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Entre a "cultura histórica" e a "cultura política": os ingredientes necessários para a renovação da "historiografia" e do "ensino de história"?

RESENHAS

Entre a "cultura histórica" e a "cultura política": os ingredientes necessários para a renovação da "historiografia" e do "ensino de história"?

Diogo da Silva Roiz

Mestre em história pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca. Professor dos cursos de história e de ciências sociais na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), na unidade de Amambai. E-mail: diogosr@yahoo.com.br ou diogosr@uems.br

ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/FAPERJ, 2007. 503 p.

Cada vez mais, percebe-se com maior sensibilidade e atenção que as mudanças na política, na sociedade e na educação estão intimamente relacionadas. Assim como os projetos de escrita da história se alteram para compreender mais adequadamente as transformações da sociedade, o ensino de história também teria uma predisposição a mudar quando ocorrem novas tomadas de posição nas políticas públicas do país. Essa hipótese indica que ao se acompanhar a organização da "cultura histórica" e da "cultura política" de uma sociedade, pode-se visualizar mais precisamente os contornos que ganham simultaneamente a "cultura historiográfica" e o "ensino de história".1 1 Para uma discussão sobre o conceito de "cultura política", ver SIRINELLI, Jean-François; RIOUX, Jean-Pierre (Orgs.). Para uma história cultural. Trad. Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1998. Para uma discussão do conceito de "cultura histórica", ver: LE GOFF, Jacques. Memória e história. Trad. Bernardo Leitão et al. 4. ed. Campinas/São Paulo: Ed. UNICAMP, 1996. Para uma discussão do conceito de "cultura historiográfica", ver DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica. Memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002. Diante do exposto, é oportuno o questionamento sobre quais leituras a respeito do passado estariam sendo produzidas, em função das atuais revisões dos últimos governos, quanto à necessidade de agrupar aos currículos escolares de ensino fundamental (e médio) do país, o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira e o ensino da história indígena. Cabe destacar, desde já, que isso se deve, fundamentalmente, ao impacto e à relevância que alcançaram os movimentos sociais, os quais, desde a década de 1980, se têm organizado com o intuito de destacar as desigualdades históricas que foram sendo produzidas no país ao longo do tempo. O que quer dizer que, na medida em que as sociedades e os indivíduos se interrogam sobre sua condição, se abre a possibilidade para uma significativa alteração, quanto à maneira de entender e de interpretar o presente e, por extensão, também o passado (e o futuro).

Foi justamente percebendo a importância de estudar o movimento complexo e dialético entre a política, a sociedade e a educação que o grupo de pesquisadores reunidos, desde 1992, no Núcleo de Pesquisas em História Cultural (NUPEHC), vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a liderança de Rachel Soihet, se tem reunido periodicamente e organizado congressos e livros, discorrendo tais questões. O primeiro projeto do grupo, "História, cultura e educação: relações entre pesquisa e ensino na área de história cultural", foi desenvolvido durante o biênio de 2001-2002, resultando no livro Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003), organizado pelas professoras Rachel Soihet e Martha Abreu. O segundo projeto, "História e educação: relações de poder e cultura política", foi executado durante os anos de 2003 e 2004, com a mesma preocupação com a pesquisa e o ensino de história, e um de seus principais resultados foi o livro Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história (Rio de Janeiro: Mauad, 2005), organizado por Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fátima Silva Gouvêa. Finalmente, durante o biênio de 2005-2006, com o projeto "Cultura política e cultura histórica: pesquisa e ensino", o grupo retomou suas discussões sobre a política, a sociedade e a educação, detendo-se, especificamente, na maneira como a "cultura política" e a "cultura histórica" ao longo do tempo, além de manterem uma relação tensa e articulada, também influenciam diretamente sobre os caminhos que são tomados pela "cultura historiográfica" e pelo "ensino de história", de um momento para o outro. E um dos resultados dessa iniciativa foi o livro Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, com a organização de Rachel Soihet, Martha Abreu e Rebeca Gontijo, lançado em julho de 2007 pela editora Civilização Brasileira, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

O livro contém 23 ensaios, que foram distribuídos em cinco partes. No conjunto é nítida a utilização dos conceitos de "cultura histórica" e de "cultura política", mesmo se considerarmos que a maneira como foram apropriados entre os textos foi peculiar ao tema, à problemática, às fontes e ao objeto selecionado. Essas categorias vêm sendo trabalhadas na historiografia, principalmente, pelos historiadores da cultura, "já que implica considerar a cultura de um ponto de vista histórico e político" (p. 15). No caso da "cultura política" sua utilização estaria presente já em certas análises produzidas no século XIX. Contudo, no campo da história, o uso do conceito teria sido distinto, e estaria relacionado diretamente à renovação dos estudos da história política e da história cultural. O interesse dos historiadores por esse conceito deve-se ao fato de permitir reconstituir o comportamento político de indivíduos e grupos, tendo em vista suas próprias representações e visões de mundo, com as quais definiriam suas memórias, vivências e sensibilidades. De modo geral, ele permitiria circunscrever o sistema de representações, com os quais, de modo complexo (e às vezes imprevisto), indivíduos e grupos demarcam seus projetos e iniciativas. Mesmo considerando que uma referência comum entre os textos foi o livro coletivo Para uma história cultural, organizado por Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli, a categoria foi utilizada de uma maneira mais polissêmica do que a de "cultura histórica". Nesse caso, embora o rastreamento da utilização do conceito no campo da história seja mais difícil de ser efetuado, ao tratarem da "cultura histórica" esta "tem servido muito mais para delinear um conjunto de fenômenos histórico-culturais representativos do modo como uma sociedade ou determinados grupos lidam com a temporalidade (passado-presente-futuro) ou promovem usos do passado" (p. 15), o que quer dizer que em muitos casos seria possível pensar em culturas históricas concorrentes num mesmo período e/ou local. Ao utilizarem-se dessa categoria, as principais referências dos estudos foram os trabalhos dos historiadores Bernard Guenée, para quem a "cultura histórica" seria a bagagem profissional e os instrumentos utilizados pelos historiadores em suas interpretações e pesquisas, e Jacques Le Goff, que complementa tal abordagem indicando que esta também se refere à relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado.

Com base nessas referências, na primeira parte, "Política, história e memória", que também serve como uma introdução aos demais capítulos, os textos de Manuel Luiz Salgado Guimarães e de Ângela de Castro Gomes fornecem importantes reflexões teóricas e estudos de caso, ao demonstrarem como utilizaram as noções de cultura histórica, cultura política, memória e usos do passado. No primeiro caso, em "O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória", Salgado Guimarães demonstra como ocorreu a falência de um certo projeto escriturário para a história, que, elaborado no século XIX, "acreditou poder fazer da escrita do passado uma mímesis dos acontecimentos transcorridos" (p. 29), na medida em que operava uma análise crítica dos documentos oficiais, entendendo pesquisá-los de modo objetivo, com vistas a reconstituir a história política e diplomática de uma nação e de um povo, por intermédio do estudo dos "grandes homens". Ao considerar como as sociedades constroem suas representações sobre o passado, com base no que François Hartog definiu como "regimes de historicidade" em sua obra Regimes d'historicité Présentisme et experiences du temps, o autor sugere que o passado adquiriria efetiva existência "a partir dessa interrogação do presente, ou melhor, a partir de uma relação que as sociedades humanas estabelecem com o transcurso do tempo e assim com as definições do que seja presente, passado e futuro" (p. 31). Considerando, portanto, que quando as sociedades mudam sua lógica de como compreendem o processo histórico também se alteraram suas formas de pesquisa e de escrita, o autor desenvolve sua hipótese de que no período contemporâneo haveria uma constante valorização da memória, já que há um retorno eminente do "eu" "e da subjetividade como critério de legitimação dos discursos sobre o passado, assim como a sobrevalorização do testemunho como fonte capaz de assegurar a veracidade das falas sobre o passado" (p. 35).

No texto seguinte, "Cultura política e cultura histórica no Estado Novo", detendo-se num estudo sobre as políticas culturais empreendidas por órgãos governamentais, Gomes demonstra de modo preciso como em determinados momentos se configuram certos projetos para estudar o passado, intimamente relacionados com o projeto político então no poder. Para isso, utiliza-se da revista de estudos brasileiros Cultura Política, que foi dirigida por Almir de Andrade, entre 1941 e 1945, uma publicação do Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP), com periodicidade mensal. De forma mais precisa, a autora deteve-se na seção intitulada "Brasil social, intelectual e artístico", em que se localizavam debates e artigos que discorriam sobre o passado nacional, seus atores e seus momentos decisivos, segundo o olhar dos articulistas. No entanto, é importante notar que o projeto de escrita da história então apropriado foi aquele desenvolvido no século XIX e que:

A partir de meados dos anos 1940, com a continuidade desse processo [de criação de Faculdades de Filosofia e de Universidades], sem dúvida quer o perfil do historiador, quer o da produção historiográfica se alteram de forma progressiva, sendo o momento que examinamos o de uma transição entre o modelo que datava ainda do século XIX e um novo modelo de escrita e de profissional da história, cujos contornos não eram muito nítidos e/ou consolidados. (p. 61)

Aliás, quanto a esse aspecto, há uma íntima relação entre os dois textos, na discussão que apresentam sobre a forma como a escrita da história se altera, em virtude dos novos contornos da sociedade, da cultura e da política.

A segunda parte, "O Antigo Regime e a colonização em questão", reúne seis ensaios, de autoria de Maria Fernanda Bicalho, de Maria de Fátima Silva Gouvêa e Marília Nogueira dos Santos, de Rodrigo Bentes Monteiro e Jorge Miranda Leite, de Mônica da Silva Ribeiro, de Luciana Mendes Gandelman e de Mary Anne Junqueira. Neles são revistos os conceitos de Estado, nação, nacionalismo, pátria, colônia e metrópole, contribuindo diretamente para uma reinterpretação do período, principalmente com a preocupação de que os manuais didáticos utilizados no ensino de história, no ensino fundamental (e médio), se voltem com maior cuidado para essas questões primordiais para o estudo dessa época. Quase todos os ensaios dessa parte, além de se pautarem nos conceitos de "cultura histórica" e de "cultura política", também se utilizaram da definição de "regimes de historicidade" elaborada pelo historiador francês François Hartog, comentado anteriormente, porque, de acordo com Maria Fernanda Bicalho e de Rodrigo Bentes Monteiro e Jorge Miranda Leite:

[...] pode ser entendido de duas formas: numa acepção restrita, como uma sociedade trata o seu passado, e nele se vê; e numa acepção mais vasta, de acordo com a qual regimes de historicidade serve para designar a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana. A seu ver, essa noção pode fornecer um instrumento de comparação de tipos de história diferentes no sentido de iluminar distintas formas de relacionamento com o tempo ou, em outras palavras, formas específicas de experiência do tempo. (p. 84-5) [...] Segundo o historiador francês, há várias ordens do tempo, segundo lugares e tempos. Um regime de historicidade pode significar o modo como uma sociedade trata seu passado, a consciência de si mesma. A noção nega uma historicidade idêntica a todas as sociedades. Ao comparar tipos de história diferentes, evidencia modos de relação com o tempo: formas de experiência, aqui e ali, hoje e ontem. Portanto, a hipótese do regime de historicidade atua sobre vários tempos, instaurando um vaivém entre presente e passado, ou melhor, passados, eventualmente distantes no tempo e no espaço. (p. 124)

A terceira parte, "Identidades em questão: indígenas, negros e mestiços", que é um dos muitos pontos altos do livro, contém cinco ensaios, de autoria de Maria Regina Celestino de Almeida, Hebe Matos, Carolina Vianna Dantas, Renata Figueiredo Moraes e Larissa Viana, nos quais as autoras se preocuparam em repensar as complexas relações entre negros, índios e mestiços, no difícil e tenso processo histórico, pelo qual cada grupo e etnia passou para construir a sua própria identidade. Nesse caso, vale lembrar a sensibilidade com que os textos indicam as representações que foram elaboradas sobre a figura de Zumbi e de Henrique Dias (no caso do de Hebe Matos), os lugares que encontraram os descendentes africanos na nação após a abolição (no texto de Carolina Vianna Dantas), como também as memórias do cativeiro e as visões da liberdade, durante o processo da abolição do regime escravista e depois (no texto de Renata Figueiredo Moraes), ou ainda, os debates produzidos no passado e no presente sobre a mestiçagem (no texto de Larissa Vianna).

Na quarta parte, "Representações do povo, do intelectual e da nação", com quatro ensaios, de autoria de Magali Gouveia Engel, Rebeca Gontijo, Luigi Bonafé e Martha Abreu, indicam-se as relações abertamente tensas entre a "cultura histórica" e a "cultura política", no processo de elaboração da "historiografia" e do "ensino de história", ao deterem-se nas representações que intelectuais, como Capistrano de Abreu ou Joaquim Nabuco, elaboraram sobre a nação e o povo, na forma como os livros didáticos expressavam essa relação, ou ainda na maneira como o patrimônio histórico nacional foi e está sendo preservado e estudado.

Por fim, na quinta parte, "Participação política", com seis ensaios, de autoria de Andrea Marzano, Marcelo de Souza Magalhães, Rachel Soihet, Sueli Gomes Gosta, Conceição Pires e Flávia Cópio Esteves, houve uma preocupação especial, em três dos seis ensaios, em destacar o papel da mulher e do feminismo na construção dos direitos políticos, sociais e civis durante o regime republicano no país. Destacaram-se ainda as relações entre cinema e história, reforma urbana e organização social, e ainda a participação política e o abolicionismo popular na segunda metade do século XIX.

Desse modo, o livro é um belo convite a todos aqueles leitores, alunos e pesquisadores, que se preocupam, ou querem conhecer melhor, a maneira como a "cultura histórica" e a "cultura política" estão intimamente relacionadas e ao mesmo tempo interferem e influenciam diretamente na produção da "historiografia" e do "ensino de história", no ensino fundamental (e médio). Ao dirimirem os usos e as representações que foram feitas e construídas sobre o passado, tanto por intelectuais quanto por órgãos governamentais, principalmente, a respeito do povo e da nação, e das relações entre brancos, negros, índios e mestiços, os autores buscaram repensar o processo, para que "novos" usos e representações sobre o passado possam também ser construídos, diante da "cultura histórica" e da "cultura política" vivida contemporaneamente pela sociedade brasileira. Esse talvez tenha sido o principal objetivo dos autores ao planejarem essa obra. Pode-se, evidentemente, questionar um ou outro ponto do argumento e da demonstração, mas não há como negar o pioneirismo da iniciativa do grupo do NUPEHC do Departamento de História da UFF, que desde 1992 tem feito um trabalho exemplar e digno de nota.

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    Para uma discussão sobre o conceito de "cultura política", ver SIRINELLI, Jean-François; RIOUX, Jean-Pierre (Orgs.).
    Para uma história cultural. Trad. Ana Moura. Lisboa: Estampa, 1998. Para uma discussão do conceito de "cultura histórica", ver: LE GOFF, Jacques.
    Memória e história. Trad. Bernardo Leitão
    et al. 4. ed. Campinas/São Paulo: Ed. UNICAMP, 1996. Para uma discussão do conceito de "cultura historiográfica", ver DIEHL, Astor Antônio.
    Cultura historiográfica. Memória, identidade e representação. Bauru: EDUSC, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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