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Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da lingüística

RESENHAS

Marcos Bagno

Universidade de Brasília, Instituto de Letras. E-mail: mbagno@terra.com.br

Antonio Carlos Xavier e Suzana Cortez (orgs.). Conversas com lingüistas: virtudes e controvérsias da lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2003, 200p.

A pluralidade viva da lingüística brasileira

A lingüística é um campo de investigação que se firmou como ciência autônoma no início do século XX, e sua "certidão de nascimento" é o livro Curso de lingüística geral, publicado em 1916, compilação póstuma dos ensinamentos do suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). As conseqüências dessa publicação foram enormes. Com base nas formulações de Saussure, desenvolveu-se uma escola de pensamento, o chamado estruturalismo, que se estendeu para fora da lingüística e conquistou adeptos na antropologia, na psicanálise, na psicologia e na filosofia. Desses primórdios até os dias de hoje, a lingüística sofreu inúmeras reformulações epistemológicas, ramificou-se em diversas escolas teóricas e metodológicas, até se tornar a ciência humana com a maior vocação para a interdisciplinaridade - o que se verifica nos próprios nomes das novas áreas de investigação, surgidas dentro do campo maior da lingüística: sociolingüística, psicolingüística, pragmática lingüística, lingüística cognitiva, antropologia lingüística, sociologia da linguagem, lingüística computacional etc. Na psicanálise, o estruturalismo se firmou com a escola fundada por Jacques Lacan (1901-1981), que tirou proveito de forma original e criativa dos postulados saussurianos.

Com isso, a abordagem dos fenômenos da linguagem humana ganhou status de atividade científica e se libertou das amarras normativo-prescritivas impostas pela milenar doutrina gramatical tradicional, fundada no mundo grego no século III a.C. e que constituiu, durante dois milênios e meio, o único corpo conceitual disponível para o estudo das línguas. Refletindo a organização social do período histórico em que foi elaborada, a gramática tradicional é essencialmente aristocrática: despreza a língua falada (considerada "caótica" e "corrupta") e se concentra exclusivamente na língua escrita dos grandes autores do passado, canonizados como "modelos a imitar". Tudo o que foge desse uso restrito e minoritário da linguagem é lançado na lata de lixo do "erro"; se uma dada palavra ou construção sintática não aparece na obra dos "clássicos" é porque está "errada" ou simplesmente "não existe".

Apesar da revolução epistemológica provocada pelo surgimento da lingüística moderna, o peso da tradição gramatical é muito grande e até hoje a visão que predomina acerca da língua, no senso comum, é aquela que divide as manifestações lingüísticas em "certas" e "erradas", atrelando-as, quase sempre, a juízos de valor moral ou, pior, às próprias capacidades cognitivas dos falantes das formas consideradas "erradas". Quem não consegue falar o português "certo" é "ignorante", "atrasado", "primitivo", e já houve mesmo um gramático brasileiro que atribuiu o suposto problema ao "psiquismo inferior" das classes sociais desprestigiadas.

Com matizes mais ou menos acentuados, essa visão pré-científica da linguagem é veiculada regularmente nos meios de comunicação de massa, sobretudo na imprensa escrita. Ao contrário do que acontece na abordagem de outros fenômenos, em que se recorre à explicação e à opinião de especialistas, quando o assunto é língua o jornalista se julga dispensado dessa consulta e profere seu próprio julgamento acerca do fato abordado. Quando muito, escora seus veredictos na velha doutrina gramatical tradicional.

De tudo isso surge uma situação paradoxal: ao lado de uma ciência lingüística extremamente dinâmica e em constante renovação de seus aparatos teóricos e metodológicos (uma ciência que tem no Brasil centros de investigação de excelência reconhecida internacionalmente), temos uma ideologia lingüística arcaica, impregnada de superstições e, sobretudo, entranhadamente preconceituosa. Basta comparar o que se estampa nos jornais e revistas acerca de física, química, biologia, psicologia etc. com o que ali aparece publicado a respeito de língua, ensino de língua, variação lingüística etc. No primeiro caso, a ciência de ponta. No segundo, um obscurantismo dogmático.

Quem sabe a publicação do livro Conversas com lingüistas ajude a dissipar ao menos um pouco dessa névoa obscurantista que, infelizmente, ainda envolve a sociedade brasileira no que diz respeito aos fatos de língua. Os depoimentos ali recolhidos oferecem um panorama muito atual da diversidade e da dinamicidade da ciência lingüística no país. Os 18 lingüistas entrevistados se filiam às mais diferentes áreas específicas de atuação (fonética e fonologia, análise do discurso, semântica, sintaxe, sociolingüística, lingüística aplicada etc.) e também a distintas escolas teóricas (formalistas, funcionalistas, sociocognitivistas). Os organizadores da obra, Antônio Carlos Xavier e Suzana Cortez, procuraram entrevistar professores-pesquisadores com mais de 20 anos de atuação na área.

Todos os entrevistados responderam as mesmas dez perguntas: Que é língua? Qual a relação entre língua, linguagem e sociedade? Há vínculos necessários entre língua, pensamento e cultura? A linguagem tem sujeito? Que é lingüística? A lingüística é ciência? Para que serve a lingüística? A lingüística tem algum compromisso necessário com a educação? Como a lingüística se insere na pós-modernidade? Quais os desafios para a lingüística no século XXI?

As diferenças (às vezes radicais) entre as respostas dadas mostra a pluralidade de pontos de vista, a saudável multiplicidade de recortes epistemológicos existentes dentro dessa área de conhecimento. Um claro exemplo está nas respostas à primeira pergunta: O que é língua? Aparecem definições de língua como "atividade trabalho", "meio de comunicação", "multissistema governado por um dispositivo sociocognitivo", "complexa realidade semiótica", "condensação de todas as experiências históricas de uma dada comunidade", "produto de um trabalho social e histórico", "capacidade biológica, inata à espécie humana", "domínio público de construção simbólica e interativa do mundo", "fenômeno social por excelência, vinculado a um território e a uma população", entre outras. Cada uma delas sintetiza o conjunto de filiações teóricas e de posições filosóficas de cada entrevistado.

Vale observar que a multiplicidade de filiações teóricas não corresponde a uma multiplicidade de filiações institucionais. Os 18 entrevistados se distribuem num total de apenas seis universidades, sendo que metade dos lingüistas têm vínculos com a UNICAMP. As outras universidades são a USP (2), a UFPR (2), a UFPE (2), a UFRJ (1) e a UFJF (1). Se é verdade que a UNICAMP representa hoje, no Brasil, o pólo mais ativo da pesquisa lingüística, causa estranheza a ausência de nomes importantes vinculados a outras instituições - como a UNESP, a PUC, a UFRGS, a UFMG, a UFBA, a UnB, entre outras -, onde também se têm desenvolvido uma lingüística teórica e aplicada de alta qualidade. Essas ausências podem ser explicadas pelas vicissitudes inerentes à organização de uma obra coletiva como essa. De todo modo, esperemos que elas sejam compensadas, no futuro, com a publicação de outros volumes que venham a dar seqüência a essa oportuna iniciativa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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