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RESENHAS

SOULIÉ, Charles. Un mythe à détruire? Origines et destin du Centre Universitaire Expérimental de Vincennes. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 2012. 488p. *

O livro organizado por Charles Soulié é um excelente aliado para pesquisadores que se dedicam a analisar as características da expansão e diversificação das modalidades de acesso ao ensino superior brasileiro. Poderá ser útil ainda para aqueles que se dedicam a estudar a história de qualquer instituição educacional. Com a colaboração de Christelle Dormoy-Rajramanan, Brice Le Gall, Frédéric Carin, Javier Rujas, Jean-Philippe Legois, Lucie Letinturier e Marie-Pierre Poully, Charles Soulié reúne um rico material empírico para explicar a configuração da educação superior na França pós-1968, a partir do estudo de caso do Centro Experimental de Vincennes (atualmente Universidade Paris VIII), criado em 1968, com o objetivo de democratizar o ensino superior francês, como lócus de inovação pedagógica e de supressão das barreiras de acesso à universidade.

Trata-se de um estudo que nos permite compreender as razões e o significado da instalação dessa universidade em um momento crítico da história francesa, marcado por profundas transformações intelectuais e sociais, como ressalta Christophe Charle no prefácio. A leitura será valiosa aos estudantes e pesquisadores da educação brasileira, na medida em que os autores articulam uma variedade de fontes históricas e estatísticas na pesquisa sobre uma instituição educacional, relacionando-a aos percursos intelectuais de seus professores.

Charges, grafites, cartazes, panfletos, mapas e fotografias do cotidiano ilustram, de maneira emblemática, o clima do final dos anos de 1960. Por meio de fontes variadas e entrevistas com antigos mestres, os autores reconstroem a origem do corpo docente e as características sociais dos estudantes comparando-as às demais instituições universitárias na França, sem isolar Vincennes do contexto mais amplo no qual ela se tornou possível. O principal argumento é de que a história dessa universidade francesa não pode ser compreendida fora dos acontecimentos de maio/junho de 1968, um período de contestação radical da ordem social e escolar. Em um contexto nacional caracterizado pela urbanização crescente, pela modernização da economia, pelo aumento da escolaridade obrigatória, e, ainda, de crescimento da população do ensino secundário, criaram-se as condições sociais específicas para a expansão do ensino superior francês.

Ao inserir Vincennes no espaço da educação superior parisiense, os autores descrevem-na como uma espécie de anti-Sorbonne. Ao contrário da "velha" Sorbonne, Vincennes é aberta a todos, já que os exames que dão acesso ao ensino superior foram suprimidos, favorecendo o ingresso de trabalhadores e estudantes estrangeiros. Como refúgio do mundo acadêmico francês dominante, Vincennes assentava-se sobre o ensino em pequenos grupos e estava voltada para o estudo das sociedades contemporâneas, em oposição à tradição considerada "livresca" e "voltada para o passado" da Sorbonne.

Em contraposição às estruturas universitárias herdadas do século XIX, altamente seletivas e acusadas de não favorecerem a pesquisa e o ensino interdisciplinar, Vincennes acolheu um novo público estudantil, abriu espaço para novas carreiras (cinema, psicanálise, entre outras) e para um corpo docente, à época, recrutado no interior da vanguarda intelectual francesa, entre os quais podemos destacar Michel Foucault, Jean-Claude Passeron, Hélène Cixous, Alain Badiou, Gilles Deleuze, Tzvetan Todorov, Michel Deguy, Nicos Poulantzas, Georges Lapassade. Nessas condições sociais específicas, Vincennes tornou-se uma espécie de mito, uma universidade com professores e estudantes especialmente engajados, com uma nova pedagogia, onde a vida coletiva era intensa, as disputas apaixonadas e as questões pedagógicas politizadas.

Devido às condições políticas e econômicas muito especiais daquele período na França, Edgar Faure, ministro da educação à época, teve carta branca para criar universidades, com o objetivo de demonstrar que um processo de democratização real do ensino superior estava em curso, que seria possível desobstruir a superlotação da Sorbonne e assegurar que uma nova ordem escolar, democrática e igualitária, estava nascendo. Assim, no capítulo "A recomposição das faculdades e disciplinas na universidade francesa de 1960", Soulié relaciona a criação de Vincennes à instalação de outras universidades, como Nanterre (1964), Dauphine (1968), d'Orsay (1970), EHESS (1975), resultado de um processo de massificação e diversificação do sistema de ensino superior francês. Para reconstruir a posição de Vincennes nesse microcosmo parisiense, os autores mobilizam estatísticas sobre o crescimento da matrícula no ensino superior francês (1945 a 2004), a participação feminina ou, ainda, a origem socioprofissional dos estudantes por disciplinas nas universidades de Paris.

Em "Maio-Junho de 1968: o apogeu de um contexto de crise universitária", Dormoy-Rajramanan explica como se configurou o contexto singular de 1968. A explosão escolar e o questionamento das antigas estruturas universitárias favoreceram um processo de "politização de debate pedagógico", particularmente forte em Vincennes. Estava em jogo a redefinição dos objetivos da universidade, as modalidades de transmissão do saber e o estatuto daqueles que estavam incumbidos de transmiti-los.

A difusão do livro Os herdeiros,1 1 Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Les héritiers: les étudiants et la culture, Paris, Editions de Minuit, 1964. de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1964), politizou a questão universitária em favor de uma problematização política do fracasso escolar e das relações de classe com a instituição escolar. Autores como Henri Wallon e Georges Lapassade, à época, preconizavam uma pedagogia da não diretividade, da dinâmica de grupo e da autogestão pedagógica. O caráter experimental de Vincennes permitia ao poder público apresentar-se como aberto às inovações sem, contudo, generalizá-las a todas as universidades, autorizando subversões pedagógicas, como a supressão dos exames, mas circunscrevendo-as e canalizando-as. Na segunda parte do livro, Dormoy-Rajramanan descreve o núcleo de professores e intelectuais da vanguarda francesa que cooptou os primeiros docentes de Vincennes, tais como George Canguilhem, Roland Barthes, Hélène Cixous, Bernard Cassen, Michel Foucault, Jean-Claude Passeron, entre outros.

Ao longo de todo o livro, a biografia dos intelectuais envolvidos na gestão da universidade é empregada não para reforçar o imaginário das figuras míticas de uma história, mas para restituir a lógica dos investimentos individuais na instituição. Graças à explicitação desses dados biográficos de professores, diretores e outras figuras-chave na história da universidade, o engajamento institucional ganha inteligibilidade quando relacionado às razões extra-acadêmicas e propriamente biográficas dos agentes. Os quadros apresentados são extremamente esclarecedores ao oferecer uma síntese das características desse grupo, tais como o diploma, a universidade de origem e a idade.

Nos três capítulos subsequentes, "A irrupção da dinâmica estudantil", "Da politização das questões pedagógicas" e "Humanidades e humanidades modernas", escritos por Charles Soulié, mais uma vez, o trabalho de reconstrução histórica e estatística sustenta a demonstração, baseado principalmente na comparação do percentual de estrangeiros, de assalariados, de mulheres, de menores de 25 anos e de residentes em Paris, tanto em Vincennes como em outras universidades de Paris.

Articulando o uso de diversas fontes, os autores sustentam que as características sociais de professores e estudantes tiveram diversas implicações sobre a vida política da instituição. Trazem à tona, por exemplo, a existência de um conflito constante entre os "participacionistas" e "antiparticipacionistas" no que tange ao engajamento na vida institucional. Por meio desse primoroso trabalho de objetivação das condições sociais da criação dessa universidade e de seus agentes, os autores escapam à tentação de tudo harmonizar e idealizar, em benefício de uma imagem romântica dessa universidade sui generis. Efeitos duráveis, se considerarmos que, hoje, a Universidade Paris VIII, antigo Centro Experimental de Vincennes, conserva muito dos seus compromissos iniciais, acolhendo o maior contingente de estudantes de estrangeiros entre as universidades francesas.

Por fim, se há uma crítica, ela deve-se à inexistência de dados sobre o destino profissional dos ex-alunos, o que compromete uma conclusão mais objetiva sobre a redução das desigualdades sociais que poderiam ser atribuídas à passagem pelo ensino superior. Em uma palavra, o que se tornaram os estudantes que se formaram em Vincennes? A resposta a essa questão permitiria avaliar em que medida Vincennes trata-se de uma experiência de democratização do acesso ao ensino superior que não se limita à expansão do acesso, mas contribui efetivamente para a redução das desigualdades entre os grupos sociais.

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    O livro ainda não está traduzido para o português.
  • 1
    Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Les héritiers: les étudiants et la culture, Paris, Editions de Minuit, 1964.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    Mar 2014
  • Aceito
    Abr 2015
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