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EDITORIAL

As práticas culturais de leitura e de escrita, para além dos processos de ensino e de aprendizagem formal, constituem, desde tempos imemoriais, um tema controverso e complexo nas ciências humanas e sociais por seu alcance político e suas implicações na vida social e de cada indivíduo em particular. Este número da Revista Brasileira de Educação focaliza essas práticas pela ótica da pesquisa educacional e em seus aspectos históricos, socioculturais, cognitivos e afetivos. Problematiza-se, direta ou indiretamente, nos diferentes artigos, o fato de se ter ou não acesso a essas práticas, de ser ou não privado desses bens imateriais, evidenciando-se suas repercussões sobre as condições de letrado ou de iletrado, de inserção ou exclusão profissional, a divisão entre saberes eruditos e populares, a percepção do urbano e do rural, a oposição entre civilização e barbárie.

Correlatos às atribuições da escola de promover a universalização da leitura e da escrita, outros temas de igual interesse, tais como autoridade e poder, perpassam o conjunto dos artigos e renovam o debate com foco nas noções de autonomia e empoderamento, que se impuseram na modernidade tardia. Retomam-se aqui as contribuições de Paulo Freire e Célestin Freinet sobre a educação como espaço democrático e de cooperação. Esta última noção, eleita como tema central da II Bienal da Educação (Paris, 2015), insere-se numa nova "cultura da ação" e é rica em aberturas para a pesquisa educacional sobre a ação coletiva, coparticipação, experiência, acompanhamento.

O primeiro artigo, "Leitores rurais: apropriação ético-prática nos sentidos atribuídos à leitura", de Lisiane Sias Manke, traz uma reflexão sobre as práticas de leitura desenvolvidas no meio rural, fundamentada no conceito de apropriação, estudado por Roger Chartier, e no aporte teórico de Bernard Lahire, que propõe análises numa escala em que o social é abordado individualmente. O estudo da trajetória de seis agricultores, com mais de 70 anos de idade e que leem cotidianamente, permite esboçar outra imagem das práticas de leitura no mundo social e desmitificar diferenças entre hábitos culturais urbanos e rurais. Nas narrativas desses leitores rurais assíduos, os temas mais recorrentes apresentam uma aproximação entre esquemas da experiência e apropriações ético-práticas da leitura.

A população adulta e o letramento são também centrais no texto "Apropriação de práticas de letramento escolares por estudantes da Educação de Jovens e Adultos", de Fernanda Maurício Simões e Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca. As autoras discutem os modos como jovens e adultos, enquanto sujeitos de cultura e de conhecimento, mobilizam saberes relacionados aos usos da língua escrita para dar sentido às práticas letradas escolares. A compreensão desses saberes auxilia na percepção da dimensão sociocultural das situações de ensino e, portanto, da necessidade de que elas sejam construídas a partir do diálogo com os processos de aprender dos educandos.

Ainda na perspectiva do adulto, o texto "'Iniciativa Novas Oportunidades' e 'NOL+': dois estudos de caso no Algarve (Portugal)", de Catarina Doutor, Helena Quintas, Carlos Miguel Ribeiro e António Fragoso, discute um marco na educação de adultos em Portugal. A "Iniciativa Novas Oportunidades", além de introduzir a certificação de conhecimentos e a qualificação profissional de adultos, visa à melhoria dos níveis de literacia da população-alvo. Como procedimentos de recolha dos dados empíricos foram utilizadas a pesquisa documental e as entrevistas semiestruturadas com diretores e coordenadores de dois centros que participaram da parceria. Os resultados revelam que a iniciativa Novas Oportunidades a Ler+ (NOL+) melhorou o acesso à informação e às atividades culturais, promovendo o desenvolvimento da literacia e a participação cívica. Em ambos os centros, a aprendizagem era entendida como um ato cotidiano indissociável da participação na vida coletiva, o que leva a concluir que as práticas de literacia examinadas promoviam a conscientização no seu sentido freiriano.

Fechando esse grupo de quatro textos sobre práticas culturais de leitura e escrita, Francisco Canindé da Silva e Marisa Narcizo Sampaio abordam no artigo "Cinquentenário das '40 horas de Angicos': memória presente na educação de jovens e adultos" a experiência político-pedagógica coordenada por Paulo Freire, nos anos de 1960, na cidade de Angicos (RN), que visava alfabetizar, em quarenta horas, trezentos trabalhadores rurais, artesãos, operários, adotando princípios de valorização cultural, politização e emancipação do aprendente. As entrevistas realizadas com treze educandos e coordenadores dos círculos de cultura, que participaram dessa experiência, fazem emergir a ideia de que a força que a mantém viva em suas memórias reside nos princípios democráticos de acesso às práticas de leitura e de escrita, de igualdade social e de condições de uma existência mais digna. Depreende-se de suas rememorações a alegria de terem aprendido a ler e a escrever por meio de uma experiência da qual se autodenominam coautores.

Um segundo grupo de quatro textos situa-se em uma perspectiva histórica e inicia-se com o artigo "Letrados da Amazônia Imperial e saberes das populações analfabetas durante a Revolução Cabana (1835-1840)", de Magda Ricci e Luciano Demetrius Barbosa Lima. Discute-se como alguns letrados e políticos da Amazônia compreenderam a cultura iletrada na Cabanagem, movimento revolucionário, ocorrido na província do Grão-Pará, entre 1835 e 1840, e procura-se investigar como a participação de populações não letradas esteve permeada por conceitos ou preconceitos. A obra Motins políticos, do historiador e político imperial Domingos Antônio Raiol, constitui a principal fonte de pesquisa sobre as motivações das lutas populares cabanas pela ótica da ordem imperial. Conclui-se que discutir os saberes cabanos - ainda que pela leitura arrevesada de Raiol - é criticar um tipo de educação formal, compreendendo o quanto ela pode desqualificar conhecimentos e saberes informais de mundo. O texto é um convite a questionamentos semelhantes no contexto de outras insurreições populares no Brasil, durante o século XIX.

Na continuidade dos estudos sobre letramento, a análise da produção do conteúdo e uso de livros escolares constituem questões levantadas pelo artigo de Gladys Mary Ghizoni Teive: "Caminhos teórico-metodológicos para a investigação de livros escolares: contribuição do Centro de Investigación MANES". Analisam-se os caminhos teórico-metodológicos trilhados pelo Centro de Investigación en Manuales Escolares, na Espanha, ao longo de seus vinte anos de existência, privilegiando-se duas perspectivas: a dos "emissores" e a dos "receptores" dos textos escolares. Na primeira, enfatizam-se os estudos relacionados à análise do conteúdo textual e iconográfico e, na segunda, as incursões dos pesquisadores do Centro, quanto aos contextos de produção e uso desses manuais. Destacam-se, por um lado, a utilização da metodologia da intertextualidade, que articula o estudo do livro com fontes provenientes dos contextos de recepção, e, por outro lado, a sua contribuição para o desentranhamento de uma das questões mais difíceis da manualística: a da metodologia do uso dos livros nas salas de aula e sua consequente aproximação com a história da cultura escolar.

A preocupação com instrução pública e formação de professores é abordada por Rogério Guimarães Malheiros e Genylton Odilon Rêgo da Rocha no artigo "O debate francês acerca da instrução pública e seus desdobramentos no Brasil". A análise recai sobre o Rapport de Condorcet, datado de 1792, e evidencia aspectos históricos, políticos, ideológicos e conceituais com vistas à compreensão da base moderna do debate sobre a organização de sistemas de instrução pública e a formação de professores, ao longo do século XIX, inclusive no Brasil.

O ensino médio é tematizado no artigo "Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira", de Dante Henrique Moura, Domingos Leite Lima Filho e Mônica Ribeiro Silva. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica no campo da sociologia e da educação com o propósito de discutir conceitualmente as noções de "politecnia" e "formação humana integral". Parte-se do pressuposto de que o objetivo a ser alcançado, na perspectiva de uma sociedade justa, é a formação onilateral, integral ou politécnica, promovida pelo ensino médio integrado. As conclusões sinalizam que, diante das dificuldades e embates que pontuam a trajetória educacional brasileira, cumpre reiterar a defesa de processos formativos emancipatórios, entre os quais se destaca a formação integral e integrada no ensino médio.

No terceiro e último grupo de artigos discutem-se teorias pedagógicas, o lugar da autoridade na educação escolar, noções de autonomia, empoderamento e cooperação. A proposta de Elisabete Xavier Gomes, no seu texto "Quem tem medo da pedagogia? Contributos da teoria contemporânea da educação para resistir ao 'regresso ao básico'", parte dos ataques à pedagogia e assume a sua apologia, com base em um conjunto de abordagens teóricas que defendem uma educação mais humana e menos humanista. Apoia-se em Jacques Rancière e na aventura de Jacotot, o mestre ignorante, para questionar a explicação como ato educativo e a desigualdade que nela e por ela se estabelece. Retoma de Jorge Larrosa o conceito de experiência para questionar a atividade como lugar sagrado da pedagogia moderna e, com Gert Biesta, ataca a necessidade da continuidade e do fim à vista dos processos educativos, para propor uma pedagogia da interrupção.

José Sérgio Fonseca de Carvalho, no seu artigo "Autoridade e educação: o desafio em face do ocaso da tradição", argumenta que os discursos alternam-se entre rejeição e restauração de uma suposta autoridade perdida. Ressalta que, apesar das divergências teóricas e programáticas entre essas duas tendências, elas têm um aspecto em comum: não distinguem a obediência produzida por uma relação de autoridade daquela que emerge da violência ou do simples apego à legalidade. Os dilemas e impasses vinculados ao ocaso da autoridade nas relações educativas exigem que se compreenda a especificidade desse tipo de relação e dos regimes de temporalidade que orientam os nexos que as sociedades estabelecem entre presente, passado e futuro.

Na sequência dessa temática, o artigo "Educação e ambiguidades da autonomização: para uma pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo", de Manuel Gonçalves Barbosa, ao confrontar a educação com sua busca pela autonomização do sujeito, analisa as ambiguidades a que esse confronto dá origem. Mediante a explicitação de uma concepção contra-hegemônica de autonomização, propõe as bases e coordenadas da promoção do indivíduo autônomo, na perspectiva de uma pedagogia crítica, simultaneamente, humanista, emancipadora e transformadora do sujeito e do contexto. Em suas conclusões, aponta as linhas diretoras da construção dessa pedagogia crítica, assumida nas vertentes de emancipação individual e transformação social.

A concepção cooperativa de Célestin Freinet é abordada no artigo "Potenciais cooperativos do podcast escolar por uma perspectiva freinetiana", de Eugênio Paccelli Aguiar Freire, que investiga o uso do podcast no Brasil, tomando a noção de cooperação em Freinet como alicerce para a elaboração de referenciais educativos e desenvolvimento de podcasts cooperativos escolares, valendo-se da apropriação das relações produtivas na podosfera brasileira no contexto da educação formal. Em suas conclusões apresenta os resultados desses procedimentos para a elaboração de um conjunto de referenciais para projetos educacionais que busquem trabalhar a cooperação por meio do podcast na educação formal.

Desiré Luciane Dominschek e Ana Laura da Silva Teixeira apresentam a resenha do livro Pedagogia histórico-crítica e a luta de classes na educação escolar, organizado por Dermeval Saviani e Newton Duarte, que, em consonância com os temas aqui abordados, nos sugere que a educação sozinha não é redentora da sociedade, mas não se pode negar a sua importância no processo de emancipação humana.

O conjunto de artigos desta edição, por suas especificidades temáticas, metodológicas e de interpretação da realidade educacional, vem contribuir para a análise crítica e aprofundada de produções de discursos e práticas sociais concernentes à educação brasileira na contemporaneidade. À medida que conferem visibilidade à produção científica da área, com foco, por exemplo, na tensão entre inclusão e exclusão dos sujeitos em diferentes processos de sua formação, esses artigos evidenciam a relevância da teorização educacional para sua compreensão no contexto sociocultural. Em um período de nossa história recente, em que são pautadas - por alguns setores da sociedade brasileira - reivindicações para a área da educação que se coadunam com o pragmatismo utilitarista, distanciando-se de perspectivas que têm como base a emancipação, a crítica e a transformação social, os artigos publicados nesta edição reapresentam um contraponto a essa lógica.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Carlos Eduardo Vieira

Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

Cláudia Ribeiro Bellochio

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

Laura Cristina Vieira Pizzi

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil

Maria da Conceição Passeggi

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

Marília Gouvea de Miranda

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil

Rosália Maria Duarte

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Rio de Janeiro, outubro de 2015

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015
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