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Juventudes e cidades educadoras

RESENHAS

Mônica Peregrino

Professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e doutoranda em educação da UFF

CARRANO, Paulo César Rodrigues. Juventudes e cidades educadoras. Petrópolis: Vozes, 2003, 180p.

O livro Juventudes e cidades educadoras é uma obra que convida à reflexão. Recusando a docilização dos corpos, o disciplinamento arbitrário, a uniformidade e a passividade implícitos na categoria aluno, o autor busca realçar, em sua abordagem sobre os jovens, exatamente aquilo que escapa ao controle institucional: a possibilidade de reconhecer os jovens como sujeitos de conhecimento e de ação.

Mas essa não é a única recusa perpetrada pelo autor. Ele também tensiona a "naturalidade" com que identificamos a escola com o educativo. Ele "pula o muro" da escola e considera a própria cidade como espaço educativo. Institui, assim, dois novos sujeitos no processo educativo: os jovens e a cidade.

Posicionando as práticas educativas na tensão dialética "entre as forças de conservação e as forças de transformação do homem e suas circunstâncias de vida" (p. 15), afirma que educativa é a resistência ao que se busca "conformar". Educativa é a configuração das transformações possíveis das circunstâncias que delimitam a vida. Educativas são as relações sociais. Educativo é o espaço onde elas se produzem e se inscrevem: a cidade, como possível "esfera educacional ampliada que se processa na heterogeneidade de espaços sociais praticados" (p. 16).

Mas por quê a cidade como espaço educativo? Porque a cidade é um produto material, em relação com outros elementos materiais (os homens inclusive), que lhe dão forma, função e sentido social. Sem ser mero reflexo das estruturas sociais, as cidades são expressões concretas de cada conjunto histórico, no qual uma sociedade se especifica. Como espaços sociais praticados, construídos, elas são, ao mesmo tempo, estrutura e superestrutura. Espaço de produção e também de reprodução das condições de sua manutenção.

Nesse sentido, as cidades são também espaços de criação. Na reprodução das condições materiais e simbólicas de produção cotidiana da vida nas cidades, reproduzem-se também as inúmeras contradições engendradas nesse processo. Engendra-se aquilo que José de Souza Martins nomeia como "o imponderável": anúncio e possibilidade de configuração de novas práticas. "Para além do texto visível da racionalidade urbanística",1 1 Martins, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade, São Paulo: Paulus, 1997, p. 21. insinua-se um outro texto: composto pelas práticas concretas dos habitantes das cidades. Para Carrano, exatamente nesse confronto situa-se a potencialidade da dimensão educativa das cidades. O espaço é uma relação social, material e simbolicamente construído, praticado e legitimado. Essas trocas no espaço praticado, porém, não se dão como fluxos livres. Recuperando Bourdieu, Carrano nos lembra que se é verdade que os agentes apreendem ativamente o mundo (social), é também verdade que as possibilidades de apreensão estão delimitadas por coações estruturais. O que Carrano busca evidenciar, portanto, é que, se o espaço é uma relação social, praticar a cidade configura-se numa prática educativa. E que a pedagogia desse processo objetiva sempre as possibilidades de apreensão ativa dos agentes, delimitadas por coações estruturais (mais ou menos duradouras).

Mas, como já afirmamos, nesse livro a cidade não é o único sujeito. A cidade se faz sujeito educativo, na relação com um grupo particular de habitantes (na verdade, mais praticantes do que propriamente "habitantes"): os jovens.

O que é juventude, segundo o autor? É noção histórica e socialmente produzida. Os jovens não se constituem em classes sociais ou em grupos homogêneos. São agregados sociais com características continuamente flutuantes.

Poderíamos definir juventude como um estado de liminaridade social, produzido com base na busca de autonomia, num mundo social cujas normas, regras e valores não foram completamente assimilados ou recusados. Exatamente por isso, os jovens tenderiam a incorporar determinado potencial para a mudança - condição essa determinada não por qualquer "essência" relacionada ao grupo, mas pela posição liminar que ocupam no "mundo social".

Na trilha do italiano Alberto Melucci, Carrano reconhece o caráter relacional da condição juvenil, relação que aglutina algumas características fundamentais, no tempo presente. Dentre elas: a orientação para o futuro; a produção de linguagens (provisórias e variáveis) com as quais se identificam e enviam sinais perante ao exterior; e as relações marcadas pela desterritorialização do espaço, produzindo-se, em contrapartida, uma espécie de nomadismo urbano dos indivíduos, em espaços específicos, e em geral por tempo relativamente breve.

Na redefinição da dimensão espaço-temporal, redefine-se o relacionamento com o grupo. Aqui, "os fundamentos da nova solidariedade juvenil não se encontra na adesão ao já dado, mas na capacidade e na responsabilidade de escolher" (p. 118).

Como tendência, afirma-se a individuação do social e a hipersocialização da experiência individual. Aqui suas experiências concretas são laboratórios de inovações (não projetadas mas praticadas). Para o jovem, portanto, o fundamental não é a construção do futuro, mas a experimentação do sentido da mudança presente.

Como praticantes do mundo, os jovens interpretam e expressam suas concepções em contextos determinados. Essas elaborações (culturais) assim como as formas de expressá-las (numa linguagem), são sempre híbridas, sincréticas, "de fronteira". Expressão da condição liminar (portanto "fronteiriça") dos grupos que as produzem e professam. Essas práticas são ainda produtoras e produtos da complexidade social das cidades contemporâneas: território privilegiado da ação social da juventude.

Na relação entre os jovens e a cidade, há momentos potencializadores das práticas de apropriação, de interpretação e de intervenção no espaço. Há, portanto, momentos de particular potencial educativo na relação entre os sujeito tratados. Quais são esses momentos? Os momentos de lazer. E por que esses momentos? Em primeiro lugar, porque são vividos pelos jovens como momentos de "afrouxamento" das coerções morais a eles impostas. São vividos mais intensamente como períodos de "moratória moral", ainda que sejam percebidos pelos "adultos" (gestores morais desses grupos) com desconfiança. Esses momentos são de grande importância, não só para os grupos que os vivem, mas também para aqueles interessados em sua análise.

Por um lado, o afrouxamento das pressões coercitivas sobre os grupos juvenis permite que o grupo "volte-se para si", para a experimentação de valores e pressupostos. Por outro lado, as práticas de lazer na cidade são práticas de experienciação da cidade. Práticas de aprender/apreender espaços cheios de linguagens e signos e que implicam passagens e interdições. Confrontos e encontros. Diálogos, monólogos e silêncios. Que implicam ainda, e fundamentalmente, processos de aprender e produzir conhecimento novo, com base nos sujeitos envolvidos nessa nova (e inovadora) relação pedagógica.

Por fim, Carrano não confronta apenas os novos sujeitos envolvidos na relação de aprendizagem. Busca também elementos para a compreensão dos efeitos da relação sobre um de seus termos: os grupos juvenis. E um dos efeitos fundamentais das práticas de lazer na cidade para esses grupos constitui-se na possibilidade de construção de identidades grupais e individuais. Essa construção é, portanto, um dos principais efeitos identificados pelo autor, como produto da relação pedagógica entre os grupos juvenis e a cidade.

É importante ressaltar que o conceito de identidade é interpelado em sua estabilidade, sendo tal estabilidade identitária refutada por sua relação com os rígidos parâmetros estabelecidos pela modernidade ocidental: entre o normal e o patológico, entre civilização e barbárie, entre razão e loucura. Busca-se questionar o caráter fixo que o uso corrente da noção de identidade implica. O autor, mais do que fixar identidades na discussão sobre os jovens e as cidade, reconhece as configurações dos processos de identificação como processos de busca ativa, nas quais a consciência e o aprendizado das possibilidades de escolha têm um papel fundamental.

Acionada nos processos de identificação, a busca ativa não ocorre sem problemas. Ao contrário, o excesso de possibilidades de escolha, a escassez do tempo (curto, premido por tantas e tão díspares opções); e a precariedade das condições materiais da maioria da população não entram em sintonia com a imensa sedução de ofertas (principalmente as de consumo). Seus efeitos possíveis? Frustração, patologia.

Numa dinâmica delicada e perigosa como um "fio de navalha", o "eu" relacional e móvel se redefine continuamente, como resposta a uma dinâmica social que exige dos sujeitos (no caso, os jovens) uma multiplicidade de linguagens e de relações, para que identidades se produzam. Essa busca identitária ativa do sujeito nas múltiplas redes tecidas no cotidiano das cidades se constitui num processo de aprendizagem em direção à autonomia.

O risco acontece, na possibilidade de perda da unidade do sujeito diante da multiplicidade de papéis reivindicados pela dinâmica social. Alguns efeitos: perda de autonomia, patologia individual e coletiva, marginalização.

Carrano é um autor ousado! Faz de sua reflexão a afirmação da necessária e urgente ampliação do horizonte de visibilidade do jovem, como sujeito de aprendizagem. Amplia, portanto, nossa capacidade de compreendê-lo como sujeito de mudança. Amplia ainda os espaços possíveis para as práticas educativas, ao mesmo tempo em que as torna infinitamente múltiplas e complexas no espaço da cidade. Afirma ainda o cotidiano como o espaço/tempo da realização da relação. Por fim (ainda que não seja esse seu objeto de discussão), aponta a necessidade de políticas públicas democráticas de juventude como a mediação possível nas relações entre os sujeitos envolvidos nas práticas educativas.

Um trabalho ousado é aquele que não se furta ao diálogo. Esse não é exceção. A ampliação das possibilidades de compreensão das práticas educativas presentes na relação entre juventudes e cidades educadoras nos instiga a radicalizar as novas possibilidades apontadas pelo autor. Nos provocam a pensar novas questões que alimentem o tema.

  • 1
    Martins, José de Souza.
    Exclusão social e a nova desigualdade, São Paulo: Paulus, 1997, p. 21.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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