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Tecnologias e novas educações

Technologies and new educations

Tecnologías y nuevas educaciones

Resumos

O artigo analisa a sociedade contemporânea, a partir das transformações do mundo científico, tecnológico, cultural, social e educacional, com o objetivo de fazer uma crítica a este. Considera importante a re-aproximação entre a cultura e a educação, entendidas no plural, e destas com as tecnologias da informação e comunicação (TIC). Aborda os avanços das TIC e os movimentos de concentração na propriedade dos meios de comunicação de massa, faz a sua crítica, e apresenta as propostas em andamento na Faculdade de Educação da UFBA para a formação de professores, considerando a necessidade de se repensar o sistema educacional, principalmente no que diz respeito às questões curriculares. Destaca a importância do movimento do software livre, enquanto portador de filosofia centrada na cooperação e no trabalho coletivo, ressaltando a importância desse movimento para a educação.

tecnologia educacional; educação e comunicação; informática educativa; Internet; tecnologias da informação e comunicação (TIC); software livre


This article analyses contemporary society considering the transformations that have taken place in the realms of science, culture and education. It is considered important to bring culture and education back together and incorporate information and communication technologies (ICT) into them. We examine the progress of ICT as well as the movement towards the monopolisation of the mass media and present work being carried out in the Faculty of Education at UFBA in training teachers. We consider it necessary to rethink the educational system, curricular issues in particular. We highlight the importance of the open source movement as promoting a philosophy based on co-operation and collective work and therefore of great importance to education.

teaching technology; education and communication; computer education; Internet; information and communication technology (ICT); open source software


El artículo analiza la sociedad contemporánea, a partir de las transformaciones del mundo científico, tecnológico, cultural, social y educativo, con el objetivo de hacer una crítica a este. Considera importante la reaproximación entre la cultura y la educación, entendidas en el plural, y de éstas con las tecnologías de la información y comunicación (TIC). Aborda los progresos de las TICs y los movimientos de concentración en la propiedad de los medios de comunicación de masa, hace su crítica, y presenta las propuestas en estudio en la Facultad de Educación de UFBA, para la formación de profesores, considerando la necesidad de repensar en el sistema educacional, principalmente lo referente a las cuestiones curriculares. Destaca la importancia del movimiento del sofware libre, en cuanto portador de filosofía, centrada en la cooperación y en el trabajo colectivo, mostrando lo importante que es este movimiento para la educación.

tecnología educacional; educación y comunicación; informática educativa; Internet; tecnologías de la información y comunicación (TIC); sofware libre


ARTIGOS

Tecnologias e novas educações* * Este texto foi construído como parte da pesquisa que o Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias vem desenvolvendo ao longo dos anos e, especificamente, como parte da pesquisa "Políticas públicas brasileiras em educação e tecnologia da informação e comunicação", apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especial agradecimento a Mary Arapiraca, pelas preciosas contribuições para a versão final.

Technologies and new educations

Tecnologías y nuevas educaciones

Nelson Pretto; Cláudio da Costa Pinto** ** Este artigo, concluído recentemente, começou a ser produzido em parceria com Cláudio da Costa Pinto, doutorando da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que nos deixou, com saudades. Tínhamos o hábito de trocar idéias, textos e imagens pela Internet, com a intenção de produzir artigos. Conclui o texto, infelizmente sem ele.

Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação

RESUMO

O artigo analisa a sociedade contemporânea, a partir das transformações do mundo científico, tecnológico, cultural, social e educacional, com o objetivo de fazer uma crítica a este. Considera importante a re-aproximação entre a cultura e a educação, entendidas no plural, e destas com as tecnologias da informação e comunicação (TIC). Aborda os avanços das TIC e os movimentos de concentração na propriedade dos meios de comunicação de massa, faz a sua crítica, e apresenta as propostas em andamento na Faculdade de Educação da UFBA para a formação de professores, considerando a necessidade de se repensar o sistema educacional, principalmente no que diz respeito às questões curriculares. Destaca a importância do movimento do software livre, enquanto portador de filosofia centrada na cooperação e no trabalho coletivo, ressaltando a importância desse movimento para a educação.

Palavras-chave: tecnologia educacional; educação e comunicação; informática educativa; Internet; tecnologias da informação e comunicação (TIC); software livre.

ABSTRACT

This article analyses contemporary society considering the transformations that have taken place in the realms of science, culture and education. It is considered important to bring culture and education back together and incorporate information and communication technologies (ICT) into them. We examine the progress of ICT as well as the movement towards the monopolisation of the mass media and present work being carried out in the Faculty of Education at UFBA in training teachers. We consider it necessary to rethink the educational system, curricular issues in particular. We highlight the importance of the open source movement as promoting a philosophy based on co-operation and collective work and therefore of great importance to education.

Key-words: teaching technology; education and communication; computer education; Internet; information and communication technology (ICT); open source software

RESUMENS

El artículo analiza la sociedad contemporánea, a partir de las transformaciones del mundo científico, tecnológico, cultural, social y educativo, con el objetivo de hacer una crítica a este. Considera importante la reaproximación entre la cultura y la educación, entendidas en el plural, y de éstas con las tecnologías de la información y comunicación (TIC). Aborda los progresos de las TICs y los movimientos de concentración en la propiedad de los medios de comunicación de masa, hace su crítica, y presenta las propuestas en estudio en la Facultad de Educación de UFBA, para la formación de profesores, considerando la necesidad de repensar en el sistema educacional, principalmente lo referente a las cuestiones curriculares. Destaca la importancia del movimiento del sofware libre, en cuanto portador de filosofía, centrada en la cooperación y en el trabajo colectivo, mostrando lo importante que es este movimiento para la educación.

Palabras claves: tecnología educacional; educación y comunicación; informática educativa; Internet; tecnologías de la información y comunicación (TIC); sofware libre

O momento histórico contemporâneo é especial, porque vivemos uma era de profundas transformações em todas as áreas do conhecimento, da cultura e da vida social. Os ataques terroristas às torres gêmeas nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, foram marcantes em todo o planeta, e introduziram um divisor de águas nas discussões sobre o mundo contemporâneo. Mais do que nunca, questões éticas, políticas e sociais tornam-se presentes, necessitando outros enfoques de análise.

Desde a metade do século passado, as teorias vigentes vêm sendo postas em questão e a ciência vive um momento de grande ebulição, experimentando um movimento de transformação, na busca de novos paradigmas (será que ainda podemos falar em paradigmas?) que possibilitem explicar os fenômenos naturais e sociais de maneira mais ampla. As formas de organização da sociedade também foram mudando. Desde o êxodo dos judeus do Egito, empreitadas, empresas, guerras e a maioria das atividades humanas vêm sendo organizadas do modo hierárquico, vertical e de comando, geralmente representadas pelo organograma (Chiavenatto, 1999). Os princípios desse modelo, que aqui chamaremos de organização vertical de comando, estão impregnados na sociedade: as mães apelam para os pais ("–Quando o seu pai chegar..."); os vizinhos em litígio, para o síndico; os motoristas, para os guardas, e assim por diante, envolvendo-se sempre uma instância mediadora superior.

Os processos decorrentes da chamada globalização estimularam o desenvolvimento de uma forma alternativa de organização, caracterizada pela distribuição (do planejamento, da produção, das vendas) com uma pseudo-horizontalização de parte significativa do processo decisório. Agora não localizamos facilmente uma pessoa no topo do organograma. Passamos a referirmo-nos às empresas multinacionais, ao sistema financeiro – que passou a ser internacional –, ao comércio, aos serviços, sempre numa perspectiva planetária, e a própria produção de conhecimento parece estar seguindo esse modelo que poderíamos denominar de organização horizontal em rede. Um dos exemplos mais lembrados na nossa história recente sobre esse modo de organização veio do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, durante a guerra fria, que, ao solicitar à Advanced Research Projects Agency (ARPA) uma rede de computadores capaz de continuar funcionando na ausência de um nó ou quebra de uma conexão, deu origem, em 1969, à rede Internet (ISOC, 2000), que se constitui na chamada rede das redes. Há muitos exageros sobre a importância e o poderio da Internet, mas vale salientar que ela é posterior à invenção da organização social em redes, que, essencialmente, não depende dos aparatos telemáticos para se constituir, uma vez que se organiza através de outros códigos, como é o caso do tráfico nos morros do Rio de Janeiro e de muitos outros exemplos (Castells, 1999).

No entanto, as redes de computador podem oferecer suporte propício para que essa organização horizontal funcione de forma mais ampla envolvendo recursos distribuídos em regiões muito extensas, como a totalidade do planeta, e um grande número de pessoas, a exemplo dos projetos Genoma e GNU, este último buscando o desenvolvimento de sistemas em softwares não-proprietários.

Quando a Internet alastrou-se no mundo como um ambiente de comunicação confiável, ponto a ponto, bilateral e acessível até mesmo para indivíduos, a partir das suas residências, estabeleceu-se um ambiente global muito mais favorável às organizações em rede do que para as organizações verticais de comando, implicando, claro está, que, para a sua viabilização, precisamos considerar a democratização do acesso à Internet como peça-chave para que a população possa ter a possibilidade de organizar-se de modo horizontal. Nesse sentido, são de fundamental importância políticas públicas que garantam esse acesso, entendendo-o como urgente, o que implica pensarmos em soluções coletivas e públicas, e não apenas no acesso individualizado nas residências.

Os dados sobre a penetração da Internet no Brasil e no mundo são suficientemente divulgados para que gastemos tempo e espaço reproduzindo-os. Mesmo assim, alguns merecem ser analisados. Por um lado, percebe-se um crescimento acelerado no número de internautas e, mesmo sabendo que em 2001 o Brasil possuía apenas 23 milhões de conectados (menos de 19% da população), pode-se perceber um aumento de conexão daqueles que estão nas classes socioeconomicamente menos favorecidas (C, D e E), conforme dados de pesquisa realizada pelo Datafolha em parceria com a Folha Online e com o iBest.1 1 Segundo o Datafolha, a pesquisa foi realizada nos dias 23, 24 e 27 de agosto de 2001. Foram ouvidas 11.201 pessoas, com mais de 14 anos, de 137 municípios do país. A margem de erro do levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou para menos, dentro de um intervalo de confiança de 95%. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/2001 -ibrands-pesquisa.shtml>. Acesso em: 20 jun. 2003. Desse total, segundo a pesquisa, 9,5 milhões conectavam-se de suas casas, 8,3 milhões acessavam a web a partir do trabalho, outros 9,5 milhões acessavam a rede na casa de parentes, e 3,5 milhões ficavam on-line nas escolas ou universidades.

No entanto, apesar desses dados indicarem um crescimento do acesso e, principalmente, um aumento da presença dessas classes na Internet, ainda percebemos a manutenção de uma lógica que privilegia aqueloutros sempre favorecidos pelo sistema econômico. Na distribuição por regiões, o que se observa da pesquisa é que o Sul do país é a região que mais acessa a rede, com 24% de pessoas on-line, seguido do Sudeste (23%), Norte e Centro-Oeste (17%) e, finalmente, do Nordeste, com 10% (Folha de S.Paulo, 2001).

A ampliação do acesso às classes C, D e E é atribuída muitas vezes à implantação de telecentros e infocentros, além da conexão de escolas públicas à rede. Nesse caso, os números indicam 35% das escolas do ensino médio e 6,7% do ensino fundamental já conectadas. Parece um quadro animador se não estivéssemos falando em médias, porque, no fundo, ainda vemos uma forte tendência à exclusão – agora, à exclusão digital –, que reforça, mais uma vez, uma situação de privilégios. No ensino fundamental, dos 35 milhões de alunos, somente seis milhões teriam, em tese, acesso à Internet. No ensino médio, dos 8,1 milhões de alunos, cerca de três milhões estão em escolas conectadas (Folha de S.Paulo, 2001), sabedores que somos de que, ao falarmos em escola conectada, podemos estar a nos referir a um computador que partilha a linha telefônica de uso administrativo da escola.

De outra parte, mas que não vamos tratar neste texto, acompanhamos um movimento intenso de concentração na propriedade dos meios de comunicação de massa, estando o Brasil seguindo uma tendência mundial em termos de concentração de grupos que comandam a produção simbólica mundial. No Brasil, apenas seis redes nacionais de televisão (Globo, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e CNT) controlam 667 veículos do país: 309 canais de televisão, 308 canais de rádio e 50 jornais diários, segundo o Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação.2 2 O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação estava vinculado ao projeto AcessoCom, dirigido pelo jornalista Daniel Hertz, que teve suas atividades encerradas em 2003 por problemas financeiros. Os dados aqui apresentados foram divulgados pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para a promoção da Jornada pela Democratização da Mídia, promovida pela ABI em 2003. Disponível em: < http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=130>. Acesso em: 20 jun. 2004. Instala-se um sistema de comunicação broadcasting, com produtos, culturas e informações sendo produzidos de forma centralizada e distribuídos país afora. Essa concentração possibilita o estabelecimento de uma pseudoligação entre as pessoas de todo o mundo, atingindo praticamente toda a extensão do território brasileiro, já que todos, na mesma hora, são receptores das mesmas imagens e informações.

Mesmo sendo apenas receptor, o cidadão comum vive a sensação de estar integrado a todo o planeta, tão-somente porque sabe o que está acontecendo longe de seu próprio contexto de vida local.

Preocupa-nos, claro, o processo de unificação, associação, megafusões entre as diversas empresas de comunicação que já são dominantes nesta área, e que, além disso, ampliam os seus tentáculos para diversos outros ramos não tradicionalmente associados à mídia, abrigando, agora, emissoras de rádio, televisões, produção de revistas, jornais, livros, gráficas, multimídia, cinema, Internet, telecomunicações, música, parques temáticos, e mesmo instituições financeiras (Pretto, 2000, p. 30).

Esse movimento de concentração e distribuição de imagens e informações tem introduzido em nosso cotidiano uma perspectiva consumidora de ser, com reflexos em praticamente todos os setores, inclusive na educação e na cultura, trazendo para essas duas áreas uma perspectiva individualista de atuação social. As pessoas não estão acostumadas a atuar de forma colaborativa, e ainda impera a lógica da hierarquia vertical, com delegação plena de poderes a representantes. Recorre-se sistematicamente à mediação da instância superior e, em instâncias como a da política, observa-se indiferença em relação às decisões e a seus efeitos sociais.

Os movimentos associados ao que está sendo denominado de ciberespaço têm trazido para a cena contemporânea algumas novas reflexões sobre as possibilidades de superação dessas perspectivas, com estudos que apontam para novas possibilidades de utilização de métodos, estruturas e estratégias de cooperação na Internet, à luz das ferramentas disponíveis para o desenvolvimento de aplicações para a rede. Particularmente, têm-se destacado nessa questão os movimentos voltados para adoção de softwares não-proprietários, conhecidos mais fortemente a partir do crescimento do movimento GNU/Linux em todo o mundo. Para a educação, libertar-se dos softwares proprietários é um grande desafio, uma vez que a possibilidade de independência no acesso aos códigos-fontes está intimamente associada às inúmeras possibilidades de independência de fornecedores centralizados que dominam o mercado, possibilitando a ampliação de uma rede de produção colaborativa, dimensão fundamental para a educação. Ainda voltaremos a isso mais adiante, mas já podemos adiantar que devem estar merecendo especial atenção nossa os sistemas de produção colaborativa que hoje ocupam grande espaço no movimento do software livre mundial, denominados wikis, que possibilitam a publicação de páginas na web, estando sua edição aberta para todos os usuários. Os termos wiki e wikiwiki, que em havaiano significam rápido e rapidinho, foram adotados nesse tipo de software e ferramenta exatamente porque possibilitam que, onde quer que esteja, o usuário possa editar o conteúdo da página que está lendo e, com isso, acrescentar a sua contribuição à mesma. Uma das maiores experiências no wiki é a Wikipédia, criada em 2001 na Flórida (Estados Unidos) e que hoje já está traduzida para cerca de 80 idiomas.3 3 Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Wiki>. Acesso em: 21 set. 2004. Para conhecer melhor o sistema, visite o sítio < http://www.wiki.org> ou < http://twiki.im.ufba.br>.

Por agora, acreditamos ser importante retomar a idéia de que, mesmo com todas essas possibilidades, percebemos que o processo de informatização da sociedade, fortemente articulado com todos os sistemas midiáticos de comunicação, não se estabelece per se, como se fosse apenas mais uma atualização dos meios tradicionais de comunicação, de envio e recebimento de dados, informações e imagens. Tais sistemas constituem-se em elementos estruturantes (Pretto, 1996) de uma nova forma de ser, pensar e viver. A dimensão estruturante das tecnologias da informação, que Pierre Lévy (1993) denomina de tecnologias coletivas ou tecnologias da inteligência, tem mexido muito com todos nós, especialmente os educadores. Isso porque essas tecnologias, antes entendidas como meras extensões dos sentidos do homem, hoje são compreendidas como algo muito mais profundo, que interfere com o próprio sentido da existência humana. A relação homem-máquina torna-se uma relação fundada em outros parâmetros, não mais de dependência ou subordinação, mas uma relação que implica o aprendizado dos significados e significantes inerentes a cada um, e também o imbricamento desses elementos. Isso significa um encadeamento do homem e da máquina, que, segundo Marcondes Filho (1994), tem a ver com o momento da superação da razão (da ciência e do progresso) pela imaginação e pelos meios de comunicação e informação. Poderíamos pensar na maquinização do ser humano, como também na humanização das máquinas. Acompanhamos um aumento significativo de pessoas com próteses artificiais que tanto modificam seus corpos quanto suas possibilidades de atuação na sociedade. Edvaldo Couto (2000), no interessante O homem satélite: estética e mutações do corpo na sociedade tecnológica, traz essa discussão para o nosso cotidiano e analisa a presença dos cyborgs, que passam a ocupar espaços na sociedade contemporânea. Pode parecer que não falamos de nós mesmos, que não estamos imersos nesse mundo de tecnologias inteligentes (algumas, nem tanto, é bem verdade!4 4 Nada mais irritante, por exemplo, do que a maquinização das pessoas nos chamados call centers, que hoje ocupam um tempo considerável do nosso cotidiano sofrido de consumidores para a resolução de problemas que antes não tínhamos... ), rodeados de aparatos tecnológicos que acabam determinando o nosso comportamento cotidiano. No entanto, se olharmos em volta, percebemos, entre tantas outras coisas, que vivemos controlados por câmeras de vigilância em todos os lugares. "Sorria, você está sendo filmado", é o jeito irônico, quem sabe cínico, de imposição desse processo de vigilância permanente. Nossos corpos estão sendo guardados, registrados, para controles posteriores ou- não-quem saberá-em dezenas de bancos de dados informacionais.

Pessoas com próteses implantadas, com suas extensões ampliadas e seus sentidos exacerbados, vivendo plenamente a cultura "super ciber", como afirma Couto (2000). Seres hibridizados, mas não só eles, começam a perceber a possibilidade de uma ampliação das comunicações por sistemas telemáticos, que se utilizam de modernas e velozes redes de cabos e de transmissão de dados. Obviamente, quando falamos nessa ampliação, mais uma vez estamo-nos a referir a condições potenciais. Exatamente por isso não podemos continuar a imaginar que a implantação desses modernos e velozes complexos de comunicação digital se dará com a função única de transmitir dados dos grandes centros para as periferias de menor valor, que nada teriam a contribuir para a construção planetária. Voltamos, mais uma vez, ao ponto central deste nosso trabalho: a necessidade de deslocar o centro de produção de culturas e conhecimentos do centro!

Não podemos continuar a pensar que as redes se instalam sobre espaços vazios. Ao contrário, afirma Leila Dias, "as redes se instalam sobre uma realidade complexa, e não em espaços virgens" (1995, p. 148).

Isso significa que não podemos nos contentar com simples apropriações dessas tecnologias, como se elas fossem, por si sós, capazes de reverter situações. É por isso que precisamos enxergar que, com essas potencialidades, pululam elementos que, longe de serem unificadores, constituem-se em diferenciadores dos seres e de suas culturas, passando a pólos geradores de novas articulações. A inteligência coletiva, como afirma Lévy (1993), passa a ser o elemento mais significativo a ser perseguido.

A educação em crise

Pode-se afirmar que a educação, hoje em dia, deve, idealmente, preparar as pessoas para a vida, cidadania e trabalho. Mas, em realidade, o que isso vem a ser? A que trabalho, cidadania e vida estamos a nos referir? Necessário faz-se pensarmos um pouco mais sobre o contexto social, que é permanentemente modificado e modifica simultaneamente os diversos vetores que incidem sobre a sociedade, dentre os quais podemos destacar:

a) a obsolescência das competências pessoais e profissionais repetindo-se mais de uma vez ao longo da vida de uma pessoa (Lévy, 1999);

b) as novas formas de organização do trabalho e da produção baseadas em equipes e na geração de conhecimento (Drucker, 1999);

c) o avanço na automação da produção;

d) as novas relações sociais com o saber, desenvolvidas no ciberespaço (Lévy, 1999);

e) as novas tecnologias da inteligência e a inteligência coletiva (idem);

f) as competências estratégicas da era da informação (Castells, 1999).

A obsolescência das chamadas competências, repetidas mais de uma vez, possivelmente muitas vezes, durante cada vida profissional, é uma experiência nova para humanidade. Decorre da velocidade com que o avanço tecnológico interfere diretamente na vida e no trabalho de todos. Há 15 anos, eram poucos os usuários de celulares, e somente parte da comunidade acadêmica tinha acesso à Internet – que, aliás, era outra, pois ainda não havia sido implantada a web! Hoje, pode-se conectar à Internet a partir dos celulares, algo impensável até bem pouco. As demandas do mercado profissional induzem-nos a uma requalificação permanente para nos manter ativos em estado permanente de aprendizado! –, particularmente num mundo no qual impera o desemprego. Além da atualização permanente e quase personalizada, cada indivíduo precisa estar orientado para a demanda, que é também mutante. As proposições menos apocalípticas para os próximos vinte ou trinta anos prevêem arranjos flexíveis de trabalho (Laubacher & Malone, 1997), e as mais radicais, o fim do trabalho como o conhecemos hoje, atribuindo à educação o papel de suprir o sentido para a vida, a exemplo do que, em grande parte, se obtém hoje da realização no trabalho (Schaff, 1995). Para os que conservam os seus empregos, mudanças relevantes entraram em cena a partir da década de 1980, quando o trabalho organizado por equipes (toyotismo) se impõe diante da secular ênfase no cargo e na estrutura linear da esteira (taylorismo+fordismo). Trabalhadores desqualificados pouco têm a fazer no toyotismo: de um lado, são substituídos pelo computador e por robôs; de outro, não podem contribuir para a produção de equipes razoavelmente autônomas, que precisam muito aprender para dar conta do resultado mais esperado da sua produção: a geração de conhecimento. Combinando-se obsolescência com personalização e, agora, a geração de conhecimento no local de trabalho, temos o aprendizado permanente, interesses profissionais mais amplos e um desafio: aprender e produzir ao mesmo tempo e sem sair do local, já que o aprendizado é contínuo.

A palavra local ganha especial dimensão por inúmeras razões, das quais destacamos o fato de que, desde a década de 1990, com a intensificação do uso da Internet, o trabalho potencialmente passou a ser remoto, de casa, e por rede, sendo elemento definidor de novos mercados. Associado a isso, passamos a assumir diversas outras funções, que antes demandavam um posto de trabalho especifico. Somos hoje, ao longo do dia, caixas de bancos, operadores de seguros, vendedores e compradores de produtos, simultaneamente, operadores de bolsas, entre tantos outros. Na web, trabalhar e estudar são atividades que podem ser realizadas em qualquer lugar. Para o professor, com os contratos de trabalhos mantidos inalterados, foram acrescidas tarefas e funções antes não pensadas. Construímos home pages e respondemos a e-mails pela manhã, à tarde e, principalmente, à noite. Temos que operar computadores, televisões e vídeos o tempo todo!

Paralelamente, desde 1980, os computadores pessoais e o desenvolvimento de técnicas computacionais, como a simulação e os jogos, definem novos significados para o computador: de agente da automação da burocracia e controlador de processos, surge o computador como extensão das capacidades cognitivas humanas, beneficiando o pensar, o criar e o memorizar. Essas tecnologias passam a operar, portanto, em uma dimensão diferente das antigas, de extensão dos sentidos do homem, passando a operar com as idéias. Em outras palavras, máquinas que não mais estão apenas (apenas?!) a serviço do homem, mas que com ele interagem, formando um conjunto homem-máquina pleno de significado.

Isso tudo possibilita a socialização dessas capacidades, dando origem à inteligência coletiva, encarnada em um novo lugar, o ciberespaço (Lévy, 1999). Durante os anos de 1980, os da "era acadêmica" da Internet, estabeleceu-se uma nova forma de aprendizado que resultou na proposição de novas relações sociais com o saber, favorecendo percursos bastante personalizados, mas construídos, em larga medida, através da socialização e da colaboração. Era o início da experiência de uma potencial troca permanente. Formaram-se novas "tribos" e abriu-se, ao mesmo tempo, espaço fecundo para as relações plurais e, em todos os aspectos, multirreferenciais. A escola, e voltamos aqui a falar dela, passa a ter que conviver com uma meninada que se articula nas diversas tribos, que opera com lógicas temporais diferenciadas, uma juventude que denominamos, em outros textos, de geração alt+tab,5 5 Alt+tab é a combinação de teclas (atalho) em um computador que possibilita ao usuário abrir diversas janelas em diversos sítios ou programas e passar de uma para outra de forma muito rápida. uma geração de processamentos simultâneos...

Obviamente, intensifica-se dessa forma o trabalho do professor, já que a escola e todo o sistema educacional passam a funcionar com outros tempos e em múltiplos espaços, diferenciados. Não deixa de ser, no entanto, esse um rico momento para repensarmos as políticas educacionais na perspectiva de resgatar a dignidade do trabalho do professor, com a retomada de sua autonomia e, com isso, experimentar novas possibilidades com a presença de todos os novos elementos tecnológicos da informação e comunicação. A despeito disso, ainda estamos inseridos numa perspectiva monoculturista de educação.6 6 Alfredo Veiga-Neto (2003), em interessante artigo no número especial da Revista Brasileira de Educação que trata da relação das culturas, no plural, com a educação, analisa a questão da multiculturalidade, que nos é útil para a compreensão desta problemática. As tecnologias, a relação homem-máquina também impregnada de dimensões políticas e sociais, fazem com que o elemento característico mais importante do momento contemporâneo seja a sua não completude. Ser incompleto é, pois, uma das características peculiares do momento contemporâneo. A instabilidade como elemento fundante, no lugar da busca pela estabilidade, pelo equilíbrio. Isso gera, sem dúvida, uma demanda por novas educações, no plural.

O computador, a Internet e as novas educações

Fala-se muito sobre o potencial educacional das tecnologias da informação e comunicação. Alguns são apocalípticos, e outros, integrados (Eco, 1993), e os desafios para a área não são pequenos e não nos permitem escolhas maniqueístas tipo ou isto ou aquilo. Apesar disso, após quarenta anos de tentativas nessa área, os resultados estão muito aquém das expectativas, para não se falar em frustração. Segundo Holmes (1999), o problema não está no computador, mas nas imposições dos sistemas educacionais, fiéis a toda sorte de objetivos, nem sempre educacionais, e, muitas vezes, dedicados a concepções utilitárias da educação.

Com a explosão da Internet a partir de 1995, passou-se a poder compartilhar as capacidades cognitivas expandidas, aliadas a um poder de expressão sem precedentes, tanto em escala individual como em coletividade, reunindo um número grande de pessoas que antes só se articulavam como receptores ante os meios de comunicação por difusão (broadcasting systems) como jornais, rádio e TV. A população civil pode herdar uma construção do período acadêmico da rede: as práticas de aprendizado reconhecidas por Lévy (1999) como fundantes de novas relações sociais com o saber, uma comunidade de aprendizes autônomos, dedicados a percursos personalizados, mas praticantes sistemáticos da colaboração.

A rapidez com que a Internet se alastrou pelo mundo foi um fenômeno surpreendente para todos. Dados apresentados no Livro verde do Programa Sociedade da Informação no Brasil demonstram que o rádio levou 38 anos para atingir um público de 50 milhões de telespectadores nos Estados Unidos, enquanto o computador levou 16 anos, a televisão, 13 anos, e a Internet, em apenas quatro anos, atingiu a marca de 50 milhões de internautas (Takahashi, 2000).

Rapidamente se intensificaram as pesquisas sobre as inúmeras possibilidades para uso da rede na educação, merecendo destaque a euforia com que foram anunciadas as novas possibilidades de seu uso para a educação à distância (EAD), que seria a salvadora dos desafios de países que ainda lutam com a falta de universalização da educação básica, como é o caso do Brasil.

De um lado, algumas iniciativas aproveitam-se dos recursos de aplicação geral disponíveis na rede (e-mail, listas, fóruns, chats, home pages etc.) (Lemos et al., 1999). De outro, surgem diversos softwares gerenciadores de cursos on-line. Outros se aventuram na agregação dos recursos da rede ao dia-a-dia da sala de aula (Pinto & Teixeira, 2000), formando, em conjunto, uma ampla frente experimental que já começa a dar sinais de novas possibilidades. Na Faculdade de Educação da UFBA experimentamos a criação de novas possibilidades de acesso a partir do desenvolvimento dos tabuleiros digitais,7 7 A respeito dos tabuleiros digitais, consultar < http://www.tabuleirodigital.org> uma contribuição para a construção da chamada sociedade da informação, com o desenvolvimento de um móvel próprio, com forte marca de cultura local, para afastar do futuro professor formado nessa instituição a idéia de que essas tecnologias são coisas para e do futuro.

Paralelamente, além da perspectiva de formação de professores com base em projetos experimentais como o curso de extensão realizado com o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) da Bahia,8 8 < http://www.faced.ufba.br/cefet> implantamos o Programa de Licenciatura em Pedagogia para os municípios de Irecê 9 9 < http://www.faced.ufba.br/irece/> e Salvador,10 10 < http://www.faced.ufba.br/salvador> introduzindo uma outra perspectiva curricular que tem nas tecnologias da informação e comunicação (TIC) elemento fundante do processo.

Esse programa de formação em exercício tem como eixo articulador fundamental a "práxis pedagógica, como espaço-tempo no qual ocorrem as reflexões e as ações que dão sentido ao cotidiano de cada escola, ao trabalho de cada professor, que repercutem no processo de formação e produção de conhecimento desenvolvido pelo conjunto da comunidade escolar" (FACED, 2003b).

Para tanto, as atividades estão sendo desenvolvidas de forma síncrona e/ou assíncrona num ensino semipresencial, com uso intensivo e convergente das tecnologias da informação e comunicação que estão estruturando o programa. O objeto de estudo dos professores será o próprio processo educativo nos diversos espaços da prática social em que ele se processa, com indicadores compreendidos como elementos basilares da proposta. Esses indicadores foram aperfeiçoados ao longo do processo de construção dos dois subprojetos de formação de professores (Irecê e Salvador).

O projeto Irecê considera indicadores: processos horizontais, processos coletivos, centros instáveis, currículo hipertextual, participação efetiva, formação permanente e continuada, simultaneidade entre a escrita e a oralidade, cooperação e sincronicidade na aprendizagem, os quais a seguir descrevemos, com texto do próprio projeto:

Processos horizontais

A hierarquia e a verticalidade, próprias de uma certa cultura pedagógica, são incompatíveis com a lógica e as pedagogias introduzidas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação em virtude do seu funcionamento em rede. Teríamos o que podemos chamar de profundidade horizontal.

Processos coletivos

Sendo uma dinâmica de rede com a participação de todos, a produção é coletivizada.

Centros instáveis

Os processos têm uma centralidade instável. Conforme essa condição, ora o professor é o centro, ora o aluno, ora outro ator ou mesmo um elemento físico que possa ocupar o lugar central de um dado momento pedagógico.

Currículo hipertextual

Os sujeitos do conhecimento podem/devem construir seus percursos de aprendizagem em exercícios de interação com os outros atores do processo, com as máquinas e com os mais diversos textos.

Participação Efetiva

Todo sujeito, para vivenciar o processo pedagógico, é convocado a participar na/da rede, sendo impraticável um mero assistir.

Formação permanente e continuada

O movimento acelerado transforma a todo instante as relações que são estabelecidas no espaço/tempo. A contemporaneidade exige um processo contínuo de tratamento de informações e, simultaneamente, uma relação com a produção permanente de novos conhecimentos diante de realidades mutantes.

Simultaneidade entre a escrita e a oralidade

As dinâmicas comunicacionais em rede, mesmo com o uso da escrita, expressam-se com uma alta dimensão de oralidade. Não se entenda aqui como um puro e simples resgate da oralidade típica do período da pré-escrita, mas o desenvolvimento de uma oralidade contemporânea.

Cooperação

Para o sistema de rede funcionar, os participantes necessariamente são convocados a cooperar, contribuir com o processo de produção coletiva.

Sincronicidade na aprendizagem

É importante que sejam estabelecidas conexões laterais, e não apenas seqüenciais, ou seja, a presença de relações e de sentidos simultâneos. Na verdade, é o espaço sincrônico e o tempo espacializado. (FACED, 2003b)

O subprojeto Salvador considera os indicadores pontos de ancoragem que, enquanto na superfície, navegam junto com o coletivo, e quando baixados ajudam a aprofundar as reflexões. Os pontos são: atitude investigativa, diferença como fundante, compreensão planetária, postura solidária e processos cooperativos, autonomia com base na crítica reflexiva, processos horizontais: centros instáveis, leitura: uma prática inerente a todas as práticas e currículo hipertextual. Também com o texto do próprio projeto, descrevemos em detalhes esses pontos; por isso, perdão, leitor, pelo tamanho da citação.

Atitude Investigativa

O movimento acelerado da sociedade em função das transformações técnico-científicas modifica, a todo instante, as relações que são estabelecidas no espaço/tempo. As instituições educativo-formativas, na contemporaneidade, demandam um processo contínuo de tratamento das informações e, simultaneamente, uma relação com a produção permanente de novos conhecimentos diante de realidades mutantes.

A atitude investigativa traduz-se, no professor, por um modo de estar permanentemente atento às manifestações da dinâmica sociocultural e também das dinâmicas apreendidas com os indivíduos com os quais está em constante interação. O professor de atitude investigativa colocar-se-á diante de seus alunos na condição de poder ser sempre surpreendido e, como tal, sempre estimulado a desvendar facetas do processo educativo, social e cultural. Não haveria, portanto, ponto de chegada, no processo de conhecer, sendo cada momento de conhecimento um ponto novo de partida para uma nova investigação. Nesse entendimento, ele seria, ao mesmo tempo, ousado e humilde, ignorante e sábio. Colocar-se-á diante de seus alunos, também, disponível para investigar e compreender seus modos de ser e suas peculiares situações de vida.

Diferença como Fundante

Entende-se diferença como fundante como uma postura do professor tendente a conduzir sua ação no mundo para além dos parâmetros niveladores nos modos de pensar e interpretar os processos educativos, sociais e culturais. Dessa forma, o professor capaz de estimular a diferença, considerando-a como fundante do processo, estará pautando o seu fazer pedagógico pela busca incessante do que, em cada aluno, traduz o seu jeito singular de compreender, de estabelecer relações, de produzir respostas às demandas de natureza diversa que lhe são dirigidas, de inventar, enfim, soluções. Não haveria, portanto, condições de prever formas de intervenção pedagógica que não fossem a expressão firme do reconhecimento de que cada aluno faz seu caminho de aprendizagem percorrendo as vias singulares do modo através do qual constitui sua subjetividade, nas dinâmicas intersubjetivas.

Compreensão Planetária

Expressa-se compreensão planetária através de uma atitude de abertura diante do mundo, mediante a qual o local é o ponto privilegiado onde o indivíduo encontrou as primeiras raízes para construir suas referências. Nessa perspectiva, local e não-local interagem de modo permanente e interdependente. O professor planetário colocará o seu fazer pedagógico a serviço da quebra de barreiras epistemológicas, culturais, institucionais, geográficas, levado pelo propósito de vincular seu trabalho a um movimento cada vez mais amplo de reorganização da produção científica capaz de incluir o seu aluno numa rede cada vez mais ampla de relações. Desse modo, ele seria crítico de atitudes preconceituosas, aberto ao novo, ao imponderável, militante da provisoriedade.

Postura Solidária e Processos Cooperativos

Põem-se pela necessidade da própria sobrevivência do indivíduo, num estágio da civilização que viu esgotadas as possibilidades da prática individualista, em todos os seus matizes. Não há dúvida de que a educação tem um papel inquestionável na constituição de processos cooperativos e de uma postura solidária, sendo a escola, em seus diferentes níveis, chamada a oferecer aí sua contribuição. Para tanto, cabe assegurar ao professor, sobretudo aquele que trabalha nas séries iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil, um espaço, na sua formação, para que os processos coletivos de produção de conhecimento e as práticas de relações solidárias se constituam em ponto de vivência, incorporando-se ao seu fazer cotidiano na sala de aula. Assim formado, ele traduziria essa incorporação através de atitudes cooperativas, de generosidade intelectual, de postura democrática, porque a prática das relações solidárias se constrói na igualdade da diferença.

Autonomia com Base na Crítica Reflexiva

Acredita-se que o processo ação reflexão ação reflexão... constrói o pensamento e o organiza a partir de um modo de ver e interpretar os processos educativos, sociais e culturais, o que, sem dúvida, favorece o desenvolvimento do comportamento autônomo. Atingir a autonomia em qualquer forma de intervenção na realidade está no horizonte de concepções contemporâneas. A expropriação do professor do que lhe confere estatuto de especificidade e legitimidade no que labora socialmente, arrancou-lhe, brutalmente, as condições de um exercício autônomo de seu fazer, pelo que se torna urgente abrir, no seu processo de formação, a brecha privilegiada para uma discussão sobre a importância de adquirir autonomia de pensar, de planejar, de executar, de fazer, enfim, múltiplas escolas numa só escola. Nessas condições, espera-se que ele venha a se tornar cada vez mais reflexivo, crítico e dialógico, com relação aos outros e ao poder, também e sobretudo em relação a si mesmo, conhecedor de seus limites e também de suas possibilidades. Se na autonomia estiver ancorado, por certo será, mais facilmente, um incentivador da autonomia de seus alunos.

Processos Horizontais: Centros Instáveis

A hierarquia e a verticalidade, próprias de uma certa cultura pedagógica, são incompatíveis com a lógica e as pedagogias contemporâneas favorecidas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação, em virtude, basicamente, do seu funcionamento em rede. Ter-se ia o que se pode chamar de profundidade horizontal em intercruzamentos incessantes, com momentos de verticalidade relativa, intercambiáveis. Os processos pedagógicos, tendo uma centralidade instável, permitem que os implicados nesses processos atuem de forma diferenciada ao longo de todo o tempo. O centro se desloca, movimenta-se incessantemente, ora sendo ocupado pelo professor, ora pelo aluno, ora por outros envolvidos ou mesmo por um elemento físico. É importante que sejam estabelecidas conexões múltiplas, laterais e não apenas seqüenciais, ou seja, trata-se da presença de relações de sentidos simultâneos, do espaço sincronizado e do tempo espacializado. Nessa perspectiva, afirma-se o papel do professor centrado permanentemente nas diferenças.

Leitura: uma prática inerente a todas as práticas

Produzir atos de leitura individual e compartilhada com o outro, colega de curso e de trabalho, assim como com o próprio texto e com seu autor, na perspectiva de pensar e sentir criticamente as questões fundamentais da humanidade, da guerra à paz, da violência à esperança, da competição à solidariedade, da corrupção à probidade, do dissabor ao sabor, do medo à ousadia, do desamor ao amor, na perspectiva de conhecer questões relativas ao mundo sociocultural e às tantas iniciativas bem ou mal-sucedidas a favor da humanidade da criança e do adulto e contra a barbárie e a injustiça. O movimento pedagógico que compreende a leitura a partir desse olhar desenvolve políticas culturais capazes de disponibilizar livros a mancheia e de criar espaços e tempos para leituras que sejam feitas como experiência. Nessa perspectiva, espera-se que o professor-cursista mova-se em direção aos livros e a outros suportes textuais, circule nos espaços nos quais se encontram, para lidar e situar-se neles com proficiência.

Currículo Hipertextual

O currículo é antes uma construção sócio-histórica que envolve diferentes autores sociais, devendo constituir-se/construir-se como uma permanente negociação dentro das diversas "comunidades de interesses". É preciso pensá-lo como uma rede de significados, um processo de ligação entre a vida social e a vida dos sujeitos. Uma rede construída pelos homens, onde cada nó é, em si mesmo, uma rede. Nesse sentido, o currículo destinado a responder à mediação entre o indivíduo e a sociedade precisa ser hipertextual, capaz de dar conta da multiplicidade cultural e étnica sem perder de vista a qualificação para o trabalho. Enfim, um currículo que atenda às especificidades da multiplicidade cultural, racial, religiosa, fazendo-as dialogarem entre si.

Assim entendendo, acredita-se que os sujeitos do conhecimento poderão construir seus percursos de aprendizagem em exercícios de interação com os outros implicados no processo, com as máquinas e com os mais diversos textos e contextos. (FACED, 2003a)

A viabilização de um programa com essa natureza exige uma gestão necessariamente descentralizada, flexível, abrangente, com coloração local e com ressonância nos municípios, não apenas nas redes educacionais. Sendo assim, ele está dividido em ciclos, nos quais são oferecidas atividades curriculares, com determinadas cargas horárias, que deverão contemplar uma ou mais áreas do conhecimento, definidas por eixos temáticos.11 11 Mais detalhes sobre toda a estrutura dos programas podem ser encontrados nas home pages deles, nas quais inclusive é possível acompanhar as atividades em andamento e as produções de alunos e professores: < http://www.faced.ufba.br/salvador> e < http://www.faced.ufba.br/irece>.

Questões postas, precisamos pensar na montagem dessas redes, que em grande parte já estão montadas. Outra, significativa, encontra-se em construção conceitual e aplicada. É nessa segunda dimensão faltante que precisamos atuar para intensificar a relação das educações com as culturas, ambas no plural, e que, agora, ainda precisam ser acrescidas das tecnologias, o que para nós pode vir a se constituir num movimento de transformação radical da formação do povo brasileiro. Permitam-nos encerrar com um texto do ministro da Cultura do Brasil, o compositor baiano Gilberto Gil (2004):

[...] o que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento. Maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte.

A tecnologia sempre foi instrumento de inclusão social, mas agora isso adquire novo contorno, não mais como incorporação ao mercado, mas como incorporação à cidadania e ao mercado, garantindo acesso à informação e barateando os custos dos meios de produção multimídia através das novas ferramentas que ampliam o potencial crítico do cidadão. Somos cidadãos e consumidores, emissores e receptores de saber e informação, seres ao mesmo tempo autônomos e conectados em redes, que são a nova forma de coletividade.

Irresistível! Nada melhor do que o espaço da escola para essa revolução.

Recebido em setembro de 2005

Aprovado em novembro de 2005

NELSON PRETTO é doutor em comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, professor e diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Publicações: Uma escola sem/com futuro: educação e multimídia (Campinas: Papirus, 1996); SMOG crônicas de viagens (Salvador: Arcádia, 2005). Criador do projeto Tabuleiros Digitais (http://www.tabuleirodigital.org). E-mail: nelson@pretto.info

CLÁUDIO DA COSTA PINTO, engenheiro elétrico pela Universidade Federal da Bahia, analista de sistema da Petrobras, mestre em administração de empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, cursava o doutorado em educação na Universidade Federal da Bahia quando faleceu em 2002.

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  • *
    Este texto foi construído como parte da pesquisa que o Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias vem desenvolvendo ao longo dos anos e, especificamente, como parte da pesquisa "Políticas públicas brasileiras em educação e tecnologia da informação e comunicação", apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Especial agradecimento a Mary Arapiraca, pelas preciosas contribuições para a versão final.
  • **
    Este artigo, concluído recentemente, começou a ser produzido em parceria com Cláudio da Costa Pinto, doutorando da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que nos deixou, com saudades. Tínhamos o hábito de trocar idéias, textos e imagens pela Internet, com a intenção de produzir artigos. Conclui o texto, infelizmente sem ele.
  • 1
    Segundo o Datafolha, a pesquisa foi realizada nos dias 23, 24 e 27 de agosto de 2001. Foram ouvidas 11.201 pessoas, com mais de 14 anos, de 137 municípios do país. A margem de erro do levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou para menos, dentro de um intervalo de confiança de 95%. Disponível em: <
  • 2
    O Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação estava vinculado ao projeto AcessoCom, dirigido pelo jornalista Daniel Hertz, que teve suas atividades encerradas em 2003 por problemas financeiros. Os dados aqui apresentados foram divulgados pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para a promoção da Jornada pela Democratização da Mídia, promovida pela ABI em 2003. Disponível em: <
  • 3
    Disponível em: <
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Wiki>. Acesso em: 21 set. 2004. Para conhecer melhor o sistema, visite o sítio <
  • 4
    Nada mais irritante, por exemplo, do que a maquinização das pessoas nos chamados
    call centers, que hoje ocupam um tempo considerável do nosso cotidiano sofrido de consumidores para a resolução de problemas que antes não tínhamos...
  • 5
    Alt+tab é a combinação de teclas (atalho) em um computador que possibilita ao usuário abrir diversas janelas em diversos sítios ou programas e passar de uma para outra de forma muito rápida.
  • 6
    Alfredo Veiga-Neto (2003), em interessante artigo no número especial da
    Revista Brasileira de Educação que trata da relação das culturas, no plural, com a educação, analisa a questão da multiculturalidade, que nos é útil para a compreensão desta problemática.
  • 7
    A respeito dos tabuleiros digitais, consultar <
  • 8
    <
  • 9
    <
  • 10
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  • 11
    Mais detalhes sobre toda a estrutura dos programas podem ser encontrados nas
    home pages deles, nas quais inclusive é possível acompanhar as atividades em andamento e as produções de alunos e professores: <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2005
    • Recebido
      Set 2005
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