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Paradoxo da formação: servidão voluntária e liberação

The paradox of formation: voluntary slavery and liberation

Resumos

Um paradoxo está presente na atual constituição material, enredando a função docente e a natureza da educação de muitos modos. O discurso das reformas educacionais o manifesta em muitos contextos. É o paradoxo da nossa condição: de um lado, a servidão voluntária proposta pelo pós-fordismo, de outro, um quantum de liberação pleno de possibilidades. A atividade docente está lançada entre, ou no meio desse paradoxo. Pois ela é afetada de diversas maneiras no momento em que se rompe o laço entre o trabalho e a produção da riqueza (o que muda a inserção produtiva dos indivíduos), tornando o capitalismo parasitário (pois não pode mais dominar unilateralmente a estrutura do processo do trabalho, pela divisão entre trabalho manual e intelectual) e fazendo com que o capital fixo mais importante seja o cérebro das pessoas que trabalham. Supondo a igualdade das inteligências, que não deixam de ser múltiplas, compreendemos que no terreno conflagrado da constituição material do presente, que é enfim o lugar do porvir, o sentido da formação ganha urgência.

formação; servidão; liberdade


There is a paradox in the present material constitution, which involves the teaching function and the nature of education in many forms. Discourse on educational reform is manifest in numerous contexts. It constitutes the paradox of our condition: on the one hand, there is the voluntary slavery proposed by post-fordism and, on the other, a quantum of liberation full of possibilities. Teaching as an activity is situated between and in the middle of this paradox. It is affected in different ways from the moment in which it breaks the tie between work and the production of wealth (which changes the productive insertion of individuals), making capitalism parasitical (since it can no longer dominate the structure of the work process unilaterally by the division between manual and intellectual labour) and resulting in the brain of those who work being considered the most important fixed capital. If we suppose the equality of intelligence despite its multiplicity, we can understand that within the established ground of the present material constitution, which is the place of the future, the sense of formation gains urgency.

formation; slavery; liberty


ARTIGOS

Paradoxo da formação: servidão voluntária e liberação* * Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho de Filosofia da Educação na 26ª Reunião Anual da ANPEd (Poços de Caldas, outubro de 2003). O texto original foi reestruturado e reordenado, com a inserção de transcrições e notas que pretendem ampliar e esclarecer as formulações originais – todas mantidas. Agradecemos aos presentes quando da apresentação pelo debate amigável, em especial o professor Bruno Pucci, pelos comentários e pela argüição que orientaram e sugeriram caminhos para as modificações efetuadas. Vale notar que se trata de um programa de estudos, daí a exigência de mapeamento de novas referências – da qual a bibliografia tenta dar conta sumariamente –, que são tratadas como um domínio de problemas originais em seu estágio inicial. Aqui nos concentramos no problema da formação.

The paradox of formation: voluntary slavery and liberation

Mauricio Rocha

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação da Baixada Fluminense

RESUMO

Um paradoxo está presente na atual constituição material, enredando a função docente e a natureza da educação de muitos modos. O discurso das reformas educacionais o manifesta em muitos contextos. É o paradoxo da nossa condição: de um lado, a servidão voluntária proposta pelo pós-fordismo, de outro, um quantum de liberação pleno de possibilidades. A atividade docente está lançada entre, ou no meio desse paradoxo. Pois ela é afetada de diversas maneiras no momento em que se rompe o laço entre o trabalho e a produção da riqueza (o que muda a inserção produtiva dos indivíduos), tornando o capitalismo parasitário (pois não pode mais dominar unilateralmente a estrutura do processo do trabalho, pela divisão entre trabalho manual e intelectual) e fazendo com que o capital fixo mais importante seja o cérebro das pessoas que trabalham. Supondo a igualdade das inteligências, que não deixam de ser múltiplas, compreendemos que no terreno conflagrado da constituição material do presente, que é enfim o lugar do porvir, o sentido da formação ganha urgência.

Palavras-chave: formação; servidão; liberdade

ABSTRACT

There is a paradox in the present material constitution, which involves the teaching function and the nature of education in many forms. Discourse on educational reform is manifest in numerous contexts. It constitutes the paradox of our condition: on the one hand, there is the voluntary slavery proposed by post-fordism and, on the other, a quantum of liberation full of possibilities. Teaching as an activity is situated between and in the middle of this paradox. It is affected in different ways from the moment in which it breaks the tie between work and the production of wealth (which changes the productive insertion of individuals), making capitalism parasitical (since it can no longer dominate the structure of the work process unilaterally by the division between manual and intellectual labour) and resulting in the brain of those who work being considered the most important fixed capital. If we suppose the equality of intelligence despite its multiplicity, we can understand that within the established ground of the present material constitution, which is the place of the future, the sense of formation gains urgency.

Key-words: formation; slavery; liberty

1971/1990: o que se passou?

A violência do antagonismo capital/trabalho dos anos de 1960 e 1970 foi suplantada por formas de comando cujo princípio é a autodisciplina, a implicação permanente e a responsabilização individual. Quando o capital fixo mais importante passa a ser o cérebro de quem trabalha, delineiam-se as condições paradoxais da nossa experiência atual: de um lado a servidão voluntária proposta pelo pós-fordismo, de outro um quantum de liberação presente nas linhas de força da virada cognitiva do capital – que trouxe a inteligência para o centro de uma economia imaterial e determinou novas condições para a formação das subjetividades. Os antagonismos e as ambigüidades da ofensiva reformista na educação exprimem o paradoxo que enreda não apenas a condição docente e sua função formadora, mas afeta a própria natureza da educação e das instituições voltadas para esse fim. Quando a educação e o trabalho deixaram de ser momentos distintos da existência individual, pela necessidade de constante atualização dos conhecimentos, o sentido da formação precisou ser pensado para além do registro disciplinar que forma corpos dóceis e adestrados (o que não parece mais possível, quando a alma é posta a trabalhar), mas sem reduzir a formação à gestão controlada da potência cognitiva dos estudantes e sem reincidir no ideal da formação/educação segundo a lógica da domesticação e/ou do progresso (o que é constante nas manifestações de resistência conservadora à legislação reformista, na qual a retórica esquerdista e/ou progressista se alia ao anacronismo da escola que adestra e disciplina). Nosso interesse é pensar a liberação implícita nas linhas de força dos processos em curso, levando em conta tanto a crise da crítica (o colapso da imagem do docente como demiurgo criador de cidadania) quanto o encerramento do ciclo da educação humanista.

Paris, 1971: uma reunião de experts em gerência de diferentes países da Europa ocidental, Estados Unidos e Japão é motivada pelo "fenômeno de degradação que caracteriza hoje o comportamento dos trabalhadores", pelo "endurecimento de suas atitudes" e pela "desmotivação na indústria", conforme o relatório,1 1 Cf. OCDE, Paris, 1972, Las nouvelles attitudes et motivations des travailleurs: direction de la main-d'oeuvre et des affaires sociales, apud Boltanski e Chiapello (1999). que acrescentava: "As economias industriais sofrem uma revolução que atravessa fronteiras culturais", aparecendo em vários países europeus e que "não se limita apenas aos trabalhadores, mas também influencia os quadros da administração". Essa "revolução" se manifesta notadamente pelo "desafio à autoridade" e acontece "mesmo nas nações onde a ética protestante se expressou com o maior vigor moral e êxito material", onde certos jovens "muitas vezes chegam a preferir a pobreza ou a mendicância ao trabalho na fábrica". Na França, essa crise será particularmente viva, "com intermináveis debates sobre a necessidade de construir uma sociedade sem classe, sem hierarquia, sem autoridade e sem regulamentação". Na Itália, "os conflitos industriais e o mal-estar social conjugam constantemente seus efeitos" e "detalhes menores de progresso técnico nos locais de trabalho [...] provocam conflitos de uma violência desproporcional as suas causas". Em ambos esses países, como na Alemanha, "a autoridade estabelecida foi abalada de modo organizado e deliberado, chegando à violência física". Um outro observador da época descreve a "crise da autoridade" e a "contestação das hierarquias", os riscos de paralisia de grandes unidades de produção, onde os jovens operários tornaram ingovernáveis os locais de trabalho. Greves, centenas delas, endurecimento dos conflitos, guerrilha cotidiana nos ambientes de trabalho se associam a um absenteísmo crescente, sabotagens e outras formas de fugir da situação de trabalho. Para enfrentá-las, os patrões concederão maior espaço aos aparelhos sindicais, que pouco influenciaram tais fenômenos, estabelecendo novos direitos, novas funções, ampliando e reforçando as instituições paritárias. As direções de empresa também sobrecarregam os mecanismos de controle e disciplina, multiplicando as funções de vigilância sobre os trabalhadores e a qualidade dos produtos – mas a crise não cessa e atinge os lucros, a produção e a vida social em geral (Boltanski & Chiapello, 1999, p. 249-251).

Início dos anos de 1990: uma força-tarefa formada por empresários, cientistas e educadores, e coordenada pelo Ministério do Trabalho norte-americano, conclui um estudo sobre o que o trabalho exige das escolas.2 2 U.S. Department of Labor, What work requires of schools. A Scan Report for America 2000. SCANS – The Secretary's Commission on Achieving Necessary Skills. Washington, D.C. 1991; e Learning a living: a blueprint for high-performance. A SCANS Report for America 2000. Washington, D.C. 1992 apud Litto, 1998. Disponível em: < http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/humanas/educacao/patio/patio3.html>. Acesso em: dez. 2003. E determina que os ensinos fundamental e médio deverão fornecer aos alunos uma estrutura de capacitação básica, cognitiva e de qualidades pessoais que consistiriam em: ler, escrever, contar, calcular, escutar, falar, pensar criativamente, tomar decisões, solucionar problemas, perceber com acuidade, saber como aprender e raciocinar, responsabilidade, auto-estima, sociabilidade, autogerenciamento, integridade e honestidade, além de competências e habilidades (skills) tão importantes quanto os conhecimentos técnicos e intelectuais, mas distintas destes – essas competências representam os atributos que o empregador de alto desempenho de hoje procura no funcionário de amanhã, pois as próprias escolas precisam ser convertidas em organizações de alto desempenho, tal como os indivíduos e as empresas. Pois disso depende a sobrevivência de todos no mercado, mais até do que os monopólios, patentes, domínios territoriais etc. Outra conclusão é a de que o trabalho em grupo precisa ser estimulado, já que não é espontâneo nem natural, sendo necessário preparar os alunos para a cooperação, e cabendo ao professor fazer parte do time, abrindo mão de seu poder. Pois cabe levar o aluno ao material que serve de suporte para os fins educativos, mas cuja aquisição depende do aprendizado singular de cada um.

Os eventos da década de 1970 seriam o signo de encerramento do imenso trabalho de compromisso3 3 Saliés (1994) lembra que esse estado de coisas é em parte o resultado de um compromisso, efeito de lutas sociais, e depende do porvir dessas lutas e não de cálculos que buscam estabelecer um novo compromisso antes que as aspirações sociais se expressem e se desenvolvam. Uma realidade que lembra, obstinadamente, que a própria prosperidade da fase de expansão, com seus limites, foi em parte efeito das lutas sociais – pois, como mostrou o historiador britânico Edward Palmer Thompson (1987, vol. 1, prefácio), a classe (operária) existe porque luta, e não o inverso. entre empresas, Estado e parte dos sindicatos, que desde a crise de 1929 havia conseguido uma estabilidade relativa para o sistema capitalista. A turbulência põe em perigo o sistema ("revolução", diz o relatório) e faz do restabelecimento da produção, após a fase de desorganização, um dos problemas centrais da época. A violência do antagonismo capital/trabalho dos anos 1960 e 1970 foi suplantada por formas de comando cujo princípio é a autodisciplina, a implicação permanente e a responsabilização individual.

A história das formas do capitalismo é necessariamente reativa, pois ele só se submete a transformações sistêmicas quando forçado a isso, quando o regime atual é insustentável. São muitas as maneiras de avaliar essas crises sistêmicas – seja com ênfase na renovação ou permanência dos mecanismos de dominação (do despotismo fabril à dominação cultural e à manipulação ideológica), seja com atenção restrita aos automatismos regenerativos do sistema (resolução das contradições internas, crises cíclicas). O que nos interessa aqui é pensar a liberação implícita nas linhas de força dos processos em curso – pois o capitalismo constitui subjetividades antagônicas a partir da hipótese de que esta crise foi determinada por um "ataque proletário" que impôs limites ao capital, bloqueou seu desenvolvimento e ditou os termos e a natureza das transformações que viriam.

Dois caminhos, trilhados separadamente, se abriram ao Capital para aplacar as lutas sociais e reestruturar o comando, com a rearticulação entre desenvolvimento e exploração. O primeiro caminho foi a opção repressiva, de eficácia limitada, pois os mecanismos tayloristas e fordistas já não podiam controlar a dinâmica das forças produtivas e sociais, e a repressão era também autodestruidora. O outro caminho foi o da transformação tecnológica não apenas repressiva, mas que visava mudar a composição do proletariado, integrando, dominando e obtendo lucros com suas novas práticas e formas. (Negri & Hardt, 2000, p. 267)

Esse processo de recuperação, cujo marco político será a reconquista neoliberal,4 4 O economista austríaco Friedrich August von Hayek [1899-1992], ganhador do Nobel de Economia em 1974, é a fonte de inspiração das reformas de Tatcher e Reagan. Para Hayek, a ordem espontânea do mercado, que garante a liberdade, não deve ser perturbada em nenhum caso, notadamente por políticas de redistribuição que ajudem os desfavorecidos, tentando corrigir os efeitos julgados nefastos do mercado pela redistribuição das riquezas. Ele condena absolutamente as políticas de intervenção do Estado, por suporem uma idéia de bem social e justiça predeterminada. Para ele, o princípio da política é a liberdade, e não a felicidade, o bem comum ou a justiça. A liberdade, cujos princípios são a liberdade de consciência, de reunião, o direito à propriedade etc., pode ser objeto de acordo de todos e não exige nenhuma visão comum do bem ou da justiça. A crença na justiça social é apenas uma superstição ou uma nostalgia da sociedade tribal (o socialismo seria a reafirmação da ética tribal, e conduz ao totalitarismo). Toda justiça social, ligada a categorias particulares, é discriminatória e se opõe à liberdade. Assim, há uma incompatibilidade radical entre justiça social e liberdade (mercado). A única justiça (liberal) é relativa às transações: é justa a conduta dos jogadores, e não o resultado. envolverá também a reformulação dos métodos de gerenciamento e administração, visando a captura das subjetividades evasivas ao trabalho disciplinar e o aumento de produtividade e lucratividade. E o discurso gerencial fornecerá muito mais do que um vocabulário para as reformas educacionais em curso desde os anos de 1990; ele é o fio da meada de uma renovação do espírito capitalista, por propagar uma nova imagem do pensamento e da inteligência que servirá de base para a neuro-exploração.5 5 Conforme Rajchman (2000, passim), essa imagem do pensamento pode ser definida pelo termo smartness – por competências ou habilidades que se podem testar para apreender sua realização. A smartness concerne menos ao mecânico do que ao cognitivo, e se insere de modo diverso no trabalho e na economia. O mundo da informação nos levaria a crer que são nossos poderes cognitivos que importam, com a smartness chegando a nos definir. A smartness pertenceria ao cérebro mais performático, o que convém com a economia da competência e não da produção (como o behaviorismo correspondia à sociedade produtivista e à disciplina taylorista, o cognitivismo associa ao novo tipo de sociedade técnica uma espécie de darwinismo do cognitivo). Se a cada tipo de sociedade podemos fazer corresponder um tipo de máquina – simples e dinâmicas (sociedades de soberania), energéticas (disciplinar), cibernéticas e computacionais (controle) –, entramos na era das máquinas smart, e não mecânicas ou energéticas. E as tecnologias, em vez de simples próteses, contribuem para determinar os campos do possível nos quais nos tornamos o que somos. O que conta são os tipos de agenciamento nos quais as unidades informáticas se inserem, com suas pressões e modos de subjetivação, seus campos de possível. É por aí que a informação se torna mais do que um simples bem a que se tem acesso, ou que se manipula com maior ou menor competência – pois é um tipo de poder, uma forma de criar riqueza (e miséria e desemprego), também sendo marca de uma elite global, um novo objeto de fantasia com suas regulamentações estatais e novas classes de especialistas –, com uma nova geopolítica atravessando as zonas centrais e periféricas. Processos que precisam ser avaliados em sua especificidade, com as partilhas, os antagonismos e os afetos que engendram. Pois não sabemos o que pode um cérebro, mesmo quando acoplado a uma máquina smart em um dado agenciamento. E no que concerne à resistência, não se trata de liberar o espírito do mecânico, mas o cérebro da smartness, restituindo-lhe um campo vital e prático anterior à oposição natureza/artifício.

A virada cognitiva6 6 A fórmula "economia do conhecimento" (e a equivalente "sociedade do conhecimento") tende a neutralizar as tensões, antagonismos e contradições resultantes do modelo de desenvolvimento em curso, esvaziando a dimensão capitalista do processo e propondo uma imagem positivista da ciência e da tecnologia, que aparecem desvinculadas da história material e dos conflitos sociais. A opção pela fórmula "capitalismo cognitivo" segue a orientação das pesquisas efetuadas por Antonella Corsani, Enzo Rullani, Maurizio Lazzarato, Paolo Virno, Antonio Negri, Carlo Vercellone, Giuseppe Cocco, Philippe Zarifian e muitos outros – economistas, cientistas políticos, sociólogos e filósofos reunidos em torno das revistas Futur Antèrieur, Multitudes, Global etc., com ênfase na historicidade das economias e nos conflitos de poder e saber. do capitalismo trouxe a inteligência para o centro de uma economia imaterial e determinou novas condições para a formação das subjetividades.7 7 Guattari (1987) já chamava a atenção para o fato de que os conteúdos da subjetividade dependem cada vez mais de uma multidão de sistemas maquínicos (informacionais, comunicacionais, técnicos, biológicos, semióticos e lógicos). Os antagonismos e as ambigüidades do processo reformista (a resistência conservadora aliada à retórica esquerdista e/ou progressista, em favor da escola que adestra e disciplina) exprimem o paradoxo que enreda não apenas a condição docente e sua função formadora, mas afeta a própria natureza da educação. Quando o capital fixo mais importante passar a ser o cérebro de quem trabalha, delineiam-se as condições paradoxais da nossa experiência: de um lado a servidão voluntária proposta pelo pós-fordismo, de outro um quantum de liberação presente nas linhas de força da virada cognitiva do capital. Daí o caráter parasitário que o capitalismo adota, quando não pode mais dominar unilateralmente a estrutura do processo do trabalho pela divisão entre trabalho manual e intelectual.

Marx concebia em sua época a cooperação como resultado das ações do capitalista, que agiria como um maestro ou um general de exército, desenvolvendo as forças produtivas em um esforço comum. Esse fato põe em questão a concepção segundo a qual a força de trabalho é concebida como "capital variável" – isto é, uma força ativada e tornada coerente apenas pelo Capital, pois os poderes cooperativos da força de trabalho (particularmente da força de trabalho imaterial) dão ao trabalho a possibilidade de se valorizar. Cérebros e corpos precisam de outros para produzir valor, mas esses outros não são fornecidos pelo Capital e por sua capacidade de orquestrar a produção. A produtividade, a riqueza e a criação de superávits sociais atualmente tomam a forma de interatividade cooperativa – mediante redes lingüísticas, de comunicação e afetivas. Com suas energias criativas, o trabalho imaterial parece fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar. (Negri & Hardt, 2000, p. 294)

É lícito cogitar que a própria vida é posta a produzir quando a alma é posta a trabalhar. Encarnado no cérebro, o instrumento de trabalho é potência produtiva na construção da riqueza. Um indivíduo só se torna produtivo agenciado a outros corpos, sendo a racionalidade e a afetividade elementos centrais desse processo. Definir as subjetividades implica supor que todos os que produzem linguagens e potências de vida encontram-se imersos na produção e reprodução da força de trabalho – como é o caso da formação/educação, ou individuação pela escolarização. É o momento de pensar o que é comum, a potência do intelecto, para além dos moldes históricos com os quais convivemos por tanto tempo. Trata-se, enfim, da possibilidade de pensar o conceito de comunismo para além de uma racionalização, aceleração, modernização ou supermodernização do capitalismo (Negri, 2001, p. 29).8 8 Gorz (2003, p. 38) reitera essa afirmação, ao dizer que a sociedade cognitiva é uma sociedade comunista.

A "reconquista"

Mas o que é essa potência de recuperação do capitalismo? É que ele dispõe de uma espécie de axiomática, e quando ele dispõe de alguma coisa de novo, que ele não conhece, é como para toda axiomática, no limite não saturável: ele está sempre pronto a acrescentar um axioma a mais para fazer com que as coisas funcionem. Quando o capitalismo não puder mais negar que o proletariado seja uma classe, reconhecendo uma espécie de bipolaridade de classe sob a influência das lutas operárias do séc. XIX, sob a influência da revolução, esse momento é extraordinariamente ambíguo, é um momento importante na luta revolucionária, mas é também um momento essencial na recuperação capitalista: axiomas para a classe operária e para a potência sindical que a representa e a máquina capitalista recomeça rangendo, pois ela preencheu a brecha. (Deleuze, 1971, p. 2)

O desejo de se expressar em uma atividade social, de fazer alguma coisa, de ver os resultados de seus atos no trabalho em uma atividade social é parte essencial de um impulso para modificar a realidade em torno de si. Ocorre que a capacidade do sistema capitalista de fixar esse impulso em papéis alienados e alienantes sofreu um forte abalo durante os anos de 1960 e 1970, atingindo as formas de justificar o engajamento no trabalho e dar sentido a ele. Um estudo recente (Boltanski & Chiapello, 1999) ajuda a entender o mistério da persistente saúde do capital, por mostrar como o funcionamento da economia capitalista engaja a sociedade. Analisando a literatura gerencial dos anos de 1980 e 1990, os autores demonstram como as esferas pensantes das direções de empresas se esforçam para dar um sentido ao trabalho assalariado. Desde os anos de 1960 os gestores das relações sociais nas empresas faziam dos quadros da administração objeto de um trabalho de convicção. A partir dos anos 1980, é o conjunto dos assalariados da empresa que é preciso convencer de que a jornada passada na fábrica ou no escritório contribui para o bem-estar geral da sociedade – e será nos ideais dos movimentos contestatórios dos anos de 1960 que a literatura dos gerentes encontrará sua inspiração.

Os autores identificam dois tipos diferentes de crítica anticapitalista: a "crítica social", sobretudo preocupada com a injustiça e a desigualdade; e a "crítica artista", que desde os tempos de Baudelaire ataca a feiúra dos produtos industriais e a hierarquia, que extingue a criação. Se os "trinta anos gloriosos" conseguiram enquadrar a crítica social nos países do centro orgânico do capitalismo – em suas exigências de justiça e igualdade –, os processos sociais, as formas de organização política autônoma e de subjetivação rapidamente aceleraram a dinâmica do antagonismo.

As revoltas dos anos de 1960 e 1970 são o testemunho disso, com a recusa às hierarquias e às formas de poder estabelecido. Nesse passo, à beira do esgotamento, o sistema se põe a mudar radicalmente de espírito, absorvendo as exigências de autonomia, liberdade, flexibilidade e criatividade. Realiza-se um trabalho de captura dos valores da criatividade, da novidade, da receptividade a um mundo em evolução permanente, de autonomia e polivalência contra a estreiteza da especialização (forçosamente alienante), numa espécie de cerco à temática autogestionária. Essa mudança consiste na passagem de uma exigência de estatuto social (uma função específica) a uma exigência de formação de rede (poder de agenciamento comunicativo e produtivo).

Um argumento do novo capitalismo é justamente o de que o desenvolvimento da empresa em rede não representa somente um reforço da submissão às flutuações do mercado. O liberalismo econômico transforma as relações de produção desenvolvendo seu caráter coletivo, mundial, em nova escala. O caráter social da produção tornou-se muito mais palpável pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, a maior integração de cada unidade de produção. Em nome da liberação dos mercados, dos costumes e dos corpos, da autonomia e flexibilidade, uma nova forma de exploração emerge em toda parte, mas como não se parece com a exploração da mais-valia, só percebemos os "excluídos" – que não poderiam ser "explorados", já que não trabalham.

Não havendo mais adequação entre as noções de proletariado e de assalariado, a produção de força de trabalho não tem mais relação com a dinâmica da demanda de assalariados pelo capital. E os chamados de excluídos não podem mais ser considerados "exército de reserva do trabalho". Com a acumulação intensiva do capital e a exigência de mão-de-obra qualificada/competente, a oferta de trabalho é potencialmente infinita, enquanto a demanda de trabalho pelo capital é limitada. E se ela cresce, não é mais segundo o ritmo da demografia e não coincide com o crescimento da desocupação pela dissolução de outras formas de atividade. No contexto do fordismo, mecanismos institucionais convertiam os ganhos de produtividade em poder de compra, fazendo assim a demanda social crescer com a produção. A guinada neoliberal dos anos 80 fez com que os países do mundo atlântico se encontrassem com os periféricos – chegando a uma situação em que a relação salarial não capta mais a totalidade da oferta de trabalho, mas também não oferece o conjunto de produtos e serviços que a comunidade humana demanda. (Lipietz, 2003)9 9 Disponível em: < http://perso.wanadoo.fr/marxiens/politic/revenus/index.htm>.

A extorsão se faz agora pelos rápidos sobre os lentos: em todos os níveis da cadeia, o mais móvel extorque, em troca de uma desaceleração de sua própria mobilidade, a mais-valia do menos móvel. Reconhecemos aí a gênese cultural e política do que se convenciona nomear pós-modernidade10 10 Os contra-sensos em torno da pós-modernidade parecem derivar, em grande parte, de abordagens que privilegiam descrições dos registros epistemológico (fim das grandes narrativas; fim da filosofia; fim da história), moral (após o fim da revolução, a ética da comunicação), social (estetização e espetacularização como fim da política) etc., justo por esvaziá-los de sua materialidade. A mutação do capitalismo nos anos de 1970/1980; dissolução da experiência socialista; a metástase psíquica do sujeito moderno; as alterações profundas nas bases sociais, econômicas, políticas e subjetivas são eventos do quais muitos parecem perceber apenas a sombra (o fim), em vez do que se afirma neles. – gênese ancorada na transição capitalista para o regime da acumulação flexível e afetando a constituição subjetiva no que concerne ao trabalho (trabalho imaterial, precário, que subsume o trabalho afetivo na e sob a potência produtiva capitalista, e que transforma a cooperação social em elemento fundamental da valorização). As forças do movimento e da liberdade mudaram de campo, com os gerentes fazendo maio de 1968 ser permanente. Era de se esperar que a esquerda perdesse suas referências.

Entre o progresso e a domesticação

No estágio da subsunção material,11 11 Marx utiliza o termo subsunção ou submissão ( Unterwerfung) ou subordinação ( Uterordnung) para qualificar o modo de sujeição do processo de trabalho pelo capital. A noção detém um caráter analítico e histórico ao mesmo tempo. Ela só ganha sentido quando especificada na oposição entre subsunção formal e subsunção real (do trabalho sob o capital), consideradas como "as duas fases históricas do desenvolvimento econômico da produção capitalista". A subsunção formal recobre essencialmente o que o capital nomeia como manufatura, os primeiros passos do modo de produção capitalista, período histórico que começa com o trabalho domiciliar para o mercador capitalista e se encerra na passagem à grande indústria, a "revolução industrial", isto é, a subsunção real ou "modo de produção especificamente capitalista". A subsunção real é o modo de produção capitalista plenamente desenvolvido, no qual as relações entre as pessoas se dissolvem em benefício das relações entre coisas, de relações entre relações: é o reino da lei (do valor), "independentemente da vontade do capitalista" (Bensussan & Labica, 1999, p. 1102-1103). do mercado mundial realizado, a vida, o trabalho e a formação/educação se confundem. A escola disciplinar e que confina dá lugar à escola aberta, mudando a forma escola e o sentido da formação – que era condicionada por um conjunto de atos pedagógicos, didáticos, disciplinares etc., que dariam forma cognitiva e moral ao discente, demandando um longo processo de formação e/ou instrução/adestramento. Individuar pela escola significava preparar para uma atividade que, dependendo da divisão do trabalho e das hierarquias socioeconômicas vigentes, determinaria a posição de cada sujeito no corpo social. Apenas ao final desse percurso, fora do ambiente escolar, a subjetividade formada do discente passaria a outro segmento biográfico, experimentando agora sua demanda produtiva como sujeito econômico. Daí a linearidade que caracterizava o conjunto de etapas da formação, correspondente à divisão do tempo de uma existência em segmentos; uma escala graduada de reconhecimento social segundo regimes de mérito; enfim a inserção econômica como realização cidadã, com o presumido exercício de direitos civis etc. Essas referências – formação e instrução/adestramento – serviram de modelo escolar efetivo para as instituições educacionais públicas e privadas, indicando o rumo da formação e a prática educativa em cada tipo de instituição.

Educação e trabalho deixaram de ser momentos distintos da existência individual, pela necessidade de constante atualização dos conhecimentos. A noção de "aprendizagem permanente" e de "empregabilidade" ressoam a máxima "você ganha quanto você estuda" (Reich, 1983). A absorção da escola pela empresa supõe uma mudança da forma escola (a instituição dá lugar à organização), que deve formar "aprendizes permanentes" capazes de filtrar, selecionar e reconhecer o que é relevante e interessante em meio à massa de fluxos informativos (Bolaño, 1997). Por isso é possível afirmar que a forma escola está, e estará, em toda parte – indo além da constatada "tensão permanente entre a cultura escolar e a cultura da vida cotidiana" (Domingues, Toschi & Oliveira, 2000), sinal da crise geral dos meios de confinamento que afeta a escola, desfeita a trajetória previsível e segmentada da vida em favor do controle continuado da aprendizagem e da formação intelectual – a "sociedade disciplinar" do fordismo sendo gradativamente substituída pela sociedade de "controle" contínuo, ou do "risco" (Deleuze, 1992; Vaz, 2002).

A escolarização está e estará em toda parte quando passamos dos processos de aprendizagem padronizados do fordismo (que visavam a qualificação universal e determinada segundo ofícios e profissões) às demandas reformistas, pós-fordistas, que propõem educar para a vida – as escolas terão de preparar para a vida flexível, fazendo dos alunos os principais responsáveis pela sua própria educação etc. (Kuenzer, 2000). Essa recomposição do controle da produção da riqueza e do saber impõe à crítica a exigência de um diagnóstico sobre o sentido dessas noções implicadas no debate (vida, educação, formação etc.)–e mesmo um reexame da forma escola que estamos deixando para trás.

Peter Sloterdijk (2000) nos lembra que "a escola poderá ser vencida na batalha contra as forças indiretas de formação, a televisão, os filmes de violência e outras mídias desinibidoras, se não aparecer uma nova estrutura de cultivo capaz de amortecer essas forças violentas" (p. 46). Uma alternativa é resistir às mudanças em curso em nome dos valores da domesticação e do adestramento, característicos da escola fordista/disciplinar. Outra é indagar pela construção de tempos e espaços onde tais regimes e relações de poder se efetuam – embora estes regimes e relações não sejam imediatamente dados à percepção de docentes de sensibilidade forjada em instituições disciplinares. O mesmo vale para a noção de progresso, esfera ideal da igualdade prometida pela forma escola moderna – lugar privilegiado da síntese termidoriana que propunha conciliar progresso e ordem. É o que nos lembra Jacques Rancière (2002):12 12 Em seu livro sobre a trajetória de Joseph Jacotot, revolucionário francês exilado nos Países Baixos quando da restauração monárquica, que defendia a tese da igualdade das inteligências e de que em cada manifestação intelectual há o todo da inteligência humana. Daí o nome de sua filosofia: panecástica. Jacotot vive o momento em que o adágio "acabar a revolução" significa conciliar progresso e ordem, função que caberá, entre outras instituições, à escola. O tema da igualdade como princípio, e não como resultado, é recorrente em Rancière.

A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente, compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que deve obedecê-la. [...] o progresso social era, antes de qualquer outra coisa, o progresso na capacidade de a ordem social ser reconhecida como ordem racional. Essa crença só poderia se desenvolver em detrimento do esforço de emancipação dos indivíduos razoáveis, ao preço do sufocamento das virtualidades humanas contidas na idéia de igualdade. Uma enorme máquina de promoção da igualdade pela instrução estava sendo constituída. Tratava-se da igualdade representada, socializada, desigualizada, própria para ser aperfeiçoada, isto é, retardada de comissão em comissão, de relatório em relatório, de reforma em reforma, até a consumação dos tempos. (p. 11, 184)

Portanto, o sentido da formação/educação precisa ser pensado para além do registro disciplinar que forma corpos dóceis e adestrados (o que não parece mais possível, em todo caso, quando a alma é posta a trabalhar), e sem reduzi-lo à gestão controlada da potência cognitiva dos estudantes, perseverando no ideal de formação/educação segundo a lógica da domesticação e/ou do progresso.

O protagonista da transformação

[...] na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza se torna menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho usados, passando a depender mais da capacidade dos agentes acionados durante o tempo de trabalho, capacidade cuja eficácia (powerful effectiveness) não mantém nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que sua produção exige; depende do estado geral da ciência e do progresso técnico, ou da aplicação da ciência à produção. [...] O trabalho já não aparece tanto confinado ao processo de produção, pois o homem se comporta como supervisor e regulador em relação a este processo [...]. O trabalhador já não introduz a coisa natural modificada, como elo intermediário, entre o objeto e ele mesmo, mas insere o processo natural, transformado em processo industrial, como meio entre si mesmo e a natureza inorgânica, a qual domina. Apresenta-se ao lado do processo de produção, em vez de ser seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo do trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base miserável, comparado com este fundamento, recém-desenvolvido, criado pela própria grande indústria. Tão logo o trabalho, em sua forma imediata, tenha deixado de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser – tem que deixar de ser – sua medida; e o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. (Marx, 1857/1973, p. 704, tradução minha)13 13 Karl Marx levou nove meses, entre 1857/1958, para concluir o manuscrito dos Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie (Elementos para a crítica da economia política). O qual só seria publicado em 1939, na União Soviética, de onde poucos exemplares saíram. Caberia a Roman Rosdolsky, exilado nos EUA após sobreviver aos campos de concentração alemães, encontrar a edição soviética por acaso, em 1948 (a edição alemã é de 1953, da Dietz Verlag, Berlim). Rosdolsky escreverá a obra Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, editada em 1967 (cf. Rosdolsky, 2001). McLellan (1971) e Negri (1979) consideram os Grundrisse o projeto inconcluso de uma obra da qual O Capital seria apenas a parte inicial. A leitura dos Grundrisse serve como exercício de "correção do intelecto" economicista e historicista atuante em muitas interpretações de Marx – e que contribuíram para que ele se convertesse em "ideologia legitimadora da auto-afirmação da periferia retardatária na concorrência com os centros estabelecidos do capital", como nota Kurz (2000). Enfim, as passagens aqui citadas dos Grundrisse fornecem a base teórica e metodológica para as análises sobre o capitalismo cognitivo (cf. nota 6) e foram traduzidas da edição de Martin Nicolaus.

Marx designa como indivíduo social o protagonista da transformação radical do estado de coisas presente. O indivíduo social é a interseção entre a existência genérica e a experiência singular de cada sujeito. Conceito que surge juntamente com o de intelecto geral – premissa universal e a partitura comum para a atividade do coletivo. O intelecto geral consiste no caráter interpsíquico, público, da comunicação humana. É sobre esse fundo de percepção sensorial anônima, pré-individual, que se formam os indivíduos (levando em conta que são sociais e históricas as forças produtivas, assim como a herança biológica da espécie). Se a força de trabalho (física genérica e intelectual-linguística) é determinada historicamente, ela também contém uma indeterminação, um aspecto pré-individual (tal como o caráter impessoal da língua). Quando o capitalismo atinge seu estado de pleno desenvolvimento (o mercado mundial), ocorre a coincidência das forças produtivas com os elementos constituintes da subjetividade (percepção e linguagem). O que nomeamos habitualmente condições transcendentais da experiência, em lugar de permanecerem como pano de fundo, chegam ao primeiro plano e se tornam, elas próprias, objetos de experiência imediata (Virno, 2001).

Se durante o período da industrialização a atividade intelectual era estranha aos processos de trabalho direto, e era exercida no campo epistemológico e ético, essa exterioridade diminui gradativamente. Constrangido ao engajamento, o trabalhador intelectual experimentava a tensão crítica que, positiva ou negativamente, contribuía para determinar a hegemonia de uma classe sobre outra. Porém, quando o trabalho imaterial é generalizado qualitativamente e se torna tendência hegemônica, o intelectual é aspirado para o interior do processo produtivo – correndo o risco de cair na irrelevância, caso não compreenda sua nova situação. Na produção em geral, o trabalho aplicado à indústria e aos serviços de toda natureza (sobretudo os responsáveis pela produção e reprodução da vida social) é mais e mais imaterial – tal como aquele que caracteriza a função do intelectual. No exercício da formação ou da comunicação (docência, técnicas de relações públicas, marketing, design, projetos industriais etc.), o intelectual está lançado na máquina produtiva. O que faz com que sua intervenção não possa mais se reduzir à função epistemológica e crítica, nem ao engajamento ou a um testemunho da liberação. É no nível do próprio agenciamento coletivo que ele intervém, tratando-se de uma ação crítica e liberatória que se produz diretamente no interior do mundo do trabalho, para desenvolver a potência de cooperação do trabalho imaterial que constitui a qualidade explorada de nossa existência.

A natureza não constrói máquinas, locomotivas, estradas de ferro, telégrafos etc. Esses são produtos da indústria humana, matéria natural transformada em instrumentos da vontade e da atividade humanas sobre a natureza. São instrumentos do cérebro humano, criados pela mão do homem, órgãos materializados do saber. O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social em geral tornou-se uma força produtiva imediata, e, por conseqüência, até que ponto as condições do processo vital da sociedade estão submetidas ao controle da inteligência geral e levam sua marca: até que ponto as forças produtivas sociais não são somente produzidas sob a forma do saber, mas ainda como órgãos imediatos da práxis social, do processo vital real. (Marx, 1857/1973, p. 706, tradução minha)

Produção e comunicação se superpõem, e envolvem simultaneamente as relações entre economia, política, administração, vida social e constituição da subjetividade. Com o advento do pós-fordismo, ocorre uma imensa mutação das normas, regras, códigos e instituições que regiam, guiavam e estruturavam as relações entre os indivíduos, seus comportamentos e identidades. As tecnologias da informação e da comunicação fazem da linguagem um instrumento de uma nova ordem disciplinar e de controle, fundada sobre o princípio da auto-organização. Trabalhar passa a ser comunicar, produzir com base em competências lingüísticas, agir instrumental submisso aos imperativos da flexibilidade e da produtividade impostos pelo mercado – apelando ao que é comum, à faculdade de comunicar e à potência intelectual, e ao mesmo tempo repartindo as faculdades em comuns e universais para hierarquizar o trabalho em termos sempre mais pessoais e privados, portanto, servis (Marazzi, 1998, p. 56). A intrusão de uma mediação lingüística em cada operação produtiva submete o tempo da vida social às normas de rendimento impostas pelo trabalho assalariado – rompendo com a distinção entre ato instrumental e ato comunicativo, agora indiscerníveis (idem, ibidem).

Recurso de base e meio de produção, o conhecimento tem de ser produzido (não sendo dado, mas implicando novos meios de produção e trabalho). Com as máquinas informacionais redefinindo a produção e as relações sociais, as práticas laborais tendem ao modelo das tecnologias de informação e comunicação, o que supõe toda uma semiótica (operação com símbolos e ícones etc.) e traz uma novidade: se as ferramentas antes economizavam força de trabalho e estavam vinculadas a determinadas tarefas, um computador se apresenta como ferramenta universal por onde toda atividade passa, induzindo à homogeneização real dos processos laborais e assinalando a tendência ao trabalho abstrato. É sempre bom lembrar que máquinas informacionais modificam sua operação durante seus usos, supondo a expansão de suas performances a partir da interação com o usuário e o ambiente – o que, por sua vez, supõe experimentação e aprendizado contínuos.14 14 Corsani (2003) afirma que a hipótese do capitalismo cognitivo só ganha sentido no interior dessa dupla especificidade: a do conhecimento e a do sujeito (coletivo) que o produz. A relação homem/máquina, a evolução dessa relação envolve e determina as formas de cooperação. A máquina especializada, sua função e seu uso são predeterminados segundo a natureza dos conhecimentos que incorpora. Diante dessa máquina, o trabalho, separado do conhecimento, esvazia-se de qualquer especificidade singular. A máquina cristaliza saber; como trabalho morto, se impõe ao trabalho vivo. As novas tecnologias de informação e comunicação constituem uma verdadeira ruptura na história das técnicas, por dissociarem a máquina e seu programa. Essa maleabilidade dos instrumentos, cujo uso transforma o programa de funcionamento, abre a perspectiva de uma reviravolta na relação homem/máquina: a metamáquina não tem função predeterminada. Outras características do trabalho imaterial são o contato e interação humana atual ou virtual (como a saúde), a criação e manipulação do afeto (indústria do entretenimento) e a intangibilidade de seus efeitos (conforto, bem-estar, satisfação, excitação, paixões) – índice de que a ação instrumental da produção econômica se uniu à ação comunicativa das relações humanas. Além disso, visto como um serviço, trabalho material e imaterial se misturam na atividade fabril, incorporando tarefas analíticas e simbólicas, que convivem com as formas rotineiras de produção. Enfim, a cooperação é imanente à própria atividade de trabalho – e não imposta e organizada de fora, como ocorria com formas anteriores de trabalho.

Quando o trabalho produtivo é essencialmente marcado pela capacidade de operação, atividade simbólica (comunicacional, afetiva etc.) e cooperação, será este o âmbito da constituição da cidadania (Lazzarato & Negri, 2001). Deixando de ser fruto da inserção produtiva, passando a ser condição dessa inserção, a cidadania e as problemáticas referentes à integração e à exclusão, ao desenvolvimento (econômico e social) e à desigualdade se transformam. A desigualdade torna-se causa, e não mais conseqüência, do travamento do desenvolvimento e de sua lentidão (Cocco, 2000; Marazzi, 1998).

Desenvolvimento e capitalismo cognitivo

Desde a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) até os teóricos da "desconexão", as teorias da dependência e do desenvolvimento pensaram os Estados nacionais periféricos ao mesmo tempo como imitadores e opostos ao modelo do centro orgânico do capitalismo – como projeto de independência econômica nacional capaz de assegurar a transição de um modelo dependente para um modelo autocentrado e semelhante ao dos países avançados. Essa reivindicação ambígua propunha a adoção de um modelo de progresso industrial segundo o qual cada país reconstruiria a si próprio seguindo o Ocidente moderno colonizador – supondo a possibilidade de não sofrer a sujeição e a exploração implícita no colonialismo.

O que leva à adoção de um conjunto de categorias (concernentes à riqueza, às necessidades, à produtividade, à relação com a natureza e os saberes) elaboradas pela economia política no contexto do capitalismo industrial. Entretanto, a época das políticas de substituição de importações e o acelerado crescimento industrial do sudeste asiático acabariam resultando na ruptura da unidade imaginada nos anos de 1950/1960. O choque monetarista e a crise da dívida encerraram as ilusões sobre a mundialização do fordismo. E a reconquista neoliberal fez com que o paradigma desenvolvimentista desse lugar a um "consenso" estruturado em torno da tríade austeridade fiscal, privatizações e liberalização-desregulamentação. Prevaleceu o veredicto de que as políticas de welfare excluíam exatamente pelas práticas políticas integradoras, e que a inflação seria resultante dos gastos sociais sem receita que acabariam por excluir os pobres do consumo moderno (Oliveira, 1997).

A velha e a nova pobreza continuam definindo o âmbito prático propriamente nacional e incontornável – por mais que mundialize a economia e sua regulação política. Dar as costas a isso, imaginando-se cidadão do mundo abstrato e remoto, tem um preço: a irrelevância intelectual pura e simples. A modernidade vista de periferia nada tem de definhamento do Estado nacional – mas sim de um redesenho que fortalece o Estado como agente exclusivo da "valorização do valor", da tautologia da riqueza abstrata capitalista. Linha evolutiva regida por uma sintaxe de frustração permanente onde aparentemente nenhuma inserção internacional irá transpor o fosso colonial de sempre – pois já teríamos tomado forma faz tempo (o fim estava no começo). (Arantes, 1997, p. 107)

O desenvolvimento, de fim almejado, aparece agora como fruto de um crescimento espontâneo transmitido pela inserção nos fluxos de investimento do mercado mundial e por uma especialização fundada sobre "vantagens comparativas". Tanto os triunfantes da "reconquista" como os que imaginam outro mundo possível parecem compartilhar da crença de que o desenvolvimento ainda depende do modo de regulação (Estado ou mercado) que seja capaz de relançar uma dinâmica de crescimento (fordista ou pós-fordista) centrado na função motriz do capitalismo industrial. Como alternativa, caberia examinar a hipótese (Vercellone, 2002; Corsani, 2003) de que a crise atual do desenvolvimento precisa ser reaproximada da crise do capitalismo industrial e da transição para o que podemos nomear como capitalismo cognitivo – noção que designa uma economia fundada sobre a difusão do saber e na qual a produção de conhecimento se torna a principal forma de valorização do capital.

Nessa transição, a parte do capital imaterial e intelectual, definida pela proporção dos trabalhadores do conhecimento e das atividades de alta intensidade do saber (serviços informáticos, pesquisa e desenvolvimento, ensino, formação, segurança, multimídia, programas) se afirma como a chave do crescimento e da competitividade das nações. Esse debate sobre políticas de desenvolvimento no contexto do capitalismo cognitivo envolve vários aspectos (das limitações ecológicas do modelo industrial à função dos Estados Nacionais como sustentáculos essenciais das estratégias de desenvolvimento que alterem as relações sociais de desigualdade), como a nova divisão internacional do trabalho que o processo de mundialização induz – divisão caracterizada pelo controle da produção dos conhecimentos e pela captura financeira dos saberes.

A mundialização capitalista em curso combina métodos tradicionais de expropriação original e a tentativa de transformação em mercadorias da totalidade do mundo da vida e do pensamento. Trata-se de uma nova dinâmica de privatização parasitária do comum, que investe os saberes tradicionais e novos da economia do conhecimento, os direitos coletivos sobre os espaços agrícolas e florestais e os serviços coletivos das instituições de bem-estar ou de salário indireto – pelas várias formas de apropriação privada dos fundos públicos. O conteúdo essencial desse processo (de acumulação) repousa sobre a captura da economia do saber por meio e em proveito do financeiro e da generalização de uma economia da renda.

Nesse quadro, a formidável drenagem de recursos operada do sul para o norte graças ao serviço da dívida participa tanto quanto as normas sobre patentes e o turbo capital financeiro. Nesse quadro, os fatores que estruturam a nova divisão internacional do trabalho são acompanhados de uma exacerbação das desigualdades espaciais de desenvolvimento. A presença intensiva de conhecimento científico e de técnicas na produção; o fato de o capital físico ser uma variável secundária em relação à capacidade de mobilizar as inteligências em rede; a elaboração de uma divisão cognitiva do trabalho que repousa sobre o fracionamento dos processos de produção por blocos de saber mobilizados – o que favorece uma polarização nova, entre o desenvolvido e o não-desenvolvido, geopolítica dos territórios inteligentes; nessa divisão cognitiva do trabalho, o fator determinante da competitividade de um território depende do estoque de trabalho intelectual cooperativo que ele pode mobilizar. O que faz a lógica da exploração das vantagens comparativas recuar em proveito da detenção, pelo território, de elementos de monopólio ou vantagens absolutas sobre elementos específicos.15 15 Outro fator estrutural dessa nova divisão do trabalho se manifesta no reforço dos direitos de propriedade intelectual, as patentes sobre organismos vivos, a biopirataria dos saberes tradicionais. Essa política de constituição artificial de rendas de posição é justificada com o argumento de que, nos setores com forte intensidade em saber, o essencial do custo é fixo e se encontra nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento das empresas. Sendo bastante reduzido ou quase nulo o custo marginal de reprodução desses bens e serviços intensivos em conhecimento, eles poderiam ser cedidos gratuitamente. Por isso a ampliação dos direitos de propriedade intelectual seria a condição essencial da inovação, permitindo às firmas amortecer seus custos em pesquisa e desenvolvimento. Essa defesa teórica do copyright acaba justificando a exclusão do sul do acesso à nova divisão cognitiva do trabalho.

A produção de conhecimentos por meio de conhecimentos determina o ritmo do desenvolvimento e a possibilidade de uma inserção não subalterna na nova divisão internacional do trabalho. Esse potencial, por sua vez, depende de instituições coletivas que assegurem o livre acesso ao saber e a formação de uma intelectualidade difusa, e dos investimentos imateriais (saúde, educação, pesquisa, infra-estrutura informacional e social) que garantam a expansão da economia do conhecimento. Finalmente, a tese de que o desenvolvimento, em sua fase inicial, traz um aprofundamento das desigualdades para favorecer a acumulação em detrimento do consumo imediato, perde toda a justificação teórica: a redução da desigualdade é uma condição essencial da difusão do saber e o impulso de uma economia do conhecimento – a natureza dos investimentos imateriais se apresenta como forma de produção e consumação coletiva.

As reformas

O movimento reformista constituiu-se como uma ofensiva internacional,16 16 Acrescente-se a agiotagem internacional ao processo, no caso dos países periféricos, conforme notícia de O Estado de S. Paulo, em 25 de maio de 1999. "Reconhecida influência do BIRD no ensino da América Latina": "A existência de uma política educacional única para a América Latina, a partir dos projetos financiados pelo Banco Mundial (BIRD), foi reconhecida no Seminário Jornalismo e Educação promovido pela Unesco. 'Não nego a influência do Banco Mundial em relação a diferentes estratégias educacionais dos governos latino-americanos' afirmou a O Estado Sandra Celsini, coordenadora do BIRD para a Argentina, Chile e Uruguai. [...] Estudo da Universidade de Brasília mostrou que os empréstimos do BIRD ao Brasil, no fim da década de 1980 e início dos anos 1990, foram 'excelente negócio' para o banco. Os juros cobrados eram mais altos que os de mercado, realidade não contestada por Sandra Celsini. 'Outros bancos não emprestam dinheiro para os fins que emprestamos', afirmou. 'Nesse aspecto, nossos juros são até baratos'. Sandra fez a ressalva de que o Banco adequa as taxas de juro à capacidade de pagamento dos países pobres. Mas não deixou de lembrar que os países 'com recursos suficientes' para pagar os juros normais dos empréstimos do BIRD 'devem fazê-lo'". concernente a todos os domínios e níveis de formação, vinculada ao conteúdo educativo e às formas de avaliação. O que se debate é que a educação, do ponto de vista das trocas internacionais, gradualmente deixe de ser um domínio específico que depende exclusivamente da ação do Estado (pois ele não deve constituir um entrave às trocas e à livre concorrência, mas, ao contrário, tem a responsabilidade de fazer respeitar o livre jogo do mercado etc., conservando e reforçando sua função de mantenedor da ordem e da segurança). É o que demonstra a iniciativa da Organização Mundial do Comércio (OMC) chamada Acordo Geral sobre o Comércio e os Serviços, que prevê a abertura à concorrência da totalidade dos serviços públicos, exceto as forças armadas, a justiça e parcialmente a polícia, consumando o sonho liberal do Estado vigia noturno. Do direito constitucional passamos ao balcão de negócios, com a educação tendendo a figurar nas listas de serviços abertos à concorrência, como uma mercadoria entre outras – pois a soberania estatal, em qualquer matéria, é assimilada a um injusto monopólio econômico. O que sugere a necessidade de repensar as diferenças entre o público, o estatal e o privado como alternativa às propostas de privatização do comum (Vincent, 1997).

As Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9.394/1996) e toda a literatura reguladora que a segue parece envolta em uma ronda que certamente causa arrepios nos mais vividos. O que percebemos é que a crítica às mudanças legais, em geral, passa ao largo dessa problemática – que foi apreendida pelos legisladores, embora ainda timidamente. Talvez fosse o caso de avaliar que essa legislação ainda não foi longe o suficiente, diante das exigências do tempo presente.

Objeto de resistências que vão do conservadorismo corporativista à crítica de seus compromissos com a agenda neoliberal, a "Lei Darcy Ribeiro" não deixou de formular um cenário de mudanças interessantes: a diversificação e a flexibilização dos currículos; a articulação entre educação tecnológica e a produção econômica; a identidade de formação básica atribuída ao ensino médio; a proposta de autonomia política das instituições de ensino e de seus corpos constitutivos na adequação sugerida entre currículos e processos formativos contextualizados; as diretrizes nacionais que privilegiaram os conceitos de competência e habilidades direcionadas para a mobilidade entre ensino e formação profissional; a proposta de interdisciplinaridade que visa integrar as áreas do conhecimento etc. Enfim, uma nova configuração política, pedagógica, epistemológica etc (Domingues, Toschi & Oliveira, 2000).

A generalidade dos princípios da lei acompanha o espírito republicano da Constituição de 1988, e seu fundamento democrático reconhece o caráter estamental, autoritário e hierárquico de nossa formação social. Ela sugere que é necessário pensar a função social da escola para além das demandas contingentes do mundo do trabalho, ao condicionar a identidade do ensino médio à incorporação das necessidades reais dos coletivos aos quais o sistema atende, do ponto de vista pedagógico e social (os verbos diversificar e flexibilizar, já presentes no léxico pedagógico local, seguiam irritando sensibilidades humanistas).

Quando se pretende coerência entre programas de governo e políticas de desenvolvimento, o planejamento curricular é central. Apesar ou por causa disso, nossa experiência com as reformas é de reiterada descontinuidade – padecendo de financiamentos, investimentos, de ações concretas de formação docente e de profissionais de apoio etc. que materializem as intenções alardeadas a cada ciclo reformista. Imediatamente antes e durante a Ditadura Militar, em 1960 e 1970, as reformas foram elaboradas por equipes locais com assessoria e financiamento externo, mas a implementação e manutenção das mudanças ficaram pelo caminho. Transposição de currículos de fora, ignorância ou irrelevância das necessidades locais, docentes e profissionais do ensino comparecendo como "recurso", e não como elemento constitutivo, mesmo quando consultados etc. Elaborado com esmero intelectual por equipes de consultores de alto nível, sob o manto da dupla regência Fernandina, boa parte do material entregue às escolas com o intuito de orientar docentes adormece nas prateleiras – aguardando a investigação sobre temas como as "áreas de saber" e a interdisciplinaridade nas universidades, e entre docentes e profissionais da educação em todos os níveis. A dura realidade da carência crescente de professores (em física, matemática, biologia e química etc.) é um obstáculo à perspectiva interdisciplinar, e não por falta de assunto, evidentemente.

Pensar os currículos como "obra aberta" supõe que seus formuladores e executantes sejam suficientemente artistas – mas, assim como a crítica, a criação não se faz sem condições concretas e materiais. Os modos democráticos de controle que comparecem na defesa da gestão local, na possibilidade de cada um desenvolver seus projetos pedagógicos com autonomia, sem moldes únicos, têm resultado em sobretrabalho e na necessidade de justificar permanentemente a própria eficácia. Por outro lado, o ideal de "subjetividade democrática" que se manifesta nos textos associados à lei, pleno de boas intenções certamente, pode resultar em comicidade institucional, ou mesmo farsa, sem exame crítico do controle dos poderes de decisão e execução, da formulação curricular à gestão administrativa do sistema – incidindo sobre as formas de representação e mecanismos eleitorais que experimentamos desde o encerramento do ciclo militar. Pois, ao propor uma ética, uma estética e uma política, o discurso reformista apenas pressupõe o modo de produção no qual se constituem as condições materiais, imaginárias e simbólicas da existência – e este pressuposto implícito (do capitalismo triunfante e da sociedade democrático-eleitoral) é patente nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio.

O léxico das competências mistura a língua franca do mercado (do discurso gerencial aos recursos humanos) e a teoria educacional (Manfredi, 1998), sendo origem de muitos contra-sensos, angústias e resistências entre docentes – que resultam em posições defensivas, quando não à reação abertamente conservadora, e suspendem a possibilidade de pensar de outro modo essa noção. De fato, a noção de competência é restritiva quando se limita a atestar o domínio pontual de uma ferramenta ou instrumental de trabalho, ou quando formula um "saber-ser" que sugere comportamentos adequados à demanda do empregador e à adaptação servil. Outro contra-senso é a suposição de que podemos dividir as capacidades de cada um para chegar a unidades adicionadas de modo variável, como se cada um possuísse sua grade de competências, modulável ao infinito. Nesse caso, o que se perde é o sentido de uma atividade, seja técnica ou não. Pois se o domínio de cada passo de uma atividade não é retomado na compreensão do todo, ele escapa a quem possui uma competência parcelada; esse domínio repousa sobre uma síntese que não pode ser dividida em uma simples série de procedimentos ou tarefas distintas, pois cada elemento se compreende em função de um todo autônomo que regula o conjunto da atividade.

Em muitos setores da produção e dos serviços (nas escolas, inclusive), o que se desenvolve mais e mais é o par objetivo-resultado – o que inflete o sentido da alienação (alienante será não decidir sobre os objetivos solicitados ou impostos) e impõe a necessária distinção entre competência e performance, pois os resultados nada dizem sobre as competências. Uma competência individual deve poder ser avaliada a partir das iniciativas tomadas e segundo o domínio das situações; já a performance envolve o efeito da eficiência organizacional de uma rede de competências (o que se aplica também aos modos de produzir conhecimentos e saberes nas instituições de ensino, em qualquer nível – não é o que nós, docentes, experimentamos?).

Diferenciando o ensino geral e o profissional, o discurso reformista encontra neste último a referência para os modelos pedagógicos propostos (Tanguy & Ropé, 1997). O que nos leva às abordagens sobre a qualificação para o trabalho, estruturadas sobre longos períodos e ainda dominantes: a do ofício, que remonta à Idade Média, e a do posto de trabalho, do emprego ou função, concebida no final do século XIX, com o início da industrialização – abordagem reforçada pelo taylorismo. Essas abordagens estão próximas do esgotamento (Vercellone, 2002; Corsani, 2003; Gorz, 2003) – e a abordagem da qualificação pela competência parece responder às questões postas atualmente (Zarifian, 2003).

O modelo da competência aparece no final dos anos de 1960 e início dos de 1970, período em que o debate sobre a questão da autonomia e do controle do trabalho é intenso, ao que responderam as empresas com a criação de zonas de autonomia que supostamente devem ser preenchidas por ela. O que não se nota é que a competência é o retorno do trabalho no trabalhador; ou o retorno da atividade profissional no indivíduo. A industrialização separou o trabalho do trabalhador – o trabalho objetivado, racionalizado, descrito sob a forma de tarefas, relativas a uma função etc. Qualificação significava tornar alguém capaz de realizar tarefas ligadas a uma função. A passividade inerente a essa forma de qualificação é evidente, pois o trabalhador não define seu trabalho e suas tarefas, solicitado a realizar tarefas definidas por terceiros. A mudança que ocorre agora é que o trabalho retorna ao indivíduo – trabalhar significando pôr em operação, de modo bem-sucedido, uma competência.

E só se é competente em relação a uma situação, como maneira de intervir, forma de agir efetiva em situação, a qual não existe sem o indivíduo que intervém, o que difere de uma abordagem centrada no emprego ou no posto de trabalho, e em situações de trabalho planificadas, previsíveis e previstas. Em vez de uma ação autorizada e planejada pela hierarquia, trata-se da tomar a iniciativa e assumir a responsabilidade por ela – sendo essencial a iniciativa diante de eventos imprevistos. Por outro lado, o trabalho nunca foi tão coletivo, tão interdependente, indo além das equipes e supondo as redes produtivas. Qualificação significa formar os indivíduos segundo o que deles se espera – o que era pensado como qualificação para um emprego ou posto de trabalho. Desse modo, a qualificação estará no indivíduo, não mais no trabalho (idem).

Outro aspecto é a tese da educação permanente, por conta do próprio educando: não basta o diploma para exercer uma função determinada, mas é preciso incessantemente justificar sua competência de modo que ela apareça como incontestável. Como as necessidades evoluem rapidamente, as competências podem ter prazo de validade. O resumo dessa lógica é a noção de empregabilidade, e a questão aqui é a do estatuto de quem trabalha e o financiamento da formação, ficando claro que um emprego não é propriamente um direito, quando é preciso justificar solidamente o fato de impor uma despesa à empresa – afinal, ela assume riscos e lucra com isso. Enfim, cabe aos próprios indivíduos criar as regras de gestão e desenvolvimento das organizações produtivas, regras antes assumidas pelo próprio capital (Negri, 2001).

Considerações finais

Quando assistimos à sempre duvidosa existência do Brasil como nação17 17 A fórmula é machadiana. se associar ao garroteamento dos sistemas de ensino pelas políticas de ajuste fiscal, verificamos também que se renova nossa condição de "vanguarda atrasada" – aquela que chega aos mesmos limites superiores do capitalismo desenvolvido sem ter atingido seus patamares mínimos (Oliveira, 1997).

Na última década houve um estímulo da demanda pelo sistema público de ensino – que se constata com a "boa nova" da "quase universalização" do ensino fundamental. A esperada explosão de demanda por ensino médio e superior e a conseqüente massificação vindoura, muitas vezes imaginada como parte da solução de boa parte das mazelas locais, acompanhada da crença persistente do desenvolvimento econômico como via de emancipação, autonomia e soberania, tudo enfim torna o ensino terreno conflagrado da constituição material do presente e lugar do porvir. Quando se desfaz a articulação, sobredeterminada pelo fordismo, que durante décadas vinculou escola e trabalho, muitos argumentos em defesa da forma escola deixam de corresponder à dinâmica social real. Um exemplo é o lugar-comum da "cidadania".

O conceito de cidadania costuma ser propagado no ambiente escolar como uma das finalidades das ações educativas. É o que testemunham a legislação e a retórica oficial dos administradores do sistema público de ensino. A esse discurso se associa o veredicto de que a função docente é formar cidadãos, supostamente em oposição à instrução utilitária oferecida pelas práticas de escolarização voltadas para o mercado de trabalho. Tudo isso concorreu, e ainda concorre, para a idealização de propostas pedagógicas caracterizadas pela sua dimensão "crítica", em contraponto aos projetos educacionais oficiais. O que era pertinente durante a ditadura militar e a longa transição lampedusiana que vivemos de 1984 em diante. Resta saber se ainda é, passados tantos lustros e após o transe da multidão que desaguou na vitória eleitoral de forças declaradamente comprometidas com proposições progressistas e desenvolvimentistas (não por acaso conduzida por um ex-operário industrial).

Diante desse quadro, insistir na atribuição de "independência crítica" à educação, e na "concepção mágica de cidadania que nasceria do processo educativo" (Ricci, 1999, p. 144), no qual o educador seria um "demiurgo" criador de cidadania, pouco acrescenta. Certamente esses temas ainda não deixaram de fazer sentido para os que pensam segundo os valores ilustrados. Mas o exame da cor local de nossa modernidade, constituída por tais valores, demonstra que ela não é um conjunto de regras abstratas, mas está aí, plenamente "formada" e realizada no triunfo da separação social entre os beneficiados e os marginalizados pelo progresso da ordem.

Recebido em outubro de 2003

Aprovado em maio de 2004

MAURICIO DE ALBUQUERQUE ROCHA, doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lotado na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (UERJ/FEBF), e do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II. Publicou recentemente: Não há escola sem filosofia. In: PACHECO, Anelise, COCCO, Giuseppe, VAZ, Paulo (orgs.). O trabalho da multidão: império e resistências. (Rio de Janeiro: Gryphus & Museu da República, 2002). Projeto de pesquisa: A idéia de cultura brasileira: o conceito de formação e a problemática da formação, com apoio financeiro da FAPERJ. Disponível em: <http://www.guaikuru.blogger.com.br/index.html>. E-mail: guaikuru@uol.com.br

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  • *
    Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho de Filosofia da Educação na 26ª Reunião Anual da ANPEd (Poços de Caldas, outubro de 2003). O texto original foi reestruturado e reordenado, com a inserção de transcrições e notas que pretendem ampliar e esclarecer as formulações originais – todas mantidas. Agradecemos aos presentes quando da apresentação pelo debate amigável, em especial o professor Bruno Pucci, pelos comentários e pela argüição que orientaram e sugeriram caminhos para as modificações efetuadas. Vale notar que se trata de um programa de estudos, daí a exigência de mapeamento de novas referências – da qual a bibliografia tenta dar conta sumariamente –, que são tratadas como um domínio de problemas originais em seu estágio inicial. Aqui nos concentramos no problema da
    formação.
  • 1
    Cf. OCDE, Paris, 1972,
    Las nouvelles attitudes et motivations des travailleurs: direction de la main-d'oeuvre et des affaires sociales,
    apud Boltanski e Chiapello (1999).
  • 2
    U.S. Department of Labor,
    What work requires of schools. A Scan Report for America 2000. SCANS – The Secretary's Commission on Achieving Necessary Skills. Washington, D.C. 1991; e
    Learning a living: a blueprint for high-performance. A SCANS Report for America 2000. Washington, D.C. 1992
    apud Litto, 1998. Disponível em: <
  • 3
    Saliés (1994) lembra que esse estado de coisas é em parte o resultado de um compromisso, efeito de lutas sociais, e depende do porvir dessas lutas e não de cálculos que buscam estabelecer um novo compromisso antes que as aspirações sociais se expressem e se desenvolvam. Uma realidade que lembra, obstinadamente, que a própria prosperidade da fase de expansão, com seus limites, foi em parte efeito das lutas sociais – pois, como mostrou o historiador britânico Edward Palmer Thompson (1987, vol. 1, prefácio), a classe (operária) existe porque luta, e não o inverso.
  • 4
    O economista austríaco Friedrich August von Hayek [1899-1992], ganhador do Nobel de Economia em 1974, é a fonte de inspiração das reformas de Tatcher e Reagan. Para Hayek, a ordem espontânea do mercado, que garante a liberdade, não deve ser perturbada em nenhum caso, notadamente por políticas de redistribuição que ajudem os desfavorecidos, tentando corrigir os efeitos julgados nefastos do mercado pela redistribuição das riquezas. Ele condena absolutamente as políticas de intervenção do Estado, por suporem uma idéia de bem social e justiça predeterminada. Para ele, o princípio da política é a liberdade, e não a felicidade, o bem comum ou a justiça. A liberdade, cujos princípios são a liberdade de consciência, de reunião, o direito à propriedade etc., pode ser objeto de acordo de todos e não exige nenhuma visão comum do bem ou da justiça. A crença na justiça social é apenas uma superstição ou uma nostalgia da sociedade tribal (o socialismo seria a
    reafirmação da ética tribal, e conduz ao totalitarismo). Toda justiça social, ligada a categorias particulares, é discriminatória e se opõe à liberdade. Assim, há uma incompatibilidade radical entre justiça social e liberdade (mercado). A única justiça (liberal) é relativa às transações: é justa a conduta dos jogadores, e não o resultado.
  • 5
    Conforme Rajchman (2000,
    passim), essa imagem do pensamento pode ser definida pelo termo
    smartness – por competências ou habilidades que se podem testar para apreender sua realização. A
    smartness concerne menos ao mecânico do que ao cognitivo, e se insere de modo diverso no trabalho e na economia. O mundo da informação nos levaria a crer que são nossos poderes cognitivos que importam, com a
    smartness chegando a nos definir. A
    smartness pertenceria ao cérebro mais performático, o que convém com a economia da competência e não da produção (como o behaviorismo correspondia à sociedade produtivista e à disciplina taylorista, o cognitivismo associa ao novo tipo de sociedade técnica uma espécie de darwinismo do cognitivo). Se a cada tipo de sociedade podemos fazer corresponder um tipo de máquina – simples e dinâmicas (sociedades de soberania), energéticas (disciplinar), cibernéticas e computacionais (controle) –, entramos na era das máquinas
    smart, e não mecânicas ou energéticas. E as tecnologias, em vez de simples próteses, contribuem para determinar os campos do possível nos quais nos tornamos o que somos. O que conta são os tipos de agenciamento nos quais as unidades informáticas se inserem, com suas pressões e modos de subjetivação, seus campos de possível. É por aí que a informação se torna mais do que um simples bem a que se tem acesso, ou que se manipula com maior ou menor competência – pois é um tipo de poder, uma forma de criar riqueza (e miséria e desemprego), também sendo marca de uma elite global, um novo objeto de fantasia com suas regulamentações estatais e novas classes de especialistas –, com uma nova geopolítica atravessando as zonas centrais e periféricas. Processos que precisam ser avaliados em sua especificidade, com as partilhas, os antagonismos e os afetos que engendram. Pois não sabemos o que pode um cérebro, mesmo quando acoplado a uma máquina
    smart em um dado agenciamento. E no que concerne à resistência, não se trata de liberar o espírito do mecânico, mas o cérebro da
    smartness, restituindo-lhe um campo vital e prático anterior à oposição natureza/artifício.
  • 6
    A fórmula "economia do conhecimento" (e a equivalente "sociedade do conhecimento") tende a neutralizar as tensões, antagonismos e contradições resultantes do modelo de desenvolvimento em curso, esvaziando a dimensão capitalista do processo e propondo uma imagem positivista da ciência e da tecnologia, que aparecem desvinculadas da história material e dos conflitos sociais. A opção pela fórmula "capitalismo cognitivo" segue a orientação das pesquisas efetuadas por Antonella Corsani, Enzo Rullani, Maurizio Lazzarato, Paolo Virno, Antonio Negri, Carlo Vercellone, Giuseppe Cocco, Philippe Zarifian e muitos outros – economistas, cientistas políticos, sociólogos e filósofos reunidos em torno das revistas
    Futur Antèrieur,
    Multitudes,
    Global etc., com ênfase na historicidade das economias e nos conflitos de poder e saber.
  • 7
    Guattari (1987) já chamava a atenção para o fato de que os conteúdos da subjetividade dependem cada vez mais de uma multidão de sistemas maquínicos (informacionais, comunicacionais, técnicos, biológicos, semióticos e lógicos).
  • 8
    Gorz (2003, p. 38) reitera essa afirmação, ao dizer que a sociedade cognitiva é uma sociedade comunista.
  • 9
    Disponível em: <
  • 10
    Os contra-sensos em torno da pós-modernidade parecem derivar, em grande parte, de abordagens que privilegiam descrições dos registros epistemológico (fim das grandes narrativas; fim da filosofia; fim da história), moral (após o fim da revolução, a ética da comunicação), social (estetização e espetacularização como fim da política) etc., justo por esvaziá-los de sua materialidade. A mutação do capitalismo nos anos de 1970/1980; dissolução da experiência socialista; a metástase psíquica do sujeito moderno; as alterações profundas nas bases sociais, econômicas, políticas e subjetivas são eventos do quais muitos parecem perceber apenas a sombra (o fim), em vez do que se afirma neles.
  • 11
    Marx utiliza o termo subsunção ou submissão (
    Unterwerfung) ou subordinação (
    Uterordnung) para qualificar o modo de sujeição do processo de trabalho pelo capital. A noção detém um caráter analítico e histórico ao mesmo tempo. Ela só ganha sentido quando especificada na oposição entre subsunção formal e subsunção real (do trabalho sob o capital), consideradas como "as duas fases históricas do desenvolvimento econômico da produção capitalista". A subsunção formal recobre essencialmente o que o capital nomeia como manufatura, os primeiros passos do modo de produção capitalista, período histórico que começa com o trabalho domiciliar para o mercador capitalista e se encerra na passagem à grande indústria, a "revolução industrial", isto é, a subsunção real ou "modo de produção especificamente capitalista". A subsunção real é o modo de produção capitalista plenamente desenvolvido, no qual as relações entre as pessoas se dissolvem em benefício das relações entre coisas, de relações entre relações: é o reino da lei (do valor), "independentemente da vontade do capitalista" (Bensussan & Labica, 1999, p. 1102-1103).
  • 12
    Em seu livro sobre a trajetória de Joseph Jacotot, revolucionário francês exilado nos Países Baixos quando da restauração monárquica, que defendia a tese da igualdade das inteligências e de que em cada manifestação intelectual há o todo da inteligência humana. Daí o nome de sua filosofia:
    panecástica. Jacotot vive o momento em que o adágio "acabar a revolução" significa conciliar progresso e ordem, função que caberá, entre outras instituições, à escola. O tema da igualdade como princípio, e não como resultado, é recorrente em Rancière.
  • 13
    Karl Marx levou nove meses, entre 1857/1958, para concluir o manuscrito dos
    Grundrisse der Kritik der Politischen Okonomie (Elementos para a crítica da economia política). O qual só seria publicado em 1939, na União Soviética, de onde poucos exemplares saíram. Caberia a Roman Rosdolsky, exilado nos EUA após sobreviver aos campos de concentração alemães, encontrar a edição soviética por acaso, em 1948 (a edição alemã é de 1953, da Dietz Verlag, Berlim). Rosdolsky escreverá a obra
    Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, editada em 1967 (cf. Rosdolsky, 2001). McLellan (1971) e Negri (1979) consideram os
    Grundrisse o projeto inconcluso de uma obra da qual
    O Capital seria apenas a parte inicial. A leitura dos
    Grundrisse serve como exercício de "correção do intelecto" economicista e historicista atuante em muitas interpretações de Marx – e que contribuíram para que ele se convertesse em "ideologia legitimadora da auto-afirmação da periferia retardatária na concorrência com os centros estabelecidos do capital", como nota Kurz (2000). Enfim, as passagens aqui citadas dos
    Grundrisse fornecem a base teórica e metodológica para as análises sobre o capitalismo cognitivo (cf. nota 6) e foram traduzidas da edição de Martin Nicolaus.
  • 14
    Corsani (2003) afirma que a hipótese do capitalismo cognitivo só ganha sentido no interior dessa dupla especificidade: a do conhecimento e a do sujeito (coletivo) que o produz. A relação homem/máquina, a evolução dessa relação envolve e determina as formas de cooperação. A máquina especializada, sua função e seu uso são predeterminados segundo a natureza dos conhecimentos que incorpora. Diante dessa máquina, o trabalho, separado do conhecimento, esvazia-se de qualquer especificidade singular. A máquina cristaliza saber; como trabalho morto, se impõe ao trabalho vivo. As novas tecnologias de informação e comunicação constituem
    uma verdadeira ruptura na história das técnicas, por dissociarem a máquina e seu programa. Essa maleabilidade dos instrumentos, cujo uso transforma o programa de funcionamento, abre a perspectiva de uma reviravolta na relação homem/máquina: a
    metamáquina não tem função predeterminada.
  • 15
    Outro fator estrutural dessa nova divisão do trabalho se manifesta no reforço dos direitos de propriedade intelectual, as patentes sobre organismos vivos, a biopirataria dos saberes tradicionais. Essa política de constituição artificial de rendas de posição é justificada com o argumento de que, nos setores com forte intensidade em saber, o essencial do custo é fixo e se encontra nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento das empresas. Sendo bastante reduzido ou quase nulo o custo marginal de reprodução desses bens e serviços intensivos em conhecimento, eles poderiam ser cedidos gratuitamente. Por isso a ampliação dos direitos de propriedade intelectual seria a condição essencial da inovação, permitindo às firmas amortecer seus custos em pesquisa e desenvolvimento. Essa defesa teórica do
    copyright acaba justificando a exclusão do sul do acesso à nova divisão cognitiva do trabalho.
  • 16
    Acrescente-se a agiotagem internacional ao processo, no caso dos países periféricos, conforme notícia de
    O Estado de S. Paulo, em 25 de maio de 1999. "Reconhecida influência do BIRD no ensino da América Latina": "A existência de uma política educacional única para a América Latina, a partir dos projetos financiados pelo Banco Mundial (BIRD), foi reconhecida no Seminário Jornalismo e Educação promovido pela Unesco. 'Não nego a influência do Banco Mundial em relação a diferentes estratégias educacionais dos governos latino-americanos' afirmou a
    O Estado Sandra Celsini, coordenadora do BIRD para a Argentina, Chile e Uruguai. [...] Estudo da Universidade de Brasília mostrou que os empréstimos do BIRD ao Brasil, no fim da década de 1980 e início dos anos 1990, foram 'excelente negócio' para o banco. Os juros cobrados eram mais altos que os de mercado, realidade não contestada por Sandra Celsini. 'Outros bancos não emprestam dinheiro para os fins que emprestamos', afirmou. 'Nesse aspecto, nossos juros são até baratos'. Sandra fez a ressalva de que o Banco adequa as taxas de juro à capacidade de pagamento dos países pobres. Mas não deixou de lembrar que os países 'com recursos suficientes' para pagar os juros normais dos empréstimos do BIRD 'devem fazê-lo'".
  • 17
    A fórmula é machadiana.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2004
    • Recebido
      Out 2003
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