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Doença de Lyme e artrite idiopática juvenil - Relato de caso clínico pediátrico Estudo conduzido no Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar do Médio Ave, Vila Nova de Famalicão, Portugal.

Introdução

A doença de Lyme (DL) é uma doença infeciosa causada por bactérias espiroquetas do gênero Borrelia e transmitida pela mordedura de carraça.

A apresentação clínica da DL divide-se em três fases distintas: a doença localizada inicial, caracterizada pelo eritema migrans (EM); a doença disseminada inicial, com possível acometimento do sistema nervoso central e do coração; e a fase tardia da doença, com artrite monoarticular ou oligoarticular das grandes articulações. O tratamento indicado durante a fase localizada inicial é a antibioterapia oral e no caso de doença disseminada com acometimento neurológico ou cardíaco está indicada antibioterapia endovenosa. A artrite da DL (fase tardia) deve ser tratada inicialmente com antibioterapia oral durante um mês. O tratamento endovenoso fica limitado aos doentes com doença grave ou persistente.

Foi já apontado em vários estudos a possível influência de vários agentes infeciosos, notadamente a Borrelia, na etiopatogenia da artrite idiopática juvenil (AIJ).11 Aslan M, Kasapcopur O, Yasar H, Polat E, Saribas S, Cakan H, et al. Do infections trigger juvenile idiopathic arthritis?. Rheumatol Int. 2011;31:215-20.

Relato de caso

Criança de seis anos, sexo feminino, sem antecedentes pessoais de relevância, residente em ambiente urbano no Norte de Portugal, contudo com visitas regulares a parentes residentes em ambiente rural, onde contactava com cães. Os antecedentes familiares eram irrelevantes.

Foi referenciada à consulta de reumatologia pediátrica por queixas de dor e edema das articulações interfalângicas proximais (IFP) das mãos, dos punhos e das articulações tibiotársicas bilateralmente com vários meses de evolução e agravamento progressivo. Era negada febre ou história de traumatismo. Existia referência também a múltiplas lesões eritematosas circinadas, com progressão hilofugal, com 2 a 5 cm de diâmetro, com evolução de cinco meses, refratárias a tratamento antifúngico oral e tópico. Ao exame objetivo apresentava sinais inflamatórios e limitação à mobilização ativa e passiva de todas as articulações IFP das mãos (fig. 1), dos joelhos, das articulações tibiotársicas e dos punhos bilateralmente e ainda lesões eritematosas circinadas, com formas irregulares, múltiplas, dispersas no tronco, membros superiores e inferiores e região cervical (fig. 2).

Figura 1
Articulações interfalângicas proximais com sinais inflamatórios observadas em consulta de reumatologia pediátrica.

Figura 2
Lesões eritematosas circinadas com formas irregulares, múltiplas, dispersas no tronco e membros superiores em consulta de reumatologia pediátrica.

Dado o quadro clínico sugestivo de DL foi instituído tratamento antibiótico com amoxicilina p.o. 1,5 g/dia e ibuprofeno 30 mg/kg/dia durante 21 dias.

A investigação laboratorial demonstrou hemograma e bioquímica alargada (função renal, TGO/TGP, fosfatase alcalina, função tireóidea, ionograma) sem alterações, velocidade de sedimentação 24 mm/1ªh, proteína-C-reativa 1 mg/dL, estudo imunológico com ANA, Anca e fator reumatoide negativos, C3 e C4 ligeiramente aumentados (184 mg/dL e 46 mg/dL respetivamente), serologia e marcadores virais (VIH, CMV, EBV, toxoplasma, VDRL, reação de Weil-Felix e reação de Wright) negativos. O estudo serológico para Borrelia burgdorferi foi positivo (imunofluorescência indireta, IgG 53.30 UA/mL, positivo >10UA/mL; IgM: 1,7, positivo > 1,09). Confirmou-se assim o diagnóstico de EM e artrite em contexto da doença de Lyme. Não apresentava alterações no nível do exame cardíaco e oftalmológico.

Apesar do tratamento instituído, a criança manteve as queixas de artralgia e aparecimento de novas lesões de EM. Foi então instituído ciclo de 28 dias de ceftriaxone e.v. 2 g/dia, com desaparecimento completo das lesões cutâneas.

A resolução da sintomatologia articular foi apenas transitória com reagravamento de queixas de artralgia e limitação da mobilidade dos punhos e das articulações IFP cerca de dois meses depois. Outros sinais de artrite ou EM não recorreram.

Pela persistência dos sinais e sintomas de artrite crônica foi iniciado tratamento anti-inflamatório com deflazacorte p.o. (7.5 mg/dia) e naproxeno p.o. (500 mg/dia) e imunossupressão com metrotrexato p.o. (14.5 mg/m2/semana). A criança apresentou melhoria progressiva das queixas álgicas, mas manteve ligeira limitação à extensão dos punhos. Analiticamente não foram observadas novas alterações. A doente mantém-se no momento em remissão, dependente dessa terapêutica, com comportamento e resposta à terapêutica em tudo idêntico à da AIJ. Constatou-se agravamento das queixas quando tentada a sua redução.

Discussão

A DL é predominantemente causada pelas espécies Borrelia burgdorferi e, sobretudo na Europa, Borrelia afzelii e Borrelia garinii. Considerada uma zoonose, é transmitida pela mordedura de uma carraça, comumente Ixodes ricinus.

A incidência de DL, que varia de forma importante entre diferentes áreas geográficas, tem aumentado de forma sustentada nos últimos anos.22. Final 2012 reports of nationally notifiable infectious diseases. MMWR Morb and Mortal Wkly Rep. 2013;62:669. Em Portugal a incidência é de 0,3 caso por 100.000 habitantes, próxima dos restantes países europeus.33 Lopes de Carvalho I, Núncio MS. Laboratory diagnosis of Lyme borreliosis at the Portuguese National Institute of Health (1990-2004). Euro Surveill. 2006;11:257-60.

A doença localizada inicial apresenta-se sete a 14 dias após a inoculação44 Wormser GP, Dattwyler RJ, Shapiro ED, Halperin JJ, Steere AC, Klempner MS, et al. The clinical assessment, treatment, and prevention of Lyme disease, human granulocytic anaplasmosis, and babesiosis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2006;43:1089. e caracteriza-se pelo EM e pela sintomatologia sistêmica. A mácula eritematosa no local da picada progride, se não tratada, para lesão anular eritematosa não pruriginosa de maiores dimensões (5 a 70 cm) e por vezes com aclaramento central.

Se não for instituído tratamento segue-se a doença disseminada inicial, caracterizada por lesões de EM múltiplas, sintomatologia neurológica, como meningite ou paresia de nervos cranianos, e cardite.

Durante a fase tardia, a artrite monoarticular ou oligoarticular é a manifestação mais comum. Descrita inicialmente por Steere et al.55 Steere AC, Malawista SE, Snydman DR, Shope RE, Andiman WA, Ross MR, et al. Lyme arthritis: an epidemic of oligoarticular arthritis in children and adults in three Connecticut communities. Arthritis Rheum. 1977;20:7-17. em 1977, a associação entre a DL e a sintomatologia articular foi já extensamente descrita. O acometimento articular inicia-se numa grande articulação, mais frequentemente o joelho, mas o edema e o rubor são mais marcados do que a dor associada. A artrite é frequentemente migratória e no caso de não ser iniciado tratamento antibiótico, as queixas mantêm-se por várias semanas com resolução espontânea, contudo recorre frequentemente em diferente articulação.66 Christen HJ, Hanefeld F, Eiffert H, Thomssen R. Epidemiology and clinical manifestations of Lyme borreliosis in childhood. A prospective multicentre study with special regard to neuroborreliosis. Acta Paediatr Suppl. 1993;386:1.

Evoluções não habituais foram já descritas por diferentes autores, notadamente a evolução para a cronicidade das queixas articulares numa importante proporção dos doentes pediátricos77 Bentas W, Karch H, Huppertz HI. Lyme arthritis in children and adolescents: outcome 12 months after initiation of antibiotic therapy. J Rheumatol. 2000;27:2025-30. e a presença de artropatia erosiva em criança sem resposta ao tratamento antibiótico.88 Hendrickx G, De Boeck H, Goossens A, Demanet C, Vandenplas Y. Persistent synovitis in children with Lyme arthritis: two unusual cases. An immunogenetic approach. Eur J Pediatr. 2004;163:646-650 [Epub 2004 Jul 28].

A presença de EM em pessoa que reside ou viajou recentemente para área endêmica é suficiente para ser estabelecido o diagnóstico de DL. Contrariamente, em caso de sintomatologia compatível com doença disseminada ou doença tardia, deverá ser feita confirmação serológica prévia à instituição de tratamento antibiótico.44 Wormser GP, Dattwyler RJ, Shapiro ED, Halperin JJ, Steere AC, Klempner MS, et al. The clinical assessment, treatment, and prevention of Lyme disease, human granulocytic anaplasmosis, and babesiosis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2006;43:1089.

A antibioterapia indicada na doença localizada é doxicilina, amoxicilina ou cefuroxima-axetil p.o., 14 a 21 dias. A antibioterapia endovenosa está indicada em caso de manifestações cardíacas ou neurológicas, com exceção da paralisia facial isolada. A artrite de Lyme pode ser tratada com sucesso com doxicilina ou amoxicilina p.o. durante um mês. Contudo, por vezes é necessário tratamento endovenoso.44 Wormser GP, Dattwyler RJ, Shapiro ED, Halperin JJ, Steere AC, Klempner MS, et al. The clinical assessment, treatment, and prevention of Lyme disease, human granulocytic anaplasmosis, and babesiosis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2006;43:1089.

Foi já apontada a associação entre a AIJ e vários e fatores ambientais, tais como infeções, aleitamento materno, imunizações etc.99 Ellis JA, Munro JE, Ponsonby AL. Possible environmental determinants of juvenile idiopathic arthritis. Rheumatology. 2010;49:411-25. Acredita-se então que a presença de um ou mais fatores de risco, tal como a infeção por Borrelia, em indivíduo geneticamente suscetível, poderá desencadear o quadro clínico de AIJ.11 Aslan M, Kasapcopur O, Yasar H, Polat E, Saribas S, Cakan H, et al. Do infections trigger juvenile idiopathic arthritis?. Rheumatol Int. 2011;31:215-20. Contudo, são ainda necessários mais estudos para ser estabelecida uma relação segura entre esse fator ambiental e a AIJ e também para ser determinado qual o verdadeiro papel patogênico dos diferentes fatores de risco ambientais no desencadear da doença.

Neste caso, a criança foi observada com lesões cutâneas sugestivas de doença disseminada; contudo, a evolução para artrite poliarticular não é característica da artrite de Lyme (essa é tipicamente monoarticular ou oligoarticular), mas é fortemente sugestiva de AIJ poliarticular. As manifestações cutâneas desapareceram após o tratamento, persiste apenas a artrite crônica, controlada com anti-inflamatórios e metotrexato.

A evolução apresentada aponta para uma forte probabilidade de a infeção por Borrelia ter desencadeado nessa criança a AIJ.

  • Estudo conduzido no Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar do Médio Ave, Vila Nova de Famalicão, Portugal.

References

  • 1
    Aslan M, Kasapcopur O, Yasar H, Polat E, Saribas S, Cakan H, et al. Do infections trigger juvenile idiopathic arthritis?. Rheumatol Int. 2011;31:215-20.
  • 2
    Final 2012 reports of nationally notifiable infectious diseases. MMWR Morb and Mortal Wkly Rep. 2013;62:669.
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    Lopes de Carvalho I, Núncio MS. Laboratory diagnosis of Lyme borreliosis at the Portuguese National Institute of Health (1990-2004). Euro Surveill. 2006;11:257-60.
  • 4
    Wormser GP, Dattwyler RJ, Shapiro ED, Halperin JJ, Steere AC, Klempner MS, et al. The clinical assessment, treatment, and prevention of Lyme disease, human granulocytic anaplasmosis, and babesiosis: clinical practice guidelines by the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2006;43:1089.
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    Steere AC, Malawista SE, Snydman DR, Shope RE, Andiman WA, Ross MR, et al. Lyme arthritis: an epidemic of oligoarticular arthritis in children and adults in three Connecticut communities. Arthritis Rheum. 1977;20:7-17.
  • 6
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    Bentas W, Karch H, Huppertz HI. Lyme arthritis in children and adolescents: outcome 12 months after initiation of antibiotic therapy. J Rheumatol. 2000;27:2025-30.
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    Hendrickx G, De Boeck H, Goossens A, Demanet C, Vandenplas Y. Persistent synovitis in children with Lyme arthritis: two unusual cases. An immunogenetic approach. Eur J Pediatr. 2004;163:646-650 [Epub 2004 Jul 28].
  • 9
    Ellis JA, Munro JE, Ponsonby AL. Possible environmental determinants of juvenile idiopathic arthritis. Rheumatology. 2010;49:411-25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    2 Mar 2015
  • Aceito
    14 Ago 2015
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