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A lei n. 11.645 e a visão dos professores do Rio de Janeiro sobre a temática indígena na escola

THE LAW N. 11.645 AND THE TEACHER'S VISION OF RIO DE JANEIRO ON INDIGENOUS SUBJECT AT SCHOOL

LA LEY N. 11.645 Y LA VISIÓN DE LOS MAESTROS DE RÍO DE JANEIRO SOBRE LA TEMÁTICA INDÍGENA EN LA ESCUELA

RESUMO

A partir da lei n. 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena no ensino básico, a educação brasileira se viu diante de um difícil desafio: modificar sua matriz monocultural para considerar a riqueza e a contribuição da diversidade indígena para a compreensão da cultura e história nacional. O presente estudo investiga a implementação da lei n. 11.645 no estado do Rio de Janeiro. Focaremos nas representações e nas práticas de professores de escolas municipais e estaduais da região do Grande Rio, acerca da lei e do ensino sobre a realidade dos povos indígenas. Para essa análise, realizamos entrevistas, observação em escolas e questionários preenchidos por professores. A relevância deste trabalho se apresenta pela escassez de estudos em relação à aplicação da referida lei no que diz respeito à inclusão da temática indígena na educação básica.

PALAVRAS-CHAVE
lei n. 11.645/2008; história e culturas dos povos indígenas; educação básica; diversidade cultural

ABSTRACT

From the law n. 11.645/2008, which establishes the obligation of teaching the history and culture of indigenous peoples in schools at primary and secondary level education in Brazil, Scholarly education faced a difficult challenge: change its monocultural array and instead consider the richness and diversity of the indigenous contribution to the understanding of culture and national history. This article explores the implementation of law n. 11.645 in the state of Rio de Janeiro. It's focus are representations and practices of teachers in schools in the region called the Grande Rio, about the law and teaching about the reality of indigenous peoples. For this analysis, the methodology focused on interviews, observation in schools and questionnaires sent to teachers. The relevance of this work may be justified by the lack of studies that address the application of law in terms of the inclusion of indigenous issues in school education.

KEYWORDS
law n. 11.645/2008; history and indigenous cultures; schooling; cultural diversity

RESUMEN

A partir de la ley n. 11.645/2008, que establece la obligación de la enseñanza de la historia y cultura de los pueblos indígenas en las escuelas de nivel primario y secundario, la educación brasileña se enfrentó a un difícil desafío: modificar su matriz monocultural y pasar a considerar la riqueza y la contribución de la diversidad indígena para la comprensión de la cultura e historia nacional. Este artículo indaga en la implementación de la ley n. 11.645 en el estado de Río de Janeiro. El enfoque son las representaciones y prácticas de docentes de escuelas de la región del Gran Río, acerca de la ley y de la enseñanza sobre la realidad de los pueblos indígenas. Para este análisis, se realizaron entrevistas, observación en escuelas y aplicación de cuestionarios entre docentes y directivos. La relevancia de este trabajo se justifica por la escasez de estudios que aborden la aplicación de dicha ley en relación a la inclusión de la temática indígena en la educación escolar.

PALABRAS CLAVE
ley n. 11.645/2008; historia e culturas indígenas; educación escolar; diversidad cultural

Todo Dia do Índio é a mesma coisa: fazemos com as crianças um cocar de penas coloridas, elas pintam o rosto, fazem "uh-uh-uh" pela escola, e também damos exercícios com o tema do índio, como, por exemplo, "ligue o indiozinho à sua oca", ou "conte quantos indiozinhos estão na canoa", coisas assim [risos]. Sei que essa temática deveria ser muito melhor abordada, mas a gente não tem muito tempo, né? Fica difícil, e terminamos repetindo essa fórmula falha ano após ano...1 1 Depoimento de professora dos primeiros anos do ensino fundamental durante o debate "A questão indígena na escola", realizado na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense no primeiro semestre de 2013.

Com esse depoimento, uma professora do primeiro segmento do ensino fundamental de uma escola pública do Rio de Janeiro descreveu de que maneira a temática indígena era abordada na escola onde trabalhava. Sua fala aponta não só a superficialidade com que a história e a cultura dos mais de trezentos povos indígenas existentes no país são reduzidas no cotidiano escolar, mas também a forma limitada e pontual com que são abordadas: geralmente a temática indígena não ultrapassa a segunda semana do mês de abril dentro do projeto pedagógico escolar.

Este artigo é produto da inquietação causada por sabermos que esse depoimento não é um caso isolado: nossas pesquisas, práticas docentes e de extensão, têm apontado que o que se faz hoje na escola ao abordar a temática indígena é praticamente idêntico ao que se ensinava décadas atrás. Percebemos que as atividades e os conteúdos que dizem respeito aos povos indígenas são não somente muito limitados e restritos às efemérides escolares, mas também reprodutores de ideias ultrapassadas.

E o que essas pessoas aprenderam e continuam aprendendo de fato? O "índio" como um ser vinculado ao passado, com alguma presença significativa somente na formação da colônia e na constituição do "povo brasileiro"; o "índio" como um genérico, sem atentar para a diversidade cultural das mais de trezentos e cinco etnias presentes em nosso país; o "índio" como alguém que vive na floresta, isolado e nu, subsistindo apenas da caça e da pesca - e os que fogem a esse padrão "já não seriam índios"; o "índio" como ser preguiçoso, que "ocupa muita terra" e atrapalha o desenvolvimento da nação, entre outros estereótipos.

Essas ideias se refletem em atividades tais como: pedir às crianças que se pintem e se enfeitem de uma maneira genérica e folclorizada, que não representa nenhum povo indígena específico; que desenhem e realizem diversas atividades de língua portuguesa e matemática tendo invariavelmente como referência esse índio genérico; que dancem e cantem canções de autores não índios, que mencionam questões muito vagas, relativas a algumas características das culturas indígenas ou que representam um índio romantizado, inexistente na realidade. São poucas as canções ou textos utilizados no âmbito escolar que mencionam as lutas e demandas atuais dos povos indígenas, seus projetos de futuro e a importância e contribuição de seus conhecimentos e práticas para o presente do Brasil.

Apesar dos avanços identificados na Constituição de 1988, seguida às leis específicas que deliberam sobre a diversidade cultural no campo educativo,2 2 Lei n. 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e cultura afro-brasileira nos currículos da educação básica; e a lei n. 11.645/2008, que acrescentou à anterior a inclusão dos estudos das histórias e culturas dos povos indígenas. que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para atender ao reconhecimento e valorização da diversidade étnica e cultural, parece que as práticas que reforçam estereótipos e preconceitos sobre as populações indígenas do país ainda persistem no espaço escolar.

Este artigo procura contribuir para um melhor entendimento sobre essas relações e reproduções e, para isso, discute a implementação da lei n. 11.645/2008 valendo-se das práticas e das visões de professores de redes públicas do estado do Rio de Janeiro. Esperamos que este trabalho instigue outras reflexões e produção de dados, visto que se trata de um tema ainda muito pouco visível nas discussões educativas do país. Em uma primeira parte, apresentamos a metodologia e o marco teórico que orientaram o estudo. Em uma segunda parte, problematizamos o ensino da história e cultura indígenas com base em observações em aula. Em uma terceira parte, enfocamos as perspectivas de professores das redes municipais e estaduais do Rio de Janeiro sobre o ensino da temática indígena, apresentando contrastes e convergências de opiniões e experiências. Em uma quarta parte, analisamos a formação de professores (áreas de pedagogia e história) voltada para a qualificação da temática em questão. E, por fim, nas reflexões finais, sistematizamos algumas conclusões da pesquisa e propomos possíveis caminhos para o avanço na implementação da lei n. 11.645/2008, principalmente no que diz respeito à formação inicial e continuada de professores.

METODOLOGIA E ABORDAGEM TEÓRICA DA PESQUISA

Os dados apresentados são resultado de uma pesquisa, de corte qualitativo, realizada ao longo do ano de 2013 com base em três etapas que contemplaram: observação de aulas e eventos em três escolas públicas municipais e uma escola privada do estado do Rio de Janeiro; aplicação de questionário a professores de educação básica de diferentes escolas municipais e da rede estadual do Rio de Janeiro, com questões sobre como abordavam a temática indígena no espaço escolar e suas percepções sobre a lei n. 11.645/2008; e análise dos currículos dos cursos de história e pedagogia de cinco universidades públicas situadas no estado do Rio de Janeiro.

A observação de aulas deu-se entre os meses de março e abril de 2013 em quatro escolas.3 3 A cidade foi escolhida por ser a cidade-sede da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua uma das professoras autoras do estudo. Duas bolsistas de iniciação científica, Lenecleide de Silva Vaz e Sania Nayara da Costa Ferreira, participaram das observações nas escolas. Durante esse período, procuramos acompanhar alguns eventos e aulas realizadas na escola, analisando a abordagem da temática indígena por parte da equipe docente, seus discursos e representações e a receptividade dos alunos em relação aos conteúdos e atividades relativos ao tema. Cabe destacar que a seleção das escolas observadas deveu-se ao contato prévio com a Fundação Municipal de Educação de Niterói. Entre as 75 escolas municipais da rede, a fundação indicou apenas duas que, segundo a instituição, teriam maior sensibilidade para a temática. O baixo número de escolas já chamou bastante atenção sobre como o tema indígena é visto de forma pontual e fragmentada no cotidiano escolar. A partir da indicação, as observações foram feitas então nas duas escolas recomendadas pela fundação e em outras duas escolas escolhidas de modo aleatório. As observações nas quatro escolas selecionadas se restringiram aos meses de março e abril por sugestão da equipe diretiva ou coordenação pedagógica dessas instituições, que destacaram ser o período no qual a temática costuma ser abordada, por causa da efeméride relativa ao Dia do Índio.

Assim, apesar das referências sobre a inclusão da temática indígena em duas das escolas, nenhuma delas parecia ter de fato esse tema inserido em seus projetos pedagógicos: aparecia de forma pontual envolvendo algumas turmas. Outro fato que cabe mencionar é a percepção de que a nossa entrada na instituição e a explicação sobre os objetivos e os propósitos da pesquisa incentivaram, em algumas escolas, para que a temática fosse abordada. Várias vezes fomos inqueridas: "O que vocês querem que nós ensinemos?" "O que vocês pretendem ouvir nas aulas?" Em alguns contextos, ficamos com a sensação de que, sem nossa ida a essas escolas, provavelmente o tema nem sequer seria tratado, mesmo no período da data comemorativa.

A pesquisa baseou-se também na aplicação de questionários (de março a junho de 2013), tanto a docentes das escolas em que realizamos observação como a docentes de outras instituições, escolhidos de forma aleatória pelo interesse e disponibilidade em participar da pesquisa. Os questionários consistiram em perguntas abertas e semiabertas, dirigidas a conhecer as perspectivas e práticas dos professores relativas ao ensino da temática indígena. No total, foram 100 professores que responderam a todas as questões.

A análise dos currículos dos cursos de história e pedagogia teve por objetivo verificar se existem disciplinas relacionadas à temática indígena, principalmente voltadas para a didática do ensino. Tal interesse deveu-se ao fato apontado pela maioria dos professores entrevistados referente à ausência de formação inicial (ou formação inadequada) sobre a temática indígena. A opção de estabelecer um recorte nas áreas de formação de pedagogia e história sustentou-se na constatação de que são os professores dos primeiros segmentos de ensino (com formação em pedagogia) e os professores de história do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio quem abordam (se o fazem) conteúdos vinculados aos povos indígenas. Foram privilegiadas cinco universidades públicas de reconhecimento e prestígio no sistema educativo: Universidade Federal de Rio do Janeiro (UFRJ), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), UFF, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).4 4 Na UERJ, foram investigados os currículos dos cursos de história e de pedagogia oferecidos no campus Maracanã; na UFF, os cursos oferecidos em Niterói; na UNIRIO, os cursos oferecidos na Urca; na UFRJ, os cursos oferecidos na Praia Vermelha e no Largo de São Francisco; e na UFRRJ, cursos oferecidos no campus de Seropédica.

Importante esclarecer que consideramos o currículo escolar uma construção e seleção de conhecimentos e práticas que são produzidos em contextos históricos e políticos concretos e, portanto, alvo de disputas e negociações acerca do que se institui como conhecimento legítimo, verdade, poder e identidade. O currículo escolar sempre parte de uma tradição seletiva, visto que é por meio dele que certos grupos sociais, especialmente os de maior poder, expressam sua visão de mundo e seu projeto social. Desse modo, o currículo representa um conjunto de práticas que propicia a produção, a circulação e o consumo de significados no espaço social, contribuindo intensamente para a construção de identidades sociais e culturais (Apple, 2009Apple, M. W. A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currículo nacional? In: Moreira, A. F. B.; Silva, T. T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2009. p. 59-91.; Silva, 1999aSilva, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999a., 1999b______. O currículo como fetiche. Autêntica: Belo Horizonte, 1999b.).

A incorporação ou não das culturas e história dos povos indígenas no currículo deve ser compreendida no campo das disputas políticas e ideológicas no qual as diferenças são produzidas e hierarquizadas em nossa sociedade. Nesse sentido, destacamos as discussões sobre modernidade/decolonialidade e interculturalidade crítica (Mignolo, 1999Mignolo, W. La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en el horizonte colonial de la modernidad. In: Lander, E. (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: Perspectivas Latinoamericanas; CLACSO, 1999. p. 55-85.; Walsh, 2002Walsh, C. (De)construir la interculturalidad. Consideraciones críticas desde la política, la colonialidad y los movimientos indígenas y negros en el Ecuador. In: Fuller, N. (Org.). Interculturalidad y política. Desafíos y posibilidades. Lima: Red para el Desarrollo de las Ciencias Sociales, 2002. p. 115-142.) como ferramentas conceituais que nos permitem uma compreensão complexa e histórica da realidade escolar. Essa perspectiva propõe o desafio de pensar a diferença cultural para além do simples reconhecimento e tolerância, para rediscutir estruturas de poder e desigualdade que atravessam nossa sociedade e a organização do conhecimento escolar.

Com base nessas perspectivas, sustentamos que a educação intercultural não deva simplesmente apontar para o diálogo entre conhecimentos e culturas distintas, mas para discutir a produção e a hierarquia das diferenças. Defendemos também a abordagem reivindicada crescentemente por movimentos sociais e por alguns pesquisadores de que a educação intercultural não deva ter somente por alvo as populações indígenas, os afrodescendentes ou outras minorias presentes no país, mas deva ser voltada para toda a população nacional. Contudo, desde o enfoque socioantropológico que nos orienta nesta pesquisa, mais que definir conceitos presentes hoje nas políticas educativas, como cultura, diversidade cultural, multiculturalismo e interculturalidade, entre outros, preocupa-nos compreender os sentidos e usos que lhes dão os atores presentes no tocante ao modo como a temática indígena tem sido abordada por professores e suas opiniões sobre a inclusão obrigatória das culturas e história dos povos indígenas no currículo da educação básica, conforme exige a lei n. 11.645/2008.

O ENSINO DA HISTÓRIA E CULTURA INDÍGENAS COM BASE EM OBSERVAÇÕES DE AULA

BREVE PERFIL DAS ESCOLAS E TURMAS OBSERVADAS

Como anteriormente mencionado, as observações foram feitas em quatro escolas. Chamaremos de escola A uma instituição municipal, que abrange da educação infantil ao 5º ano. Nessa escola, participamos de reuniões pedagógicas de planejamento no mês de março, com professores de todos os anos e das turmas dos períodos manhã e tarde, quando aproveitamos para aplicar os questionários. Também participamos de um evento para tratar a respeito da temática indígena, para o qual foram convidados dois indígenas como palestrantes, evento organizado por uma professora da instituição especialista em educação indígena pela UFF. Tal evento foi realizado durante a manhã e tarde do dia 14 de março e reuniu todos os professores e alunos da escola.

A instituição que denominaremos B oferece educação de 6º a 9º ano. Nela realizamos observação nas turmas do 6º ano dos turnos manhã e tarde (constituídas por adolescentes entre 13 e 15 anos, com 28 e 30 alunos em cada grupo respectivamente), durante a Semana do Índio, nas aulas de história e educação artística. A escolha de observar as aulas dessas disciplinas deveu-se à orientação da diretora, pois ela afirmou que os demais professores não abordariam a temática nem no mês de abril, nem nos meses seguintes. A escola que caracterizaremos como C também atende de 6º a 9º ano. Observamos as aulas da professora de história no Dia 19 de Abril com as turmas do 6º e do 9º ano. Ela é umas das docentes que o Núcleo de Ações Integradas da Fundação Municipal de Educação destacou por desenvolver um projeto que tinha continuidade todos os anos sobre a temática indígena. A escola que chamaremos D é privada, com atendimento para a educação infantil e o primeiro segmento do ensino fundamental. Observamos algumas aulas na segunda e terceira semana de abril das turmas de educação infantil III, constituída por 15 crianças, e o 5º ano do ensino fundamental, constituído por 19 alunos de 9 e 10 anos.

SOBRE O CARÁTER RESTRITO E FRAGMENTADO DOS CONTEÚDOS ESCOLARES RELATIVOS AOS POVOS INDÍGENAS

Um dos aspectos que podem ser destacados nas observações realizadas é a forma fragmentada e pontual como foi tratada a temática indígena. Nenhum dos quatro casos resultou de um planejamento institucional, mas da iniciativa de alguns professores, a maioria deles previamente já interessada pela questão indígena. Sobretudo nas escolas A e C, os professores que promoveram certas atividades foram aqueles que realizaram especialização ou pós-graduação stricto sensu em áreas vinculadas à temática indígena. Apesar de terem uma boa formação, observamos suas práticas de ensino limitadas por fatores instituicionais, falta de apoio, falta de material didático, limitações de tempo e espaço para desenvolver de uma forma adequada o que tinham planejado.

Por exemplo, na escola C, a professora de história tinha previsto trabalhar durante toda a semana, de 15 a 19 de abril, em parceria com a professora de geografia. Essa parceria era considerada importante para ampliar os limites de cada área e assim trabalharem interdisciplinarmente. Contudo, tal planejamento não foi possível se realizar por outras prioridades que surgiram na escola (reuniões extraordinárias que a secretaria do município marcou). De fato, a professora só conseguiu abordar a temática no dia 19 de abril com duas turmas, no turno da manhã, e sua colega de geografia não conseguiu estar presente por motivos de doença.

A seguir, selecionamos alguns fragmentos do diário de campo que mostram as dificuldades no desenvolvimento do planejamento do professor:

Ao chegar à escola, fomos direcionadas para o auditório, onde a professora C. estava exibindo o filme A missão. A turma estava composta de quase trinta alunos, sendo que a metade dela conseguia acompanhar o filme bem, com mais atenção, e a outra metade totalmente dispersa. O que levou a professora a chamar a atenção deles por várias vezes. Após encerrar a primeira aula sem ter conseguido fechar a apresentação do filme, os alunos se retiraram para um intervalo. Quando a turma retornou para a segunda aula, ela mencionou antes de continuar com o filme que tinha entregado na direção da escola alguns nomes de alunos, cujos pais deveriam ser chamados a comparecer à escola. De alguma forma, essa colocação inibiu um pouco a postura desatenta de parte da turma. O filme foi muito extenso, levando quase o horário das duas aulas para poder finalizar, sobrando pouco tempo para se dialogar e discutir sobre o mesmo. Ao mesmo tempo, a professora já se encontrava irritada e cansada, o que contribuiu para não prolongar muito o debate nem conseguir desenvolver uma maior contextualização histórica do que o filme mostra.

Aqui vemos que a falta de tempo e o escasso interesse de uma parte dos alunos dificultaram o aproveitamento do filme como recurso didático. Arriscamos dizer que essa falta de interesse dos alunos pode ter a ver justamente com a descontextualização dos conteúdos curriculares, com sua não participação no planejamento dos projetos pedagógicos, o que faz com que recebam ensinamentos com a obrigação de realizar atividades sem compreender o para que e o porquê disso. Sendo assim, muitas vezes recebem as propostas dos professores de uma forma apática ou passiva.

Percebemos ainda que, de modo geral, a questão indígena é abordada de maneira genérica, os professores não aprofundam na diversidade dos povos indígenas e na especificidade de determinados grupos. Outro fato a salientar é que, embora existam professores que proponham outras abordagens, eles devem lidar com estereótipos que os alunos construíram ao longo da trajetória escolar. Tal aspecto ficou evidente em uma aula que observamos da professora antes mencionada, agora com outra turma.

Apesar de a professora vir trabalhando com a temática em aulas passadas e os alunos mostrarem mais interesse do que da turma do 6º ano, no momento de mostrar um slide com um índio pescando e outro no computador, com o título "ser índio é", e abrir espaço para os alunos se manifestarem, ouvimos os seguintes comentários: "Professora, é índio quem mora na floresta"; "quem pesca"; "quem se pinta". Ela questionou essas percepções e perguntou: "Tudo bem, mas se pensamos no índio que mora na cidade, que usa computador, que faz uso da tecnologia, será que deixa de ser índio?" Os alunos hesitaram em responder. Então ela acrescentou: "Hoje o índio mora na cidade, faz uso da tecnologia e tem se apropriado da nossa cultura; hoje eles sabem muito mais sobre nós, 'os brancos', do que nós sobre eles". Os alunos assentiram com a cabeça e gestos, sem fazer interferência na fala da professora.

Aqui e em outras observações que realizamos nas quatro escolas, percebemos como a imagem do indígena é associada pelos alunos a uma personagem cuja identidade é vinculada ao habitat da floresta ou ao uso de certa forma de vestimenta ou posse de objetos e instrumentos "tipicamente índios", completamente afastada da sociedade brasileira contemporânea. As diferenças entre as escolas, quanto ao perfil socioeconômico dos alunos ou à idade (desde turmas de educação infantil até o 9º ano), não pareceram arrojar alterações significativas nos modos de representarem os indígenas. E consideramos que o trabalho pontual de alguns professores que introduzem outras perspectivas (como é o do caso mencionado) tem pouco impacto pela falta de continuidade e coerência institucional.

Como sinalizam Oliveira e Freire (2006)Oliveira, J. P.; Freire, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília, DF: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006., visões e discursos positivos e negativos sobre os povos indígenas estiveram em confronto ao longo de todos esses séculos, coexistindo visões assimilacionistas e românticas dos índios. Esta última pregaria a necessidade do "isolamento" dos povos indígenas para manter seu estado de "pureza", bem como a "tutela" como forma de proteção. O fato é que muitas pessoas ainda buscam uma imagem do índio original, "puro", ao qual se atribui autenticidade, isto é, a condição de índio verdadeiro.

Essa imagem do "índio" atrelado ao passado e a uma condição estática e imutável não surgiu por acaso. Muito foi feito, principalmente por intermédio de políticas públicas, para que valorizássemos esse índio romântico, irreal e intocável, e desprezássemos os indígenas reais, aqueles que lutaram e ainda lutam por interesses e projetos diferenciados, utilizando estratégias complexas e criativas. Outro ponto importante a considerar é como a maior parte das aulas observadas não apresentou ou discutiu o dinamismo presente nas sociedades indígenas. Como qualquer outro povo, elas estão em constante transformação. Trata-se de uma perspectiva "etnocêntrica" a ideia de que seriam "sociedades sem história" ou "sociedades congeladas no tempo" pelo fato de não mudarem da mesma forma que as sociedades ocidentais.

SOBRE OS USOS DE LIVROS E MATERIAIS DIDÁTICOS

O uso de livros e recursos didáticos utilizados pelos professores nas aulas que observamos é outro aspecto a ser salientado. Nas quatro escolas, os professores não usaram livros didáticos respectivos às suas áreas de atuação para abordar a temática indígena. Conforme declararam, tais livros são insuficientes e superficiais em conteúdos, e por isso utilizavam outros recursos, principalmente material e atividades coletados na internet e livros pessoais, alguns de perfil acadêmico, mas que eram aproveitados principalmente para retirar imagens. Percebemos um uso um tanto heteróclito desses recursos.

Em alguns casos, o mesmo professor utilizava recursos que poderíamos caracterizar de "críticos", como pode ser o uso de documentários produzidos pelo Ministério da Educação (MEC) ou por especialistas na temática indígena, com atividades que reforçavam estereótipos sobre os índios. Por exemplo, na escola D, na turma do 5º ano, a professora iniciou no dia 15 de abril o projeto Semana do Índio, que durou até o dia 19 de abril. Durante esses dias, a professora realizou diversas atividades com o apoio de vários recursos, como livro didático, imagens e desenhos produzidos por ela mesma, o documentário Índios no Brasil e livro de contos sobre lendas indígenas. O documentário, que é uma produção do MEC, mostra as percepções e discursos sobre os índios de moradores não indígenas de várias regiões do país e contrasta essas perspectivas com as visões de representantes indígenas de diferentes etnias.

A fala das lideranças indígenas é bem didática e clara para um público estudantil. No entanto, não é superficial e apresenta as principais demandas e lutas dos povos indígenas contemporâneos. Os alunos da turma gostaram do documentário e fizeram muitas perguntas e comentários. No dia seguinte, a professora trouxe um texto sobre os hábitos indígenas com duas perguntas para que as crianças respondessem. O texto, que apresentava os indígenas como um povo que contribuiu para a "nossa cultura brasileira" com alguns costumes, contrastou com a atividade do dia anterior por sua superficialidade e até etnocentrismo.

A superficialidade do texto e da atividade se evidencia por circunscrever os "hábitos herdados da cultura indígena", apresentada no singular, a "banho", "uso da rede" e "uso de chás e plantas medicinais" e "canções e lendas do folclore brasileiro". Assim, uma diversidade de costumes e conhecimentos dos povos indígenas é reduzida a traços isolados, descontextualidados e folclorizados. O etnocentrismo está presente no texto em frases como: "Um dos costumes mais importantes é o de tomar banho todos os dias. Em outras culturas, como na dos países europeus, é comum as pessoas passarem dias sem tomar banho. Que bom que os índios nos ensinaram isso, né? Assim somos um povo bem cheirosinho!". A professora não fez nenhuma vinculação com o documentário passado no dia anterior, que de fato questiona a ideia do texto, de pensar os índios apenas como formadores da "nação brasileira", sem presença nem relevância na contemporaneidade.

Esse uso de recursos didáticos heterogêneo e sem seguir uma coerência de conteúdo e perfil foi observado também na escola B, nas aulas de educação artística, nas turmas do 6º ano. No primeiro dia, a professora de educação artística passou no quadro um texto com o título: Arte indígena brasileira, sem citar a referência do autor ou da fonte. O texto destacava as diferenças entre índios brasileiros e índios da América Central, chamando a atenção de que os primeiros não conheciam metais e, portanto, "sua arte era mais simples".

Todo o texto é construído no tempo passado, dando a impressão de que hoje não existem mais as artes indígenas. E, em vários trechos, aparecem ideias etnocêntricas e de viés evolucionista, como ao destacar que "suas construções eram primitivas" por "utilizar barro, madeira e palha". Ou "na escultura, há o predomínio da cerâmica utilitária, que são os vasos de barro", sem contextualizar que a diferenciação entre "utilitário" e "decorativo" é ocidental e não existe de fato em muitos povos indígenas. Os alunos copiaram o texto em silêncio e sem fazer comentários. No segundo dia, a professora explicou o texto que ela havia passado no dia anterior e distribuiu fotos e imagens de cerâmicas indígenas, cestaria e desenho gráfico corporal de diversos povos indígenas do país. Segundo o que informou a professora, a maioria dessas imagens foi retirada de livros produzidos pelo Museu do Índio, que ela adquiriu ao visitar a instituição, pois de fato não se encontra nada sobre arte indígena nos livros didáticos nem sequer em livros de história da arte. Depois de as imagens circularem entre os alunos, que despertaram muitos comentários de admiração e interesse, a professora passou uma pesquisa para casa.

  1. Por que 19 de Abril é o Dia do Índio?

  2. Qual a importância da pintura corporal indígena?

A professora apresentou o tema com pouco entusiasmo. No entanto, seu discurso se orientou a romper com o estereótipo de que os índios são primitivos, o que contrastou com o texto passado na aula anterior. Os alunos receberam o tema com animação, comentaram sobre as pinturas e gráficos presentes nas imagens e realizaram as atividades propostas pela professora. Assim, a atividade do segundo dia, mostrando imagens da produção artística de diversos povos indígenas, contrastou com o texto do primeiro dia, de visão etnocêntrica e reducionista sobre a arte indígena brasileira.

COMENTÁRIOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO DE INDÍGENAS NA SEMANA DO ÍNDIO

Nos últimos anos, temos notado em algumas cidades do estado do Rio de Janeiro uma procura de escolas por convidar indígenas a falarem ou realizar apresentações de danças e cantos na instituição, principalmente no mês de abril. Fato que resulta também da movimentação de grupos indígenas urbanos da cidade do Rio de Janeiro, que têm buscado contato com escolas de forma que possam visibilizar sua presença na cidade, obter reconhecimento e ao mesmo tempo uma renda. Esse contato, no entanto, que poderia ser avaliado como muito positivo por possibilitar uma aproximação que vai além dos livros didáticos, filmes ou documentários, sem o devido cuidado, pode reforçar estereótipos. Foi o que verificamos em duas escolas. Em um caso, os indígenas foram visitar a escola. Em outro, a escola deslocou-se para um centro cultural localizado em São Gonçalo, onde houve a apresentação de um grupo de indígenas Pataxó para várias escolas ali presentes. Nos dois casos, não houve preparação das crianças e jovens para a comunicação com os indígenas. Assim, apesar da curiosidade que esse contato possibilitou, percebemos também certo medo em alguns alunos e deboche e desprezo em outros.

Os fragmentos da observação a seguir ilustram tal situação:

Na escola A, foram convidados um indígena Guarani Mbya e um indígena Tabajara. Percebemos que o primeiro foi completamente invisibilizado pelas crianças pelo fato de utilizar calça jeans, camisa, sapatos, não portando nenhum símbolo de "indianidade". O segundo foi quem chamou atenção pelo fato de usar pulseiras no braço, colar, cocar colorido de pena na cabeça e uma tanga feita de palha, por cima de um short verde. No entanto, ele também foi questionado por uma criança pelo seu jeito de falar: "Você não é índio... índio não fala assim como a gente, tem que enrolar a língua para falar. Você é índio de mentira... você está fantasiado". O aluno até enrolou a língua para mostrar como "o índio deveria falar". Outras crianças também gritaram "Olha o índio" e começaram a fazer "uh-uh-uh-uh-uh!" batendo a mão na boca. Ainda, outras diziam: "não é índio de verdade", "é de mentira, não tem índio na cidade". O Tabajara entrou para o auditório e não falou nada, simplesmente fechou a porta. Mas as crianças batiam na porta, que queriam ver o índio, e ficavam gritando no corredor: "Não é de verdade, não. Está fantasiado!". Diante dessas falas e conduta de algumas crianças, nenhum professor interveio.

É notório que essa reação foi devido aos estereótipos que as crianças foram construindo ao longo dos anos sobre os povos indígenas.

Durante a apresentação do convidado Tabajara, que dançou para todas as turmas da manhã, reunidas no auditório da escola, alguns alunos, com faixa etária entre 11 e 14 anos de idade, assobiavam, riam e diziam para os colegas que estavam sentados perto que estava fazendo "macumba". Depois da apresentação e da fala com as crianças, os convidados indígenas mantiveram uma conversa com os professores, sendo as crianças dispensadas. Nesse diálogo, que poderia ter sido mais aprofundado, percebemos atitudes que não se diferenciavam muito das que observamos dos alunos: a atenção de alguns professores era bem dispersa, quase ninguém anotava as explicações dos convidados, duas professoras até dormiram. Outros mostravam um grande estranhamento e faziam perguntas que expressavam curiosidade por saber até que ponto estão presentes entre os povos indígenas costumes ou fenômenos de nossa sociedade: "Tem gravidez na adolescência e homossexuais nos povos indígenas?", "Como é o casamento indígena?", "Tem internet nas aldeias?", "Como as crianças indígenas se comportam na sala de aula?". Sempre as perguntas eram num genérico, não apontavam por compreender a realidade de grupos específicos, como poderia ter sido, aproveitando a presença do Guarani Mbya e do Tabajara.

As observações citadas mostram quão forte é ainda a imagem do índio como ser exótico ou puro e romântico, protetor da natureza, sem reconhecer sua diversidade e capacidade de agência.

A situação da escola D, que levou as crianças das turmas de educação infantil a um sítio localizado em São Gonçalo para assistir a uma apresentação de indígenas Pataxó, não foi diferente. Nesse caso, não observamos deboche, e sim uma grande curiosidade por parte das crianças presentes. No entanto, o apresentador, que não era indígena, apresentou uma fala muito superficial e genérica dos convidados. E eles foram chamados a realizar demonstrações que não contribuíram para a desconstrução desse índio genérico e estático: cantos e danças descontextualizadas, exibição de "instrumentos usados pelos Pataxó", como lança, arco e flexa e demonstrações de como utilizá-los. Depois disso, ensinaram um canto para as crianças, que o apresentador explicou que era "como uma oração" para o povo Pataxó. E, por fim, convidaram as crianças para dançar em uma grande roda. Embora a resposta das crianças tenha sido de muito interesse, não observamos os professores presentes intervindo para fazer perguntas ou colocar algum comentário que estabelecesse conexão com conteúdos tratados nas aulas. Também não se deixou espaço para as crianças perguntarem.

Os fragmentos de observação relatados evidenciam que esses encontros, que possibilitam um contato direto com indígenas, não facilitarão, por si só, a quebra de estereótipos. Ao contrário, podem reforçá-los, pois o que geralmente se espera e fomenta é que nesses encontros o indígena se apresente com "suas vestimentas tradicionais" e ensine ou mostre objetos ou práticas que seriam "tipicamente indígenas", danças e cantos desprovidos de uma contextualização sobre os sentidos e valores que encarnam para determinados povos indígenas, entre outros. Consideramos que, sem o devido acompanhamento ou sem terem uma continuidade por meio de outras atividades, essas visitas figuram como uma aproximação limitada, uma lembrança ou anedota, mas que não contribui para quebra de estereótipos.

Concluímos esta parte do texto destacando que nossas análises não têm o intuito de ridiculizar nem responsabilizar os professores pela forma fragmentada ou superficial com que se costuma ser abordada a história e culturas indígenas. Ao contrário, a intenção aqui é salientar o escasso apoio institucional, a falta de materiais didáticos e uma formação inicial e continuada insuficiente nessa temática, que mostram quanto falta avançar para uma efetiva implementação da lei n. 11.645/2008.

PERCEPÇÃO DE PROFESSORES SOBRE A INCLUSÃO DA TEMÁTICA INDÍGENA NA ESCOLA

Nesta parte do artigo apresentamos informações sobre as percepções de 100 professores da educação básica que atuam em escolas das redes municipais e estadual do Rio de Janeiro, sobre a inserção da temática indígena na escola e suas opiniões sobre a lei n. 11.645/2008. Sobre o perfil do grupo, 13 homens e 87 mulheres responderam às questões propostas. Entre eles encontramos profissionais recém-formados e outros com ampla experiência de magistério, de diferentes áreas curriculares, com atuação na educação infantil e no primeiro e segundo segmentos do ensino fundamental, assim como no ensino médio e na educação de jovens e adultos (EJA). Alguns possuíam experiência de coordenação pedagógica e direção escolar, ou, nos últimos anos, atuavam nas secretarias municipais de educação.

No que diz respeito aos anos de experiência, 55 professores possuíam até 10 anos de atuação, 34 se situavam entre 11 e 20 anos e 11 exerciam o magistério há mais de 20 anos. Sobre a formação acadêmica, 32 professores cursaram pedagogia, 19 possuíam licenciatura em história, 18 em geografia, 6 em letras, 2 em artes, 2 em ciências biológicas, 3 em ciências sociais e 6 em matemática. Somente 12 professoras explicitaram possuir apenas o ensino normal (formação de nível médio).

É interessante chamar atenção sobre o pequeno número ou até ausência de professores das áreas chamadas de "exatas" (como matemática, física ou química) ou biológicas nesta amostra, o que se deve ao fato do pouco interesse demonstrado por esses profissionais em participarem da pesquisa. Muitos desses professores, quando convidados a participar, respondiam de forma quase imediata que não trabalhavam com essa temática. Alguns também ressaltaram que não era esse um tema para eles, mas para quem trabalhava com história.

Essa falta de interesse e a ausência de dados sobre a atuação de professores de algumas áreas disciplinares podem dar indícios sobre como a temática indígena é vista e, como consequência, abordada de forma fragmentada e pontual, sendo referida apenas a algumas poucas disciplinas, não como um tema amplo e multidisciplinar. Passamos então a analisar as respostas registradas nos formulários com base nas categorias construídas tendo como referência o roteiro utilizado e os depoimentos dos professores.

PRÁTICAS, FORMAÇÃO INICIAL E A CONSOLIDAÇÃO DO "ÍNDIO GENÉRICO"

As primeiras perguntas presentes no questionário faziam relação com as práticas dos professores e sua formação inicial: se abordavam a temática indígena em suas disciplinas, quando costumavam fazê-lo e quais as principais dificuldades que enfrentavam ao trabalharem com a temática indígena na escola.

No grupo pesquisado, apenas 20% dos professores nunca haviam abordado o assunto, todos os demais já haviam trabalhado a temática em suas aulas. Fato que aponta que o grande desafio da lei n. 11.645/2008 em relação à temática indígena não é a sua inclusão, mas sim qualificar essa abordagem tornando-a mais crítica e conectada com as demandas contemporâneas dos povos indígenas, pois metade dos que afirmaram ter trabalhado o assunto revelou só falar dos povos indígenas em abril, seja pela data do Dia do Índio ou para abordar o Descobrimento do Brasil.

Entretanto, mesmo entre os que declararam já ter abordado a temática indígena em suas aulas, cerca de 70% disseram sentir dificuldade sobre como incluir questões relacionadas aos povos indígenas em suas aulas. Entre as dificuldades mais citadas estão: "a falta de embasamento", a "lacuna na formação inicial" ou até mesmo o fato de "se sentir incomodado por conhecer de forma superficial" a história e a cultura dos povos indígenas brasileiros. A ausência ou superficialidade com que o tema foi trabalhado na formação inicial foi apontada como um problema para 78% dos participantes.

Em contrapartida, 30% dos professores entrevistados disseram não ter dificuldade de incluir a temática dos povos indígenas em suas aulas. Ao serem questionados, então, sobre como conseguem materiais e informações para planejarem suas aulas, alguns professores tornam óbvia a natureza superficial com que costuma perceber a temática:

Não acho difícil abordar o tema porque é só colocar no Google "Dia do Índio" e você encontra dezenas de atividades para utilizar com as crianças. (Pedagoga, 12 anos de experiência no magistério)

Outra professora, desse mesmo grupo, aponta que a maior dificuldade é sair da forma pontual com que o tema costuma ser abordado:

No mês dedicado à cultura indígena não é difícil. Difícil é manter o tema no decorrer do ano. (Professora de artes, 9 anos de experiência no magistério)

Interessante destacar que, entre os professores que fizeram parte desta pesquisa, 10 entrevistados estão locados em escolas situadas na rede municipal de Angra dos Reis, município que possui um território indígena demarcado (etnia Guarani Mbya). Essa população Guarani possui interação regular com o contexto urbano. Muitos saem da aldeia para vender artesanato ou são convidados para participar de eventos nas cidades próximas ao território. Apesar disso, mesmo entre os professores que atuam em escolas situadas nessa região (e até em escolas rurais próximas à terra indígena), o distanciamento e o desconhecimento sobre a temática indígena permanecem, conforme a resposta de uma dessas professoras.

Senti muita dificuldade de trabalhar com crianças da educação infantil, porque falar sobre índios para elas era como se estivesse falando de algo inexistente. (Pedagoga, 16 anos de experiência no magistério)

Esse depoimento revela como a proximidade física da escola com populações e territórios indígenas não parece fazer qualquer diferença no distanciamento que existe entre a escola regular e a temática indígena, entre seus professores e seus estudantes. O depoimento de outro professor, dessa mesma rede, aponta que, além do distanciamento cultural, os estudantes também costumam compartilhar visões estereotipadas e preconceituosas que dificultam o trabalho.

Tenho dificuldade com a falta de informação sobre os povos indígenas, mesmo após séculos de contato, são muitos os estereótipos produzidos na cidade [de Angra dos Reis] em relação a esses povos [...]. Algumas vezes os alunos se mostram resistentes a uma outra visão em relação a essas pessoas. (Pedagoga, 14 anos de experiência no magistério)

De fato, em poucas horas de conversa com alguns moradores das cidades vizinhas à terra indígena do Bracuí, estado do Rio de Janeiro, é possível reunir uma grande variedade de adjetivos pejorativos sobre eles: sujos, incapazes, fedidos, preguiçosos ou ladrões. Esses termos são utilizados de modo indiferenciado para os "índios", e poucos parecem saber que esses "índios" são Guarani.

Como aponta Cardoso de Oliveira (1996)Cardoso de Oliveira, R. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996 [1964]., quanto mais próximo de um território indígena, mais acirrados são os conflitos culturais e econômicos vivenciados por essas populações. No caso de Angra dos Reis, esse distanciamento cultural e a imagem negativa em relação aos Guarani estão muitas vezes relacionados aos atritos existentes na região em relação a interesses históricos de expansão e de exploração econômica. Em contrapartida, nos grandes centros urbanos, principalmente nas capitais distantes desses territórios indígenas, os atritos são menos explícitos e a diversidade étnica é geralmente considerada um valor a ser preservado. No entanto, apesar da posição mais aberta à aceitação da diferença, pouco se sabe sobre essa mesma diversidade. Na maior parte das vezes, os povos indígenas têm suas especificidades socioculturais ignoradas, sendo reduzidos a figura de um "índio genérico": últimos representantes de um passado nacional essencialista e folclorizado.

Voltando às respostas dos professores, quando questionados sobre as principais fontes de informação utilizadas para pesquisar sobre os povos indígenas brasileiros em suas aulas, foram citados, por ordem de frequência: material coletado na internet, notícias da mídia e livros didáticos. Porém, como exemplificado em um dos depoimentos citados anteriormente, sem formação anterior ou maior conhecimento sobre o assunto, o uso dessas três fontes parece ser bastante acrítico: uso de palavras-chave, como "Dia do Índio" ou "Índio", para encontrarem exercícios e atividades que costumam reforçar estereótipos e preconceitos sobre essas populações. Abaixo, alguns exemplos de materiais facilmente encontrados na internet, utilizados por professores da educação básica no país.

Figura 1
Atividades disponíves na internet para a "Semana do Índio".

LIVROS DIDÁTICOS E OS POVOS INDÍGENAS

O segundo conjunto de perguntas presente no formulário procurou perceber a opinião desses professores sobre a maneira como a história e a cultura dos povos indígenas eram apresentadas nos livros didáticos utilizados nas escolas atualmente e como eles conheceram tal temática em suas formações iniciais.

Antes de falar sobre a opinião desses professores a respeito da maneira como os povos indígenas são retratados nos livros didáticos, é importante fazermos a seguinte ressalva: apesar de o livro didático aparecer em terceiro lugar entre as fontes mais procuradas pelos professores para abordarem a temática indígena, também foram muitas as críticas desses mesmos professores sobre esse importante recurso presente na educação escolar.

Quase a totalidade dos entrevistados (80% dos professores) disse que os livros didáticos apresentam os povos indígenas "de forma generalizada", "superficial" ou até mesmo de maneira "preconceituosa". Apenas 12% reconheceram a existência de livros que enfocavam de maneira mais "atualizada" ou "contextualizada" a temática indígena, e, entre estes, somente um professor relacionou a existência da lei n. 11.645/2008 com a forma como alguns livros "mais atuais" estão abordando "com mais riqueza o tema".

É interessante observar como as opiniões dos professores são muito próximas das observações feitas por Grupioni (1996, p. 425)Grupioni, L. D. Imagens contraditórias e fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF: INEP, v. 77, n. 186, p. 409-437, maio/ago. 1996., mais de quinze anos atrás:

Os livros didáticos produzem a mágica de fazer aparecer e desaparecer os índios na história do Brasil. O que parece mais grave neste procedimento é que, ao jogar os índios no passado, os livros didáticos não preparam os alunos para entenderem a presença dos índios no presente e no futuro. E isto acontece, muito embora as crianças sejam cotidianamente bombardeadas pelos meios de comunicação com informações sobre os índios hoje. Deste modo, elas não são preparadas para enfrentar uma sociedade pluriétnica, onde os índios, parte de nosso presente e também de nosso futuro, enfrentam problemas que são vivenciados por outras parcelas da sociedade brasileira.

Essa tendência continua sendo apontada em análises mais recentes. Gobbi (2006, p. 107)Gobbi, I. A temática indígena e a diversidade cultural nos livros didáticos de história. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - São Carlos, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006., após analisar a representação da temática indígena nas coleções de livros didáticos de história recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático nos anos de 1999, 2002 e 2005, para 5ª e 8ª séries do ensino fundamental, verificou que:

a permanência de algumas temáticas apontadas por pesquisas anteriores - como a reprodução de estereótipos, a utilização de pressupostos evolucionistas, a presença de noções etnocêntricas, a menção aos povos indígenas como pertencentes ao passado, a desconsideração dos saberes indígenas, as inúmeras imprecisões conceituais, a confusão na grafia dos nomes indígenas, entre outros aspectos. Contudo, também foram encontrados alguns avanços no tratamento dado à temática indígena e à diversidade cultural em alguns dos referidos livros, como a veiculação de informações mais atualizadas, mais próximas da realidade, ou o uso do conceito de cultura. [...] São permanências e avanços que, quase sempre, aparecem lado a lado, ou seja: num mesmo livro, ou numa mesma coleção didática, podemos encontrar concepções completamente equivocadas em relação aos povos indígenas e às suas culturas, seguidas daquelas informações mais atualizadas, mais próximas da realidade ou que, de algum modo, os valorizem.

Silva (2010, p. 240)Silva, M. P. A "presença" dos povos indígenas nos subsídios didáticos: leitura crítica sobre as abordagens das imagens e textos impressos. Mnemosine Revista, Rio de Janeiro: UERJ, v. 1, n. 2, p. 268-290, jul./dez. 2010., que analisou livros didáticos após a existência da lei n. 11.645/2008, ainda encontra problemas muito semelhantes:

[...] constatamos que, após a lei 11.645/08, esses subsídios contêm mais textos e imagens sobre a temática indígena, porém são conteúdos que relatam situações do passado, trazem informações comuns aos primeiros manuais didáticos. Mas os textos que procuram situar sobre a situação atual dos povos indígenas no Brasil trazem muitas imagens isoladas e são raríssimos os relatos coerentes sobre a realidade desses povos. Percebemos, como afirma Moreira e Candau (2008), que os processos de organização e atuação dessas sociedades na história do país estão ausente dos livros didáticos.

Desse modo, os professores não contam com um livro didático que disponibilize informações mais atualizadas e completas para a sua prática docente, assim como não contaram com essas informações em sua formação inicial.

Sobre como a temática indígena foi ou não abordada em seus cursos de formação inicial, 55% dos professores disseram que a temática nunca foi vista ou que não se lembravam de quando foi trabalhada na formação inicial. Entre os que declararam lembrar-se da temática indígena em seus cursos de formação inicial, é frequente a referência pontual e limitada do tema. Alguns exemplos: entre os professores de história, disseram ter visto a temática apenas ao estudarem o período do Brasil colonial; os professores de geografia, ao abordarem questões relativas ao conceito de territorialidade ou temas mais gerais sobre a relação entre sociedades e meio ambiente; um professor de biologia disse ter tido uma disciplina eletiva sobre saberes indígenas e africanidade (tem menos de cinco anos de magistério), e os pedagogos disseram ter tido contato com a temática em disciplinas específicas, como a disciplina antropologia e educação,5 5 Cabe lembrar que essa disciplina foi incluída nos currículos dos cursos de pedagogia recentemente - na maioria dos casos, nos últimos cinco anos. Portanto, quem fez pedagogia há mais tempo não teve essa disciplina, que é praticamente a única a abordar a questão indígena na formação do professor. mas, segundo a maioria dos professores, mesmo nesses espaços disciplinares a temática indígena aparecia de forma muito limitada, pois, como especificamente reclamou uma das professoras entrevistadas, "só diziam para não reproduzir preconceitos, mas não diziam como fazer!" Os demais professores, de outras áreas disciplinares, disseram lembrar-se de ter visto a temática, mas não citaram informações específicas.

PERCEPÇÕES SOBRE A LEI

A respeito da opinião dos professores sobre a lei n. 11.645/2008, 60% deles disseram conhecê-la, enquanto 40% declararam nunca ter ouvido falar. Entre os que conheciam a lei, 75% acreditavam ser uma iniciativa positiva ou extremamente positiva. Alguns até mesmo a reconheciam como uma conquista dos movimentos indígenas e negros organizados no país, e apenas 25% dos professores se mostraram mais céticos: consideravam a lei um ato positivo como princípio normativo, mas acreditavam que a sua existência não garantiria a inclusão da temática caso não houvesse a produção de materiais específicos ou a formação continuada de professores para uma abordagem qualificada da história e cultura dos povos indígenas do país.

Essa percepção majoritariamente positiva dos professores sobre a lei em questão - nenhum dos entrevistados criticou a inclusão das duas temáticas - pode facilitar uma relação mais atuante do docente, que busca informações para trabalhar de modo mais contextualizado a temática indígena na escola, principalmente visibilizando e discutindo as imagens presentes no próprio livro didático. Isso, claro, se forem disponibilizados materiais e possibilidades de melhor formação sobre o tema tanto nas universidades quanto nos espaços de atuação profissional. Porém, pelos resultados da pesquisa, podemos perceber que muito falta avançar para uma inclusão da temática indígena mais aprofundada nos cursos de formação inicial de professores.

A TEMÁTICA INDÍGENA NOS CURSOS DE FORMAÇÃO INICIAL: HISTÓRIA E PEDAGOGIA

Como vimos no tópico anterior, a maioria dos docentes afirmou que seus cursos de formação inicial não abordava a temática indígena ou, quando o fazia, era de forma muito pontual e limitada. Sendo assim, é lógico supor que suas práticas refletissem essa ausência em sua formação. Por não terem sido apresentados a informações mais contextualizadas e atualizadas sobre os povos indígenas brasileiros, vários confessavam ir pelo caminho mais fácil: buscar na internet exercícios prontos, ou utilizar notícias que dificilmente apresentavam um material mais aprofundado. Desse modo, pareceu-nos importante verificar como a temática tem sido (ou não) incluída nos currículos de alguns cursos universitários. Aproveitamos também para fazer um paralelo sobre como as temáticas relacionadas às demandas do movimento negro têm sido incluídas, considerando as leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008.

Sobre o currículo das faculdades, a pesquisa realizada entre março e maio de 2013 procurou - por meio dos sites das universidades - os currículos dos cursos de história e de pedagogia nas cinco principais universidades públicas do estado do Rio de Janeiro. Com base nessa pesquisa, organizamos os dados apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Universidades, cursos e disciplinas relacionadas às leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008

A leitura do Quadro 1 permite perceber que, tanto nos cursos de história quanto nos de pedagogia das universidades consideradas nesta pesquisa, são poucas as disciplinas a abordarem a história e cultura indígena, e a maioria deles são eletivas, o que significa que nem sempre são ofertadas todos os anos nem escolhidas pelos alunos. Outro aspecto a destacar é que a maioria das disciplinas mencionadas aborda aspectos das culturas e história indígena, mas não o como ensiná-las. Assim, trata-se de conteúdos teóricos que sem dúvida contribuem para a formação do professor, mas não necessariamente lhes proporcionam ferramentas ou subsídios didáticos. Disciplinas que abordem a didática do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e a didática do ensino da história e cultura indígenas são raras nas universidades do país.

REFLEXÕES FINAIS

No país, cerca de novecentos mil indivíduos se autodeclararam indígenas de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2010)IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Povos indígenas. Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br>. Acesso em: 24 jul. 2016.
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. Também de acordo com esse órgão, um terço dessa população está fora de territórios indígenas: habitam desde pequenas comunidades rurais a grandes capitais do país, além de estarem presentes em todos os estados brasileiros. Contudo, entre os professores entrevistados, parece ser ainda muito forte a concepção de que os "verdadeiros" indígenas são aqueles que não "perderam sua cultura" e vivem em aldeias e/ou territórios indígenas "na floresta", como se a cultura fosse um bem fixo, imutável, que não se transforma com o tempo e com as dinâmicas sociais decorrentes da interação com outras sociedades.

Lima (2005)Lima, A. C. S. Os povos indígenas na invenção do Brasil: na luta pela construção do respeito à pluralidade. In: Lessa, C. (Org.). Enciclopédia da brasilidade: autoestima em verde amarelo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 218-231. nos oferece uma pista interessante para compreender a reprodução das imagens estereotipadas sobre os indígenas, veiculadas pelo sistema escolar e pela mídia. O autor argumenta a respeito da vigência de um "arquivo colonial", isto é, um artefato cultural destinado a conservar, guardar, classificar, ordenar, preservar, retirando os povos indígenas do protagonismo da história para estruturar uma narrativa que atende muito mais a quem controla o arquivo e às classificações que o organizam. Portanto o que conhecemos sobre os índios ainda hoje tem a ver com a visão construída pelo colonizador europeu. Nos primeiros séculos do contato entre europeus e povos indígenas das Américas é que foram gestadas as representações que os situam entre "aliados" e "inimigos". Nas palavras do autor (idem, p. 237):

Aos povos aliados caberia a virtude de serem os protointegrantes do proto Brasil, por defenderem as "terras portuguesas". Aos inimigos foram reservadas as qualidades inversas, a de inconstantes, traiçoeiros, selvagens, tecnologicamente primitivos, perversos, demoníacos. Aprendeu-se isso na escola, desde o ensino fundamental, por muito tempo como os Tupis e os Tapuias.

O autor afirma que uma categorização desse tipo, forjada pelos portugueses, nada nos diz sobre os indígenas, mas sobre sua utilidade para o colonizador. Durante a realização desta pesquisa, pareceu-nos que essas imagens costumam ser reatualizadas no contexto escolar, na perspectiva dualista de se pensar o "índio" ora como bom selvagem, ingênuo, protetor da natureza, ora como pessoa desordeira, preguiçosa, que reclama terra demais, constituindo um empecilho ao desenvolvimento do país. Tais representações são reproduzidas e reforçadas por instituições que gozam de muito poder, como a mídia e a escola. São tiradas dos povos indígenas sua agência histórica, o reconhecimento de sua complexidade, a visibilidade da importância que tiveram ao longo da história do Brasil e em nossa contemporaneidade.

Essa instrumentalização da imagem das populações indígenas é ainda mais evidente quando analisamos o modo como diferentes etnias são apresentadas nos livros didáticos utilizados em escolas brasileiras, a terceira fonte de informação mais citada pelos professores quando questionados sobre como elaboravam suas aulas sobre a temática (Gobbi, 2006Gobbi, I. A temática indígena e a diversidade cultural nos livros didáticos de história. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - São Carlos, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006.; Grupioni, 1996Grupioni, L. D. Imagens contraditórias e fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF: INEP, v. 77, n. 186, p. 409-437, maio/ago. 1996.; Silva, 2010Silva, M. P. A "presença" dos povos indígenas nos subsídios didáticos: leitura crítica sobre as abordagens das imagens e textos impressos. Mnemosine Revista, Rio de Janeiro: UERJ, v. 1, n. 2, p. 268-290, jul./dez. 2010.).

Pelos dados coletados durante esta pesquisa, foi possível perceber que ainda existe um longo caminho para que a lei n. 11.645/2008 seja efetivamente colocada em prática nas escolas do estado do Rio de Janeiro. Observamos também que a inclusão da temática indígena deve-se muito mais a iniciativas de professores de forma individual do que a uma preocupação institucional. Esses professores, de modo particular, sentem-se engajados com a questão e procuram realizar atividades mais sistemáticas com seus alunos. São raros os casos em que a instituição assume a importância da temática e apoia e orienta os docentes para a aplicação da lei.

Os setores governamentais que deveriam orientar e capacitar os professores para o ensino da cultura e história indígena - geralmente coordenações de inclusão e diversidade cultural da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro ou das secretarias municipais de educação, com escassos recursos humanos e econômicos - representam o modo como na esfera da gestão a diversidade cultural e a construção de práticas pedagógicas interculturais não aparecem como prioridade. No plano federal também não existem políticas ou instâncias de acompanhamento e supervisão da aplicação da lei n. 11.645 e são poucos os fomentos para a produção de materiais que auxiliem professores a rediscutirem o modo como estereótipos e equívocos sobre os povos indígenas são reproduzidos no âmbito escolar.

Nesse sentido, consideramos de suma relevância para o avanço na efetivação da lei priorizar a formação inicial e continuada de professores, acreditando que eles são os agentes facilitadores fundamentais da formação crítica e cidadã das futuras gerações. Ao longo da realização desta pesquisa, e também com base nas experiências vividas no desenvolvimento de cursos para professores, percebemos alguns passos que consideramos fundamentais para que esses profissionais sintam-se mais preparados para buscar desenvolver práticas pedagógicas alternativas, que fujam dos estereótipos e procurem aproximar-se de perspectivas mais críticas e coerentes com as demandas do movimento indígena:

  1. Atualizar-se na compreensão de conceitos que se apresentam como fundamentais para uma prática pedagógica respeitosa da diversidade, tais como cultura, identidade, etnocentrismo e relações interétnicas;

  2. Revisar a história e os mitos fundantes da conformação da sociedade brasileira no tocante às relações étnico-raciais;

  3. Reconhecer a imensa diversidade indígena existente no Brasil;

  4. Reconhecer os equívocos que povoam o universo escolar e incentivar a busca por materiais que auxiliem nessa mudança de perspectiva.

Entre os materiais que podem colaborar na perspectiva de se minimizar possíveis equívocos existentes a respeito do índio, ressaltamos a própria produção acadêmica e literária de intelectuais e profissionais indígenas que trazem sua própria voz. Acreditamos que esses sejam passos possíveis para que, tanto no currículo quanto nas práticas pedagógicas, o conhecimento escolar usual sobre os povos indígenas brasileiros seja reelaborado (Bergamashi; Zen; Xavier, 2012Bergamaschi, M. A.; Zen, M. I.; Xavier, M. L. (Orgs.). Povos indígenas & educação. Porto Alegre: Mediação, 2012.; Collet; Paladino; Russo, 2014Collet, C.; Paladino, M.; Russo, K. Quebrando preconceitos: subsídios para o ensino das culturas e histórias dos povos indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; LACED, 2014.; Funari; Piñón, 2011Funari, P. P.; Piñón, A. A temática indígena na escola: subsídios para professores. São Paulo: Contexto, 2011.; Luciano, 2006Luciano, G. S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006.; Oliveira; Freire, 2006Oliveira, J. P.; Freire, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília, DF: MEC/SECAD; LACED/Museu Nacional, 2006.; Silva; Silva, 2013Silva, E.; Silva, M. P. (Orgs.). A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da lei 11.645/2008. Recife: UFPE, 2013.; Silva; Gruppioni, 1995Silva, A. L.; Gruppioni, L. D. B. (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília, DF: MEC/MARI/UNESCO, 1995.).

Além dos limites, é igualmente importante apontarmos as conquistas que também estão em jogo no reconhecimento e implementação da lei n. 11.645/2008: todos os professores participantes da pesquisa reconheceram a importância de se incluir a temática indígena no currículo das escolas brasileiras, e a maioria deles também demonstrou uma visão crítica sobre a maneira com que os indígenas são apresentados nos livros didáticos. Grande parte dos professores também afirmou ter interesse em saber mais sobre os povos indígenas brasileiros, principalmente com acesso a dados mais atualizados sobre as diversas etnias existentes no Brasil. Alguns também citaram o uso de livros de literatura infantojuvenil escritos por autores indígenas como um suporte importante para desconstruírem estereótipos, mas apontam a dificuldade de localizar tais trabalhos (são poucos os títulos disponíveis em livrarias comerciais). Sendo assim, se, por um lado, reconhecemos os desafios para a implementação da inclusão da temática indígena na escola, por outro destacamos o atual ambiente propício para essa inclusão valendo-nos da opinião dos professores entrevistados.

Por fim, cabe destacar que a contemplação da diversidade cultural, e mais precisamente da presença dos povos indígenas e da cultura afro-brasileira no currículo escolar, não deve ser entendida como uma concessão ou abertura resultante da democratização do país. Precisa antes ser compreendida como resultado de uma longa luta dos movimentos negros e indígenas por visibilidade e reconhecimento, questão também importante de ser lembrada e problematizada na formação do professor.

  • 1
    Depoimento de professora dos primeiros anos do ensino fundamental durante o debate "A questão indígena na escola", realizado na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense no primeiro semestre de 2013.
  • 2
    Lei n. 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e cultura afro-brasileira nos currículos da educação básica; e a lei n. 11.645/2008, que acrescentou à anterior a inclusão dos estudos das histórias e culturas dos povos indígenas.
  • 3
    A cidade foi escolhida por ser a cidade-sede da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua uma das professoras autoras do estudo. Duas bolsistas de iniciação científica, Lenecleide de Silva Vaz e Sania Nayara da Costa Ferreira, participaram das observações nas escolas.
  • 4
    Na UERJ, foram investigados os currículos dos cursos de história e de pedagogia oferecidos no campus Maracanã; na UFF, os cursos oferecidos em Niterói; na UNIRIO, os cursos oferecidos na Urca; na UFRJ, os cursos oferecidos na Praia Vermelha e no Largo de São Francisco; e na UFRRJ, cursos oferecidos no campus de Seropédica.
  • 5
    Cabe lembrar que essa disciplina foi incluída nos currículos dos cursos de pedagogia recentemente - na maioria dos casos, nos últimos cinco anos. Portanto, quem fez pedagogia há mais tempo não teve essa disciplina, que é praticamente a única a abordar a questão indígena na formação do professor.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Maio 2014
  • Aceito
    Maio 2015
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