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Apresentação

Brincar para quê? Uma abordagem etológica ao estudo da brincadeira

Apresentação

Este dossiê teve origem em um simpósio apresentado na XXXI Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia em 2001. Nesse simpósio, foram apresentados e discutidos os três primeiros trabalhos e, ao dossiê, foi acrescentado o trabalho de Vieira e Sartorio. A motivação para discutir esse tema partiu do interesse comum das organizadoras sobre o fenômeno do brincar sob uma perspectiva etológica ou evolutiva.

A identificação deste comportamento é, em geral, fácil pela sua visibilidade e altos níveis de atividade, assim como por algumas características comuns à sua ocorrência em praticamente todas as espécies investigadas. Apesar de bastante estudado (ver Fagen, 1981 e Bekoff & Byers, 1998, para revisões), sua função é polêmica, com alguns autores propondo benefícios unicamente evolutivos, de longo prazo, enquanto outros acreditam que a brincadeira se mantém pelos benefícios imediatos que proporciona aos indivíduos. Spinka, Newberry e Bekoff (2001) apresentam uma proposta inovadora, que agrupa em uma única e ampla função aquilo que foi proposto anteriormente. Estes autores propõem que a brincadeira tem, em primeiro lugar, uma função adaptativa evidenciada pela ubiqüidade em todas as ordens mamíferas e pelos padrões comuns presentes em todas as espécies estudadas. Isto sugere uma unidade filogenética e funcional condizente com a evolução em resposta a pressões seletivas semelhantes. Em segundo lugar, propõem como função única da brincadeira o treino para o inesperado, do ponto de vista motor e emocional, permitindo ao animal ensaiar seqüências comportamentais semelhantes àquelas que serão utilizadas em situações biologicamente importantes, como fugir de predadores, agir como um predador ou em interações sociais diversas.

A proposta de Spinka et al. (2001) encontra ressonância nos trabalhos que compõem este dossiê e que fornecem evidências, a despeito da diversidade das espécies estudadas, de semelhanças na exibição deste comportamento. Este dossiê é abordado do ponto de vista comparativo, pedra de toque do estudo do comportamento. O que se mostra aqui é, como em espécies tão diferentes, há pontos de aproximação quanto à maneira como os indivíduos imaturos se comportam. Isto significa que há a possibilidade de interpretar o comportamento das mais diferentes espécies, a humana incluída, através de conceitos que levam em consideração as pressões evolutivas que a espécie enfrentou.

O trabalho de Spinelli, Nascimento e Yamamoto descreve a brincadeira em botos cinza em seu ambiente natural, uma espécie diferente do homem em vários aspectos, não o menor deles o seu hábitat. As brincadeiras descritas são categorizadas como locomotora e social, as mesmas categorias descritas para mamíferos terrestres. A participação preferencial de imaturos, a repetição de padrões comportamentais, e ausência aparente de função mostram, igualmente, a afinidade com o comportamento de outros mamíferos. Neste trabalho é discutida principalmente a função da brincadeira na aprendizagem do comportamento de predação, fundamental para uma espécie carnívora.

O segundo trabalho, de Resende e Ottoni, trata da brincadeira com objetos em uma espécie próxima do homem, o macaco-prego. Também aqui se discute a possível função da brincadeira para a aprendizagem de um comportamento importante na vida adulta destes animais, a utilização de instrumentos. A tolerância que adultos mostram em relação a imaturos, a semelhança entre os comportamentos exibidos na brincadeira e aqueles que são funcionais na aquisição do alimento, evidenciam novamente características presentes em outras espécies, incluindo a do trabalho anterior com golfinhos.

Utilizando a mesma abordagem, Carvalho e Pedrosa discutem a brincadeira em crianças muito jovens. Este trabalho aborda a especificidade biológica do homem como uma espécie cultural, e discute de que forma isso se reflete na brincadeira das crianças. Os episódios de brincadeira descritos ilustram três aspectos básicos da vida sócio-cultural: a recuperação da cultura do ambiente social imediato, a criação de rituais lúdicos novos que podem tornar-se parte da microcultura do grupo e a assimilação de aspectos dessa microcultura. A ocorrência desses processos entre crianças pequenas, sem interferência de adultos, é discutida como evidência da pré-adaptação humana à vida sócio-cultural. Seriam essas manifestações culturais qualitativamente diversas das evidenciadas em outros primatas, por exemplo no trabalho de Resende e Ottoni?

Finalmente, o trabalho de Vieira e Sartorio apresenta uma revisão da brincadeira em roedores. Este é talvez, juntamente com os primatas, o grupo melhor estudado no que diz respeito a esta temática. A facilidade de criação em cativeiro, os pequenos grupos, a alta taxa de reprodução e o curto período de imaturidade tornam este um grupo privilegiado para o estudo experimental da brincadeira. Esta revisão apresenta alguns desses resultados, mostrando que em situações pouco naturais é possível alterar os níveis de brincadeira, porém não suas características, novamente em linha com a proposta de Spinka et al. (2001).

Acreditamos que este dossiê possibilita a discussão dos fatores biológicos envolvidos na determinação do comportamento, que ao lado dos fatores ambientais, sejam eles sociais ou individuais, permitem uma avaliação mais ampla do comportamento e uma compreensão mais abrangente. Vários pontos comuns a todos os textos ressaltam os aspectos que têm sido, repetidamente, abordados na literatura. O primeiro deles é a dificuldade de definição da brincadeira, ressaltada, curiosamente, pelos três trabalhos que estudaram animais, mas não pelo trabalho com crianças. Uma vez que a brincadeira infantil descrita por Carvalho e Pedrosa é basicamente verbal, a linguagem talvez seja o meio pelo qual a definição se apresenta e a dificuldade é superada. A dificuldade de definir (ou de identificar) a brincadeira aparece em humanos quando estudada em crianças pré-verbais? Um estudo anterior de Pedrosa e Carvalho (1995) sugere que não. Uma explicação alternativa é que, em humanos, o viés do próprio pesquisador torna a identificação da brincadeira mais fácil e o problema de definição não apresenta a sutileza que acompanha o estudo desse tema em espécies não humanas. Aparentemente, no caso da criança há pistas faciais e corporais mais reconhecíveis para o etólogo, como o riso e a descontração, que permitem distinguir a brincadeira de outros eventos, mesmo nos casos em que alguns padrões comportamentais se sobrepõem, como na brincadeira de luta e na agressão. De qualquer maneira, a mediação verbal é única aos humanos tanto na expressão quanto na definição da brincadeira, e seria interessante comparar em que ela torna este comportamento diferente do apresentado pelos animais, principalmente quando partimos do pressuposto que a espécie humana se inclui na unidade filogenética e funcional proposta por Spinka et al. (2001). Um segundo ponto comum diz respeito à relação com o desenvolvimento cerebral, que se não é citado no trabalho com crianças, é certamente um pressuposto. A demanda cognitiva exigida pela brincadeira, principalmente a social, que requer a avaliação constante da situação e do parceiro, é muito clara na brincadeira descrita por Carvalho e Pedrosa. Finalmente, a preocupação pela procura da função evolutiva da brincadeira aparece em todos os quatro trabalhos, que em termos comparativos também iluminam a especificidade dessa função em diferentes espécies: sobreviver não requer as mesmas habilidades em espécies diferentes.

Por isso nossa pergunta inicial "Brincar para quê?". Acreditamos que todos os trabalhos trazem contribuições importantes para esta questão, e que, respeitadas as peculiaridades de metodologias e espécies estudadas, mostram uma impressionante aproximação dos comportamentos descritos. Nossa idéia inicial de que a função é provavelmente uma só ¾ embora, evidentemente, com especificidades por espécie, como ilustram os dois trabalhos referentes a primatas, que focalizam a aprendizagem sócio-cultural, aparentemente inexistente nos outros dois casos ¾ e de que este é um comportamento que apresenta unidade filogenética é reforçada pelos trabalhos que compõem este dossiê.

Cabe ressaltar finalmente que a pergunta "Brincar para quê?" é funcional e não se refere a causas próximas (Alcock, 2001). Essa distinção é muito clara na teorização etológica, mas pode gerar interpretações distorcidas na comunicação com outras vertentes do pensamento em Psicologia. A atribuição de funções adaptativas ao brincar não implica que o comportamento individual, do ponto de vista ambiental, fisiológico ou sócio-cultural, seja determinado por essas funções: o indivíduo não brinca porque isso o torna mais competente, seja no ambiente imediato ou no futuro; o comportamento de brincar, do ponto de vista próximo, é motivado intrinsecamente, pela própria atividade. Essa motivação é que foi criada ao longo da evolução devido às conseqüências adaptativas (funcionais) do brincar. São justamente a motivação intrínseca e ausência de conseqüências imediatas para o indivíduo que fazem do brincar um fenômeno tão peculiar e digno de atenção.

Maria Emilia Yamamoto

Ana Maria Almeida Carvalho

Referências

Alcock, J. (2001). Animal Behavior. Sunderland: Sinauer.

Bekoff, M., & Byers, J. A. (Orgs.). (1998). Play: Evolutionary, comparative and ecological perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.

Fagen, R. M. (1981). Animal play behavior. Nova York/Oxford: Oxford University Press.

Pedrosa, M. I., & Carvalho, A. M. A. (1995). A interação social e a construção da brincadeira. Cadernos de Pesquisa, 93, 60-65.

Spinka, M., Newberry, R. C., & Bekoff, M. (2001). Mammalian play: Training for the unexpected. Quarterly Review of Biology, 76, 141-168.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    Jan 2002
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