Acessibilidade / Reportar erro

Entrevistando Neidson Rodrigues

HOMENAGEM

Entrevistando Neidson Rodrigues* * Entrevista realizada em 1º de setembro de 2000, no Centro de Referência do Professor Museu da Escola de Minas Gerais , como parte das comemorações dos 70 anos da Secretaria de Estado da Educação, integrando a série de depoimentos orais realizados com os gestores da Secretaria, no período 1960 até 2000. Neidson Rodrigues foi entrevistado pelo seu importante papel como superintendente educacional daquela Secretaria, pela realização do I Congresso Mineiro de Educação em 1983, e pelo que representava no cenário educacional em Minas Gerais e no Brasil. A entrevista foi realizada por Nelma Marçal Lacerda Fonseca, coordenadora do Projeto de História Oral desde 1997 e sua transcrição ficou a cargo de Cláudia Botelho, Helenice Giovanardi e da própria Nelma Marçal, pedagogas do Centro de Referência do Professor, e também das digitadoras Daniela Magalhães Pereira e Rosângela Pereira dos Santos.

Nelma Marçal Lacerda Fonseca

Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Centro de Referência do Professor

Neidson: Muito obrigado pelo convite para participar do projeto de História Oral da Educação em Minas Gerais. Fico feliz de vocês imaginarem que já faço parte desta história. Mas, de outro lado, é muito triste saber que a gente já está virando história...

Nelma: História do tempo presente, Neidson. Essa história se caracteriza por ser do tempo presente. [risos]

Neidson: Tudo bem! Começo respondendo sua primeira solicitação, a respeito de dados biográficos. Nasci na cidade de Ituiutaba, no Triângulo Mineiro, em 1942. Fui educado, até o final do antigo curso ginasial (as oito primeiras séries atuais), nessa cidade. Quando avalio minha formação hoje - portanto, no futuro daquele passado -, percebo aspectos positivos que não havia percebido em tempos anteriores, em tempos pretéritos. Quando estou falando no futuro do meu passado posso olhar para trás e, de alguma forma, recuperar passagens importantes que, em outros momentos, não teria considerado tão importantes. Em primeiro lugar, a estrutura da minha família: é uma família praticamente de pessoas analfabetas. Meu pai sempre me dizia que havia freqüentado 45 dias de escola. Ele chegou a aprender a ler, mas escrevia muito mal. Lia com muita dificuldade, mas era capaz de ler; era um leitor inveterado da Bíblia Sagrada. Em segundo lugar, a formação que tive em casa foi muito importante. Uma formação protestante; a Bíblia era um livro que estava presente em nossa casa. É bastante interessante observar o comportamento das famílias protestantes naquele tempo. Assim que a criança aprendia a ler, o primeiro livro que ganhava era uma Bíblia. Então, ficávamos sempre ansiosos na expectativa de ganhar a Bíblia, pois podíamos demonstrar que sabíamos ler. De alguma forma, isso colocava certo empenho entre nós, crianças, porque era motivo de orgulho a gente ir à igreja levando a Bíblia. Era uma demonstração de que sabíamos ler. Houve ainda outro aspecto muito importante na minha formação: minha avó era analfabeta e gostava de ouvir leituras da Bíblia. Ela fazia certa exigência a esse respeito, e como eu gostava muito da minha avó, cumpria essa exigência com muito prazer. Todos os dias, antes dela deitar ou quando já estava deitada, nós gastávamos – eu, principalmente, gastava – 40 minutos, até uma hora, lendo a Bíblia para ela. Isto talvez me tenha tornado um leitor sem eu saber. Talvez isso tenha tido um papel extremamente importante, quero crer, na minha formação como leitor. Primeiro, porque a Bíblia é um livro complexo, e como minha avó gostava de leituras diversas da Bíblia, eu me empenhava em ler desde os salmos, o que ela mais apreciava. Apreciava também os Evangelhos e as Cartas de Paulo. E também fatos da história antiga, da criação do mundo, a história do povo judeu e assim por diante. Isto produziu outro aspecto na minha formação, que considero muito importante: o fato de eu gostar muito de história. A história do povo judeu e as relações do povo judeu com os egípcios me levaram mais tarde a querer conhecer mais sobre os egípcios e os gregos, especialmente por causa das relações do cristianismo com esta área do mundo, na época – o que talvez tenha produzido em mim certa identificação com o pensamento clássico. Contando isso, estou tentando resgatar uma visão minha de um passado, que eu não tinha naquele momento. Minha história escolar, por sua vez, considero que foi muito pobre. Era considerado um aluno com todas as deficiências próprias dos alunos com péssimo aproveitamento escolar. Tive várias reprovações na escola. Repeti duas ou três vezes alguns anos no curso primário. No curso ginasial, não me lembro de ter passado nenhuma vez sem recuperação (naquele tempo se chamava segunda época), especialmente em matemática e ciências. Quando se tratava de história antiga, eu era um ótimo aluno; mas os professores não queriam saber totalmente da história antiga. Queriam saber também de história medieval ... e eu não gostava da história medieval. Então, de repente, era um bom aluno de história antiga, um bom aluno de história moderna, mas um péssimo aluno de história medieval. Aos trancos e barrancos, consegui terminar o curso ginasial. Uma certa ilusão na minha cabeça, naquele momento, me dizia que eu deveria fazer medicina. Aí, mudei de cidade aos 16 anos, fui para Uberaba, na expectativa de fazer o curso científico e seguir medicina. Entretanto, não consegui sucesso no curso científico e fui reprovado três vezes, porque não conseguia aprender ciências, matemática; tinha enorme dificuldade neste aprendizado e formei, inclusive, uma certa autoconsciência, estimulada pelo sistema escolar, de que era um aluno deficiente, que tinha enorme deficiência mental e intelectual. Isto me acompanhou durante muitos anos, até que, num momento bastante curioso da minha vida, me deparei com um livro de filosofia, o Assim falava Zaratustra, de Nietzsche. Estando sem poder sair de uma pequena cidade do interior de São Paulo, em 1963, peguei este livro por acaso. Ia passar uma semana sozinho em Pirajuí e resolvi levá-lo para casa, porque ouvira falar que filosofia era alguma coisa bastante interessante. Comecei a ler Assim falava Zaratustra, e isto mudou radicalmente a história da minha vida. A partir desse livro de Nietzsche, entrei num enorme conflito de natureza religiosa; ele me fez checar determinadas convicções religiosas que eu tinha.

Nelma: Isso com que idade, Neidson?

Neidson: Eu já tinha meus 21 anos de idade, e isso me colocou numa outra direção, a direção da formação intelectual. Comecei a participar de movimentos ligados aos estudantes secundaristas e entrei em um movimento de luta política em favor das reformas de base, encampadas naquele momento por João Goulart. Passei a participar de movimentos políticos, o que me levou a leituras de alguns pensadores ligados aos marxistas e antimarxistas. Assim, foi-se criando um outro universo na minha formação intelectual. Eu me considerava e ainda me considero um leitor, um bom leitor, alguém que estava e está sempre interessado em novidades. Tanto na novidade do contemporâneo, quanto na novidade do antigo; isto é, o que havia no mundo antigo e no pensamento antigo e que poderia se constituir numa informação, num conhecimento novo para compreender o presente. Isso sempre me levou a me enfronhar em leituras de pensadores dos tempos contemporâneos e de pensadores ligados aos momentos fundantes da história da humanidade. Aquela minha formação religiosa inicial, que me havia colocado em contato com a cultura egípcia e a cultura judaica, me levou a perscrutar um pouco mais sobre os egípcios, os judeus, os gregos, os caldeus, os babilônios, os romanos, me colocando em contato com a literatura e a filosofia, naquele momento. Você pode perceber que isto me encaminhou para o curso de filosofia, me levou a fazer o vestibular na Universidade de São Paulo. Foi a minha primeira grande surpresa em relação a minha formação. Eu não tinha recursos financeiros para freqüentar um cursinho, havia feito um curso científico muito malfeito, não havia feito um curso clássico, e iria prestar um dos vestibulares mais difíceis naquele momento, na Universidade de São Paulo. No vestibular para o curso de filosofia havia mais ou menos dez candidatos por vaga. Era feito em três partes: exame de língua, exame escrito de filosofia e exame oral, onde você passava por uma banca composta por quatro examinadores. Entre eles estavam o professor Bento Prado, o famoso Bento Prado, o professor Rui Fausto e o professor Lívio Teixeira, titular da cadeira. Não estou me lembrando quem era o quarto examinador. O vestibulando era examinado por uma banca desse tipo. Fui aprovado de uma maneira bastante singular. Não sei se fui bem-sucedido nas questões chamadas mais objetivas em relação à filosofia, mas me saí muito bem nas entrevistas, porque o que se avaliava naquele momento não era o conteúdo, não era a quantidade de informações que você tinha sobre a filosofia, mas qual era realmente o seu potencial para se tornar um filósofo. Era o que se dizia naquele momento, e possivelmente minha ampla formação intelectual possibilitou que eu fosse bem-sucedido naquele vestibular, o que me leva até hoje a questionar as formas de avaliação da escola: a escola não avalia o progresso do aluno, avalia a quantidade de coisas que este aluno conseguiu reter durante o ano escolar. E sempre me lembro que aquele vestibular também demarcou, de maneira muito clara, o juízo que eu fazia de mim mesmo. Pude comparar o modo como a escola avaliava a minha trajetória e o juízo que passei a fazer a respeito de mim mesmo, frente ao novo modo de avaliação sobre o progresso intelectual, moral, profissional de uma determinada pessoa. Desde então, para mim, se tornou muito questionável a forma de avaliação da escola e a forma como ela às vezes exclui pessoas que poderiam não ser excluídas se fossem avaliadas de outra maneira. Tudo isso compõe um conjunto de coisas, e esse conjunto se constitui, portanto, em um relato de uma trajetória, um relato sobre avaliação – porque infelizmente não estou falando apenas do passado, estou falando do passado tendo como referência o meu presente; estou falando a partir do futuro daquele passado.

Nelma: Então, a sua vida deu um salto na questão auto-estima, porque uma pessoa que vinha sendo reprovada... Você devia sofrer muito com isso. Você sofria, Neidson?

Neidson: Olha, sou capaz de dizer o seguinte: quando tinha algum sucesso eu ficava feliz; quando não tinha sucesso não sofria muito com isso, porque tinha a convicção de que eu era uma pessoa incompetente...

Nelma: Você já havia introjetado esta idéia?

Neidson: Veja só, isso já estava de alguma forma introjetado, tanto assim que, quando eu estava no 3º ano científico, havia tomado a decisão de abandonar o curso - porque não teria possibilidade de ter sucesso na vida acadêmica -, fazer um curso de contabilidade e virar um contador. Por que isso? Porque também estava tendo uma experiência bastante curiosa: estava trabalhando num escritório de contabilidade e, curiosamente, eu, que nunca havia estudado contabilidade, havia me tornado uma pessoa extremamente importante no escritório. O grupo que trabalhava naquele escritório era um grupo de contadores bem-informados e, inclusive, o gerente geral do escritório tinha uma enorme confiança no meu trabalho. Ocorria então uma coisa contraditória: eu me saía bem como contador, num trabalho de contabilidade para o qual eu não havia sido preparado na escola. Neste momento, comecei a avaliar que não só a escola realiza a atividade formativa, mas também a família e toda a sociedade. Por exemplo, aquele exercício diário de leitura da Bíblia e de explicação de conceitos ou de situações históricas que minha avó não entendia, e me perguntava, isso me fazia necessariamente procurar informações. Então, muitas das coisas que aprendi de história, na escola, aprendi para poder explicar para minha avó. Por exemplo, quando ela me perguntava o que era ser escravo no Egito, coisas do povo judeu, eu tinha que saber um pouco o que era o povo judeu, como é que ele foi constituído, por que ele foi para o Egito, como é que ele esteve no Egito, onde era o Egito, como era governado. Ia aos livros de história, aos livros didáticos, tomava aquelas informações e passava para ela. Olha só, a minha grande educadora e formadora foi minha avó, uma pessoa analfabeta. Então, o processo formativo das pessoas tem caminhos nem sempre muito claros, não segue uma trajetória linear que podemos demarcar. E este é o processo de formação. Os educadores devem compreender que o processo de formação é uma rede de relações, inclusive cheia de contradições. Com a criança na escola, o professor deve estar preocupado em orientá-la, ajudá-la a sair e ser capaz de observar e ver esta rede. O professor não pode simplesmente querer colocar os alunos numa linha reta de aprendizado. Acho que este é um problema muito sério na atividade escolar, porque os professores tendem a imaginar que o aluno só aprende história ouvindo sua aula de história; só aprende matemática assistindo a sua aula de matemática, ou fazendo os exercícios de matemática; e, na realidade, aprendemos num conjunto de experiências que se dão na escola e fora da escola. A escola é um local ótimo para se fazer sínteses, discussões, ampliar experiências, mas nunca para reduzir as experiências de aprendizado.

Nelma: Isto é, há no formato da escola um reducionismo, um empobrecimento?

Neidson: Acho que existe um reducionismo, infelizmente. Em especial da 4ª série para a frente, os professores passam a julgar que a atividade formativa se resume em transmitir um conhecimento ligado a uma disciplina específica. Sequer imaginam que as disciplinas só têm sentido se estiverem concorrendo na formação do ser humano; o que importa não é a disciplina, é o ser humano que está ali sendo formado. E isso significa que cada um reduz a relação ensino/aprendizagem àquilo que acontece na sala de aula; é assim que se avalia. Muitos professores dizem: Não, nós estamos preocupados com a formação total, integral do ser humano. Mas eu sempre pergunto: O que você avalia quando está ensinando? Na realidade, o que se avalia é o aprendizado de um ano, um semestre, um bimestre, uma semana. Portanto, não é formação total, integral; você avalia o que passou de informações e o que o aluno recebeu dessa informação. Na prática é isso que se faz, por mais que o discurso seja o contrário. Se você me perguntar qual é a solução; não tenho nenhuma! Estou dando este testemunho para mostrar que, independentemente do fracasso escolar, a escola ajudou a me formar, me ajudou a perseguir uma formação acadêmica, intelectual. Aprendi isso na escola: aprendi a ler na escola, aprendi regras da gramática na escola, aprendi formas de leitura na escola. Me lembro, no 4º ano primário, de uma professora não-formada que veio substituir uma professora de português que havia deixado a escola. Essa professora tinha um hábito, talvez exatamente porque não fosse formada, estava ainda aprendendo, e possivelmente (estou fazendo uma avaliação subjetiva) por não dominar grandes metodologias: diariamente trazia livros para a sala de aula e dava um livro para cada aluno; nós tínhamos de ler aquele livro e depois ela nos fazia perguntas a respeito daquela leitura. Outra coisa muito importante: tínhamos de ler em voz alta e ela corrigia a nossa entonação de leitura nos momentos das vírgulas, da exclamação, do ponto, do ponto e vírgula. Ela gostava também de fazer um exercício: pegava um livro qualquer, ia lendo e nós tínhamos de transcrever o que ela estava lendo, mas ela não dizia a pontuação; tínhamos de ir pontuando; depois ela corrigia. Outra coisa muito interessante: ela gostava de dar livros de poesia para nos ensinar a ler poesia; ensinava onde se faz a interrupção, o ritmo da poesia. Olha, essa professora, com essa simplicidade de processos pedagógicos, hoje eu reconheço que foi quem mais me ensinou o exercício da leitura. Eu nem sei o nome dela, gostaria de saber, não sei onde ela está, mas eu atribuo a ela uma competência fantástica na minha formação como leitor! São coisas às vezes simples que se tornam altamente produtivas na formação e que fazem uma diferença enorme, como hoje eu avalio.

Nelma: Neidson, e como você chega a Belo Horizonte? Como é que você vem parar aqui, vindo do Triângulo, fazendo doutorado na PUC/SP?

Neidson: Primeiro fui para Uberaba, depois para Uberlândia; de Uberlândia fui para Lins, de Lins para Pirajui, de lá para São Paulo, onde fiz minha graduação em filosofia e o mestrado. Quando estava fazendo o mestrado, tinha um ideal na minha cabeça: queria ser professor de curso superior. Trabalhei em São Paulo como datilógrafo, trabalhei em escritório, trabalhei em departamento de pessoal de empresas, mas minha vontade era me tornar um professor universitário. Para isso, julgava que deveria fazer pelo menos mestrado; não sonhava com o doutorado – era uma coisa restrita naquele momento, poucas pessoas o atingiam. Achava que o doutorado estava fora do meu propósito, mas imaginava: pelo menos o mestrado eu deveria fazer, vou depois para o interior, ser professor. Imaginava que já estaria com uma carreira mais bem definida. Passei a enviar meu currículo para várias escolas do interior. Naquele momento havia começado uma enorme criação de cursos de ensino superior no interior do estado de São Paulo, e mesmo na cidade de São Paulo, fruto da Reforma Universitária de 1968. Passei então a espalhar meu currículo. Não era um grande currículo. No máximo dizia que eu estava fazendo uma pós-graduação na USP sob a orientação da professora Marilena Chauí – já era um atestado de certo prestígio intelectual: ser um mestrando e ser orientado por ela, não é? Depois de algumas tentativas, fui convidado a fazer um concurso na PUC de Campinas. Fui aprovado, mas ocorreram alguns fatos bastante curiosos; não vou relatá-los porque não tenho como provar o que aconteceu. Comecei a dar aulas na PUC de Campinas, e duas semanas depois o diretor me chamou para dizer que havia ocorrido um erro na avaliação do meu currículo: eu não poderia ser contratado para aquelas aulas. Enfim, fui demitido. Naquele momento, dava aula em vários cursinhos e, felizmente, essa demissão da PUC coincidiu com o chamamento de Piracicaba, que acabei aceitando. Piracicaba estava instituindo um centro universitário, não era ainda universidade, chamava-se Instituto Educacional Piracicaba, composto de algumas faculdades cujo funcionamento havia sido autorizado pelo MEC: direito, pedagogia, filosofia, ciências e letras. O Instituto estava requisitando professores para assumir disciplinas. Fui para Piracicaba com um número de aulas suficientes para me mudar com a minha família. Me instalei lá num regime quase de tempo integral, o que significava dar 25 a 30 horas/aulas semanais. O Instituto cresceu, e antes de eu deixar Piracicaba, em 1978, ele já havia se transformado na Universidade Metodista de Piracicaba. Nela fui inclusive o diretor que implantou a Faculdade de Comunicação. Fui também diretor da Faculdade de Psicologia e coordenador da Faculdade de Ciências, porque a gente tinha de assumir vários cargos, além das aulas que dava. Estava com meu doutorado encaminhado na PUC/SP, já estava para terminá-lo, em 1978, quando recebi um convite, através de Luiz Antônio Cunha, para vir a Belo Horizonte, porque aqui na UFMG estavam reformulando o Programa de Pós-Graduação em Educação e queriam contratar novos professores. Naquele momento, os contratos eram feitos como professores colaboradores, com a chance de mais tarde fazer um concurso e tornarem-se efetivos. Eu e Carlos Roberto Jamil Cury fomos convidados; viemos aqui examinar os termos do convite e julgamos que valeria a pena investir. Avaliei que era a minha chance de realmente me profissionalizar, entrar numa universidade federal, porque na universidade privada, por melhor que fosse, a atividade básica era em sala de aula, muito semelhante a um colégio. Ganhava-se pelo número de aulas dadas. Cheguei a dar 30 e tantas horas/aulas na Universidade de Piracicaba, assumindo cinco ou seis disciplinas diferentes. Isso não significava uma carreira, não me formava um professor universitário. O convite aqui de Belo Horizonte foi bastante desafiador, pois era para participar da reformulação de um programa de pós-graduação. Veja que coisa curiosa: não havia completado o doutorado e já estava sendo convidado para trabalhar num Programa de Pós-Graduação em Educação. Hoje, por exemplo, a não ser em situações excepcionais, não se entra numa universidade, para ser professor na graduação, se não tiver o doutorado. Naquele momento, eu ainda não era doutor e estava sendo convidado para trabalhar numa pós-graduação, porque havia uma enorme carência de pessoal formado. Bem, viemos para cá e começamos a trabalhar na pós-graduação. Em 1979 defendi a minha tese de doutorado, que acabou se tornando meu segundo livro: Estado, educação e desenvolvimento econômico, que dava outra direção para minha atividade teórica, isto é, discutir as relações entre Estado e educação. Eu estava muito preocupado com a situação da educação brasileira naquele instante, criticando especialmente a dimensão de racionalidade técnica do Estado e a visão da educação como instrumento no processo de desenvolvimento econômico. Ou seja, a instrumentalização da educação para o desenvolvimento econômico, que era a tônica do regime militar naquele momento. Meu doutorado vai nessa direção, analisando a constituição do Estado autoritário no Brasil e a vinculação da educação ao processo de legitimação desse Estado e à política econômica elaborada por ele. A tese foi defendida em outubro de 1979, me dando legitimidade para trabalhar na Universidade. Fui professor colaborador em 1978 e 1979; em 1980 abriu um concurso na UFMG e, tendo já o meu doutorado, me candidatei a uma vaga de professor adjunto. Aprovado, fui efetivado como professor adjunto. Em 1991 fiz outro concurso, para professor titular.

Desde quando comecei a trabalhar no ensino superior em Piracicaba, passei a ter um enorme envolvimento político, de início com a Prefeitura de Piracicaba. As pessoas conheciam minha história de envolvimento político, o que me levou a participar também, aqui em Minas Gerais, da campanha política do Tancredo Neves, em 1982. Participei inclusive da formulação do Programa de Tancredo Neves, e isto redirecionou um pouco meu trabalho, tanto do ponto de vista teórico, na Universidade, porque naquela época passei a trabalhar mais com políticas educacionais, quanto do ponto de vista prático, quando assumi funções executivas na Secretaria de Educação do Estado, como superintendente de Educação. É uma história longa, cheia de detalhes, a gente vai se esquecendo desses detalhes, mas...

Nelma: Mas... interessante. Está muito bem colocado! Quer dizer que naquele momento, já de abertura, de redemocratização, a equipe que pleiteava o governo foi buscar na Universidade pessoas para ajudar a compor aquele plano de governo, e você se inseriu nesse grupo?

Neidson: Sim, você deve lembrar que até a Constituição de 1988 a organização de partidos políticos tinha uma legislação muito dura, muito impeditiva. Com o Ato Institucional nº 1, os partidos antigos foram extintos, e constituídos apenas dois novos partidos: a ARENA, que era o partido do governo, e o MDB, de oposição. Até 1970, as pessoas que tinham uma determinada participação crítica e lutavam contra o regime militar tendiam a não apoiar sequer o MDB, porque julgavam que era um partido de legitimação do regime militar. Havia uma enorme campanha para o voto nulo, para não votar. Isso era muito típico, e todos nós, de alguma forma, participamos desse tipo de atuação. A partir de 1974, Ulisses Guimarães se candidatou como anticandidato e criou uma campanha absolutamente inovadora. Ele sabia que não haveria possibilidade de ser eleito no Congresso, porque a ARENA era maioria e o regime militar havia fechado todas as possibilidades (bastava o MDB crescer um pouco, cassava o número de deputados e senadores para que a ARENA continuasse sendo a maioria). Então, Ulisses Guimarães criou a figura do anticandidato. Dizia: Eu não sou candidato (porque sabia que não haveria eleição); eu sou um anticandidato. Aproveitou as fissuras da legislação para fazer a sua campanha como anticandidato. Aí, mesmo nós, ou alguns de nós, que julgávamos que não deveríamos ter nenhum envolvimento, passamos a nos envolver. Com isso, o MDB, em 1974, teve um crescimento estrondoso no País, chegando a ameaçar a hegemonia da ARENA no Congresso. O governo militar imediatamente cassou vários mandatos e mudou outra vez as regras eleitorais. Essas regras passaram a ser extremamente rígidas. Criou-se até uma figura mais ou menos cômica, nas campanhas: como era uma campanha silenciosa, os candidatos podiam apenas apresentar o seu currículo e a sua fotografia; então, todo mundo dizia que era a campanha dos ex. A pessoa ia para a televisão ou para o rádio e mostrava sua figura ou dizia seu nome ou seu número e tinha que dizer seu currículo: Eu fui/eu sou ex-presidente, ex-professor, ex-líder, ex. não sei o quê... Isso tudo inviabilizava a campanha eleitoral, mas a situação já estava de alguma forma colocada de maneira radical no tecido social, inclusive a campanha pela anistia tinha sido muito forte. Além da anistia, assinada em 1979, a partir de 1980 já estava claro que o regime militar começava a desmoronar, que suas entranhas começavam a se esgarçar. Naquele momento já havia se constituído o Partido dos Trabalhadores, que se apresentava como partido de oposição. Isso produziu um certo racha na chamada esquerda, porque havia a seguinte alternativa: Vamos em busca de uma proposta alternativa e radical de esquerda, ou vale a pena neste momento lutar mesmo ao lado dos liberais? Vamos fazer uma espécie de frente ampla contra o regime militar, derrubar esse regime, depois vamos ver como a sociedade reorganiza seus projetos políticos, seus projetos sociais? ... e assim por diante. Foi neste momento que acabei me engajando no PMDB, o partido sucessor do MDB, e participei efetivamente da campanha política em Minas Gerais. Em 1982, o PMDB teve uma vitória significativa em vários estados brasileiros. As vitórias das oposições, encabeçadas pelo PMDB e pelo PDT de Leonel Brizola, compuseram o que foi denominado na mídia de Triângulo das Bermudas: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Por que Triângulo das Bermudas? Porque achavam que, uma vez a oposição tendo vencido nesses três estados, necessariamente representaria o afundamento do poder militar. Isso realmente ocorreu, logo depois, com a eleição de Tancredo Neves em 1985 para presidente da república e a convocação da Constituinte; tivemos então uma reorganização política e a instituição da democracia com o perfil que temos hoje no Brasil.

Nelma: Então, na efervescência de toda aquela mudança, nesse quadro todo que você desenhou, como é que se anuncia para você, naquele momento engajado no PMDB, buscando também colaborar com a nova situação, como é que aventaram para você a possibilidade de assumir, em 1982, a posição de superintendente na Secretaria da Educação do Estado de Minas Gerais?

Neidson: De alguma forma, esse convite partiu do Octávio Elísio. Ele foi convidado para ser o secretário da educação, o que também foi uma surpresa, pois ninguém imaginava que o Tancredo Neves iria chamá-lo para aquele cargo; pensávamos que ele seria chamado para a Secretaria de Ciência e Tecnologia. Na Secretaria da Educação, para compor a equipe, convidou, primeiro, algumas das pessoas que estavam engajadas na campanha de Tancredo Neves; e segundo, pessoas que ele conhecia do trabalho na própria Universidade – no caso, a professora Maria Lisboa, como secretária-adjunta, e eu, para superintendente de educação. Para mim, havia a alternativa de ser assessor de planejamento. Mas, de qualquer forma, o que se colocava naquele momento era o seguinte: Olha, você se empenhou durante a elaboração do Programa para que não fizéssemos apenas um programa de educação, e sim... (havia sido feito um programa, publicado naquele livro Governar é..., no qual existia uma espécie de diagnóstico rápido sobre a situação da educação em Minas Gerais, e na hora de se fazer uma proposta para a educação, a proposta seria a realização de um congresso – o Congresso Mineiro de Educação). A gente se empenhou para que fosse dessa forma. Um leitor desse programa poderia achar aquilo estranho, mas representava de alguma forma a direção pela qual nós havíamos nos empenhado. Qual era a direção? Nossa grande crítica era a seguinte: não adianta fazer projetos e programas de gabinete; um programa de educação tem de estar colado no tecido social, tem de estar colado na expectativa e na mobilização da sociedade. E, como conseqüência, não tem sentido nós, que sempre defendemos isso e criticamos os projetos de gabinete, agora que somos chamados para elaborar um programa de governo, elaborarmos um programa descolado desse tecido social. Não caberia dizer: Mas nós sabemos qual é a vontade do povo. Essa é uma mania que tem a esquerda; critica as posturas anteriores porque se julga representativa daquilo que o povo quer; e se agora estamos no poder, não é preciso perguntar mais ao povo, porque sabemos o que o povo quer. Procuramos evitar essa postura, naquele momento; decidimos fazer um congresso. E tinha sido imaginado um congresso com características bastante restritas: iríamos identificar algumas lideranças sociais, professores etc., e fazer um grande encontro em Belo Horizonte, com teses, discussão de problemas, sugestões, e a partir desse congresso elaboraríamos um roteiro ou alguns princípios fundamentais para a política educacional. Encaminharíamos, portanto, uma proposta concreta de governo após a realização desse congresso. Bom, Octávio Elísio me convidou, dizendo: Gostaríamos que você assumisse a responsabilidade pela realização do Congresso. Então, independentemente do que estava escrito nas responsabilidades, como assessor de planejamento ou como superintendente educacional, a minha tarefa seria ajudar a realizar o Congresso, já que havia me empenhado por essa idéia. De algum modo, eu não queria me afastar do meu trabalho na Universidade. Quando deixei Piracicaba e vim para Belo Horizonte, estava interiormente querendo me comprometer com o trabalho acadêmico. Não me furtaria a realizar atividades em secretarias ou em ministérios etc., mas atividades que me dessem um certo distanciamento; uma consultoria, uma assessoria, alguma coisa distante, porque não pretendia entrar na máquina governamental. Mas aí ocorreram pressões de muitos lados, inclusive do próprio movimento de professores, de pessoas que me conheciam antes; muitos me telefonando, muitos me encontrando ... eu afirmando que não queria, e as pessoas dizendo: Mas qual é, professor? O senhor sempre defendeu que nós temos de participar, temos de entrar, temos de dar o sangue, temos de lutar pelas transformações, e agora que chega seu momento você foge, você não assume! Comecei então a me sentir pressionado por esse tipo de situação e sem saber exatamente qual era a melhor alternativa. Como dizia Kierkegaard, o exercício da liberdade é o exercício da opção e o exercício da opção é o exercício da angústia, porque você sempre tem de escolher o caminho A ou B, e você nunca sabe qual é o melhor. Eu não sabia se era melhor participar de longe ou participar por dentro. Participando de longe eu poderia ficar sempre com o olhar crítico sobre o fazer e, portanto, continuar sempre na posição de um sujeito crítico, um intelectual que estava criticando a direção das coisas. Mas se participasse por dentro e não conseguisse viabilizar as propostas como elas estavam sendo operacionalizadas, ou tivesse que me submeter a outras forças como as próprias da negociação política, isso poderia inviabilizar a minha crítica. É sempre uma situação muito difícil. Na realidade, em função da clareza que o Octávio Elísio demonstrava – eu encaminharia o Congresso e teria liberdade para realizá-lo, e na medida em que o processo fosse se desenrolando, nós íamos vendo como as coisas iriam acontecer – acabei aceitando. Botei na cabeça que essa seria minha tarefa, tanto assim que (não sei se Octávio Elísio vai se lembrar), uma vez terminado o Congresso, elaborado o programa de governo, eu o procurei no gabinete para dizer que achava que a minha missão estava cumprida e, portanto, gostaria de pedir a minha demissão. Mas ele não quis nem conversar, dizendo que não, que agora iríamos concretizar o trabalho, que deixasse disso, que continuasse... e eu acabei ficando os quatro anos seguintes, tentando viabilizar e implantar algumas daquelas idéias que haviam brotado no Congresso. O próprio Congresso tomou rumos diferentes do que imaginávamos no primeiro momento, mas certamente você vai ter outras perguntas específicas sobre isso e eu não vou me adiantar neste ponto...

Nelma: Com certeza. Mas, Neidson, naquele momento, então, quando vocês assumem e fazem o Congresso e têm na mão aquele mapeamento do Estado todo, tudo aquilo que apareceu, que emergiu, todas as reivindicações, os anseios das comunidades espalhadas por aí, como é que foi para vocês, que retrato chegou aqui da escola pública naquele momento, deu para visualizar, o que vocês concluíram?

Neidson: Olha, de algum modo já tínhamos um certo retrato da situação da educação pública naquele momento histórico. Nós éramos estudiosos da situação, já compreendíamos que alguns problemas eram crônicos, estruturais da educação brasileira, alguns estavam profundamente vinculados ao regime autoritário existente no Brasil, e outros não. O que estava vinculado ao regime autoritário? As idéias de centralização, as idéias de controle, determinados conteúdos que tinham de ser trabalhados na escola para legitimar o regime militar, como a educação moral e cívica, e assim por diante; o fato de o processo de democratização das relações escolares estar comprometido, porque existiam definições centralizadas no Conselho Federal de Educação, no Ministério da Educação, leis duras a respeito de disciplina, limitação da participação através da limitação da própria organização e das atividades das associações estudantis, das associações da sociedade civil, como associações de professores, sindicatos e assim por diante. Havia toda uma estrutura política e organizacional e de vigilância que inviabilizava o exercício da democracia, tanto fora como dentro da escola. Ao mesmo tempo, quando você pensa que a escola é um espaço de formação do cidadão participativo, fica muito difícil imaginar como se forma o cidadão participativo numa instituição onde a participação é negada. Havia essa questão muito séria, uma questão de natureza política que o regime militar havia imposto. Então, a realização do Congresso geraria uma forma de quebrar isso: convocaríamos os professores, os estudantes, os educadores, os pais para uma participação, para uma fala sobre a escola, para um diálogo, pois o ser humano é um ser de palavra, um ser que precisa da palavra. Nós criamos o mundo pela palavra, pela linguagem. Portanto, abrir o espaço da escola para que as pessoas pudessem falar, pudessem até dizer coisas recorrentes; aquele seria o momento em que as pessoas poderiam expressar as suas vontades, os seus desejos. Isso já representaria um processo inovador e democrático na educação. Na realidade, muitas pessoas não entenderam até hoje que este era o espírito do Congresso. Porque o Congresso por si mesmo não era para capturar quais eram os problemas da educação e nem mesmo direcionar quais eram as soluções. De alguma forma, nós sabíamos disso; sabíamos que precisávamos abrir as portas da escola para a democracia; sabíamos que era preciso aumentar os recursos financeiros, melhorar os salários de professores; precisávamos estabelecer carreira, concursos públicos; botar todo mundo na escola; precisávamos assegurar melhores prédios, equipamentos. Tudo isso estava muito claro; a gente já sabia tudo isso. Vale perguntar: Então, para que o Congresso? Nós temos que diferenciar essas coisas. Muita gente dizia assim: Após o Congresso, vocês vão começar a executar a política de educação? E eu dizia: Não é após o Congresso; o Congresso já é a execução de uma política de educação... Nós não temos que esperar o fim do Congresso para começar. O Congresso já era uma prática concreta da democracia, em que as pessoas iriam participar dizendo dos problemas da escola, dizendo inclusive quais eram as alternativas de solução. Não era para começarmos depois do Congresso a elaborar um programa, não; íamos depois do Congresso elaborar programas, mas isso era uma segunda etapa. Eu gosto de fazer algumas comparações, inclusive com coisas muito práticas da vida. Há pessoas que dizem: Vou construir a minha casa, vou construir um jardim e depois que a minha casa estiver pronta, o jardim estiver pronto, eu vou usufruir da nova casa, quando as árvores crescerem... e assim por diante. Eu penso de maneira diferente: quando estou construindo a casa, quando estou fazendo o jardim, quando as sementes estão nascendo, eu já estou usufruindo. Quer dizer, eu já estou participando do processo de construção; não preciso esperar a árvore grande para que eu possa usufruir dela; já estou usufruindo a partir desse momento. Então, o Congresso tinha este objetivo; não era algo que anteciparia as nossas ações, ele já era a ação.

Nelma: Ele já era a abertura de um fórum que deveria ser permanente. Você acha que a sociedade não entendeu isso? E a comunidade escolar?

Neidson: Isso não tinha importância. Não há necessidade que todos tenham consciência de todas coisas, mas é necessário que a liderança tenha; é necessário que a liderança tenha consciência a respeito do que está acontecendo. À medida que o Congresso foi criando vulto, inclusive um vulto muito maior do que imaginávamos, isso significava que estávamos certos nessa concepção: a sociedade queria participar, a sociedade queria demonstrar o seu inconformismo, a sociedade queria dizer quais eram os problemas que ela estava vivenciando e queria participar da reformulação e da mudança. A estratégia posterior ao Congresso e as propostas nele apresentadas – como eleição de diretores, criação de colegiados, assembléias escolares que nós tentamos implementar – esbarravam em tradições, inclusive do poder político. Por exemplo, naquele momento, a Assembléia Legislativa se colocou contra a eleição de diretores e até contra os colegiados e as comissões municipais, porque achava que as comissões municipais e os colegiados estavam substituindo o papel que o deputado fazia: o de ser o representante do povo. O fato de levantarmos uma série de problemas, trazê-los para a Secretaria, era como se estivéssemos criando canais à margem e desvalorizando o trabalho dos deputados e políticos... a gente teve muito trabalho com os políticos! O que estávamos fazendo, na verdade, era esvaziar a vida deles de uma tarefa que não era própria da política, eles poderiam fazer um trabalho político mais eficiente se não estivessem preocupados em nomear um diretor, nomear um professor, reivindicar carteiras para uma escola, ir no caminhão carregando as carteiras com faixas e dizendo que essa era sua ação... Não era para isso que a sociedade queria os deputados; quer dizer, a sociedade começava a manifestar não apenas o que ela desejava no campo da educação, mas começava a ficar evidente o que ela esperava também no campo da política. Isso necessariamente teve repercussões. Hoje, as pessoas, às vezes, nem sabem que essas coisas existiam. Muita gente nem sabe que a indicação de um professor para uma escola muitas vezes era feita de uma maneira política; a transferência de um professor era política; a nomeação de um diretor era política; a merenda que ia para uma escola, a carteira que ia para uma escola, tudo isso tinha que passar por gabinetes de deputados.

Nelma: Era como um negócio na política, não é?

Neidson: Era um negócio; era um grande negócio. Hoje, inclusive, nem se sabe que essas coisas existiam; há uma certa perda da memória desse passado. É muito bom até a gente falar nisso, porque mantém a memória viva, lembra uma situação que não queremos que seja novamente recolocada. Talvez não seja, mas para se compreender que muitos problemas existentes hoje estão enraizados numa cultura que a gente simplesmente não pode desconhecer. Eu não tiro e troco cultura como tiro e troco uma camisa, porque a mudança cultural é um processo de longo prazo. Muitas coisas que acontecem hoje de uma maneira mais fácil, como organização colegiada, autonomia das escolas, eleição de diretores, foi arrancado a sangue e fogo, do ponto de vista político. De outro lado, ocorreu porque a consciência da chamada comunidade está hoje muito mais atenta e não aceitaria mais esse tipo de atuação. Naquele momento, no entanto, estávamos iniciando esse enfrentamento; era quase uma guerra. Só para você ter uma idéia: eu não freqüentava a Secretaria da Educação; quando falei para o Octávio Elíseo que gostaria de assumir a Superintendência Educacional, alguém me disse: Não assume aquilo lá não! Eu perguntei: Por quê? Falaram: Porque aquilo lá é uma sede de deputados. Os deputados iam ali porque era onde se fazia toda a negociação. Eu não sei se era verdade ou não, porque não freqüentava a Secretaria. Essa foi a informação que me deram. O que eu fiz na Superintendência Educacional? Eu disse: Não sou um superintendente de gabinete. Comecei a viajar pelo Estado, agitar, mobilizar para o Congresso de Educação. Ficava até muito pouco na Superintendência. O importante é que encontrei uma equipe de funcionários muito competentes, ansiosos para participar. Isso permitiu que as atividades normais fossem sendo realizadas, me liberando para a mobilização em torno do Congresso. Ao mesmo tempo, tivemos apoio significativo de várias organizações. Corro o risco de deixar alguma de fora; portanto, não vou citar todas, mas lembro que a APPMG e a UTE tiveram participação efetiva na mobilização do Congresso. Também do Sindicato dos Professores das Escolas Privadas e do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado; no início estavam fora porque não pertenciam ao sistema de ensino público, mas acabaram se integrando. A razão imediata eu não sei, mas houve uma certa pressão e eles participavam, tiveram uma boa participação no Congresso. A AMAE Educando teve uma participação, a Associação de Diretores, Associação de Supervisores, enfim, diversas organizações com representação no estado de Minas Gerais; compuseram inclusive a Equipe Central do Congresso. Essa composição da chamada Equipe Central de Mobilização para o Congresso foi reproduzida nas delegacias de ensino, e depois nos municípios. Dessa reprodução, surgiram as chamadas Comissões Municipais para a realização do Congresso. Durante o Congresso, essas Comissões Municipais passaram a reivindicar que fossem permanentes, para poderem acompanhar a realização da política educacional da Secretaria de Educação. Após o Congresso, incentivamos as Comissões Municipais a terem participação efetiva, o que de fato, ocorreu durante dois ou três anos, inclusive nos programas de expansão da rede: na criação de escolas e construção de escolas, expansão da pré-escola, expansão do 2º grau. Elas tiveram participação muito efetiva nas negociações entre a Secretaria e as prefeituras. Havia um município que exigia uma escola de 2º grau, mas não tinha alunos suficientes; outro município precisava efetivamente de uma escola de 2º grau, e era mais carente. Íamos às negociações intermediadas pelas Comissões Municipais, das quais os prefeitos faziam parte. E se combinava que haveria uma escola de 2º grau para o município tal. O prefeito não contemplado dizia: Eu ponho ônibus para levar os meus alunos lá; mas, então, no meu município eu quero uma pré-escola. Essas coisas funcionavam e demonstravam claramente que este era um bom caminho na reformulação da política educacional. Agora... tudo isto funcionou às mil maravilhas? Não. Funcionou com muita dificuldade, com muitos problemas, com muitas malquerenças. Às vezes produzindo resultados opostos àqueles que as pessoas imaginavam. Cada um chegava com uma lista de reivindicações, e como se disse que todos iriam participar, eles imaginavam que a Secretaria de Educação, ou o Governo do Estado, tinha a obrigação de atender todas aquelas listas, o que era inviável. Não estávamos dizendo que, uma vez tendo a participação da sociedade, as listas de reivindicações seriam atendidas. Estávamos dizendo que as listas seriam objeto de negociação; que as pessoas iam saber o que era e o que não era possível, e assim por diante. Ao mesmo tempo, tínhamos a pressão política tradicional também, que era o outro lado da moeda. E essa pressão sempre era maior, porque havia um grupo de deputados ou de prefeitos que chegava para o governador e dizia: Faça isso, ou não apoio mais, não voto..., e o governo também ficava sempre com enormes dificuldades para tomar decisões. Não podia simplesmente descartar essas pressões, porque se estava dizendo que era necessário mudar de concepção, mudar o comportamento, mudar uma cultura... Isto se faz ao longo de um processo. O que posso garantir é que, quando vejo a situação de 1983 e a situação de hoje, percebo quanto mudou. Mudou muito!

Nelma: Como é que você vê isso, Neidson?

Neidson: Eu vejo de várias formas. Em primeiro lugar: hoje você não encontra quase em nenhum estado do Brasil este tipo de ação política, de negociação, de pé de ouvido. Em segundo lugar, a Constituição de 1988 é fruto da luta pela e na Constituinte. Ela retrata em seus termos, inclusive da educação, da política e da organização da escola, princípios que elaboramos aqui no Congresso Mineiro da Educação: como a democratização da gestão democrática, a participação, a não-centralização. E olha: a Lei de Diretrizes e Bases aprovada em 1996 pode não ser a lei dos nossos sonhos, mas é uma lei que consagra o princípio da autonomia, da decisão colegiada, da decisão participativa, da responsabilidade pública com a educação, e não mais a responsabilidade pública apenas com o ensino numa determinada faixa etária... A institucionalização da educação pública gratuita, a responsabilidade do Estado com a educação universal, novas políticas de formação de professores, a desburocratização através do fato de que hoje você não tem mais aquela estrutura curricular rígida estabelecida pelo Conselho Nacional de Educação – quer dizer, os conselhos estaduais ficaram mais responsáveis por diretrizes, por grandes políticas. Os colegiados hoje estão instalados no Brasil inteiro; funcionam de maneira diferenciada, é claro, mas representam uma prática que está se colocando no Brasil todo. E hoje já estamos discutindo em todo o Brasil uma reorganização dos tempos e dos espaços escolares. A idéia de ciclo, iniciada naquele momento em Minas Gerais para resolver um problema de alfabetização, hoje está se tornando cada vez mais uma visão de uma nova reorganização política e pedagógica e administrativa da educação escolar. Por outro lado, houve uma expansão fantástica do ensino de 2º grau, hoje ensino médio. Naquele momento só havia três escolas de 2º grau públicas estaduais em Belo Horizonte. Em função da pressão do Congresso, o governo partiu para a criação de escolas no estado: nos três anos depois do Congresso foram abertas mais de 400 escolas de 2º grau no estado de Minas Gerais; houve uma expansão significativa da pré-escola; houve mudanças muito grandes. As pessoas às vezes não percebem essas mudanças. Toda a nossa vida é assim: quando a situação posterior é melhor, tendemos a esquecer a situação anterior que era pior, não é? Isto é, podemos passar fome durante muito tempo, e aquilo a gente lamenta, a gente está desnutrido, passa mal... Aí, num segundo momento, quando você não tem problema de fome, você está bem nutrido, você está numa situação melhor, o máximo que você faz é lembrar com um sorriso aquela época de sofrimento anterior, mas normalmente as pessoas nem tocam mais naquele assunto. A situação atual, do ponto de vista político, pedagógico, administrativo e de funcionamento, pode ser configurada como uma situação bem melhor que a situação anterior. Não estou falando de situações ideais, estou falando que hoje estamos em uma situação melhor, que nos permite definir projetos e ações pedagógicas em condições melhores que as anteriores. A gente esquece um pouco esse passado, mas ele não pode ser esquecido. Não pode ser esquecido porque custou muita luta. O que fizemos, se de alguma forma isto tem sentido, é apenas aquilo que dizia um pensador atuante como Antonio Gramsci (Gramsci nos orientava, estávamos muito imbuídos do seu pensamento naquele momento): que um trabalho intelectual efetivo não é aquele que produz grandes idéias, mas aquele que representa o pensamento de uma multidão. Não éramos nós que estávamos fazendo como pessoas, não éramos simplesmente nós, que a sociedade reconhecia como autoridades e intelectuais; estávamos tentando interpretar o sentimento da população; e se a gente faz isso de maneira correta ou adequada, mais ou menos adequada, a sociedade caminha nesta direção; se nós não fazemos, isto é abandonado e deixado de lado. Então, a avaliação que faço hoje é que muitas das atividades realizadas naquele momento certamente representavam uma expectativa da população. Por quê? Porque até hoje estas coisas são lembradas, são referidas, são tomadas como exemplo, e a sociedade está a todo momento querendo saber a respeito disso. Mais ainda: essas idéias que aqui foram iniciadas e praticadas se espalharam por outros lugares. Eu não me canso de receber convites de vários lugares do Brasil; todos estão querendo saber como fizemos e como podem fazer outras coisas mais ou menos semelhantes... O que significa que, de algum modo, aqui em Minas Gerais houve um sentimento da direção desse movimento e ele foi implementado. Muitos erros foram cometidos; cometemos muitos enganos teóricos e práticos. Mas isso faz parte das limitações que todos nós temos. Não estou pedindo desculpas a ninguém por isso; estou apenas explicando: fizemos muitas coisas que, em minha opinião, foram acertadas; cometemos muitos erros também; o balanço, para mim, é que, no momento em que a maioria das coisas foi acertada, a minoria errada tende também a ser esquecida... Mas eu também não gostaria de esquecer, não, porque a gente aprende com esses erros também.

Nelma: Mas o Congresso foi um marco na educação em Minas Gerais, com reflexos no Brasil inteiro, como você está comentando, inclusive contemplado na Constituição quanto aos anseios e reivindicações surgidas....

Neidson: Gostaria apenas de deixar claro o seguinte: não seria capaz de dizer que aquilo que foi desenvolvido em Minas Gerais é o que está traduzido na legislação posterior, para ninguém imaginar que estamos dizendo que Minas domina intelectualmente o Brasil. Estou dizendo que aquilo que ocorreu em Minas foi possível porque pudemos interpretar o anseio nacional; o que ocorreu, com o esfacelamento do regime militar e com a convocação da Constituinte, foi traduzido na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases. Mas isso representou o anseio da população brasileira. O que eu verifico é que nós tínhamos captado este anseio, naquele momento, possivelmente de maneira correta, e trabalhamos nessa direção.

Nelma: Falando agora um pouco sobre a equipe da Secretaria. Quando vocês assumiram, oriundos da universidade, como perceberam a Secretaria naquele momento? Vocês trouxeram outras pessoas, ou com a equipe que encontraram constituíram aquela grande frente?

Neidson: Muito bom você perguntar sobre isso. Essa foi uma discussão que fizemos várias vezes na equipe, e tomamos a seguinte decisão: não trazer ninguém de fora, porque não queríamos trazer pessoas que viriam ensinar para a Secretaria do Estado o que deveria ser feito; achávamos que estas questões estavam colocadas e que as pessoas que estavam envolvidas na Secretaria tinham clareza sobre elas. Talvez não tivessem oportunidades, condições, estímulo e situação política para viabilizá-las. A equipe que veio de fora, você pode examinar, foi muito pequena, foi a mínima possível... Eu, por exemplo, na Superintendência, não trouxe sequer um assessor de fora; não levei uma única pessoa de fora da Secretaria para trabalhar na Superintendência, porque achava que ali dentro iria encontrar as pessoas que seriam capazes de se engajar no processo. Se trouxéssemos pessoas de fora, seriam sempre vistas como os "deuses caídos do céu", e não era isso que estávamos propondo. Então, procuramos trabalhar o tempo todo com as equipes da Secretaria, com as equipes da Superintendência. Agora, encontramos nessas equipes os mais variados perfis, desde as pessoas que acreditavam, e portanto diziam: Essa é uma direção correta, vamos fazer; até aquelas que diziam: Já vi esse filme... todo mundo que entra aqui fala que vai mudar, vai fazer, e fica tudo do mesmo jeito, e não buscavam fazer nada. Havia ainda aqueles que diziam: Esse grupo aí nós não gostamos dele, não gostamos dessas idéias. Estavam comprometidos com situações anteriores e, portanto, iriam se esforçar para que as coisas não dessem certo. Encontramos de tudo, mas nada disso nos assustava. O importante era identificar quais eram os grupos e as pessoas que estavam a fim de participar de um processo de mudança, e avançar com essas pessoas. Foi assim que fizemos: procuramos o máximo possível deixar o pessoal da Secretaria consciente do processo; fizemos muitas reuniões com os grupos, fizemos muitas discussões, muitos estudos, e aqueles que estavam interessados participaram e os que não estavam não participaram. Mas, enfim, não imaginamos que deveríamos trazer equipes, grupos, recursos de fora, porque isso seria postiço. Estávamos dizendo desde o início que queríamos mobilizar a sociedade para a participação, e não trazer pessoas que já estavam engajadas em atividades de mudança para serem os sujeitos da mudança. Os sujeitos da mudança não são os líderes; o sujeito da mudança é a população que participa. Ela é que é o sujeito de uma mudança social. Não é a cabeça de um intelectual; não é o Neidson, o Octávio Elísio, a Maria Lisboa que são sujeitos da mudança. No máximo, podemos compreender a necessidade de direção que está sendo reivindicada para a mudança e sermos os intérpretes. Já que ocupávamos os postos-chave, o que tínhamos de fazer era abrir os canais para que essa participação se desse. Se isso acontecesse, mudanças seriam feitas. Se isso não acontecesse, nada seria feito, por mais brilhantes que fossem as cabeças das pessoas que estivessem na direção da Secretaria. É como tudo que é humano, não é? O ser humano não é um animal que age movido de fora para dentro. O passarinho, quando está na grama do nosso jardim, fica olhando o tempo todo para ver se não tem nenhum movimento externo; quando aparece movimento externo ele voa, porque ele é movido de fora para dentro. O ser humano, não; o ser humano é movido de dentro para fora. É a minha convicção, são as análises, os balanços que eu faço das coisas, essas coisas me movem na direção de uma determinada atividade. Portanto, é assim que temos de trabalhar para que o ser humano possa participar de uma atividade política, social, pedagógica, e assim por diante.

Nelma: A gente tem uma lembrança forte daquele momento, porque foi nele que a Secretaria se encontrou, trabalhávamos em casas muito isoladas. A Secretaria era um pouco espalhada e, naquele momento, eu me lembro de várias reuniões no Colégio Estadual Milton Campos, onde se reuniam todas as equipes que desejavam participar daquele processo. Muitos estudos, muita mesa-redonda, muita discussão, muita coisa interessante, mas algo chamava a atenção: suas cartas. Você escreveu várias cartas aos professores: carta aos diretores, carta aos professores de história, carta aos professores de geografia... Como foi aquilo, Neidson? Como é que pintou aquela inspiração, como é que pintou aquela coisa de falar assim: Eu preciso ir lá, quase como ir à casa do professor, chegar ao âmago dele, e insuflá-lo para essa participação?

Neidson: Estas coisas acontecem... por uma inspiração que você não consegue clarear. Não tenho muita clareza por que surgiu isso, a não ser a seguinte: eu estava muito convencido naquele momento de que teríamos de falar numa linguagem adequada aos educadores; a minha linguagem não poderia ser a linguagem acadêmica. Ao chegar à Secretaria, eu havia acabado de defender uma tese sobre Estado, educação e desenvolvimento econômico. Portanto, eu tinha uma concepção de Estado, uma concepção da responsabilidade do Estado com a educação e de como a educação estava comprometida com um projeto de política econômica, e assim por diante. Quando cheguei à Secretaria, de repente comecei a me lembrar do meu texto anterior sobre o Estado e a política de educação. Falei: Engraçado, agora eu estou aqui no Estado e o que é este Estado? Tinha muito pouco a ver com a noção de Estado que eu tinha quando escrevi o livro sobre o Estado e a educação. Eu vi que a minha visão acadêmica sobre o Estado tinha pouco a ver com o Estado real. O Estado real era aquelas pessoas que estavam ali comigo, cheias de ansiedade, cheias de problemas, cheias de dificuldades, com muita boa vontade; este era o Estado real. Eu imaginava também que os problemas do Estado eram grandes problemas... O Estado traçava política. Quando chego ao Estado, os professores estão reivindicando do Estado carteiras, melhores salários, espaço para trabalho, democracia; então eu comecei a perceber que os grandes problemas eram feitos de uma acumulação de pequenas coisas, e as pessoas não estavam dispostas a fazer o discurso a respeito da centralização do poder econômico, da racionalidade técnica do Estado brasileiro e da articulação com o Acordo MEC/USAID. Eles não estavam interessados nessas coisas; estavam interessados naquilo que era o seu dia-a-dia na escola. Todo o meu problema era como articular essas duas coisas. Sabia que o meu trabalho, enquanto intelectual, enquanto alguém do mundo acadêmico, não poderia estar deslocado desta realidade. Então, todo o meu problema era como fazer o trânsito daquelas minhas concepções e traduzi-las para os educadores. Isso me incomodou um pouco, e eu comecei a fazer uma coisa na Secretaria: diariamente (eu chegava lá geralmente muito cedo) gastava um certo tempo retomando os textos de Maquiavel que falavam sobre o Estado autoritário, e comecei a fazer um exercício, que era muito um exercício para mim mesmo, de como eu via a formulação de Maquiavel a respeito das coisas do Estado e o meu cotidiano ali na Secretaria. Comecei então a escrever o que chamei de Lições do Príncipe. Ao mesmo tempo, comecei a verificar como é que eu poderia traduzir estas inquietações para os professores, como é que os professores poderiam compreender aquilo que eu estava dizendo, como eu poderia escrever de maneira simples mas sem perder a dignidade dos conceitos. Imaginei escrever cartas aos professores, cartas aos diretores, aos professores alfabetizadores, aos professores de história e de geografia, para que, de alguma forma, eles pudessem ser provocados a este tipo de reflexão. Surpreendentemente, o que eu imaginava ser um texto de circunstância tomou corpo e virou aquele livro chamado Lições do Príncipe e outras lições... O que me surpreende? É que este livro está na 16ª edição. Até hoje ele é anualmente reeditado e encontra leitores no Brasil inteiro. Novamente, eu volto ao Gramsci, quando ele dizia que um grande trabalho intelectual não é a produção de uma idéia na cabeça de um intelectual, mas quando você consegue traduzir o que está na cabeça de uma multidão de pessoas. Possivelmente as Lições do Príncipe fizeram isto. Não eram grandes idéias na minha cabeça, era o fato de poder ter traduzido, de algum modo, o que estava na cabeça das pessoas. Não é por acaso que, quando escrevo o livro chamado Por uma nova escola, dedico esse livro aos professores de Minas Gerais. É porque percebo que tudo aquilo que falo no Por uma nova escola, todas as propostas que ali estão elaboradas, são propostas que eu nunca havia imaginado fazer antes de vir para a Secretaria da Educação. É o que eu aprendi com os professores de Minas Gerais; o que aprendi com o pessoal da Secretaria, com os técnicos, com as delegacias, com os professores, com os pais. Através do quê? Através das visitas, dos debates, das discussões. Aquilo era o produto do meu aprendizado. Eu havia aprendido aquilo com os educadores e, portanto, no livro estava traduzido aquilo que era o sentimento deste meu aprendizado. Por isso, não podia ter outra atitude a não ser dedicar aquele meu livro aos educadores que foram os que me ensinaram aquelas coisas. Quer dizer: o que eu havia feito fora da Secretaria foi publicado em um livro chamado Ciência e linguagem, em outro livro chamado Estado e educação, mas Lições do Príncipe e Por uma nova escola é o que eu havia aprendido na Secretaria. Portanto, percebi que se eu havia participado de algum modo para ajudar a mudar a educação em Minas Gerais, este modo de participar havia me mudado. Ao deixar a Secretaria eu era uma outra pessoa, totalmente diferente do que era antes. Não é só pelo acúmulo de experiências, não é só isso, não... Aprendi coisas a respeito da escola, da educação, da relação com o professor, da política, do papel de uma secretaria de educação, da organização coletiva do trabalho, a respeito das pessoas, de como as pessoas se articulam, de como as pessoas são manhosas... Aprendi tudo isso... Aprendi muita coisa ao participar da Secretaria. Se as pessoas consideram que foi boa a minha participação naquele momento e aprenderam comigo, eu digo que aprendi do mesmo modo. Até passei a entender melhor quando Brecht diz que educador não é aquele que sempre ensina, mas é aquele que de repente aprende. Eu também aprendi.

Nelma: Isso me lembra, foi muito comentado na época, era um sentimento generalizado entre as pessoas todas que participavam do processo, que se tratava de um exercício de humildade feito por você. Aqui chegando você buscou socializar tudo ou quase tudo que você tinha aprendido. Você buscou passar um pouco daquilo e ajudou as pessoas a adquirir competência necessária para aquele momento. Mas também você dizia: estou aprendendo; estou doando, mas também estou recebendo. Isso ficava muito claro.

Neidson: Eu me lembro muito de uma afirmação – por isso eu digo que a gente aprende das mais variadas maneiras... Há um livro escrito no século V a.C., por Sófocles, muito comentado: o Édipo Rei... [riso]. Nele temos a palavra do sábio Tirésias. Em um certo momento, quando é questionado, ele sente o risco de dar a informação, dar o conhecimento que ele tinha ao rei Édipo. Sabendo do risco, faz uma pergunta, que sempre bate muito forte na minha cabeça: De que vale um saber se ele não pode ser útil aos homens? De que vale um saber se ele não pode ser útil a quem o possui? Isso sempre me bate. Isto é, se eu tenho um conhecimento, este conhecimento só é útil se ele for do conhecimento dos outros. Talvez isso seja um princípio da minha atuação intelectual. Isto é, o que sei só tem sentido se eu puder ensinar outros a respeito daquilo que sei. E na medida em que as pessoas conversam comigo, eu reaprendo a respeito das coisas e posso avançar... Nesse sentido você tem razão: se há alguma coisa que procurei não fazer era esconder o que eu sabia, mas repartir com as pessoas aquilo que eu conhecia. Se fui bem-sucedido ou não, não sei... Mas acho que a ação política de alguém também tem uma dimensão pedagógica, e reconheço a importância dessa atividade político-pedagógica. Isto é, nós podemos levar as pessoas que participam com a gente à clareza a respeito da direção das coisas. Eu aprendi com muitos intelectuais, e quando passei a trabalhar aqui não podia privar as pessoas que estavam comigo de aprenderem as coisas que eu havia aprendido... não é?

Nelma: Nesse sentido você foi muito generoso: socializou, repartiu com toda a equipe o seu saber acumulado e nos colocou em contato com grandes pensadores e teóricos, entre eles Gramsci.

Neidson: É, Gramsci me ensinou não apenas do ponto de vista intelectual; me ensinou também do ponto de vista de estratégias. Uma coisa que estava muito presente na minha cabeça naquele momento era uma análise de estratégia política de Gramsci, quando falava que havia duas guerras. Vou simplificar, para não complicar o pensamento de Gramsci, até porque ele é muito simples. Segundo ele, uma guerra se desenvolve em dois campos diferenciados: uma guerra de movimento e uma guerra de posição. A guerra de movimento é aquela que leva às grandes ações, aos bombardeios, por exemplo, que são típicos da artilharia, típicos do movimento dos aviões. É uma guerra que destrói e enfraquece o inimigo; mas, se se ficar nela, ela não representa nunca sucesso nenhum do ponto de vista militar. Do ponto de vista militar, a guerra que tem sucesso é a guerra de posição, isto é, aquela guerra de trincheiras, aquela guerra em que a infantaria vai avançando e ocupando as posições. É interessante que eu tinha muito isso na minha cabeça, naquele momento. Pensava: uma coisa era sair pelo estado apregoando, dizendo, escrevendo, gritando, falando a respeito dos novos rumos da educação; essa era guerra de movimento, era para poder botar as idéias o mais rápido possível no maior número de cabeças. No entanto, se ficasse nela, depois que saíssemos da Secretaria isso poderia ser perdido. Era fundamental que a gente fizesse também a guerra de posição, segundo Gramsci. O que era? Era criar trincheiras, criar grupos convencidos; em todos os lugares do Estado, era preciso ter grupos convencidos, que tivessem participado, que quisessem implantar as novas idéias. Por isso era fundamental fortalecer as comissões municipais, os colegiados nas escolas, as assembléias municipais. Isso garantiria que essas idéias estariam espraiadas por todo o Estado. Depois, mesmo que um novo governo quisesse retornar à situação anterior, ele teria um trabalho muito grande, teria de destruir todas essas posições. Não bastaria fazer uma guerra de movimento novamente; era ele que teria que fazer um trabalho de destruição. Como não acreditava que isso pudesse ocorrer, achava que quanto mais nós avançássemos mais asseguraríamos a permanência dessas idéias. Discutimos muito isso na nossa equipe, e até quais as estratégias para que isso pudesse ser feito. O interessante é que, quando analiso a situação de hoje, percebo: muitas coisas não têm os perfis que desenhávamos naquele momento; mas muita coisa realmente mudou, porque, independentemente dos governos que nos sucederam, aquilo que representava a vontade da população mineira teve permanência, teve continuidade, independentemente do governo. Pode ter acontecido com perfis diferentes, mas... isso teve uma certa continuidade. Eu vejo hoje de maneira muito positiva este momento passado.

Nelma: Neidson, conversaríamos muito ainda sobre o Congresso Mineiro. Teríamos ainda várias questões a colocar, mas vamos ter outros momentos para discutir isso. Eu perguntaria agora: tendo em vista todo o seu passado, todo o seu engajamento, todo o empenho, o trabalho e a luta que foi feita para a mudança naquele momento, como é que você avalia hoje a questão da educação no Brasil e em Minas Gerais? Que avaliação você faz, que sugestões, que recomendações teria para o enfrentamento dos problemas que continuam a nos desafiar? Como você está vendo isso?

Neidson: Bom, essa é uma pergunta que tem uma complexidade muito grande, porque os grandes problemas colocados pela educação na década de 1980 não são os grandes problemas colocados nesta virada de século e de milênio... Temos de lembrar o seguinte: na década de 1980 tínhamos ainda uma visão de um país industrial e uma visão de nacionalismo um tanto quanto arraigada. As nossas próprias idéias de transformação eram para a criação de uma sociedade avançada, moderna, e os problemas educacionais estavam todos ligados àquela concepção de que a escola, ou as atividades típicas da escola, eram responsáveis pela formação integral do ser humano. Essa é uma visão que predomina no mundo ocidental desde, talvez, a Revolução Francesa. É ela que generaliza, universaliza a educação escolar, e com isto há uma enorme confusão entre educação escolar e educação. Naquele momento, a nossa visão era de educação escolar, quer dizer, os meus livros tratam de educação escolar como se fossem toda a educação. Com isto, os problemas eram problemas relativos à escola, eram problemas de natureza pedagógica, de natureza e de concepção de educação escolar, de fins e função da educação escolar. Uma das discussões que mais circularam naquele momento foi sobre a função social da escola; a questão da formação da cidadania. Discutíamos o que era essa formação do cidadão através da escola. Alguns diziam que era a formação do sujeito crítico; outros diziam que era a formação do sujeito competente... porque só o sujeito competente poderia ser crítico; outros diziam que era a formação do sujeito engajado e não-alienado. Enfim, havia várias idéias, e o eixo em torno do qual essas idéias giravam era a questão da educação escolar. Atualmente a coisa muda um pouco de configuração, pelo menos do ponto de vista teórico. Por quê? Porque neste momento se começa a debater que a educação é um processo de formação humana. Que é essa formação humana? De repente, começamos a descobrir – não de repente; começamos a retomar uma discussão que é milenar, mais do que milenar no campo da reflexão filosófica, no campo da reflexão antropológica – que o ser humano não nasce formado como ser humano; o indivíduo nasce segundo determinações próprias da natureza. Mas para viver, não vive na natureza; vive numa oposição, numa luta contra a natureza, vive no mundo da cultura, naquilo que é próprio do mundo da cultura... Por exemplo, não tenho possibilidades de viver humanamente no mundo da cultura se não for detentor de uma linguagem, a linguagem do ambiente social onde eu estou. Isto é, não há comunidade humana, conhecida no passado ou no presente, que não seja detentora da linguagem, da linguagem oral. Agora, ninguém nasce sabendo falar; é preciso aprender. E há outras linguagens decorrentes dessa linguagem oral e que todos são obrigados a dominar; como seres humanos, têm de aprendê-las. É muito importante que todos aprendam a linguagem escrita, mas nem todos vão aprendê-la; os níveis de aprendizado e de domínio dela serão diferenciados, o que não impede que o indivíduo viva; mas, se ele não falar, isso impede que ele viva no ambiente social. As pessoas têm de aprender comportamentos. Ninguém come as coisas de maneira natural; o ser humano tem de aprender como comer, como beber, como dormir, como sentar, como se vestir, como circular na vida social, as regras da vida social. Tudo aquilo que compõe o mundo cultural tem que ser aprendido. O que se está hoje discutindo no meio acadêmico é que o processo educativo é o processo dessa formação humana. Essa formação humana tem vários componentes, entre eles a aprendizagem dos conhecimentos, das habilidades, da história da humanidade, porque tenho de ser inserido no meu momento histórico. Então, os conhecimentos e habilidades que são próprios da escola e que em muitos momentos foram identificados como toda a educação, para mim hoje, é bastante claro que são apenas uma parte do processo educativo. Bom, mas então quem faz o restante da educação? Aí existe o nó górdio do momento atual. Quando examino a história da civilização, a tradição é que a geração mais velha educava a geração mais jovem, os pais cuidavam desse processo de inserção social, de domínio da linguagem, das regras básicas da vida cultural; a comunidade também fazia este papel, e outras instituições, como a igreja, como a legislação, cumpriam parte deste papel. O que percebemos no mundo moderno, no mundo contemporâneo, é que estas instituições tradicionais cada vez mais se afastam destas atividades normativas, desta disciplinação do indivíduo para a vida social. E cada vez mais há uma expectativa de que a escola cumpra esta tarefa: os pais estão mandando as crianças mais cedo para a escola, as crianças estão permanecendo mais tempo na escola e cada vez mais se reivindica que nelas permaneçam por mais tempo durante o dia. Por quê?... Os pais não estão dando essa atividade formativa. Mas as crianças estão sendo formadas de maneira dispersa, desorganizada, inclusive de maneira contrária aos interesses da sociedade. Ficam na frente da televisão, ficam criando a imagem... porque todas as crianças gostam de imitar... Como ficam na frente da televisão o tempo todo, a imitação é exatamente aquilo que refletem: o homem mais forte, o mais violento, o mais larápio, aquele que engana o outro. Isto vai criando uma corrosão da formação, coisa que nós estamos assistindo neste momento. Então, o que ocorre? O processo educativo hoje está sendo desafiado a recolocar suas grandes questões. E quais são estas grandes questões? A primeira delas é que ele tem de cumprir uma atividade formativa, e não apenas repassar conhecimentos. Este me parece o grande problema, um grande desafio que está sendo colocado hoje, muito maior do que se vai haver mais carteiras ou menos carteiras, ou qual é o currículo ou não-currículo, se as disciplinas vão se interrelacionar ou não, problemas típicos da atividade pedagógica da escola. O grande problema é: o que estamos chamando de educação? O que estamos chamando de ação educativa? Qual é o papel que a escola vai exercer nesta função educativa, e não apenas na função de distribuição de conhecimentos e formação de habilidades? A mim me parece que este é o grande desafio dos tempos contemporâneos. Isto é colocado pelos temas também da globalização; é, portanto, aquilo que era objetivo fundamental de "formar um cidadão consciente da sua pátria e dos valores nacionais", na década de 1980. Hoje temos que formar o cidadão do mundo; quer dizer, formar um cidadão que não está comprometido com uma regionalização, com uma fronteira nacional... questão que tem de ser enfrentada pelos educadores. Hoje, todos nós, com a globalização, estamos interligados ao mundo inteiro. Como vamos pensar um cidadão que está ligado numa sociedade em rede, como diz o fantástico intelectual espanhol Manuel Castells, numa trilogia que publicou recentemente e está traduzida em português (uma das partes se chama A sociedade em rede; a outra, Fim de milênio; a terceira, O poder das identidades). Nessa trilogia ele analisa todo este fenômeno de final de século e de abertura para o próximo século, para o próximo milênio. Pessoalmente, consideraria esses livros como os livros da década, aqueles que melhor colocam as grandes questões com as quais temos de nos haver. Castells não fala especificamente na educação; mas, como educador, ao ler este texto, digo que ele me traz grandes problemas para pensar os rumos da educação. Então, temos vários problemas para serem postos e analisados, e temos de saber lidar com estes problemas. Temos muitos desafios pela frente. De um lado, vejo com satisfação o maior número de crianças ingressando na escola e sua maior permanência na escola. Os governos estão muito felizes com isso, apresentando as estatísticas como se fossem resultado da sua preocupação com a educação. Não me importa que eles façam isso, mas isso não é resultado da preocupação deles com a educação. É resultado do sentimento coletivo mundial de que as pessoas têm que ser formadas para serem cidadãos do mundo; sem isso, estarão marginalizadas.

Nelma: Sem isso é impossível viver...

Neidson: Impossível viver como ser humano. E viver como ser humano é uma pressão que, independentemente do governo...

Nelma: Porque esse mergulho no mundo cultural é irrevogável...

Neidson: Eu não posso revogar a minha inserção no mundo cultural. É nesse sentido que a educação é um direito de todos, é um direito subjetivo, porque a ninguém pode ser negado o direito de ser gente. E não posso ser gente se não for inserido no mundo cultural. E para ser inserido no mundo cultural, dependo de aprendizado. Não posso fazer isso de maneira espontânea, nem o recebo por herança. Tenho de ser preparado para um mundo em contínua transformação, em contínua mudança. Tenho o direito de ser preparado para viver nesta situação, sem o que fico marginalizado. É nesse sentido que a sociedade vai pressionar cada vez mais por uma ampliação da escola. E por que ampliação da escola? Acho que a razão está aí: as forças tradicionais e educativas da sociedade não dão conta mais de fazer essa inserção. Quer dizer, os pais estão preocupados com seu emprego, com seu trabalho, com seu desemprego; a mãe, e mesmo os avós, não estão mais em casa, os filhos mais velhos não estão, as igrejas não têm mais papel educativo, a família não é mais uma unidade educativa, comunidade não existe mais, existe é ajuntamento... Portanto, as pessoas estão desorientadas. E o que é educação? Vou lembrar uma frase de um filósofo alemão de quem gosto muito, Adorno. Ele diz: A educação é o ato através do qual nós preparamos as crianças para se orientarem no mundo. É isso que temos de fazer: ajudar as pessoas a se orientarem no mundo, se orientarem na vida.

Nelma: Neidson, eu lhe pediria para tecer algumas considerações em torno do pensamento de um filósofo que nos intriga muito: Walter Benjamin. Ele diz o seguinte: Uma das principais responsabilidades do homem é revelar o esquecido, mostrar que o passado comportava outros futuros além deste que realmente aconteceu.

Neidson: É uma expressão muito intrigante esta. Benjamin foi um filósofo que teve uma vida muito turbulenta e que morreu de maneira trágica; é bom que as pessoas que não conhecem sua história de vida possam conhecê-la. Ele tinha o grande desejo de ser professor universitário, nunca conseguiu, especialmente porque era judeu e viveu na Alemanha nazista. Não teve muito espaço e, além de tudo, era uma pessoa aparentemente muito desorganizada. Estabeleceu boas relações com outros intelectuais, muitos o aconselharam a fugir da Alemanha, mas ele não quis fugir. Quando tentou, já durante a guerra, a perseguição aos judeus era muito violenta. O interessante é que ele era de uma família muito bem posicionada, de uma família rica, mas sofria terrivelmente de doenças do pulmão, especialmente porque era um fumante inveterado. Durante sua fuga, uma das dificuldades era que ele tinha que atravessar as montanhas da Alemanha para a Espanha, tentando chegar a Portugal. De Portugal, pensava em fugir para os Estados Unidos, mas a perseguição foi tão grande que, no alto da montanha, ele acabou se suicidando. Mas foi um intelectual muito importante. Deixou obras bastante interessantes, e o que ele escreve tem muito a ver com a sua experiência de vida e a sua experiência intelectual. Voltando à expressão dele que você lembrou; ela é muito interessante. Em primeiro lugar, porque revela a dimensão racional que ele atribui a sua vida. Quando diz que o passado comportava outros futuros além daquele que realmente ocorreu, daquele que realmente aconteceu, significa, para mim, uma mensagem que ele nos está dando: não existe nada determinado na sociedade humana, não existe fatalismo, ninguém pode dizer: Não, isto aconteceu porque tinha de ser assim... Quer dizer, não há uma fatalidade. Dadas as circunstâncias da Alemanha, o nazismo tinha de acontecer; e, dada a fragilidade do povo judeu, ele tinha que sofrer sob o nazismo e tinha de ser exterminado. Não havia como evitar o autoritarismo, não havia como evitar Auschwitz... Benjamin diz: não é verdade isto; o que ocorre na história é de responsabilidade humana, por isso eu posso encaminhar para uma direção ou para outra. E se eu encaminho para uma direção ou para outra, sou responsável por essa direção. Quais são os responsáveis pela tragédia do nazismo, pela tragédia da humanidade com o nazismo na Alemanha? É a própria humanidade. Os alemães aceitaram o nazismo, a Igreja aceitou o nazismo durante muito tempo, e por isso ele não vai dizer que isso é um fatalismo, tinha de acontecer. E por isso precisamos não esquecer da história; ou seja: há uma responsabilidade muito grande por parte dos intelectuais de estar sempre fazendo a memória, o levantamento, a herança da história... Na história temos coisas positivas e negativas; não podemos esquecer nenhuma delas. Não tem nada a ver com o fatalismo; isto é, não posso dizer que foi culpa dos deuses, nem que Deus determinou que fosse assim; nem foram os astros que disseram o que deveria acontecer. É uma construção humana. Benjamin nos diz que uma das principais responsabilidades do homem é revelar o esquecido; este homem de que está falando é aquele capaz de tecer considerações sobre esse passado. Ele podia até acrescentar que uma das principais responsabilidades do homem é não simplesmente revelar o passado, mas também construir o presente. Quer dizer, quando vou ao passado, trago à tona o esquecido, porque temos uma tendência de esquecer o que foi e desculpar o passado. Temos sempre a tendência de desculpar: As pessoas não tinham a visão do que poderia ser... Benjamin está querendo dizer que nós somos, que a humanidade é responsável pelo seu passado. Por quê? Porque o futuro poderia ter sido diferente; aquilo que aconteceu no futuro, ou que aquilo que aconteceu num passado, foi uma construção que tem repercussões no futuro deste passado, e as pessoas são responsáveis por isso. Vamos voltar ao Congresso Mineiro de Educação e à educação em Minas Gerais. Estamos falando do Congresso no futuro do Congresso. Ele aconteceu há 17 anos atrás e estamos vivendo, portanto, o futuro, aquilo que desenhamos naquele passado. Podemos verificar hoje o que aconteceu? O que foi desenhado no passado ocorreu? Podemos verificar que muitas coisas sim, muitas não; outras evoluíram por direções diferentes... mas não podemos simplesmente nos desculpar, dizendo: Não, eu não tinha nada com isso, eu não tinha a visão plena do futuro. Não. Nós somos responsáveis pela situação que existe hoje, sim, para o bem ou para o mal. E temos de assumir essa responsabilidade, desvendar este passado até para permitir que assumamos também a responsabilidade a respeito do futuro que nós vamos deixar para as crianças de hoje. Temos de deixar para essas crianças também uma herança, porque o futuro delas poderá ser diferente. Nós podemos optar pela direção A, B, C ou D.

Nelma: Sabendo que a nossa ação é determinante.

Neidson: Sabendo que vamos dar direção a essas coisas. Porque não podemos depois dizer: Ah! Deus não me deu a clareza disso, ou então as coisas aconteceram porque fatalmente tinham de acontecer. Benjamin estava querendo tirar essa noção de fatalidade, porque ela desresponsabiliza os atores, os sujeitos. Não posso dizer hoje: Ah! o governo brasileiro, infelizmente, coitado, ele tinha pensado uma coisa mas foi obrigado a fazer outra porque as circunstâncias não permitiram que ele fizesse nada diferente. Assim, ele estaria sendo desculpado pelos seus erros; para Benjamin, não está não! As pessoas optam por determinadas direções e têm de ser responsáveis por elas. Nós não podemos simplesmente esquecer e nem desculpar o passado. Temos de conhecê-lo, temos de julgá-lo; temos de tentar dar direção e assumir a responsabilidade. Queremos um país melhor ou não, uma educação melhor ou não; o que é que nós queremos do futuro, em termos de saber e assumir a responsabilidade a respeito disso no futuro.

Nelma: Neidson, agradecemos muito a sua presença aqui... no projeto de História Oral. Gostaríamos que você assumisse... o compromisso de estar aqui com a gente em outros momentos, para continuar esta conversa tão rica. Além do agradecimento, queremos dizer que consideramos esta entrevista uma homenagem a você: pelo seu passado, pelo futuro que ainda nos ajudará a clarear e pelo trabalho e desempenho que teve à frente da Superintendência Educacional. Sem dúvida, aquele momento foi muito rico e uma mola propulsora às competências e às capacidades que emergiram na casa, a partir daquela experiência. Então, obrigadíssima.

Neidson: Eu é que agradeço o convite, que para mim foi contraditório: foi uma alegria, mas foi também uma tensão ter participado desta entrevista. Uma alegria porque estou aqui rememorando; tensão porque me faz lembrar que também sou responsável pelo futuro daquele tempo, presente de hoje.

  • *
    Entrevista realizada em 1º de setembro de 2000, no Centro de Referência do Professor Museu da Escola de Minas Gerais , como parte das comemorações dos 70 anos da Secretaria de Estado da Educação, integrando a série de depoimentos orais realizados com os gestores da Secretaria, no período 1960 até 2000. Neidson Rodrigues foi entrevistado pelo seu importante papel como superintendente educacional daquela Secretaria, pela realização do I Congresso Mineiro de Educação em 1983, e pelo que representava no cenário educacional em Minas Gerais e no Brasil. A entrevista foi realizada por Nelma Marçal Lacerda Fonseca, coordenadora do Projeto de História Oral desde 1997 e sua transcrição ficou a cargo de Cláudia Botelho, Helenice Giovanardi e da própria Nelma Marçal, pedagogas do Centro de Referência do Professor, e também das digitadoras Daniela Magalhães Pereira e Rosângela Pereira dos Santos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
    ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rbe@anped.org.br