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Currículo e epistemologia

RESENHAS

Maria Inês Petrucci Rosa

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: inesrosa@unicamp.br

LOPES, Alice Casimiro. Currículo e epistemologia. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2007. 232p.

A coleção Educação Química da editora UNIJUÍ está sendo ampliada com o lançamento de mais uma obra. Trata-se do livro Currículo e epistemologia, de Alice Casimiro Lopes.

Num primeiro contato com o livro, a imagem da capa destaca-se sugerindo - entre tantos sentidos - talvez luzes de um pôr-do-sol, ou nuances coloridas de alguma solução preparada em um laboratório de química... Polissemia que também se torna convite para conhecer o livro: seu prefácio (com chancela afetuosa do professor Áttico Chassot), sua introdução e a disposição de oito textos ou capítulos que, mesmo sendo apresentados com temáticas aparentemente independentes, são fortemente articulados entre si.

São percursos de pesquisa desenhados ao longo do tempo, mostrando diferentes faces da pesquisadora. Freqüentando também encontros e congressos regionais e nacionais de ensino de química e participando com competência e dedicação dos debates mais profícuos e promissores, a autora de Currículo e epistemologia tornou-se já há algum tempo uma autoridade das mais requisitadas na pesquisa em educação em nosso país e também para além das fronteiras nacionais.

Com o olhar e a experiência de hoje, retoma textos menos ou mais recentes, propondo uma tessitura inusitada e de intensa potencialidade. Os capítulos não seguem uma ordem cronológica, como nos explica a autora na introdução, mas há uma lógica entre eles, um movimento de insinuação de um campo em outro - da epistemologia ao currículo - não num sentido único, mas como interpenetrabilidade.

Mobilizando-se primeiramente nos terrenos da epistemologia, os capítulos: "Bachelard: o filósofo da desilusão" e "Contribuições de Gaston Bachelard ao ensino de ciências" trabalham o pensamento desse epistemólogo francês em sua face diurna, a que debate a ciência na busca constante de rompimento com o monismo metodológico e com as visões mais arraigadas do positivismo lógico sobre a produção do conhecimento científico. Nos dizeres da autora:

[...] o objetivo de Bachelard não era ensinar aos cientistas como proceder em seu trabalho. Seu diálogo era com os filósofos de seu tempo, questionando uma Filosofia desatenta às transformações radicais que sofre a razão humana com o advento da ciência contemporânea. (p. 31)

Nesses capítulos, aparece um Bachelard ainda atual, surpreendente, provocador, potencialmente desestabilizador das certezas da cultura escolar, tanto expressas nas práticas pedagógicas como também nos textos dos livros didáticos de química presentes em muitas dessas práticas. No capítulo "Obstáculos epistemológicos nos livros didáticos de química", o conhecimento químico transmutado em escolar é problematizado no contato com os discursos presentes nos livros que, não raras vezes, se configuram empecilhos à aprendizagem dos conceitos científicos. Animismo, realismo, substancialismo são explorados, sendo apresentados extratos/exemplos de textos didáticos veiculadores de tais obstáculos para aprendizagem de química.

Com essa postura, a autora também não pretende dizer como o ensino de ciências deve ser praticado nas escolas, mas chama a atenção para as particularidades do conhecimento escolar - que não é reflexo do científico -, ao contrário, passa por transformações radicais ao ser inserido na cultura escolar. Ainda no contato com o tema dos livros didáticos, ela permanece em Bachelard discutindo a noção de fenomenotécnica: "[...] a Química não é mais uma ciência natural. O químico trabalha e pensa em um mundo recomeçado. Se a natureza possui ordem, a Química não se faz a partir dessa ordem: o químico constrói uma ordem artificial sobre a natureza [...]" (p. 179).

Em contraponto, o conjunto de livros analisados no capítulo "A concepção de fenômeno nos livros didáticos de química" reúne indícios suficientes para que se constate que na cultura escolar é veiculada a noção de fenômeno como dado natural; mais ainda: que o substancialismo e o empirismo são traços predominantes, deixando longe a noção de que o fenômeno científico é uma construção instrumental e teórica.

Ainda nesse capítulo e também em "Conhecimento escolar e conhecimento científico: diferentes finalidades, diferentes configurações", Lopes marca reiteradamente sua posição em torno da idéia de que existe um distanciamento entre a ciência da comunidade científica e a ciência ensinada na escola, "distanciamento esse que transcende à diferenciação das duas comunidades" (p. 184). Essa conclusão parece ser um prenúncio da reconfiguração de suas preocupações de pesquisa e de seus interesses em torno de temáticas que se desdobraram em outros projetos de investigação.

A história das disciplinas escolares, com seus princípios, seu aporte teórico e sua metodologia, permeia as tessituras empreendidas nos argumentos dos capítulos "A disciplina química: currículo, epistemologia e história" e "Currículo de ciências do Colégio de Aplicação da UFRJ (1969-1998): um estudo sócio-histórico". Nesse contexto de novas problematizações, seus interlocutores teóricos passam a ser outros, especialmente Ivor Goodson, importante teórico britânico cujas pesquisas em história das disciplinas escolares muito contribuíram também para o pensamento brasileiro sobre o tema, e Basil Bernstein, cuja obra representa também no Brasil uma referência ímpar.

A hipótese básica de Goodson de que "a disciplina escolar é construída social e politicamente e os atores envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais para levarem a cabo as suas missões individuais e coletivas" (apud Lopes, p. 76) ganha tal força nos argumentos da autora sobre ensino de química e de ciências que se torna praticamente impossível não reconhecer que os problemas de metodologia de ensino - tão freqüentemente abordados em outras pesquisas dessa área - são apenas uma parte das questões relevantes merecedoras de projetos de investigação.

Nesse sentido, ela autora:

No campo de pesquisa em Ensino de Química, especialmente, ainda há uma dedicação quase exclusiva aos problemas metodológicos, importantes para um projeto mais amplo de melhoria da qualidade da educação no país, mas insuficientes para a compreensão do espaço da sala de aula. A resolução desses mesmos problemas metodológicos exige que não sejam desconsiderados os aspectos epistemológicos, sociológicos e históricos que permeiam o fenômeno educacional. Caso contrário, corre-se o risco de não se compreender o "porquê" dos problemas enfrentados nas salas de aula. (p. 100)

Em sua fase mais recente, a aposta nas investigações que mergulhem nas profundezas dos "por quê" e dos "o que" se ensina em sala de aula na escola brasileira dentro do contexto das políticas curriculares (tanto as produzidas do ponto de vista macroscópico como também aquelas engendradas cotidianamente nas instituições escolares) passa a ser então o alvo das preocupações de pesquisa da autora.

No capítulo "O livro didático nas políticas de currículo" é destacada a natureza do livro didático como texto curricular híbrido, constituída pelo atravessamento do ciclo contínuo de políticas tal como é proposto por Stephen Ball, a partir da circularidade entre os contextos de influência, de definição de textos e da prática. E problematizando a centralidade do livro didático nas políticas educacionais, Lopes vai tecendo argumentos na direção daquilo que ela mesma denomina de "ousadia" de sua parte (p. 221), ao sugerir a abolição do adjetivo "didático" e a adoção do livro na cultura escolar como mais um material à disposição dos atores da escola: professores, estudantes, gestores, comunidade. Tal reconfiguração de expressões e de funções materiais traria também um outro lugar às práticas pedagógicas, aos saberes docentes e às relações entre professores e estudantes. Ainda nos dizeres da autora:

Questionar a acepção de ser didático dos livros utilizados no contexto escolar é também redefinir a concepção que fazemos do profes-sor(a), recolocando-o no lugar de produtor da didatização dos textos escritos, uma didatização realizada pelos inúmeros textos aos quais tem acesso, na sua formação e na sua prática. (p.222)

Bachelard, Bernstein, Goodson, Ball e suas redes de conceitos, hipóteses e propostas compõem o caleidoscópio - mosaico cambiante - de imagens de currículo e epistemologia com o qual a autora percorre seus caminhos de pesquisa, que ora se cruzam, ora se distanciam, sempre se mostrando abertos, inconclusos, férteis ainda...

Com a publicação do livro Currículo e epistemologia, a comunidade dos pesquisadores brasileiros em educação em química enriquece-se; as instituições de ensino superior em nível de graduação e de pós-graduação em educação podem contar com esse denso aporte teórico em suas bibliotecas para aulas, seminários e debates e, também, o campo do currículo continua mostrando sua vitalidade no cenário acadêmico educacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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