direito e nas pernas, sem fraqueza, e uma grave perda de visão no olho direito (VA 20/800), com exame de fundo que mostrou atrofia do disco óptico. A Expanded Disability Status Scale (EDSS) 77 Kurtzke JF. Rating neurologic impairment in multiple sclerosis: an expanded disability status scale (EDSS). Neurology. 1983;33:1444-52., que quantifica a deficiência em oito sistemas funcionais (piramidal, cerebelar, tronco encefálico, sensitivo, intestinal e vesical, visual, cerebral e outros) foi de 4 em uma escala de 0 a 10.

Os exames laboratoriais, incluindo a análise do líquido cerebrospinal, não mostraram alterações. A consulta neurológica sugeriu desmielinização do sistema nervoso central. O exame de ressonância magnética do neuroeixo mostrou uma lesão intraspinal longa de C3 a T4 (figs. 1 e 2). Propôs-se o diagnóstico de neuromielite óptica (doença de Devic). O teste positivo para anticorpo antiaquaporina-4 confirmou o diagnóstico. A paciente foi imediatamente iniciada em pulsoterapia com metilprednisolona, seguido por azatioprina e prednisona como terapia de manutenção.

Figura 1
Imagem de ressonância magnética em corte sagital. Medula espinal cervical ponderada em T2 que mostra uma lesão medular longa hiperintensa (flecha preta) em uma adolescente com dermatomiosite juvenil.

Figura 2
Imagem de ressonância magnética em corte axial da coluna cervical (C3) que mostra uma lesão medular longa hiperintensa (flecha preta) em uma adolescente com dermatomiosite juvenil.

A paciente manteve-se estável por oito meses com o esquema terapêutico inicial. Há um ano, apresentou um novo surto de neurite óptica grave sem fraqueza muscular, mas com prejuízo na função do esfíncter urinário. Foi repetida a análise do líquido cerebrospinal e a ressonância magnética do encéfalo. Ela foi tratada com imunoglobulina intravenosa. A pulsoterapia com metilprednisolona e o uso de 0,1 mg/kg/dia de prednisona e 3 mg/kg/dia de azatioprina foram mantidos por quatro anos até o presente. Após tratamento com imunoglobulina, os sintomas visuais e urinários da paciente melhoraram.

A paciente encontra-se em remissão na atividade da dermatomiosite juvenil nos últimos quatro anos, mas ainda apresenta atividade da neuromielite óptica.

Discussão

A neuromielite óptica recorrente normalmente é caracterizada por surtos na medula espinal e visuais. Dados de neuroimagem clínica e laboratorial e de imunopatologia sugerem que a neuromielite óptica difere da esclerose múltipla e apresenta um prognóstico pior, o que torna o diagnóstico precoce de suma importância para o início de um tratamento imunossupressor agressivo.88 O'Riordan JI, Gallagher HL, Thompson AJ, Howard RS, Kingsley DP, Thompson EJ, et al. Clinical and MRI findings in Devic's neuromyelitis optica. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1996;60:382-7.

Wingerchuk et al. propuseram novos critérios diagnósticos, que incluem neurite óptica, mielite aguda e pelo menos dois dos três critérios a seguir: lesões na medula espinal que abrangem pelo menos três segmentos em imagens de ressonância magnética; imagens de ressonância magnética do encéfalo incompatíveis com esclerose múltipla; e um teste de IgG-neuromielite óptica positivo (marcador sérico: autoanticorpo dirigido contra a aquaporina-4).99 Wingerchuk DM, Lennon VA, Pittock SJ, Lucchinetti CF, Weinshenker BG. Revised diagnostic criteria for neuromyelitis optica. Neurology. 2006;66:1485-9.

A antiaquaporina-4 é um autoanticorpo (IgG) dirigido contra proteínas dos canais de água da barreira hematencefálica. A distribuição da lesão do SNC corresponde às áreas em que há uma alta concentração desses canais. Portanto, a antiaquaporina-4 pode ser considerada um biomarcador para a neuromielite óptica, embora a extensão da correlação entre o título do anticorpo e a gravidade do surto não seja clara.99 Wingerchuk DM, Lennon VA, Pittock SJ, Lucchinetti CF, Weinshenker BG. Revised diagnostic criteria for neuromyelitis optica. Neurology. 2006;66:1485-9.

Luccinetti et al. demonstraram a deposição de complemento e IgM perivascular e a presença de um infiltrado inflamatório intenso composto predominantemente por macrófagos, granulócitos e eosinófilos em lesões desmielinizantes em casos de autópsia que envolvem neuromielite óptica, o que confirma a importância da imunidade humoral na fisiopatologia da neuromielite óptica.1010 Luccinetti CF, Mandler RN, Mc Gavern D. A role for humoral mechanisms in the pathogenesis of Devic's neuromyelitis optica. Brain. 2002;125:1450-61.

Em um estudo retrospectivo que abrangeu 15 anos, Jeffery et al. avaliaram nove crianças com neuromielite óptica. Todas tiveram uma infecção viral antes dos sintomas de neuromielite óptica. A neurite óptica bilateral foi um achado comum, observado em 89% das crianças, e todas apresentaram um curso monofásico.33 Jeffery AR, Buncie JR. Pediatric Devic's neuromyelitis optica. J Pediatr Ophthalmol Strabismus. 1996;33:223-9. No entanto, a neuromielite óptica anticorpo-positivo normalmente não está associada a uma doença monofásica, mas exibe um curso progressivo muito rápido.

Nossa paciente manifestou as características clínicas descritas anteriormente, anormalidades na ressonância magnética e a presença de anticorpos antiaquaporina-4. Ela tem o tipo recorrente da doença e já tem deficiência visual irreversível.

Achados da neuromielite óptica podem aparecer em pacientes com outras doenças inflamatórias e infecciosas autoimunes, com alguns relatos em adultos e crianças.1111 Bichuetti DB, Oliveira EML, Souza NA, Rivero RL, Gabbai AA. Neuromyelitis optica in Brazil: a study on clinical and prognostic factors. Mult Scler. 2009;15:613-9. Embora os autores não sugiram uma possível explicação para essas associações, agentes infecciosos podem desencadear o processo autoimune.

Não há consenso sobre o tratamento da neuromielite óptica recorrente. Várias opções têm sido relatadas. Os surtos são tratados com prednisona por via oral, metilprednisolona, imunoglobulina intravenosa e plasmaferese.1212 Bichuetti DB, Oliveira EML, Oliveira DM, Amorin de Souza N, Gabbai AA. Neuromyelitis optica treatment. Analysis of 36 patients. Arch Neurol. 2010;67:1131-6. A terapia de manutenção envolve imunoglobulina intravenosa mensal1313 Bakker J, Metz L. Devic's neuromyelitis optica treated with intravenous gammaglobulin (IVIG). Can J Neurol Sci. 2004;31:265-7. e rituximabe.1414 Beres SJ, Graves J, Waubant E. Rituximab use in pediatric central demyelinating disease. Pediatr Neurol. 2014;51:114-8. Recentemente, dois estudos demonstraram que o tratamento com azatioprina e prednisona ou micofenolato mofetil interrompe a progressão da doença.1212 Bichuetti DB, Oliveira EML, Oliveira DM, Amorin de Souza N, Gabbai AA. Neuromyelitis optica treatment. Analysis of 36 patients. Arch Neurol. 2010;67:1131-6.,1515 Falcini F, Trepani S, Ricci L, Simonnini G, De Martino M. Sustained improvement of a girl affected with Devic's disease over 2 years of mycophenolate mofetil treatment. Rheumatology (Oxf). 2006;45:913-5.

Após o primeiro surto, essa paciente recebeu pulsoterapia com metilprednisolona e terapia de manutenção com prednisona e azatioprina. Após o segundo surto, preferiu-se o uso de pulsoterapia com metilprednisolona e imunoglobulina intravenosa mensal, além de manter a prednisona e a azatioprina.

Conclusão

O aparecimento de sintomas neurológicos atípicos durante o curso de uma doença reumática deve chamar a atenção para a possibilidade de uma associação com essa doença autoimune. No caso apresentado aqui, o aparecimento de sintomas visuais e motores incomuns em uma paciente com dermatomiosite juvenil levou imediatamente à suspeita clínica e exames laboratoriais confirmaram a doença neurológica associada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2014
  • Aceito
    1 Dez 2014
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