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NOTAS DE LEITURA

Afrânio Mendes Catani

Programa de Pós-Graduação em Educação e Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo

BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, 98p.

Esse pequeno livro abre a coleção "Pensamento Contemporâneo", organizada pela professora Maria Andréa Loyola e editada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, reunindo entrevistas com cientistas brasileiros e de outros países, realizada para a série de televisão "Pensamento Contemporâneo", transmitida pelo Canal Universitário do Rio de Janeiro (UTV). As entrevistas apresentam, fundamentalmente, a contribuição desses intelectuais para o desenvolvimento de sua própria disciplina, acompanhada de depoimentos sobre o pensador, de lista contendo seus textos mais importantes e indicando, no caso dos estrangeiros, as traduções disponíveis em português.

O livro de estréia da série é dedicado ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), contendo o depoimento concedido a 27 de outubro de 1999, em Paris, de sua sala no Collège de France, com a duração de quase cinco horas. Filmada integralmente pelo cineasta Pierre Carles (que aproveitou parte dela em seu filme La sociologie est un sport de combat (A sociologia é um esporte de combate,2001), essa entrevista foi editada, reduzindo-se a uma hora e trinta minutos e recebeu o acréscimo dos depoimentos de Moacir Palmeira e Sergio Miceli, "primeiros professores brasileiros a divulgar o trabalho de Bourdieu em nosso país" (p. 11).

Bourdieu mostra-se relativamente descontraído, falando de sua trajetória, expondo as idéias centrais que desenvolveu ao longo da volumosa obra que escreveu, bem como abordando de forma mais específica temas como globalização, neoliberalismo, papel das organizações não-governamenteais, ação do Fundo Monetário Internacional, televisão, dominação masculina, dentre outros (p. 12).

Inicia dizendo acreditar que a sociologia da educação e da cultura que elaborou teve o mérito de mostrar os mecanismos pelos quais a escola participa na conservação das estruturas sociais, numa sociedade de classes. "O sistema escolar contribui, então, para ratificar, sancionar, transformar em mérito escolar heranças culturais que passam pela família" (p. 15). Ao longo de sua obra, pode-se notar a demonstração da existência de relação entre a origem social e o sucesso escolar, além de mecanismos sociais que mantêm essa relação. Entretanto, acrescenta, certas coisas mudam o tempo todo: "se retomamos meu trabalho, desde Les héritiers (Os herdeiros) até La noblesse d'Etat (A nobreza de Estado), e mesmo em um capítulo sobre educação em A miséria do mundo, vemos que conceitos mudam o tempo todo por sobre uma base de constantes, de conhecimentos que se refinam, tornam-se mais precisos, corrigem-se e se sistematizam" (p. 16).

Bourdieu faz uma série de considerações acerca do início de sua carreira na Argélia, a maneira como vivia e entendia a situação no final dos anos 1950, a amizade com Abdelmalek Sayad (que prevaleceu até a morte do amigo argelino) e suas discordâncias com as concepções vigentes de escola libertária, mitificada pelo Partido Comunista. Na Semana do Pensamento Marxista, organizada pelo PC, afirmou: "Aqueles que a escola libertou colocam sua fé numa escola libertária que está a serviço da escola conservadora" (p. 20).

A entrevista prossegue com um ataque aos Chicago Boys, à globalização, à precarização das relações de trabalho etc.: "Neste momento, estão acontecendo na França coisas que foram feitas no Brasil, na Argentina, pelos Chicago Boys, e vemos as conseqüências - aumento do desemprego, violência, criminalidade, religiões milenaristas, pentecostalistas etc. Essas conseqüências são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado do campus universitário simpático dos Chicago Boys" (p. 23). Retoma algumas idéias centrais que havia desenvolvido em Contrafogo: táticas para enfrentar a invasão neoliberal (l998), criticando os críticos do Welfare State, recuperando as idéias centrais do livro de Keith Dixon, Os evangelistas do mercado - que mostra como se deu a produção bem orquestrada do discurso sobre o mundo social e sobre o mundo econômico, "repassada e difundida por grupos, lobbies, jornalistas, tendo em geral muito dinheiro por trás" (p. 27). Talvez um dos resultados mais palpáveis dessas transformações possa ser simbolizado por aquilo que caracteriza como "a destruição de todos os coletivos" (p. 28).

No restante da entrevista, Bourdieu solta farpas contra o então presidente Fernando Henrique Cardoso, comparando-o a Jospin, a Schroeder e a Blair: "[...] penso que se alguém se torna presidente social-democrata a serviço das lógicas dominantes é porque já tinha disposições nesse sentido. De qualquer maneira, é claro também que só se pode aceitar a idéia de que ele age pela força de compromissos ligados à posição política como desculpa [...]. Um homem político, por mais dominado que seja, por mais que esteja ligado a uma posição política dominada, num país dominado, tem uma margem de liberdade que lhe permite agir" (p. 35); também discute as posturas éticas de vários colegas acadêmicos; retoma a discussão acerca do papel da mídia ("as salas de redação vêm a ser um dos lugares mais importantes de poder simbólico e mesmo político e econômico, pois é aí que se criam as idéias-força, as idéias fortes" (p. 45); ressalta o papel das mulheres, no sentido de zelar pelas relações familiares (o que ele chama de capital social da família); e suas relações com o Brasil, que acabou morrendo sem visitar (p. 51-53).

Maria Andréa Loyola escreve, ainda, um pequeno ensaio: "Bourdieu e a sociologia", no qual procura mapear a obra do autor, valendo-se de atualizada bibliografia acerca de seus trabalhos. Grande parte desses trabalhos já se encontra traduzida no Brasil, embora alguns de seus textos relevantes ainda não tenham sensibilizado as editoras nacionais. Acredito que esse pequeno livro constitui-se em estímulo significativo no sentido de atrair os leitores brasileiros para a sua obra, fazendo com que uma série de questões sociais vitais possam ser equacionadas com base em novas leituras desse instigante autor, desaparecido no auge de sua vitalidade intelectual.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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