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Cultura e política no século XIX: o exército como campo de constituição de sujeitos políticos no Império

RESENHAS

Lilian do Valle

Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

ALVES, Cláudia Maria Costa. Cultura e política no século XIX: o exército como campo de constituição de sujeitos políticos no Império. Bragança Paulista: EDUSF, 2002

Como o próprio título anuncia, trata-se de um livro sobre o exército. Nessas condições, interessa a tantos quantos se preocupam com as questões da constituição nacional, da instituição do espaço público e das características político-sociais da sociedade brasileira. Porém, entre seus diferentes méritos, o estudo produzido por Cláudia Maria Costa Alves se destaca particularmente pela contribuição oferecida à educação, em um terreno de investigação que permaneceu, até aqui, inexplorado pela área.

Refiro-me, inicialmente, à prática educativa do exército, pensada em sua unidade ideológica e institucional; mas refiro-me, também, ao fenômeno de instituição daquilo que a autora denominou "o exército educador" – dimensão central de uma identidade política construída, a partir do século XIX, no interior da corporação militar, nas bases de um nacionalismo modernizador e cientificista.

Se o tema – ao qual se dedicam dois dos quatro capítulos de seu trabalho – interessa-nos tanto, é porque, como a própria autora evidencia, ante a extrema precariedade das condições infra-estruturais da vida econômica e social, a ação e o papel do exército tendem a se ampliar, para atingir diversos setores de atividade e também recônditos em que o Estado jamais chegava.

[ ] ser militar do Império era, também, ser professor, ser engenheiro, geólogo e cartógrafo, ser administrador, ser desbravador de regiões inóspitas, ser chefe de quartéis e ser instrumento de civilização e nacionalidade em regiões sem qualquer identidade com a Nação e em que, muitas vezes, o exército constituía-se na única, ou principal fonte de criação de infra-estrutura. (p. 29)

É bem verdade que não chega a representar uma originalidade brasileira que, na modernidade, se mobilizem os exércitos para a missão civilizadora de que se investem os estados nacionais em constituição. Nesse sentido, poder-se-ia talvez lamentar a ausência de um exame das feições singulares que o fenômeno adquire, em nosso país, na medida em que ele nos ajudaria a entender melhor não só o próprio exército, mas a sociedade que ele ajudou a construir.

Mas é fato, também, que a estrutura um tanto atípica do texto – que, de certa forma, faz da conclusão o que deveria ser o ponto de partida – parece manifestar os descaminhos a que por vezes um pesquisador é obrigado, ao se deparar com uma exploração que, ao invés de se fechar sobre uma clareira, subitamente lhe descortina novos percursos a serem trilhados. Resta, porém, à autora mais esse mérito, unicamente atribuído aos que se aventuram em direção ao novo: de fazer das futuras investigações sobre o tema que seu trabalho certamente inspirará, mais do que meras possibilidades, exigências a desafiar a reflexão sobre a historiada educação pública brasileira.

O ponto de partida é o papel desempenhado pelo exército brasileiro na Proclamação da República e as diferentes análises que essa participação pode suscitar no campo dos estudos históricos e que, conforme o interesse, enfatizaram a atuação civil, relegando a força militar a um papel coadjuvante, entre tantas outras que convergiram para a queda da monarquia; ou, ao contrário, trataram de obscurecer tal atuação, reduzindo a Proclamação a um ato de insubordinação castrense. Em ambos os casos, o exército é visto como um protagonista extemporâneo, para o qual se buscam motivações corporativas e episódicas.

Em particular, duas teses parecem, à autora, dignas de correção: a primeira delas é a que pretende explicar o movimento militar como conseqüência direta do ressentimento que os militares, desprestigiados, passaram a nutrir pelo império – a famosa "questão militar", cujo poder mítico, como sabemos, estaria destinado a cumprir larga trajetória entre as teorias conspiratórias e as intenções golpistas no país. A segunda tese tende a esboçar, ao contrário, a imagem de uma corporação cindida pela emergência de uma elite intelectual que, no seleto academicismo da Escola Militar, preparara-se para a insubordinação republicana.

O enfrentamento dessas insuficiências analíticas conduz a autora à hipótese de que exército brasileiro passa a se constituir, sobretudo, a partir do século XIX, um sujeito político com identidade e consciência próprias – capaz, portanto, não só do gesto republicano, mas da auto-atribuição, no seio da sociedade brasileira, de uma missão mais ampla de intervenção intelectual e política. O exército é assim apresentado como uma das instituições em que se gestou, no país, o projeto nacionalista e modernizador, com todas as ambigüidades que o marcam.

No primeiro capítulo, as evidências desse projeto são buscadas nos debates e polêmicas militares que, entre os anos de 1882 e 1889, foram consignados na Revista do Exército Brasileiro. Dessa leitura, a autora conclui pela emergência de uma nova cultura militar que, manifestada nos discursos e práticas analisados, deve ser entendida como verdadeira "preparação para o poder" (p. 76). Nela, o cientificismo e a valorização tecnológica fornecem, decerto, fundamento para o discurso belicista que naturaliza a guerra e serve ao argumento da segurança nacional e da harmonia entre os povos – do qual o exército emerge como fiador da paz. Porém, mais do que isso, a identificação com a ciência permitiu ao exército postular para si o papel de promotor do progresso e do avanço moral da sociedade, pelo estímulo ao desenvolvimento tecnológico e pela realização de ações que visam o bem público: "garantir a paz entre as nações, zelar pela ordem social, educar os cidadãos semeando o patriotismo, consolidar o avanço das nações". (p. 90)

Nesse contexto, a ação educativa desenvolvida pelo exército cedo transborda os quadros da preparação militar, sendo oferecida a civis e entendida como fator de sedimentação da cidadania: o exército " deveria assumir uma função modelar pela disciplina que corporificava; deveria ser um centro irradiador de sentimentos e valores os mais nobres; deveria ser a base do verdadeiro patriotismo" (p. 89).

Os dois capítulos seguintes são justamente dedicados à ação educativa do exército. A autora busca caracterizar o papel desempenhado pelo mesmo, ante a precariedade do panorama educacional brasileiro – constituído de poucas instituições estatais – e ao seu conservadorismo – responsável por um ensino afastado da realidade etc. Isso implica, por um lado, a abertura de perspectivas de formação para as camadas médias (filhos de militares, mas também de comerciantes, funcionários públicos etc.); por outro, e em virtude das exigências próprias à prática bélica, a introdução de um ensino moderno, prático, em que a formação científica destrona um humanismo anacrônico.

Esboçam-se, dessa forma, as bases ideológicas de toda essa atividade educacional, na figura de um exército que se impregna dos ideais do esclarecimento, que passa a defender a instrução como melhor veículo de disciplinamento, a cultura do mérito e do aprimoramento técnico; enfim, de um exército que agora abraça resolutamente a crença nas potencialidades do controle racional da realidade física, humana e social. Já foi observado, como ressalta a própria autora, que o "iluminismo", em sua versão brasileira, não é inspirado pelas idéias revolucionárias do século anterior, mas pelo "positivismo esvaziado de crítica social produzido por Augusto Comte" – questão que ainda hoje está a merecer dedicação e estudo. No caso específico do exército, a autora sustenta – e só se pode lastimar que não nos forneça os elementos de comprovação que a valorização da educação não é mera reprodução das idéias então correntes: tendo como primeiro motor suas preocupações corporativas, o discurso de valorização da educação derivaria não obstante da tomada de consciência em relação aos problemas sociais e da crítica ao Estado imperial.

O capítulo terceiro trata da educação do cidadão, ou do tema do "exército educador", e se dedica a demonstrar como a valorização da educação e da difusão da razão não se limitou a influenciar a reconstrução da atividade militar e da corporação, mas foi estendida à ação social desenvolvida pelo exército.

E se porventura até aqui não fosse o caso, esse exame de iniciativas educacionais do exército nos forneceria indicadores seguros da relevância, para os estudos educacionais brasileiros, da empreitada intelectual a que se dedica a autora. Como já mencionado, em seus esforços de formação de novos quadros, o exército introduz o país no ensino das ciências e na adoção das inovações pedagógicas e tecnológicas, fazendo-se responsável " pelo início da formação de algumas carreiras profissionais que, depois, tornaram-se autônomas, desvinculando-se da atividade militar, tais como o engenheiro, o arquiteto, o geógrafo, o geólogo, o matemático, o físico e o químico" (p. 222-223). Além disso, a formação militar compreendia, ainda, a atuação no nível médio de ensino e a instrução elementar destinada aos soldados. E, muito particularmente, o serviço militar aparecia aos seus ardorosos defensores como a oportunidade de difusão do patriotismo e do sentimento cívico, pela qual o exército realizaria sua tarefa de moralização e de formação da cidadania.

Porém, em virtude de suas múltiplas atividades, o exército mantinha, ainda, quantidade de civis sob sua responsabilidade provisória ou permanente – adultos e crianças que povoavam presídios, arsenais, fábricas e colônias e aos quais se encarregava de fornecer educação. De forma que não soará nada excessivo dizer que o exército participou ativamente e, talvez, em muitos casos, de modo precursor, de uma obra que ocupará ainda longamente a educação pública brasileira: a "incorporação de um maior número de indivíduos ao ritmo do trabalho industrial, ao âmbito da cultura escrita, à valorização das conquistas da ciência, à constituição dos nacionalismos e à formação de cidadãos" (p.233).

Por suas características particulares no Império brasileiro, o exército atuou numa aliança entre ensino e assistência, tomando a si a tarefa de controle social de camadas sociais que, colocadas à margem da riqueza produzida por aquela sociedade, apresentavam-se como perigos potenciais à ordem. Ao mesmo tempo, porém, em que se submetiam tais camadas a um controle estrito de seu comportamento, oferecia-lhes um bem social de acesso restrito naquela sociedade, a educação. Contraditoriamente, abria uma brecha de democratização e oportunidade de ascensão numa sociedade altamente elitizada. (p. 286)

O quarto capítulo trata da modernização e do projeto nacional do exército, retraçando a história do exército imperial de suas origens até a Guerra do Paraguai e, em seguida, nesse movimento de "preparação para o poder" ao qual alude insistentemente a autora. Em sua análise, o exército é descrito não apenas como um dos artífices do Estado Nacional, sob o governo imperial, mas quase como a única instituição que responde por essa significação de unidade:

Durante décadas, uma parte da oficialidade exercitou-se na administração das poucas instituições de âmbito verdadeiramente nacional existentes no Império, defrontando-se com os obstáculos resultantes das diferenças regionais, dos poderes locais, do atraso e da pobreza do interior do país. [ ] Ser militar implicava uma ação no território, fazendo emergir um pensamento sobre o país. (p. 343)

Por certo, o livro de Cláudia Maria Costa Alves levantará as objeções que todo trabalho de seriedade e convicção produz. Entre elas, suponho, a de que, valorizando o movimento de constituição – imaginária e prática – do exército a partir dos discursos e das evidências internas à corporação, é o Estado imperial o único contraponto que a análise oferece para o entendimento da questão à luz do contexto social da época. E, de fato, uma das poucas referências às relações do exército com outras instituições está presente em uma citação à qual a autora concede, infelizmente, pouca atenção: nela, esboça-se apenas a possibilidade de derradeira identificação do exército com o monopólio de sentido que originalmente caracterizava as intenções do nacionalismo moderno e do centralismo estatal que o acompanhou: "Seria uma educação sob bandeiras, longe dos ensinos religiosos, e longe das afeições da família" (p. 214, grifo da autora). Ao fim das contas, como entender a identidade da corporação militar: um estado dentro do estado? Um estado contra o estado? Um estado contra a sociedade?

Parece-me, finalmente, que a grande reflexão à qual Cultura e política no século XIX: o exército como campo de constituição de sujeitos políticos no Império nos reconduz, ainda, é a questão da unidade nacional – que muitos insistem em decretar inteiramente ultrapassada. Para esses, tudo que a história da construção da nação e do estado brasileiros pode ainda despertar é a "pulsão à condenação e ao elogio" que Nicole Loraux lembrava ser a bagagem mais pesada na viagem ao passado. Se para outros, no entanto, ela permanece fonte fértil de indagações é porque, sabemos, elas dizem respeito ao futuro de nossa atualidade – às possibilidades de construção de uma identidade comum por vias democráticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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