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Currículo e representações sociais de homem e natureza: implicações à prática pedagógica

Currículo y representaciones sociales del hombre y de la naturaleza: implicaciones para la prática pedagógica

Curricullum and social representations of man and nature: implications for pedagogical practices

Resumos

O presente trabalho analisa a influência da racionalidade científica moderna nas opções curriculares e consequentemente nas representações sociais predominantes acerca do homem e da natureza. Para tanto, a análise em questão articula três campos conceituais: a teoria das representações sociais de Serge Moscovici, as teorias críticas e pós-críticas de currículo e a teoria da complexidade de Edgar Morin. Em síntese, as reflexões sinalizam para o entendimento de que as representações sociais sobre a relação homem/natureza encontradas nas estruturas curriculares e, portanto, nos conhecimentos instituídos, comportam duas características correlacionadas: o dualismo e a herança do cânone disciplinar moderno. Por fim, a análise busca evidenciar as implicações éticas e epistêmicas que as representações dualistas da relação homem/natureza colocam às práticas pedagógicas contemporâneas.

representações sociais; relação homem/natureza; currículo


El presente trabajo analiza la influencia de la racionalidad científica moderna en las opciones curriculares y, consencuentemente, en las representaciones sociales predominantes acerca del hombre y de la naturaleza. Para tanto, el análisis en cuestión articula tres campos conceptuales: la teoría de las representaciones sociales de Serge Moscovici, las teorías críticas y poscríticas de currículo y la teoría de la complejidad de Edgar Morin. En síntesis, las reflexiones apuntan hacia el entendimiento de que las representaciones sociales sobre la relación hombre/naturaleza encontradas en las estructuras curriculares y, luego, en los conocimientos establecidos, comportan dos características correlacionadas: el dualismo y la herencia del canon disciplinar moderno. Por fin, el análisis busca evidenciar las implicaciones éticas y epistémicas que las representaciones dualistas de la relación hombre/naturaleza plantean a las prácticas pedagógicas contemporáneas.

representaciones sociales; relación hombre/naturaleza; currículo


This paper analyzes the influence of modern scientific rationality in curriculum options and, consequently, in the prevailing social representations about man and nature. To this end, the analysis articulates three conceptual fields: the social representation theory of Serge Moscovici, the critical and post-critical theories of curriculum and the complexity theory of Edgar Morin. In short, the reflections point out to the understanding that the social representations about the relationship man-nature found in the curriculum structures and, thus, in the established knowledge hold two correlated characteristics: dualism and the heritage of the modern canon of disciplines. Finally, the analysis seeks to evidence the ethical and epistemic implications of the dualist representations of the relationship man-nature for the contemporary pedagogical practices.

social representations; relationship man-nature; curriculum


ARTIGOS

Currículo e representações sociais de homem e natureza: implicações à prática pedagógica

Curricullum and social representations of man and nature: implications for pedagogical practices

Currículo y representaciones sociales del hombre y de la naturaleza: implicaciones para la prática pedagógica

Ana Tereza Reis da Silva

Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

RESUMO

O presente trabalho analisa a influência da racionalidade científica moderna nas opções curriculares e consequentemente nas representações sociais predominantes acerca do homem e da natureza. Para tanto, a análise em questão articula três campos conceituais: a teoria das representações sociais de Serge Moscovici, as teorias críticas e pós-críticas de currículo e a teoria da complexidade de Edgar Morin. Em síntese, as reflexões sinalizam para o entendimento de que as representações sociais sobre a relação homem/natureza encontradas nas estruturas curriculares e, portanto, nos conhecimentos instituídos, comportam duas características correlacionadas: o dualismo e a herança do cânone disciplinar moderno. Por fim, a análise busca evidenciar as implicações éticas e epistêmicas que as representações dualistas da relação homem/natureza colocam às práticas pedagógicas contemporâneas.

Palavras-chave: representações sociais; relação homem/natureza; currículo.

ABSTRACT

This paper analyzes the influence of modern scientific rationality in curriculum options and, consequently, in the prevailing social representations about man and nature. To this end, the analysis articulates three conceptual fields: the social representation theory of Serge Moscovici, the critical and post-critical theories of curriculum and the complexity theory of Edgar Morin. In short, the reflections point out to the understanding that the social representations about the relationship man-nature found in the curriculum structures and, thus, in the established knowledge hold two correlated characteristics: dualism and the heritage of the modern canon of disciplines. Finally, the analysis seeks to evidence the ethical and epistemic implications of the dualist representations of the relationship man-nature for the contemporary pedagogical practices.

Keywords: social representations; relationship man-nature; curriculum.

RESUMEN

El presente trabajo analiza la influencia de la racionalidad científica moderna en las opciones curriculares y, consencuentemente, en las representaciones sociales predominantes acerca del hombre y de la naturaleza. Para tanto, el análisis en cuestión articula tres campos conceptuales: la teoría de las representaciones sociales de Serge Moscovici, las teorías críticas y poscríticas de currículo y la teoría de la complejidad de Edgar Morin. En síntesis, las reflexiones apuntan hacia el entendimiento de que las representaciones sociales sobre la relación hombre/naturaleza encontradas en las estructuras curriculares y, luego, en los conocimientos establecidos, comportan dos características correlacionadas: el dualismo y la herencia del canon disciplinar moderno. Por fin, el análisis busca evidenciar las implicaciones éticas y epistémicas que las representaciones dualistas de la relación hombre/naturaleza plantean a las prácticas pedagógicas contemporáneas.

Palabras clave: representaciones sociales; relación hombre/naturaleza; currículo.

INTRODUÇÃO

A reflexão aqui proposta tem como foco os conhecimentos instituintes que conformam as estruturas curriculares e seus desdobramentos nas abordagens dispensadas à relação homem/natureza. Com efeito, a questão fundante da reflexão que se segue é especificamente: em que medida as representações predominantes acerca da relação homem/natureza refletem a estrutura disciplinar herdada do cânone científico moderno? O objeto sobre o qual nos ocupamos não é, contudo, o conhecimento em si mesmo, o ato de conhecer no seu sentido puramente cognitivo. O que nos interessa é entender o que conhecemos a respeito de um determinado objeto, mais precisamente como representamos homem e natureza? Quais ideias e entendimentos formulamos a respeito desses objetos e, consequentemente, como esses entendimentos e formulações reverberam na prática cotidiana, nas ações, nas atitudes e nos comportamentos relativos às questões socioambientais?

Embora não esteja em jogo o conhecimento em si mesmo, o caráter complexo do objeto exige uma reflexão sobre o campo epistemológico pelo qual se busca construir algumas hipóteses sobre o tema. Logo, uma questão se coloca: o que é o conhecimento e como o alcançamos? A questão da origem do conhecimento será discutida com base nas contribuições de duas escolas filosóficas, quais sejam o racionalismo e o empirismo. Contudo, para além da querela entre empiristas e racionalistas, apresentaremos uma reflexão sobre o processo de construção do conhecimento tomando de empréstimo as contribuições da teoria das representações sociais de Serge Moscovici, das teorias críticas e pós-críticas do currículo e da teoria da complexidade de Edgar Morin.

Em linhas gerais, a teoria das representações sociais tem como mote os processos de mudanças e as tensões paradoxais entre o novo e o velho, entre a conservação e a subversão de ideias e comportamentos. O entendimento de que as representações são ideias e ações construídas socialmente, e por isso mesmo são passíveis de mudança e/ou de manutenção, torna a teoria das representações um terreno conceitual adequado à intenção de problematizar as representações de homem e natureza em suas interfaces com a herança epistêmica moderna.

As teorias críticas e pós-críticas do currículo, por sua vez, constituem o campo teórico que coloca em questão o processo de construção do conhecimento. Ajudam, portanto, a evidenciar as relações de poder e as disputas de sentidos que envolvem a escolha e/ou o preterimento de determinados conteúdos, bem como as ideias que são afirmadas ou negadas no processo de construção e legitimação do conhecimento. Sendo assim, esse campo teórico oferece elementos para analisar as disputas de sentidos e as relações de poder que permeiam as escolhas curriculares e, consequentemente, o lugar que a questão ambiental e a relação homem/natureza ocupam no âmbito dos conhecimentos instituintes.

A teoria da complexidade de Edgar Morin põe à prova o dualismo homem/natureza, enquanto herança da racionalidade moderna, pelas evidências teóricas e históricas que recolocam a cultura e a natureza como conceitos mutuamente implicados. Nesse sentido, por esse campo teórico é possível considerar que a emergência do humano, a história humana e a história da natureza estão inalienavelmente entrelaçadas por um processo paradoxal de antagonismo e colaboração.

Considerando essas contribuições, veremos a seguir como o diálogo entre a teoria das representações sociais, a teoria da complexidade e as teorias críticas e pós-críticas do currículo oferece um terreno epistemológico profícuo que nos permite esclarecer o papel que os conhecimentos instituintes exercem nas opções curriculares relativas à questão ambiental e à relação homem/natureza. Com efeito, na primeira parte deste artigo faremos uma breve incursão nos fundamentos empiristas e racionalistas do conhecimento a fim de mostrar a força que os esquemas binários, tipicamente modernos, exercem sobre a forma como organizamos os conhecimentos e compreendemos o mundo. Na sequência, trataremos das bases conceituais e históricas da oposição homem/natureza, bem como da fragilidade epistêmica desse dualismo, que, segundo Morin, não passa de uma ilusão que só se sustenta em termos idealistas.

Avançando na reflexão, buscaremos esclarecer em que medida as representações sociais de homem e natureza, difundidas pelos conhecimentos instituintes e reproduzidas nas práticas e nos discursos cotidianos, carregam as marcas dos esquemas binários tipicamente modernos. Não obstante essa influência, sustentaremos que as representações de homem e de natureza passam hoje por um processo de revisitação, o que tem implicado a reconciliação desses conceitos e o reconhecimento de que o humano é ao mesmo tempo cultura e natureza. Finalmente, apontaremos algumas implicações pedagógicas e epistêmicas que o contexto aqui apresentado aporta à construção de uma educação ambiental efetivamente engajada em incorporar uma leitura inter e transdisciplinar das questões socioambientais e em construir outra ética da relação homem/natureza.

A INFLUÊNCIA DA RACIONALIDADE MODERNA NAS OPÇÕES CURRICULARES

Para entender a herança dos esquemas binários tipicamente modernos na organização do conhecimento, nas opções curriculares e na forma como pensamos o homem e a natureza, é preciso recorrer ao conceito de modernidade em sua constituição originária. É comum encontrarmos a noção de modernidade associada à ideia de novo, mudança e transformação em oposição ao antigo e à tradição (Marcondes, 2008).

Não obstante, entendemos o moderno como o processo de transição entre o ancien régime e o período da história que se convencionou chamar de modernidade. Para além de qualquer pretensão analítica, tomaremos emprestado o entendimento recorrente de que a identidade do moderno se consolidou a partir de alguns fatores históricos: o humanismo renascentista, a descoberta do novo mundo, a reforma protestante, o iluminismo e as revoluções científica, burguesa e industrial. Associados, esses fatores conformam o projeto moderno de civilidade que operou profundas transformações no campo da ação e do pensamento humano nas mais diferentes esferas: na economia, na política, nas artes, na moral, na filosofia e na ciência.

O pensamento moderno nascente colocava à prova a moral cristã medieval e seus princípios de autoridade e, em contrapartida, propunha um humanismo baseado na valorização da razão, da subjetividade, da experiência, da ilustração e da autonomia como fonte do conhecimento e da ação. Em síntese, a modernidade representava a transição de um mundo baseado no teocentrismo para um mundo baseado no antropocentrismo.

Por essa via, a sociedade moderna efetivou uma modificação profunda na relação do homem com seu ambiente social e natural à medida que os avanços da ciência, da técnica e da produção consolidaram a promessa do domínio absoluto da razão humana sobre a natureza. Desse modo, agindo sobre o mundo natural, o homem converteria sua natureza biofísica (entendida como amorfa, ignara, desprovida de sentidos) em uma natureza humanizada, racional, plena de sentidos teleológicos e históricos (Larrère; Larrère, 1997). A construção do conhecimento pressupunha, portanto, a superação da condição de animalidade e, ao mesmo tempo, o triunfo da razão sobre a autoridade divina e sobre a ignorância.

Nesse contexto, o racionalismo moderno condicionou a possibilidade do conhecimento ao uso da razão, à estratificação do real e às oposições binárias do tipo matéria/espírito, sujeito/objeto, natureza/cultura (Marcondes, 2008). Com efeito, o conhecimento não se baseava mais, como nas sociedades pré-modernas, em suas qualidades não racionais, obscuras e duvidosas; mas sim no estabelecimento de provas e evidências.

Contrariando a lógica racionalista, o empirismo postulava que a possibilidade do conhecimento pressupunha mais que a contemplação e a explicação lógico-racional da realidade (idem). A explicação do real estava condicionada à experimentação, uma vez que a verdade das coisas se apresenta, segundo os empiristas, pela experiência sensível e não apenas pela compreensão racional de seu funcionamento, como sugeriam os postulados da metafísica.

Em resumo, se para os empiristas o conhecimento passa pela experiência e é alcançado pelos dados do real que se mostram aos sentidos, para os racionalistas existem ideias inatas das quais resulta toda a nossa capacidade de conhecer.

Alguns entendimentos são, contudo, comuns a essas duas escolas: o homem como sujeito cognoscível precisa se distanciar do objeto de sua ação e de sua reflexão, ou seja, o objeto observado se opõe ao sujeito que observa; o pensamento e o espírito como realidades metafísicas se opõem à matéria e à ação, posto que, diferentemente das primeiras, essas últimas possuem propriedades observáveis e mensuráveis. Ademais, tanto para os empiristas quanto para os racionalistas, é necessário fragmentar o real para melhor compreender sua constituição e por intermédio do bom uso da razão construir evidências sobre ele.

Assim, a invenção da ciência moderna representa a necessidade de racionalização dos fatos e a negação de toda explicação não embasada em dados empíricos, na evidência, no discurso lógico-racional, na fragmentação da realidade e na experimentação. Trata-se de uma cultura antropocêntrica que pressupõe a razão como existência independente, e a realidade social e natural como sendo, ao mesmo tempo, criação humana e externalidade observável e manipulável. O homem passa a ocupar o lugar de sujeito ativo, uma espécie de construtor do mundo, que pela atividade prática e racional concede materialidade ao real e produz o conhecimento.

Coerente com esse espírito, as ciências naturais, que têm a natureza como objeto de reflexão, separam-se das ciências humanas. O homem, ser biológico, opõe-se assim ao homem ser psíquico e cultural; a natureza se opõe à cultura; a razão se opõe aos instintos, às paixões e às pulsões; o espírito se opõe à matéria.

Essas oposições, que inicialmente se apresentam como pressupostos epistêmicos e metodológicos para a construção do conhecimento, aos poucos se instauram na realidade objetiva. Não só o pensamento mas também a ação se modificam profundamente. Em consequência, a racionalidade moderna acaba por determinar as formas de organização social, o modelo de produção e de desenvolvimento e o processo civilizatório da modernidade (idem).

A ciência passa a ser vista como a forma mais eficaz de compreensão dos processos sociais e naturais. O conhecimento científico passa a ser entendido como uma tradução fiel do real, como portador de uma verdade sobre o mundo. Opondo-se umas às outras, as ciências humanas e naturais se voltam para a delimitação de seus objetos de interesse, tornando-se incomunicáveis entre si. Do mesmo modo, à medida que a ciência é instituída como a pedra de toque de toda verdade, como o ponto de partida e de chegada de toda certeza, o conhecimento científico vai aos poucos se opondo à experiência cotidiana e ao senso comum.

Essa centralidade da racionalidade moderna também se fez sentir nos processos de organização dos conhecimentos instituintes: na hierarquização entre os saberes, na oposição entre as ciências humanas e naturais, na centralidade e no privilégio dos saberes científicos em detrimento dos saberes não científicos (prática e senso comum) (Candau, 2007). Em consequência, essa influência da racionalidade moderna sobre os conhecimentos instituintes reverbera, ainda hoje, nas opções curriculares e, portanto, na forma como aprendemos a representar o homem e a natureza. Como veremos a seguir, a hierarquização entre os saberes e a oposição entre as ciências humanas e naturais têm um papel decisivo na forma como definimos o que seja o propriamente humano e o propriamente natural. Tais definições, que carregam a marca dos esquemas binários e dualistas, constituem o fundamento do tratamento historicamente dispensado à relação homem/natureza no âmbito das abordagens curriculares.

Com efeito, a experiência revela que o currículo escolar tanto acolhe as transformações postas em curso pela modernidade (avanço da ciência e da técnica, consolidação do capitalismo industrial e da sociedade de consumo) quanto reproduz as narrativas técnicas e científicas constituintes desse projeto de sociedade. Ora, não podemos esquecer que a educação formal, resguardada a diversidade cultural, sempre foi um projeto intencional em disputa. Um campo de força entre diferentes interesses políticos, econômicos e ideológicos que objetivam responder às demandas da sociedade. Não por acaso, as concepções de currículo, das mais instrumentais às mais humanistas e/ou críticas, são fortemente influenciadas pelos discursos e prerrogativas sociais, políticas e econômicas predominantes em cada contexto (idem).

No cotidiano escolar, as práticas curriculares traduzem esses discursos e prerrogativas em microrrelações pautadas na hierarquização entre sujeitos e saberes. Afirmam as identidades pautadas em modelos socialmente aceitos e negam toda diversidade que de algum modo contesta as normas sociais e os valores preestabelecidos. Privilegiam os conhecimentos das ditas ciências duras, baseados nas ideias de aplicabilidade e utilidade, e relegam as humanidades, as artes, os saberes populares e emergentes, as narrativas poéticas e metafóricas à condição de não saber.

Decorre daí entender que toda escolha curricular é uma escolha política mesmo quando não estamos plenamente conscientes disso. Em sendo assim, o currículo é mais que o repertório de conhecimentos sistematizados que pautam a formação das presentes e futuras gerações. Currículo é, sobretudo, uma disputa de sentidos sobre qual homem e qual mulher se pretende (de)formar para a transformação e/ou manutenção de um determinado modelo de sociedade. A escolha de um viés curricular condiciona e é condicionado por um modelo de humanidade que se queira pôr em curso; condiciona e é condicionado pelos valores, práticas e relações que se queira manter ou transformar (Silva, 2007).

Nesse contexto, a questão socioambiental, hoje postulada como transversal e interdisciplinar, tem sido frequentemente desafiada a encontrar brechas para se colocar em lugar de destaque no âmbito de uma lógica curricular fundada e fundamenta pelos cânones da racionalidade científica moderna. Logo, os esforços de consolidação de uma educação ambiental constituem também os esforços de enfrentamento da clássica separação entre ciências humanas e ciências naturais e dos binarismos daí decorrentes.

Esse cenário revela um desafio de amplitude e desdobramentos epistemológicos significativos. Trata-se, portanto, de buscar responder a uma questão fundamental que apresentamos aqui nos seguintes termos: como consolidar nos espaços/tempos de formação humana uma reflexão ontológica sobre a relação homem/natureza dentro de uma base conceitual que se estabeleceu pela separação entre tudo que se acredita plenamente cultural e humano, de um lado, e tudo que se acredita plenamente natureza de outro?

Uma resposta, ainda que preliminar a essa questão, demanda um retorno à origem e às dimensões conceituais da oposição homem/natureza. Essa digressão, por assim dizer, cumprirá aqui o propósito de revelar a fragilidade do binarismo homem/natureza e a impossibilidade de sua sustentação diante das evidências cotidianas e dos vestígios históricos e geológicos de que somos, ao mesmo tempo, cultura e natureza e de que a história das sociedades humanas comporta uma relação inexorável com a história do universo natural.

Avançado nas reflexões, adiante sustentaremos que uma das tarefas primordiais da educação ambiental é reconciliar aquilo que a racionalidade moderna separou. Noutros termos, é reconciliar as dimensões biofísicas e culturais que constituem o humano. Nosso entendimento é de que esse percurso de desconstrução conceitual se coloca hoje como um desafio para a construção de um campo epistêmico híbrido, interdisciplinar e dialógico, que nos permita tanto revisitar os fundamentos de nossas representações de mundo quanto forjar outra ética balizadora da relação homem/natureza.

DUALISMO HOMEM/NATUREZA: DA ILUSÃO DO OPOSICIONISMO ANTITÉTICO

Seguindo o percurso das reflexões tecidas no item anterior, uma questão se coloca: quais as implicações que a influência da racionalidade moderna aporta à forma como aprendemos a pensar e representar a relação homem/natureza? E, a despeito dessa herança, é possível, se não superar o dualismo homem/natureza, ao menos construir uma representação menos oposicionista dessa relação?

Segundo Edgar Morin, a consolidação da ciência moderna e de seu método de quantificação e objetivação, bem como a definição de objetos próprios às ciências humanas e às ciências da natureza, selou a ideia de um suposto binarismo intransponível entre natureza e cultura. A dualidade antitética entre cultura e natureza, espírito e matéria, sujeito e objeto, impôs-se como paradigma conceitual e metodológico predominante:

a biologia estava encerrada no biologismo, ou seja, uma concepção de vida fechada no organismo, tal como a antropologia no antropologismo, ou seja, uma concepção insular do homem. Ambas pareciam concernidas por uma substância própria, original. A vida parecia ignorar a matéria físico-química, a sociedade, os fenômenos superiores. O homem parecia ignorar a vida. O mundo parecia, portanto, feito de três estratos sobrepostos não comunicantes: Homem-Cultura, Vida-Natureza e Física-Química. (Morin, 1975, p. 23)

Considerando essa dualidade, Morin propõe uma leitura dialógica dos conceitos de cultura e natureza que pode ser assim resumida: mutuamente implicados, esses elementos ganham sentido numa relação de interdependência paradoxal. Uma vez reaproximados, restaurados, conformam um binômio que se complementa e se antagoniza. Mas em que consistem a complementaridade e o antagonismo homem/natureza?

Seria possível falar desse antagonismo recorrendo a diversos argumentos, mas trataremos a questão com base nos aspectos que são mais evidentes e recorrentes na teoria da complexidade de Morin (2003). Ora, não apenas a sobrevivência do homem, mas também a invenção das sociedades históricas só foram possíveis pela via de um processo complexo de emergência da linguagem tipicamente humana e, consequentemente, do desenvolvimento de artefatos, técnicas e conhecimentos que permitiram ao homem domesticar a mesma natureza que em temporalidades ulteriores o domesticava.

O homem construiu sua sobrevivência e sua história subjugando a natureza, disputando com ela, nela e contra ela, a possibilidade de se perpetuar como espécie. Não obstante, como o homem não é apenas biofísico, mas também um ser de linguagem e de pensamento, o antagonismo homem/natureza ultrapassou a esfera material da sobrevivência e emergiu como possibilidade de distinção entre o subjetivismo e as coisas; entre o eu antropocêntrico, o tipicamente humano, e as coisas bióticas e abióticas consideradas por comparação e exclusão como não humanas.

Nossa identidade se construiu, portanto, por evidências que nos levaram a estabelecer um abismo entre aquilo que acreditamos constituir nossa identidade e aquilo que consideramos ser um mundo fora de nós. Assim, embora sejamos "mamíferos da espécie dos primatas, da família dos homínidas, do gênero homos, da espécie sapiens [...], uma máquina de trinta bilhões de células, controladas e procriadas por um sistema genético" (Morin, 1975, p. 19), somos seres de linguagem, de fala, de pensamento, de subjetividade. Com efeito, por que não acreditar que o destino desse metavivo seja "evidentemente excepcional em relação aos dos animais"? Se "edificamos cidades de pedra e de aço. Inventamos máquinas, criamos poemas e sinfonias, navegamos no espaço; como não acreditar que, embora saídos da natureza, já somos extranaturais e sobrenaturais?" (idem, ibidem).

Contudo, pode-se perceber que os mesmos argumentos que usamos para opor homem e natureza oferecem elementos para considerar que a noção de homem não se encerra num pertencimento meramente cultural ou meramente biológico. O que define a condição humana não é só a cultura e a linguagem, tampouco só o biofísico. A cultura se expande para além do biológico e por isso possui uma existência subjetiva, imaterial. Todavia, ela nasce, enraíza-se e depende de uma dimensão biológica.

Do mesmo modo, a vida existe independentemente da cultura, posto que é anterior ao surgimento do homem. Contudo, sua continuidade, sua história, é animada, renovada e significada pela linguagem e pelo universo simbólico-cultural que lhe impuseram, e ainda lhe impõem, significados e transformações. Noutros termos, embora a natureza seja anterior ao homem, seu curso e sua história são decisivamente influenciados e transformados com o surgimento da cultura. Analogamente, embora o homem represente a emergência de uma vida animada por um espírito, por assim dizer, o homem continua natureza, ou seja, permanece vida no sentido biológico do termo.

Apesar de a cultura e de a linguagem terem proporcionado a construção de instrumentos e técnicas que permitiram ao homem superar a subjugação da natureza, ele permanece dependente de sua condição material. Ou seja, o homem, por mais cultural que seja, por mais racional que seja, permanece escravo de sua condição biológica e dependente dos recursos que o ambiente natural lhe oferece. Portanto, mesmo superando a subjugação da natureza, o homem continua natureza e permanece dependente dela.

Importa notar que Morin chega a essas formulações constatando que, apesar da oposição disciplinar entre as ciências humanas e as ditas ciências duras, construiu-se um terreno propício à contestação da rigidez teórica que opõe homem e natureza. Mais precisamente, foi com o avanço dos estudos da antropologia e da biologia realizados a partir do século XX que se pôde reconhecer que a organização social complexa que envolve disputas, solidariedades e competição é um fenômeno tão cultural quanto natural. Do mesmo modo, as noções de linguagem, comunicação, organização e sociedade passaram a ser vistas como fenômenos presentes tanto nos ecossistemas biofísicos quanto nos sistemas sociais humanos (idem).1 1 Não cabe aqui um tratamento exaustivo acerca dos referidos avanços conceituais que ocorreram no bojo da antropologia e da biologia. Para um melhor esclarecimento a respeito, sugerimos consultar Edgar Morin (1975).

A ideia de organização biossociológica complexa que as ciências humanas tenderam a tomar como uma invenção humana passou a ser entendida como uma manifestação de todos os sistemas vivos. Com efeito, a sociedade humana é apenas "uma variante [...], um desenvolvimento prodigioso do fenômeno natural, [...] uma das formas fundamentais, muito amplamente disseminadas, muito desigualmente, mas muito diversamente desenvolvida, da auto-organização dos sistemas vivos" (idem, p. 34).

Ao evidenciar esses laços que aproximam a lógica de organização dos sistemas naturais e sociais, Morin enfatiza a inalienável relação entre sociedade e natureza. Nesses termos, desde a teoria da complexidade, a relação entre o humano e seu ambiente natural é assim entendida: quanto mais o homem subjuga a natureza, mais ele se torna autônomo; mas, quanto mais ele se torna autônomo, mais necessidades ele produz, assim tanto mais ele se torna dependente da natureza. Gera-se então uma relação recursiva na qual quanto maior a independência, maior a necessidade e a dependência (idem, p. 30).

Uma questão interessante que se desdobra da analogia entre os sistemas naturais e as sociedades humanas é a possibilidade de se pôr em xeque verdades convencionalizadas pelas ciências humanas e pelas ciências da natureza, como a ideia de que os universos biofísico e cultural podem ser tratados separadamente por serem não apenas opostos, mas também sobrepostos. Ora, não se pode ignorar que a linguagem, o pensamento e os gestos, embora sejam processos culturais, só se realizam plenamente por meio de uma boca, de um cérebro e de um corpo biofisicamente constituído (Morin, 2003). Uma constatação aparentemente simplista como essa nos leva, no mínimo, a questionar se as fronteiras entre o cultural e o físico-biológico são realmente rígidas como se supunha.

Se o que se acreditava absolutamente humano e cultural mostra-se como fenômeno também inerente ao biológico, não seria o caso de nos empenharmos numa revisão da oposição antitética homem/natureza? Do mesmo modo, não seria o caso de questionarmos se o universo, a natureza e a sociedade humana se organizam por uma ordem estática e reguladora, como quiseram os precursores da ciência moderna? Mas, ao contrário, pela via de um processo contraditório entre cooperação e disputa, ordens e desordens?

Como é possível notar, Morin propõe um desprendimento dos discursos oposicionistas e o reconhecimento da mútua implicação entre processos culturais, sociais, biológicos e físicos. Propõe, portanto, admitir a inerência da incerteza no conhecimento e a necessidade de se forjar um entendimento complexo sobre a realidade. Nesse sentido, afirma que o diálogo de saberes é condição fundamental para a construção de um conhecimento menos fragmentado e que por isso mesmo oferece uma leitura mais rica dos dilemas atuais. Tal diálogo demanda, por sua vez, uma aproximação entre as ciências humanas e as ciências da natureza; entre os conceitos hegemonicamente consolidados pela tradição moderna e os conceitos emergentes; entre os saberes acadêmicos e os saberes da prática, das culturas tradicionais, da vivência; entre as diversidades humanas e dessas com a biodiversidade (idem).

Por fim, é preciso dizer que, apesar da força irresistível que os binarismos modernos ainda exercem sobre a forma como construímos e organizamos o conhecimento e consequentemente sobre a forma como pensamos e agimos em relação ao ambiente circundante, o contexto atual tem nos levado, cada vez mais, a reconhecer a fragilidade dos esquemas binários. Com efeito, em que pese o poder instituinte da racionalidade moderna, temos assistido a uma significativa renovação na forma de entender o que se convencionou definir como tipicamente humano e como tipicamente natural. O humano já não pode mais ser entendido como uma existência superior e refratária às influências do universo natural; o natural, por sua vez, também não pode mais ser entendido como uma realidade externa, amorfa e ignara, que serve apenas aos desígnios e aos interesses humanos.

Nas reflexões que se seguem, trataremos de elucidar que os problemas socioambientais têm o mérito de trazer ao centro da construção do conhecimento um processo de restauração dos conceitos de homem e de natureza. Isso pressupõe, sobretudo, reconhecer que o humano e o natural não constituem extratos opostos e sobrepostos, mas que a constituição e a existência de um e de outro se dão por um processo recursivo e paradoxal que envolve cooperação e disputa. Essa revisitação das representações de homem e de natureza, bem como de suas relações, traz relevantes implicações epistêmicas e pedagógicas às práticas de educação ambiental. É o que veremos a seguir.

HOMEM E NATUREZA: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM CONSTRUÇÃO

O que é o conhecimento e como o alcançamos? Essa questão sempre figurou como uma das grandes inquietações humanas. Tanto as ciências sociais quanto as ciências biofísicas empenharam esforços na tentativa de elucidar essa questão que ainda hoje permanece um mistério.

A querela entre racionalistas e empiristas talvez represente, ao menos do ponto de vista filosófico, o percurso mais prodigioso que a mente humana conseguiu alcançar a fim de responder a essa questão. Responder, bem entendido, não de forma definitiva, única e verdadeira, mas até onde o lógico, o racional e o científico consideram aceitável.

A esse respeito, é bom lembrar que as mais diferentes respostas a essa questão tomam de empréstimo seja a máxima racionalista de que o conhecimento é inato, seja a máxima empirista de que o conhecimento é produto da experiência sensível, do contato direto de nossos sentidos com os objetos. Há que se considerar ainda a tentativa de se construir uma síntese entre racionalismo e empirismo, que, grosso modo, sugere que o conhecimento resulta de ideias inatas e ao mesmo tempo da experiência vivida (Marcondes, 2008).

Embora consideremos que a tensão entre o racionalismo e o empirismo seja um ponto de partida natural, por assim dizer, de qualquer reflexão que se coloque o problema da construção do conhecimento, a teoria das representações sociais de Serge Moscovici oferece uma perspectiva igualmente relevante para a formulação de algumas hipóteses acerca das representações de homem e de natureza.

Em linhas gerais, a teoria das representações sociais tem como mote os processos de mudanças e as tensões paradoxais entre o novo e o velho, entre a conservação e a subversão de ideias e comportamentos. Para Moscovici (2009), por ser produto das paixões humanas, o conhecimento nunca é desinteressado. O conhecimento é, ao mesmo tempo, resultado das circunstâncias em que nos encontramos, das ideias que internalizamos e das experiências que vivenciamos. Dito de outro modo, as representações são tanto os modos de pensar que resultam do encontro entre circunstâncias, ideias e experiências, quanto as ideias já internalizadas por nós e das quais lançamos mão para construir novas representações, ressignificar o mundo e agir no mundo.

Uma vez que os processos de mudança e de inovação incidem sobre a forma como pensamos, não se pode tomar as representações como algo dado nem como a única variável explicativa das ideias e das ações. O que importa é entender como as representações são construídas, ou seja, como são mantidas ou modificadas. O entendimento de que nossas ideias e ações são formulações construídas socialmente coloca as representações num limbo, num jogo paradoxal entre a mudança e a manutenção. Assim, contrariando as teorias que banalizam a influência do social e do cultural sobre o modo como pensamos, a teoria das representações sociais atribui a eles um papel condicionante do nosso modo de pensar. Ora, se os processos de mudanças sociais são fatos históricos – e eles o são –, isso põe à prova a assertiva de que a influência social promove apenas processos de conformidade e de submissão.

Ao considerar a variedade de ideias e as disputas de sentidos que permeiam as relações humanas, Moscovici nos leva a entrever que existem relações desiguais de poder que produzem uma heterogeneidade de representações. As tensões históricas entre ideias, ou mesmo os eventos circunstanciais, criam pontos de ressignificação que geram novas representações. Do mesmo modo, a emergência de novos interesses humanos gera novas formas de comunicação que, por sua vez, geram novas representações.

Considerando, portanto, que a emergência de novos interesses humanos gera novas representações, Moscovici (2009) sustenta que uma das funções das representações sociais é tornar familiar o não familiar. Sendo assim, em algum momento da história humana recente fomos familiarizados com os dilemas socioambientais; e essa familiarização fez emergir um interesse renovado pelos universos humano e natural, bem como pelas suas relações. Nesse contexto, a questão que se coloca é: de que modo a problemática socioambiental tem se tornado familiar na contemporaneidade? Ou, melhor dizendo, qual o papel que as práticas escolares e sociais exercem nesse processo de familiarização? Quais as representações sobre o homem, a natureza e suas relações são difundidas no âmbito desses processos?

Para propor uma resposta a essas questões, ainda que preliminar, é preciso considerar que a representação não é apenas um modo de compreender os objetos. É também um processo de identificação do sujeito com o objeto, uma vez que a representação veicula um valor simbólico sobre algo. Nos termos de Denise Jodelet (1989), isso pressupõe considerar que a representação é um conhecimento prático que conecta o sujeito ao objeto. Consequentemente, considerar o conhecimento de algo em sua dimensão prática remete, fatalmente, à "experiência a partir da qual ele é produzido, aos referenciais e condições em que ele é produzido e, sobretudo, ao fato de que a representação é empregada para agir no mundo e nos outros" (idem, p. 43-44).

Ademais, se considerarmos que na comunicação educativa há sempre um esforço para se compreender as coisas com base em determinadas ideias, tal esforço sinaliza a intenção de influenciar o pensamento e a ação dos outros por um ponto de vista minimamente aceitável ou mesmo hegemônico. Isso explica, até certo ponto, porque um fato ou um fenômeno é abordado de um determinado modo e não de outro.

Tomando como base as teorias críticas e pós-críticas de currículo, o mesmo se daria em relação aos conhecimentos escolares e às práticas e ideias suscitadas por esses conhecimentos. A escolha dos saberes que devem compor a formação escolar nunca é desinteressada, ou seja, a opção por determinado conhecimento revela um modo de pensar e de agir que se queira pôr em curso. Logo, a forma como a questão socioambiental é abordada no ambiente escolar, bem como as concepções de homem e de natureza aí subjacentes e difundidas, está diretamente relacionada aos campos do conhecimento que institucionalizaram esses conceitos.

O que a prática pedagógica e curricular revela é um apego à tradição disciplinar. Fiel a essa tradição, o currículo em voga reproduz o positivismo científico, que fragmenta o conhecimento em áreas de saber e que o isola em objetos particulares com abordagens cada vez mais hiperespecializadas. Assim, o homem, a natureza e os problemas socioambientais são tomados como objetos específicos de uma determinada ciência, e por isso mesmo são tratados isoladamente pelas ciências humanas ou pelas ciências biofísicas.

Não por acaso, a tradição moderna sob a qual o currículo se resguarda oferece parcas contribuições para renovar a abordagem sobre a problemática socioambiental. O homem, seus feitos, sua história, suas criações, seus inventos, suas guerras e suas conquistas são competências da história, da sociologia, da filosofia, das artes e da geografia – nesse último caso, especificamente da geografia humana e da geopolítica. A natureza, suas leis de funcionamento, sua história evolutiva, sua lógica organizacional, seus movimentos geológicos, seus ciclos naturais, sua matéria física e biológica são, por sua vez, competência da biologia, da química, da física. Cabe, por fim, a uma determinada biologia e à geografia, mas sobretudo à ecologia, a tarefa de tratar das questões ambientais.

Embora os problemas socioambientais sejam referidos nos parâmetros curriculares como um tema transversal, ou seja, como uma questão que diz respeito a todas as áreas disciplinares, na maioria das vezes as práticas de educação ambiental resultam de iniciativas isoladas, do interesse particular de um determinado professor pela temática – quase sempre dos professores com formação em biologia, ecologia e geografia. Nas raras vezes em que as práticas de educação ambiental partem de um esforço coletivo e de um projeto comum, as abordagens acabam por se restringir a um enfoque biologista, naturalista e preservacionista, sobre o qual apenas os professores das ciências biofísicas se sentem qualificados para falar.

Os professores das humanidades e das artes aparecem nesse contexto como coadjuvantes bem-intencionados que apoiam moralmente a iniciativa por questão de princípio. Essa postura destila o sentimento de que, embora a questão socioambiental represente a crise de um modelo de civilidade e resulte, portanto, das escolhas éticas, técnicas, científicas e econômicas que fazemos, é como se as ciências humanas não tivessem muito a oferecer no intuito de elucidar os problemas socioambientais e de propor soluções aos dilemas que eles nos colocam.

E ainda que se considere o empenho das diferentes áreas do conhecimento no intuito de tratar a problemática socioambiental no espaço escolar, de suscitar posturas e mentalidades mais sustentáveis, menos impactantes e menos utilitaristas e consumistas, o fato é que as abordagens ainda reproduzem a oposição entre o homem e a natureza. Seja porque se preocupam em preservar a natureza tendo em vista apenas a sobrevivência e a continuidade humana, seja porque desejam preservar a natureza buscando neutralizar a intervenção humana. Nas duas perspectivas, desconsidera-se que a relação homem/natureza é inexorável e que a preservação da vida humana e não humana, bem como a continuidade da diversidade humana e da biodiversidade, depende de uma conciliação entre o social e o natural.

Mais que isso, o que os profissionais dos diferentes pertencimentos disciplinares parecem ignorar é que a história humana está inalienavelmente enraizada e vinculada num ambiente biofísico. Parecem ignorar, portanto, que desde a emergência do humano a história da natureza está invariavelmente marcada pelas intervenções do homem e que, recursivamente, a história humana resulta de nossas respostas aos desafios que a natureza e seus fenômenos nos impuseram e ainda nos impõem.

Do mesmo modo, as abordagens sobre a relação homem/natureza também passam ao largo de uma constatação não menos importante que a mencionada anteriormente, qual seja, o fato de que, embora recorrentemente definamos o humano como sendo sobretudo razão, linguagem, pensamento, "o cérebro com que pensamos, a boca pela qual falamos e a mão que usamos para escrever são órgãos biológicos" (Morin, 1975, p. 19), ou seja, ignoramos que – ou nos esforçamos por esquecer –, se existe algo de plenamente humano, é o fato de que não somos plenamente humanos, somos ao mesmo tempo culturais e biofísicos.

O fato é que, como lembra Morin, o nosso vínculo biofísico se tornou ao longo da aventura humana uma evidência estéril. Embora seja improvável que possamos nos desvencilhar de nossa matéria biofísica para construir uma existência plenamente cultural e racional fora da natureza, de diferentes modos a humanidade se esforçou por mostrar, provar e convencer que a natureza é aquilo que nos subtrai, aquilo que nos minimiza, e não aquilo que nos constitui e que nos fundamenta (Atlan, 2002; Morin, 1975; Serres, 1990).

É bem verdade que, do mesmo modo como as ciências humanas ignoram nosso pertencimento biofísico, as ciências biofísicas também ignoram que, embora para existir a natureza prescinda da presença humana, essa presença altera a natureza, seja em sua história e em sua materialidade, seja em sua idealidade e representação. Afinal, natureza também é aquilo que definimos como tal.

Nesse sentido, outro aspecto que resulta das abordagens sobre as questões socioambientais merece atenção. As abordagens naturalistas das questões socioambientais são puristas à medida que reproduzem uma concepção de natureza como sendo puramente biofísica, como sendo geograficamente e paisagisticamente oposta aos ambientes artificializados e urbanizados.

O que está em jogo nessa concepção é a reprodução de uma ideia de natureza em que o humano e suas construções não têm lugar (Atlan, 2002; Morin 2003; Serres, 1990). Assim, do mesmo modo como as ciências humanas reproduzem uma concepção insular de homem que nega seu pertencimento natural, sua condição de ser vivo, também as ciências biofísicas acabam por reproduzir uma concepção pura de natureza que nega a condição social de todo ser vivo. Ora, isso contraria a evidência de que não só os objetos, os artefatos e os ambientes que fabricamos são natureza transformada, mas também que o próprio homem é natureza transformada. Não apenas o mundo artificial que construímos, mas também nós mesmos somos objetos híbridos: temos uma origem biofísica e vamos além dessa origem para nos revelar também como objetos de cultura. A realidade que construímos e nós mesmos somos mistos de cultura e de natureza.

Mas, se as evidências nos mostram que o dualismo homem/natureza só se sustenta discursivamente, se a materialidade das existências humanas e não humanas revela a fragilidade desse oposicionismo, se esse oposicionismo tem como consequência o esfacelamento de uma visão mais integradora da relação cultura/natureza, por que então a visão dualista ainda se mostra hegemônica em nossas abordagens sobre as questões socioambientais?

Nossa tese é a de que a força discursiva do dualismo homem/natureza e sua predominância nos nossos modos de pensar e de agir resultam dos nossos fundamentos; dos saberes com os quais aprendemos a agir e a pensar, com os quais definimos os princípios éticos que balizam nossas ações, com os quais definimos o que é o humano e o que é o natural. Nossos fundamentos, e nesse caso a referência é à racionalidade moderna e seus conhecimentos instituintes, são originalmente dualistas. Eles nascem e se fortalecem sob a égide de uma epistemologia e de uma metodologia que condiciona a possibilidade do conhecimento verdadeiro e confiável ao isolamento da realidade, à definição de objetos competentes a determinados campos do saber e consequentemente à fragmentação disciplinar do conhecimento.

Nossos currículos escolares são cópias fieis dessa lógica. Organizam e abordam os conhecimentos também de forma fragmentada, de modo que cada área disciplinar se ocupa de seu objeto, de seus temas, sem se comunicar com os outros campos do saber. Do homem se ocupam as ciências humanas e as artes; da natureza se ocupam as ciências biofísicas. À problemática socioambiental, objeto híbrido por princípio, concernente portanto a todos os campos disciplinares, resta a condição de objeto residual, que é fortuitamente tratado e cuja abordagem está sujeita aos interesses e às visões particulares dos que se ocupam dessa questão.

Por fim, considerando que nossas ações correspondem, até certo ponto, às representações que adotamos, reproduzimos e ou transformamos ao longo de nossas vivências e, ainda, que nossas representações são construídas no processo de formação escolar, temos então duas assertivas: primeiro, que a forma como definimos o humano e o natural condiciona a maneira como nos relacionamos com a natureza; segundo, que a escolha curricular que fazemos é em certa medida o fundamento pelo qual construímos um jeito de pensar o ambiente e de agir sobre ele.

Logo, são os nossos fundamentos, no caso em questão o currículo e seus fundamentos calcados na racionalidade científica moderna, que precisam ser revisitados se quisermos pôr em curso uma formação humana em que educar para o ambiente não seja um fato residual, mas central. Isso implica pôr em curso uma educação na qual o homem, a natureza e suas relações não sejam tomados como objetos particulares de determinados campos do saber, mas entendidos como pertinentes a todas as áreas do conhecimento humano. Isso implica, finalmente, pôr em curso uma educação e um conhecimento que não isole o humano do natural, mas, ao contrário, que os reconcilie, recolocando o humano no natural e o natural no humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões apresentadas ao longo deste artigo não se pretenderam, sob qualquer aspecto, conclusivas. As ideias aqui lançadas se prestaram antes ao papel de sinalizar para a urgência de um debate epistêmico que fundamente as abordagens da relação homem/natureza no âmbito das práticas de educação ambiental. Do mesmo modo, nosso propósito não foi o de prescrever os termos dessa relação que sempre nos inquietou, e que seguirá nos inquietando, tampouco o de estabelecer as bases de uma possível educação ambiental, posto que sua riqueza reside na pluralidade.

Nesse sentido, estamos longe de crer que uma visão integradora possa suplantar de forma definitiva o dualismo homem/natureza. Contudo, as evidências nos mostram que o entendimento da crise socioambiental e a construção de ideias e de comportamentos que contribuam para o equacionamento dos dilemas atuais exigem um empenho em favor de uma formação humana que nos faça entender a mútua implicação entre o cultural e o natural. Como dissemos anteriormente, isso demanda a construção de uma epistemologia engajada na reconciliação da cultura e da natureza e no reconhecimento de que o biofísico não é a condição que nos minimiza, mas a condição que nos fundamenta e nos constitui.

Dessa feita, a construção de uma compreensão mais ampla da relação homem/natureza, bem como a opção por uma abordagem mais integradora dessa relação, exige ir além da articulação entre os aportes teóricos. Exige, portanto, elucidar as representações de homem e de natureza difundidas nos discursos e nas práticas de educação ambiental. Demanda, ademais, um olhar e uma escuta sensíveis para reconhecer no dito e no não dito, nos gestos cotidianos e nas vivências curriculares, os modos pelos quais aprendemos e ensinamos a pensar a relação homem/natureza e, consequentemente, a agir no, pelo e com o ambiente.

O ponto de partida de tal epistemologia parece ser o entendimento de que toda escolha curricular é uma escolha política, mesmo quando não estamos plenamente conscientes disso. Ora, se o currículo aporta uma verdade sobre o mundo, é justamente essa verdade que precisa ser posta à prova. Com efeito, a verdade que precisamos fazer balançar é a clássica oposição que alienou o humano de sua condição natural; é a dualidade que hierarquizou cultura e natureza a ponto de nos fazer acreditar que já não somos mais natureza e que, pela força de nossa superioridade, construímos um mundo de cultura do qual a natureza só participa como matéria-prima.

Como vimos, essa dualidade está inscrita e firmemente estabelecida nos cânones da racionalidade moderna. Nos preceitos de uma razão que se estabeleceu por meio de esquemas binários que ainda hoje participam de modo decisivo na forma como agimos e pensamos. Não por acaso, nossas relações estão profundamente marcadas pela ideia de que para nos tornarmos plenamente humanos precisamos nos distanciar do estado natural, precisamos negar nossa condição biofísica e nossa animalidade.

Não obstante, somos contemporâneos de um discurso emergente que revela a inconsistência dos argumentos que desejam sustentar a oposição homem/natureza – e todos os dualismos daí decorrentes. Reconhecemos cada vez mais que a dualidade homem/natureza apenas evoca um dilema entre o homem dissociado da matéria e o homem preso nela. E mais, que esse dilema – se ainda existe – existe apenas na idealidade, posto que, concretamente, se há algo de propriamente humano, é o fato de que somos ao mesmo tempo cultura e natureza.

Finalmente, a tônica recursiva desse debate reaparece: ocorre que, como vimos ao longo deste artigo, o reconhecimento de nosso duplo pertencimento ou, melhor dizendo, a reconciliação do humano com sua condição biofísica exige o enfrentamento da insularidade infértil a que foram submetidos os conceitos de homem e de natureza. Exige, portanto, uma revisitação do currículo e de seus fundamentos historicamente pautados na lógica binária e disciplinar da racionalidade moderna.

SOBRE A AUTORA

Ana Tereza Reis da Silva é doutora em meio ambiente e desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pela Universidade de Paris X. Professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: tapajuara@gmail.com

Recebido em setembro de 2011

Aprovado em setembro de 2012

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  • Jodelet, Denise. Répresentations sociales Paris: PUF, 1989.
  • Larrère, Catherine; Larrère, Raphael. Du bom usage de la nature: pour une philosophie de l'environnement. Paris: Aubier, 1997.
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  • Morin, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
  • ______. Método V: a humanidade da humanidade – a identidade humana. 2. ed. Porto Alegre: Sulinas, 2003.
  • Moscovici, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
  • Serres, Michel. Le contrat naturel Paris: Éditions François Bourin, 1990.
  • Silva, Tomas Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
  • 1
    Não cabe aqui um tratamento exaustivo acerca dos referidos avanços conceituais que ocorreram no bojo da antropologia e da biologia. Para um melhor esclarecimento a respeito, sugerimos consultar Edgar Morin (1975).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Set 2011
    • Aceito
      Set 2012
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