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Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa

RESENHA

Diogo da Silva Roiz

Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP, campus de Franca. Coordenador do curso de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, campus de Amambai. E-mail: diogosr@yahoo.com.br

GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, 146p.

Nenhuma história é a História

Já não é recente a ambigüidade do termo História, ao mesmo tempo definindo um processo em constante movimento, comumente chamado de "a história vivida", e a sua interpretação, ou seja, "a história conhecimento", conforme a define a historiografia francesa. Também não é inócua a questão indicada por Nietzsche, no século XIX, de que a história não passaria de um jogo de interpretações, no qual a História jamais seria "realmente" alcançada. Ou, em outras palavras, o que Paul Veyne, no início da década de 1970, em seu livro Como se escreve a história diria que sempre se faz "histórias de..." alguma coisa, quer dizer, de determinados processos e assuntos, mas nunca a História.

O historiador italiano Carlo Ginzburg, que iniciou sua carreira profissional nos anos de 1950 e 1960, no interior daquelas discussões, pesquisando processos judiciais da inquisição, nos séculos XV e XVI, principalmente da região do Friuli, na Itália, das quais se originaram as obras Os andarilhos do bem e O queijo e os vermes, é um excelente exemplo da forma como, nas últimas décadas, aquelas discussões foram conduzidas. Nas palavras de Ginzburg:

Comecei a praticar o ofício de historiador examinando textos não literários (sobretudo processos da Inquisição) com auxílio dos instrumentos interpretativos desenvolvidos por estudiosos como Leo Spitzer, Erich Auerbach, Gianfranco Contini [...]. Com o moleiro friulano Domenico Scandela, dito Menocchio, condenado à morte pela Inquisição por causa de suas idéias, aprendi que o modo como um ser humano reelabora os livros que lê é muitas vezes imprevisível. (Ginzburg, 2004, p. 14)

Em obras como História noturna, O juiz e o historiador, ou mesmo em Mitos, emblemas e sinais (livro que reúne alguns de seus ensaios), Ginzburg deparou-se com a questão da interpretação das fontes, da viabilidade das provas e do uso da narrativa. Além disso, também se viu obrigado a revisar o estatuto teórico da história das mentalidades e da interpretação marxista da história, para desenvolver seus procedimentos de análise das fontes e o próprio estilo de sua escrita.

No início dos anos de 1970, quando lançou seu famoso e polêmico ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário (que anos depois foi reunido no seu livro: Mitos, emblemas e sinais), no qual procurou historiar as origens de seu procedimento investigativo das sociedades e dos homens no tempo, com intuito de analisar as mudanças e as permanências das sociedades passadas e das sociedades presentes, Ginzburg já indicava a forma como estava tomando partido naquela polêmica historiográfica.

Retorno àquele ensaio, que desde então tem continuado a alimentar subterraneamente o meu trabalho, porque a hipótese sobre a origem da narração ali formulada também pode lançar luz sobre as narrativas voltadas, ao contrário das outras, para a busca da verdade, e contudo modeladas, em cada uma de suas fases, por perguntas e respostas elaboradas de forma narrativa. Ler a realidade às avessas, partindo de sua opacidade, para não permanecer prisioneiro dos esquemas da inteligência: essa idéia, cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pesquisa que inspirou também estas páginas. (idem, p.14)

Mas foi juntamente com Carlo Poni e Geovanni Levi, no início da década de 1980 – quando lançaram a revista Quaderni Storici e dirigiram a coleção de estudos (reunindo trabalhos de intelectuais italianos, franceses e ingleses) denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988 –, que, de fato, Ginzburg demonstraria suas insatisfações com relação às interpretações macrossociais, indicando os estudos microssociais como alternativa necessária à alteração da escala de análise do historiador.

Na década de 1990, entretanto, ao se voltar mais para o gênero ensaístico e para a análise de romances, Ginzburg indicaria de maneira mais direta sua polêmica com a historiografia pós-moderna, e seus livros Olhos de madeira e Relações de força formariam suas primeiras incursões nesse debate sobre a história estar entre a arte e a ciência. Nesse caso, Ginzburg segue os passos da polêmica iniciada por Aristóteles, quando diferenciou a poesia épica da história na Antigüidade clássica, e suas continuidades, em níveis consideravelmente distintos, nas críticas veementes de Michael Foucault, Paul Veyne e Hayden White, sobre o estatuto científico da história, e as respostas de Peter Gay, Thompson, Hobsbawm e Moses Finley sobre essa questão. A forma como Ginzburg incide na polêmica é sutil, quase sempre sem citar os argumentos e os autores, e em vez disso demonstrá-la por meio de detalhes de um romance (como o de Flaubert), de fragmentos de um diário, ou ainda, estudando os rastros da tradição oral de povos antigos.

É justamente seguindo essa forma discreta de polemizar com aquelas questões, que em seu novo livro justifica que "talvez [fosse] inevitável que, mais cedo ou mais tarde, eu acabasse por me ocupar também de textos literários" (2004, p.14), não apenas para demonstrar as fragilidades do discurso dito pós-moderno, como ainda ressaltar o uso das fontes literárias para a melhor compreensão das sociedades passadas. Ao seguir os traços e a experiência deixada por suas pesquisas anteriores numa "perspectiva semelhante, abordei Vasco de Quiroga, leitor de Luciano e Thomas More; Thomas More, leitor de Luciano; George Puttenham e Samuel Daniel, leitores de Montaigne; Sterne, leitor de Bayle; e assim por diante. Em cada um desses casos, procurei analisar não a reelaboração de uma fonte, mas algo mais vasto e fugidio: a relação da leitura com a escrita, do presente com o passado e deste com o presente. (idem, p.14-15).

Em Nenhuma ilha é uma ilha, originalmente lançado em 1999 em inglês, e em 2002 em italiano, ligeiramente revisto (apenas em 2004 que apareceria sua tradução para o português pela Companhia das Letras), Ginzburg procurou avançar nas discussões aqui rapidamente resumidas. Por um lado, recupera a tradição do gênero ensaístico que vai de Montaigne a Diderot e, de outro, tomando de empréstimo a definição de ensaio elaborada por Adorno e as observações sobre esse gênero feitas por Jean Starobinski, lembra a necessidade de submeter as interpretações à prova e as conclusões às relativizações necessárias. Nas suas palavras:

Estes ensaios propõem uma visão não insular da literatura inglesa (...) por [meio de] um tema comum: a ilha, real ou imaginária, evocada no título (...) [mas] a unidade do livro não é apenas (...) de ordem temática. Um mesmo procedimento, ou princípio construtivo tem guiado – sem que eu me desse conta de imediato – tanto minhas pesquisas como o modo de apresentá-las. (idem, p.11)

O livro foi dividido em quatro capítulos, articulados por um mesmo tema (e procedimento interpretativo e narrativo), no qual o autor se inspiraria nas palavras de John Donne, quando disse que "nenhum homem é uma ilha". Se trocarmos a palavra ilha, por história, veremos que, na verdade, o que o autor procurou fazer foi demonstrar como o discurso narrativo dos historiadores é constantemente reescrito. Mas nem por isso deve ser relegado numa miríade relativista, porque além de acompanhar as mudanças drásticas e inesperadas das sociedades, que inevitavelmente refazem suas indagações sobre a história, também é um exercício investigativo, no qual a procura de indícios e provas constituiriam a sua função social primordial, já que é a partir desses instrumentos que procura dar lógica a análise dos processos e, ao mesmo tempo, inquirir possíveis laços de identidade, quanto de rupturas, com o passado.

Muito embora reconheça que o que os historiadores fazem não é escrever a História, mas histórias (porque além de serem constantemente reescritas, jamais se conseguiria alcançar a totalidade do "vivido"), ele acredita que é justamente nesse exercício que o historiador demonstraria sua função social (não por trazer à tona a verdade e sim por mostrar as verdades possíveis e expressas pelos homens do passado) e seu valor perante a sociedade (ao recuperar sua memória coletiva). Seja descobrindo ligações entre o passado e o presente que antes não eram vistas, seja demonstrando a ação de indivíduos perante seus pares e a sociedade, ou ainda, refazendo a trajetória de processos ou ações humanas, em função de novas descobertas investigativas (a partir de provas necessárias para àquelas afirmações). E é esse exercício histórico e historiográfico, que é um exercício acumulativo (e sempre complementado), que procurou fazer ao observar a importância de Luciano de Samósata para Thomas More, a polêmica elisabetana sobre a dignidade da rima, os vínculos sutis que ligariam o pároco Laurence Sterne, que foi autor de o Tristram Shandy, ao ateu Pierre Bayle, e, finalmente, a possível inspiração que o etnólogo anglo-polonês Malinowski teria recebido com a leitura dos contos do escocês Robert Louis Stevenson.

Em todos esses casos, observa que o regime das trocas literárias oportunizadas entre as ilhas inglesas e o continente europeu foram decisivas na formação, tanto da literatura inglesa, quanto de sua identidade nacional. Além disso, registra a importância do detalhe, colhido muitas vezes quase que ao acaso, para se reconstituir um processo, porque foi "o acaso, não a curiosidade deliberada, que me fez dar com os comentários do bispo Vasco de Quiroga à Utopia de Thomas More ou com a Defesa da rima, de Samuel Daniel" (2004, p.11). É por isso que indica que com o gênero ensaístico existiria a flexibilidade necessária para a construção da narrativa:

Mas talvez essa mesma flexibilidade tenha êxito em captar configurações que tendem a escapar às malhas das disciplinas institucionais. Talvez seja instrutiva a divergência entre Quentin Skinner e este autor a propósito do gênero a que pertenceria a Utopia de Thomas More. Seria possível objetar que a Utopia constitui um caso especial, tratando-se de um dos raros textos que inauguraram um gênero literário. Mas eu me pergunto por qual motivo uma polêmica à primeira vista técnica sobre a dignidade da rima, que irrompeu na Inglaterra elisabetana, foi treslida a ponto de se ignorarem suas raízes continentais, a começar por Montaigne. Seria muito fácil encontrar muitos casos do mesmo teor. (idem, p.13)

E é justamente sobre isso que o autor chama a atenção de seus possíveis leitores do início ao final de seu texto, em que nenhuma ilha é uma ilha poderia ser lida como nenhuma história é a História (e, por isso, o discurso histórico é tão incompleto e fugidio, e às vezes também impreciso, por falta de fontes que o comprove). Em suas palavras:

Nos dois primeiros capítulos falou-se de ilhas – ilhas inventadas, como a de Utopia, ou reais, como a Inglaterra – de uma perspectiva não insular. Contra o lugar-comum corrente segundo o qual todas as narrativas pertenceriam em alguma medida à esfera da ficção, procurou-se mostrar que existe uma relação complexa entre as narrativas inventadas e as narrativas com pretensão à verdade. A ilha imaginada de Utopia permitiu que Thomas More percebesse (e denunciasse) as extraordinárias transformações em curso na sociedade inglesa. A defesa da rima como procedimento literário diante das acusações de barbárie tinha lugar em uma ideologia imperialista nascente, voltada a acentuar a distância cultural e política entre as ilhas britânicas e o continente europeu. Verdade e ficção, examinadas de uma perspectiva não insular, encontram-se igualmente no centro deste terceiro capítulo, dedicado ao Tristram Shandy de Laurence Sterne. (idem, p. 64)

No último capítulo desse livro, Ginzburg pratica com maestria esse procedimento, ao demonstrar os possíveis contatos entre Malinowski e Robert Louis Stevenson (principalmente com seu conto O demônio da garrafa), quando este desenvolvia sua interpretação do kula sobre as tribos das ilhas de Trobriand.

O kula, escreveu Malinowski nos Argonautas, refutava as idéias, então correntes, que viam no homem primitivo um "ser racional" que não deseja outra coisa além de satisfazer as necessidades mais elementares, segundo o princípio econômico do mínimo esforço. (Malinowski provavelmente ignorava que tinha Marx a seu lado). Mas as implicações da descoberta de Malinowski ultrapassavam em muito o âmbito da chamada "economia primitiva", como mostra a sua progênie tardia, do ensaio de Mauss sobre a dádiva à Grande transformação de Polany, ou o ensaio de E. P. Thompson sobre a economia moral (no qual, todavia, a ligação é mais indireta). O que de fato estava em jogo era a noção de homo oeconomicus, ainda hoje bem viva. Mas o arquipélago de Stevenson e o de Malinowski estão ali para nos lembrar que nenhum homem é uma ilha, nenhuma ilha é uma ilha [e poderíamos acrescentar que nenhuma história é a História]. (idem, p. 113)

Nesse sentido, a leitura de Nenhuma ilha é uma ilha é enriquecedora por pelo menos três pontos: a) para nos dizer que a história é constantemente reescrita, porque as mudanças dos homens e das sociedades no tempo exigem novas investigações e questionamentos para se identificar adequadamente o que ainda se manteria do passado no presente e o que mudou; mas nem por isso o discurso dos historiadores estaria imerso num relativismo, no qual não se haveria mais a procura de possíveis verdades; b) não é apenas de verdades que é feito o discurso dos historiadores, visto que se as fontes forem mal ou insuficientemente interpretadas, em casos extremos elas podem sugerir mentiras, que ao serem transpostas ao discurso dos pesquisadores podem vir a ser uma verdade; c) mas, mesmo assim, a função social básica do historiador é, senão a descoberta da verdade (ou das possíveis verdades) que nos legaram as sociedades passadas, ao menos a inclinação à procura de verdades (demonstrando-se que, em alguns casos, a mentira, que não é um mero detalhe nos processos históricos, pode se tornar uma verdade construída pelo discurso).

De forma mais direta, Ginzburg quer demonstrar a importância dos historiadores para as sociedades na construção de suas identidades, talvez até mais no período atual do que no passado. Para isso, indo contra a maré dita pós-moderna, sugeriu nesse livro que o discurso literário pode também ser um caminho, quando bem analisado seu processo de elaboração e, com isso, cotejada suas provas, para se escrever um discurso histórico verdadeiro (entre outros possíveis) sobre as sociedades e os homens no tempo. Isso porque, a história é constantemente reescrita, fazendo com que nenhuma história seja a História, mas nem por isso não seja uma história. E justamente nesse ponto, aclamado como o inevitável relativismo do discurso e da verdade (a ponto de alguns estudiosos acreditarem que ou ela não existe, ou é apenas uma construção discursiva), segundo a crítica dita pós-moderna, que segundo o autor se encontraria a função e a importância dos historiadores. Não relativizando o seu discurso com qualquer outro (sem os mesmos cuidados investigativos), mas primando por pesquisas mais precisas, inquirindo as fontes e agrupando as provas para se definir níveis mais aproximados de verdade, que segundo ele, seriam possíveis dentro do discurso dos historiadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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