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Descrição de um processo terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual

Description of therapeutic group process with sexual abused female teenagers

Resumos

Pessoas que sofreram abuso sexual na infância ou adolescência carregam seqüelas emocionais provenientes do abuso, em diferentes graus. Este estudo teve como objetivo geral a análise de um processo terapêutico em grupo desenvolvido com adolescentes do sexo feminino, vítimas de abuso sexual intrafamiliar, visando diminuir seqüelas do abuso e melhorar seu repertório de enfrentamento. O processo de quinze sessões foi dividido em quatro fases, com objetivos específicos: (I) Preparação - dessensibilizar para facilitar a auto-exposição; (II) Revelação e exposição de sentimentos - facilitar a revelação do abuso sexual; (III) Aceitação - discutir a aceitação do abuso sexual e seu lugar na história de vida da pessoa; e (IV) Prevenção - facilitar a aprendizagem de comportamentos de autoproteção que impeçam a revitimização. Os resultados mostraram que exposições graduais ao tema feitas em grupo podem facilitar a revelação, a expressão de sentimentos e a aceitação do abuso na história de vida das participantes.

abuso sexual; revelação; prevenção; revitimização


People who suffered sexual abuse in childhood or adolescence carry a great number of abuse-related sequela. The aim of this study was the analysis of a therapeutic group process developed with female teenagers who were victims of intrafamilial sexual abuse. It aimed for the sequela reduction left by the sexual abuse, and improve their tools for facing up to the abuse situation. The process was composed of fifteen sessions, divided into phases, each one having an specific aim: Preparation - desensitization to facilitate the self-exposure; Revelation and feelings exposure - to facilitate the sexual abuse revelation, and promote the feelings exposure; Acceptance - to discuss the sexual abuse acceptance, and its place in the person's life history; Prevention - to facilitate the learning of self protection behaviors that prevent their selves from revictimization. The results show that the gradual exposures to the subject made inside the group can facilitate the sexual abuse disclosure, and the feelings expression.

sexual abuse; disclosure; prevention; revictimization


ARTIGOS

Descrição de um processo terapêutico em grupo para adolescentes vítimas de abuso sexual

Description of therapeutic group process with sexual abused female teenagers

Maria da Graça Saldanha PadilhaI; Paula Inês Cunha GomideII

IUniversidade Tuiuti do Paraná

IIUniversidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paula Inês Cunha Gomide Praça da Ucrânia, 80, ap.162 Bigorrilho; Curitiba, PR; CEP 80730-430 E-mail: pgomide@onda.com.br

RESUMO

Pessoas que sofreram abuso sexual na infância ou adolescência carregam seqüelas emocionais provenientes do abuso, em diferentes graus. Este estudo teve como objetivo geral a análise de um processo terapêutico em grupo desenvolvido com adolescentes do sexo feminino, vítimas de abuso sexual intrafamiliar, visando diminuir seqüelas do abuso e melhorar seu repertório de enfrentamento. O processo de quinze sessões foi dividido em quatro fases, com objetivos específicos: (I) Preparação - dessensibilizar para facilitar a auto-exposição; (II) Revelação e exposição de sentimentos - facilitar a revelação do abuso sexual; (III) Aceitação - discutir a aceitação do abuso sexual e seu lugar na história de vida da pessoa; e (IV) Prevenção - facilitar a aprendizagem de comportamentos de autoproteção que impeçam a revitimização. Os resultados mostraram que exposições graduais ao tema feitas em grupo podem facilitar a revelação, a expressão de sentimentos e a aceitação do abuso na história de vida das participantes.

Palavras-chave: abuso sexual; revelação; prevenção; revitimização

ABSTRACT

People who suffered sexual abuse in childhood or adolescence carry a great number of abuse-related sequela. The aim of this study was the analysis of a therapeutic group process developed with female teenagers who were victims of intrafamilial sexual abuse. It aimed for the sequela reduction left by the sexual abuse, and improve their tools for facing up to the abuse situation. The process was composed of fifteen sessions, divided into phases, each one having an specific aim: Preparation - desensitization to facilitate the self-exposure; Revelation and feelings exposure - to facilitate the sexual abuse revelation, and promote the feelings exposure; Acceptance - to discuss the sexual abuse acceptance, and its place in the person's life history; Prevention - to facilitate the learning of self protection behaviors that prevent their selves from revictimization. The results show that the gradual exposures to the subject made inside the group can facilitate the sexual abuse disclosure, and the feelings expression.

Key words: sexual abuse; disclosure; prevention; revictimization

A proteção a crianças e adolescentes transformou-se em um movimento social que vem sendo apoiado por um crescente envolvimento de profissionais da área da infância e da família (Wolfe, 1998). Questões ainda não respondidas sobre os maus-tratos ganham cada vez mais espaço como problemas de pesquisa, seja para o entendimento da negligência, seja para a investigação do abuso físico, psicológico ou sexual (Padilha, 2001).

De acordo com a hipótese da transmissão intergeracional da violência, segundo a qual violência gera violência e abuso gera abuso (Widom, 1989), pessoas que passaram por situações de maus-tratos na infância ou adolescência têm maior probabilidade de repetir estas situações com sua prole, ativa ou passivamente. Como forma de maus-tratos, o abuso sexual deve também ser foco de estratégias de prevenção, para evitar que se repita em gerações seguintes.

Para Born, Delville, Mercier, Sand e Beeckmans (1996) uma definição de abuso sexual deve incluir: um abuso de poder, orientado em direção à intimidade corporal, entre um adulto e uma criança ou adolescente, que acontece no seio da família ou fora do círculo doméstico.

As diferentes definições de abuso sexual têm, no mínimo, três aspectos em comum: (1) a impossibilidade de uma decisão por parte da criança ou adolescente sobre sua participação na relação abusiva, já que na maior parte das vezes não está apta para compreender o seu envolvimento numa relação sexual; (2) o uso da criança por parte do adulto para a própria estimulação sexual; e (3) o abuso de poder exercido pelo adulto, cujo comportamento coercitivo não pode ser identificado facilmente, pois muitas vezes não existem provas físicas de que o abuso sexual aconteceu (Amazarray & Koller, 1998; Azevedo & Guerra, 1989; Diégoli, Diégoli, Lerner, & Ramos, 1996; Gabel, 1997). O incesto inclui-se nesta categoria e é talvez a forma mais extrema de abuso sexual segundo Azevedo, Guerra e Vaicunas (1997).

Conforme Amazarray e Koller (1998), as taxas de ocorrência reais do abuso sexual são provavelmente mais elevadas do que as estimativas existentes. A maioria de casos nunca é revelada devido aos sentimentos de culpa, vergonha, ignorância e tolerância da vítima.

Mesmo levando-se em conta esta afirmativa, os levantamentos sobre ocorrências no Brasil mostram números que impressionam. Diégoli et al. (1996) apresentam dados levantados no setor de sexologia do Instituto Médico Legal de São Paulo, onde cerca de 70% das queixas de abuso sexual ocorreram em meninas com idade inferior a 18 anos. Em levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba - PR (1999), junto ao Instituto Médico Legal, foram apontadas as ocorrências sobre a violência na cidade de Curitiba e região metropolitana: cerca de 77% dos casos de violência sexual foram cometidos contra indivíduos com idade inferior a 19 anos. Em levantamento realizado de abril a junho de 2002 pelo Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, foram feitas 250 denúncias de abuso sexual, sendo 52,86% de abusos cometidos por familiares e 47,14% de abusos cometidos fora da família (Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência, 2002).

Breve descrição do fenômeno e dos perfis das pessoas envolvidas no abuso sexual

O abuso sexual da criança é de natureza variada: vai desde uma carícia íntima, manipulação da genitália, mama ou ânus, exploração sexual, pornografia, "voyeurismo", exibicionismo, até a penetração, vaginal, anal ou oral. Pode também estar associado a um grau variável de violência, desde a intimidação até a agressão física. Pode ocorrer dentro da família, sendo perpetrado mais comumente pelo pai ou pelo padrasto contra a filha ou enteada e também fora da família, por parte de indivíduos pedófilos ou agressivos, freqüentemente pertencentes ao círculo de relações da criança.

Perrone e Nannini (1998) afirmam que a família que tem uma criança abusada pode ter um padrão de comportamento conivente com o abuso. Em outras palavras, é possível que um pai ou padrasto abuse da filha ou enteada durante vários anos, sob o olhar "cego" das outras pessoas da família. Segundo os autores, neste caso a mãe apresenta uma atitude ambivalente e a revelação do abuso em si não bastaria para romper o vínculo que a une ao pai abusador. Esta mãe teria tido uma história de vida caótica, com abandonos e muitas vezes violência. Sua interação afetiva com a criança é por vezes distante e por vezes ambivalente, dificultando a discriminação por parte da criança. Friedrich (1998) afirma que uma mera "acusação" à mãe é infértil, se não for considerada a relação direta entre a sua história de vida e os efeitos sobre seu repertório de proteger os filhos.

Segundo Eibl-Eibesfeldt (1977), a sexualidade humana tem dois objetivos: servir à reprodução e unir os pares (função vinculadora). Esta união exclui o incesto, tido como tabu universal. "Há uma inibição inata que nos impede de casarmos com pessoas com as quais crescemos em relações de união íntima" (p.186). O incesto é, portanto, antinatural na visão da Etologia.

A figura do padrasto é freqüentemente ligada ao abuso sexual. De acordo com Tyler (1986), a razão para isso é que os padrastos têm menor probabilidade de convivência familiar e formação de vínculo afetivo com a criança durante o período de socialização precoce.

O perfil da criança (ou adolescente) abusada e seu relacionamento com o abusador são relatados pela literatura como bastante complexos. A vítima é descrita como tendo uma participação involuntária em uma relação complementar em que tira ganhos e que muitas vezes é a relação mais importante e significativa de toda a sua vida (Furniss, 1993). O vínculo torna-se sexualizado e contém ao mesmo tempo elementos positivo-gratificantes e elementos danosos para a criança. Suas demandas afetivas são respondidas pelo abusador num contexto que desperta precocemente a sua sexualidade. Ao buscar cuidado emocional, recebe uma resposta sexual. Com o acúmulo de experiências de abuso, a vítima em sua confusão entre cuidado emocional e experiência sexual pode apresentar comportamento sexualizado, quando na verdade quer cuidado emocional. Além disso, desenvolve uma dificuldade em confiar nas pessoas, sejam próximas ou não.

O impacto do abuso sexual para crianças e adolescentes

Os sentimentos de culpa são freqüentes entre os indivíduos que sofreram abuso prolongado, independentemente do grau de cooperação (Perrone & Nannini, 1998). A atitude do abusador em apontar a vítima como co-responsável pelo abuso pode fazê-la sentir-se ainda mais culpada.

O abuso sexual prolongado pode prejudicar seriamente o desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental da criança ou adolescente, particularmente no caso do incesto. (Azevedo, Guerra, & Vaicunas, 1997). Segundo Knell e Ruma (1999) dez características podem ser evidenciadas em pessoas que sofreram abuso sexual na infância: (1) síndrome dos "bens danificados" (sentimento de que a inocência foi perdida, sentimento de que os sonhos foram destruídos), (2) culpa, (3) depressão, (4) baixa auto-estima, (5) habilidades sociais empobrecidas, (6) raiva e hostilidade reprimidas, (7) capacidade para confiar prejudicada, (8) limites pouco claros entre os papéis, (9) pseudomaturidade, e (10) problemas de autodomínio e controle.

Friedrich (1998) afirma que indivíduos abusados sexualmente podem apresentar sintomas de natureza interna, tais como, ansiedade, depressão, queixas somáticas, inibição e sintomas de stress pós-traumático (hiperexcitação fisiológica, medos e evitação, reexperiência) ou externa, como agressão, delinqüência, envolvimento em prostituição, em níveis aumentados de atividade, além de problemas de comportamento sexual. Amazarray e Koller (1998) sintetizam alguns estudos que afirmam que o abuso sexual afeta o comportamento social da criança ou adolescente, a curto e longo prazo. A vítima tem dificuldade em confiar nos outros, e apresenta poucos comportamentos pró-sociais, como compartilhar, ajudar, e associar-se.

Kohlenberg e Tsai (1998) descrevem o abuso sexual repetitivo ou não como situação de trauma, com duas classes de efeitos relacionados: aqueles baseados em respostas autonômicas (respondentes) e aqueles baseados em respostas de esquiva (operantes). No caso do abuso, o condicionamento respondente é o pareamento de estímulos ligados à situação de trauma com a situação de ameaça que evoca ansiedade, de maneira que estímulos similares aos presentes durante o abuso podem eliciar ansiedade. A resposta de esquiva ocorre porque previne a exposição aos estímulos evocadores impedindo a ansiedade, o que explica porque vítimas de abuso sexual evitam até falar sobre ele.

De acordo com Painter e Howell (1999), mulheres que foram abusadas sexualmente quando crianças crescem reprimindo a raiva, por medo de repreensões, de isolamento ou da retirada do afeto. Em geral, não tiveram bons modelos de expressão apropriada da raiva, pois seus pais também não aprenderam repertório de comportamentos de expressar raiva de uma maneira saudável.

Gomide e Sperancetta (2002) realizaram um estudo sobre comportamento agressivo de adolescentes do sexo feminino, comparando a emissão de comportamentos agressivos durante uma partida de futebol antes e depois de as participantes assistirem ao filme Marcas do Silêncio (DiGiulio & Huston, 1996, com a história de uma menina abusada sexualmente pelo padrasto). Os resultados mostraram que houve aumento da freqüência de comportamentos agressivos após assistirem ao filme. As autoras interpretaram os resultados à luz de algumas teorias, com particular atenção à Etologia, que afirma que uma estimulação aversiva violenta desencadeia raiva, e esta emoção desencadeia o comportamento agressivo. A visão da agressão sofrida pela protagonista pode desencadear a raiva. A agressão, humilhação, abuso sexual e ausência de proteção são fatores que potencialmente poderiam estar correlacionados com a expressão da raiva. Dentro da hipótese etológica, a raiva é o sentimento natural de quem sofre abuso sexual, e sua expressão permite à vítima desvincular-se de afetos positivos em relação ao abusador, o que facilitaria o tratamento.

O repertório de enfrentamento como instrumento contra a revitimização

Krahé, Scheinberger-Olwig, Waizenhöfer e Kolpin (1999) apontam para a possibilidade de que o abuso sexual na infância constitua um fator de risco para a vitimização sexual subseqüente ou revitimização. Para explicar o fenômeno da revitimização têm sido sugeridos mecanismos como aquisição de repertório inadequado de comportamento sexual, associando sexualidade com experiências de punição e dor, desamparo aprendido e autoconfiança diminuída. Se a cadeia original de comportamentos não for alterada, poderá haver reincidência.

Conforme Wolfe (1998), há necessidade de prevenção de abuso sexual em três níveis: primário, secundário e terciário. A prevenção primária tem como objetivo a eliminação ou redução dos fatores sociais, culturais e ambientais que favorecem a violência, atuando nas suas causas. A prevenção secundária visa detectar precocemente as crianças ou adolescentes em situação de risco, atuando em situações já existentes. No nível da prevenção terciária o objetivo é o acompanhamento integral da vítima e do agressor, por equipe multidisciplinar, incluindo atendimento médico, psicológico, social e jurídico. Visa melhorar seqüelas de abuso e a probabilidade de evitar a revitimização.

Segundo Friedrich (1998) devem ser criados mecanismos capazes de recolocar a criança ou adolescente em seu caminho normal de desenvolvimento, através da aquisição de repertório de enfrentamento com recursos como habilidade de solução de problemas, habilidades sociais e habilidades para expressar sentimentos. O terreno da prevenção terciária tem por objetivo, portanto, melhorar seqüelas de abuso e seus efeitos.

Estratégias de tratamento

Nyman (1998) apresenta quatro áreas de tratamento no processo de reabilitação de vítimas de abuso sexual, a saber: (1) descrever o abuso sexual, ou seja, falar, escrever, desenhar, jogar, mostrar e quaisquer outras formas para descrever com detalhes; (2) expressar em palavras ou ações os sentimentos de culpa, vergonha, decepção, tristeza, agressão, ansiedade em relação ao agressor e em relação àqueles que não perceberam o que estava acontecendo; expressar sentimentos ambivalentes; (3) dizer que não, uma pessoa cujos territórios corporais e emocionais foram violados precisa de ajuda para restabelecer os limites de tal território, identificar e expressar sentimentos de desejo e não desejo, sentimentos positivos e negativos, zonas privadas, bons e maus contatos, bons e maus segredos e (4) aceitar, isto é, as experiências difíceis não podem ser totalmente esquecidas, mas devem ser assimiladas, integradas e transformadas, passando de algo insuportavelmente vergonhoso a uma triste lembrança.

Verduyin e Calam (1999) afirmam que o tratamento de seqüelas deixadas pelo abuso sexual envolve, por um lado, intervenções para aumentar as habilidades e competências e, por outro, intervenções para desafiar as cognições distorcidas. Segundo os autores, avaliar a si mesmo como agente do abuso e não como vítima é uma cognição distorcida, que influencia sentimentos e comportamentos.

Dentro do modelo cognitivo-comportamental, pressupõe-se que a percepção construída pela vítima é a de ser agente do abuso sexual, ou seja, a história de vida da criança vítima permitiu que ela desenvolvesse a crença de ser partícipe do abuso. Logo, a vítima assume a culpa pelo abuso, o que resulta em comportamentos de evitação do assunto e na impossibilidade de novas aprendizagens de comportamentos mais adaptativos. Mudar a crença da pessoa abusada de partícipe (culpada) para vítima é propiciar a aprendizagem de um repertório comportamental que impeça a revitimização (Padilha, 2001).

Wolfe (1998) sugere algumas estratégias dirigidas a manifestações específicas: (1) para diminuir a hiperexcitação fisiológica (uma vez que a ansiedade pode ser resistente à extinção) são necessárias técnicas de exposição, e algumas vezes tratamento medicamentoso e técnicas de redução da ansiedade (relaxamento); (2) para diminuir medos e evitação são aplicadas técnicas de exposição gradual às memórias do trauma, terapia cognitiva, dessensibilização sistemática e manejo de stress; (3) para trabalhar a reexperiência, é necessário falar sobre o trauma, pois a experiência passa a fazer sentido; (4) os problemas de sexualidade podem ser trabalhados incluindo-se pais e criança, buscando promover a educação sexual da família, ensinando os pais como responder às questões sexuais calmamente, desmistificando o comportamento sexual inapropriado, usando estratégias de manejo (comunicação aberta sobre sexualidade, clarificar conseqüências, desenvolver comportamentos pró-sociais) e aprimorando o monitoramento (restrição de risco).

Kohlenberg e Tsai (1998) afirmam que o trabalho terapêutico deve incluir a prevenção da esquiva, sem a qual o processo fica comprometido. Para facilitar a prevenção da esquiva podem ser usadas situações de exposição gradual a estímulos relacionados ao trauma. É necessário, portanto, que o estímulo evocador de ansiedade seja conhecido, e que o cliente seja cooperativo, estando disposto a tolerar certa quantidade de ansiedade ligada à situação de trauma.

O processo de exposição recomendado para adolescentes é mais gradual do que o proposto para adultos. Por meio de tentativas repetidas de confrontação com sinais relacionados ao abuso, o adolescente aprende que pensamentos e lembranças do abuso não são prejudiciais e não precisam ser evitados (Heflin & Deblinger, 1999).

Furniss (1993) afirma que na pré-adolescência e na adolescência a terapia de grupo é preferível à terapia individual. Vítimas de abuso sexual definem a si mesmas inteiramente através de sua experiência de abuso, e sentem-se únicas nesta experiência, culpadas, isoladas e diferentes de seus iguais. Em sessões de grupo, todos são "normais no contexto" e isso faz com que fique mais fácil romper o segredo e o isolamento (Padilha, 2001).

Duas hipóteses podem ser delineadas em relação ao procedimento terapêutico para vítimas de abuso sexual, considerando-se seu comportamento típico de não revelarem o abuso sofrido. A primeira hipótese refere-se à punição. Como dito acima, a mãe da vítima pode assumir uma atitude ambivalente em relação a ela, de modo que, quando ocorre a revelação, a mãe não acredita e pune a criança ou adolescente, culpando-a pelo abuso. O abusador também culpa a vítima ou usa ameaças para coagi-la a não revelar, fazendo com que se sinta cúmplice do "jogo" e formando o conceito de que revelar traz conseqüências negativas. Esta hipótese tem a seguinte implicação para a terapia: a vítima que revelou o abuso e foi punida, ou foi ameaçada pela retirada do afeto caso revelasse, tem dificuldade para formar relações de confiança com outras pessoas. Iniciando terapia, seja quando criança, adolescente ou adulta, não revelará o abuso se a relação de confiança com audiência não punitiva não for desenvolvida pelo terapeuta. Os efeitos supressivos da punição cessarão quando o terapeuta acolher empaticamente as primeiras tentativas de revelação feitas pela vítima.

A segunda hipótese deriva de conceitos da Etologia. Como afirma Eibl-Eibesfeldt (1977), o incesto é antinatural e não uma relação prazerosa. O abusador desencadeia um afeto ambíguo quando elicia na vítima sensações de prazer sexual, ao mesmo tempo em que a coage mostrando que a própria relação abusiva é socialmente inaceitável. Os sentimentos de carinho e raiva coexistem para a vítima, que desculpa o abusador, afirmando que o afeto recebido é mais importante do que a raiva. Na realidade, a emoção básica da vítima de abuso é a raiva, "maquiada" pelo abusador com o afeto que este lhe proporciona. A implicação desta hipótese para a terapia é: desencadear a raiva numa situação protegida permite lidar com a imagem de "bonzinho" do abusador, favorecendo a desculpabilização da criança ou adolescente abusada. O primeiro passo é a expressão deste sentimento, dificilmente admitido pelas vítimas, após o que é possível refazer a imagem que a pessoa abusada tem de si mesma.

A revisão da literatura sobre abuso sexual permite apontar alguns pressupostos para o trabalho em grupo com adolescentes vitimizadas sexualmente: (1) vítimas de maus-tratos na infância e/ou adolescência podem tornar-se multiplicadores de maus-tratos na vida adulta; (2) a revelação do abuso sexual numa situação protegida permite diminuir as seqüelas emocionais decorrentes do abuso; (3) para que a informação venha a público deve passar por um ouvinte não crítico e empático numa relação de confiança com audiência não punitiva; (4) o trabalho terapêutico em grupo facilita o rompimento do segredo e do isolamento; (5) a revelação feita por aproximações sucessivas permite a prevenção da esquiva, pela diminuição da ansiedade; (5) a livre expressão de sentimentos (principalmente o afeto ambíguo) ligados à situação de abuso facilita a modificação da auto-imagem negativa de agente do abuso; (6) a compreensão do papel de vítima permite o desenvolvimento de habilidades de autoproteção para a de prevenção da revitimização. Estes pressupostos embasam a estrutura e as intervenções praticadas com um grupo terapêutico para adolescentes abusadas sexualmente.

Este estudo teve como objetivo a análise de um processo de intervenção terapêutica em grupo de vítimas de abuso sexual intrafamiliar. Tratou-se de um trabalho de prevenção terciária, cujo objetivo foi o de diminuir seqüelas deixadas pelo abuso sexual e melhorar o repertório de enfrentamento das participantes. A análise se propôs a verificar se um processo terapêutico de grupo de curto prazo facilita a revelação do abuso sexual e a exposição de sentimentos ligados a ele, assim como sua aceitação. Analisou-se também a possibilidade de aprendizagem de um repertório de comportamentos capaz de impedir a revitimização.

Método

Participantes

Cinco adolescentes abrigadas em uma unidade de abrigo na região de Curitiba e afastadas de suas famílias por intervenção do Juizado da Infância e da Juventude. Todas eram vítimas de abuso sexual intrafamiliar. A intervenção terapêutica em grupo foi realizada por três psicólogas, sendo uma a terapeuta principal e duas co-terapeutas.

Para a seleção das participantes, a pesquisadora realizou algumas entrevistas individuais com cada participante do estudo antes de iniciar as sessões em grupo, com o objetivo de facilitar o vínculo terapêutico. O recrutamento foi feito com consentimento informado, ou seja, foi-lhes dito que o grupo era para tratar do abuso sexual que haviam sofrido. As sessões foram realizadas no consultório particular de uma das terapeutas.

Material

Foram utilizados diversos materiais para desenho e colagem; um vaso quebrado; televisão com videocassete para apresentação de três vídeos (De braços abertos, de Souza, Kuhn, & Lima, 1999; Marcas do silêncio, de DiGiulio & Huston, 1996; e o programa Globo Repórter, da Central Globo de Jornalismo, 24 de março de 2000); e a Historia de Rosinha (Padilha, 2001).

Procedimento

A intervenção foi dividida em quatro fases, cada uma com um objetivo específico. Fase I - Preparação: dessensibilizar para facilitar a auto-exposição, falar de si mesma, dos próprios sentimentos; Fase II - Revelação e exposição de sentimentos: facilitar a revelação do abuso sexual, promover a exposição de sentimentos; Fase III - Aceitação: discutir a aceitação do abuso sexual e seu lugar na história de vida da pessoa e Fase IV Prevenção: facilitar a aprendizagem de comportamentos de autoproteção que impeçam a revitimização. O esquema geral pode ser visto na Tabela 1.

Resultados e Discussão

As análises das sessões serão apresentadas e discutidas de acordo com as Fases de Intervenção Terapêutica executadas, para melhor entendimento e avaliação dos objetivos propostos.

Fase I - Preparação

As sessões 01 a 05 tiveram o objetivo de preparar as participantes para a auto-exposição, promovendo um clima de confiança, que é pré-requisito para a revelação do abuso sexual. Os recursos utilizados foram: brincadeiras de aquecimento através da confecção de um modelo em argila com a consigna "represente na argila como está sua vida agora" e pintura do modelo com comentário posterior (Knell & Ruma, 1999; Ruma, 1993); interações diádicas (cliente-cliente, terapeuta-cliente), com conversas em duplas sobre abuso e família, que constituem uma aproximação ao falar em grupo (Alexander, Neimeyer, & Follette, 1991). Os modelos de auto-expressão fornecidos pela terapeuta e co-terapeutas facilitaram a auto-exposição das participantes, tanto durante os comentários sobre os modelos em argila, quanto durante as interações diádicas.

Pode ser feita uma análise sobre os efeitos do convite inicial às participantes, que colocou de forma clara o objetivo principal do grupo: tratar do abuso sexual por elas sofrido. Apesar do óbvio consentimento de cada participante, nenhuma delas falou diretamente de sua história de abuso sexual durante as entrevistas preliminares. A literatura (Amazarray e Koller, 1998; Furniss, 1993) discute a grande dificuldade da vítima em confiar nas pessoas e revelar o abuso sofrido, o que reforça a necessidade de assegurar uma fase preparatória especificamente orientada para propiciar a revelação, como aqui descrito. O uso de atividades de aquecimento deu um tom de brincadeira, facilitando a descontração e controle da ansiedade pelas participantes a cada início de sessão. Ao limitarem suas intervenções às falas das participantes, as terapeutas permitiram a redução da ansiedade das mesmas, prevenindo a esquiva. Friedrich (1998) afirma que o abuso sexual pode ocasionar sintomas de ansiedade (como stress pós-traumático), de forma que a redução da ansiedade deve ser uma forte preocupação durante o processo terapêutico. Kohlemberg e Tsai (1998) lembram que as vítimas evitam falar do abuso por esquiva dos estímulos eliciadores da ansiedade.

A passividade observada nas participantes em alguns momentos durante esta fase, pode ser interpretada como um retrocesso. Os terapeutas devem estar atentos, pois os movimentos de ir e vir dos clientes são esperados e necessários e representam uma necessidade temporária para absorver as informações e habituar-se às novas situações. Este cuidado é importante, pois interferir nesse momento pode criar um clima de desconforto e propiciar a esquiva ao processo terapêutico. Wolfe (1998) propõe diminuir a ansiedade através de relaxamento e abordagens graduais, como realizado neste processo terapêutico.

Fase II - Revelação e exposição de sentimentos

Foram sessões com o objetivo de dessensibilizar o relato sobre o abuso sexual e os sentimentos ligados a ele. Durante este processo, a expressão dos sentimentos de raiva e culpa foi facilitada, iniciando a mudança da auto-imagem, do papel de agente para o de vítima (Padilha, 2001; Verduyn & Calam, 1999).

Foi exibido (sessão 06) o filme De braços abertos (Souza, Kuhn, & Lima, 1999), com a história de uma menina em risco de ser abusada sexualmente, que evita o abuso com sucesso. A função do filme foi de abrir espaço para a discussão do abuso sexual, com baixo nível de ansiedade e final feliz. Os comentários sobre a história da personagem favoreceram o início das falas referentes ao abuso de maneira geral, ainda sem auto-exposição.

Já na sessão 07, foi exibido o filme Marcas do Silêncio (DiGiulio & Huston, 1996), que conta a história de uma menina de onze anos que sofre abuso sexual por parte do padrasto, sem a proteção da mãe. O estudo de Gomide e Sperancetta (2002) mostrou que este filme contém cenas com violenta estimulação aversiva, que elicia sentimentos de raiva e comportamento agressivo. As cenas deste filme, com forte carga emocional, serviram como estímulo para eliciar as emoções das participantes, que puderam expressar-se através do choro, ainda sem falar abertamente sobre sua própria história. As terapeutas comentaram sobre a raiva, o desamparo e a culpa, mostrando às participantes que estes sentimentos são característicos das pessoas que sofreram abuso sexual e encontram-se impossibilitadas de falar a respeito, mas que, quando o fazem, experimentam alívio e podem reconsiderar o lugar do abuso em suas vidas.

A auto-exposição sobre o abuso sexual começou na sessão 08. As participantes iniciaram o processo de revelação, tornando pública sua história, falando do abuso por elas sofrido. Comentaram trechos do documentário Globo Repórter (Central Globo de Jornalismo, 2000), que explorava temas ligados aos maus-tratos contra crianças e adolescentes.

A auto-exposição continuou nas sessões 09 e 10. A estratégia usada foi a confecção do "fio da vida", uma técnica que utilizou um barbante, para representar através de nós, os momentos bons e ruins da vida de cada uma delas. Cada participante colou seu barbante em uma cartolina e lá foram anotados os eventos referentes a cada marca. Iniciaram relatando os fatos positivos de suas vidas para depois descreverem as situações negativas, incluindo o abuso.

A sessão 10 foi o clímax da revelação sobre o abuso sexual. Todas expressaram seus sentimentos em relação ao abusador, a pessoas da família e a si mesmas e principalmente em relação à perda da inocência.

O desenvolvimento desta segunda fase mostra claramente a revelação. O uso dos filmes serviu para promover discussões e eliciar emoções, não só porque os filmes exibidos mostraram situações semelhantes às das vidas das participantes, mas também porque se tratava de uma estimulação em diferentes níveis sensoriais, com destaque para as imagens.

É importante que o terapeuta esteja preparado para demonstrar uma forte acolhida neste ponto da intervenção, sendo hábil, paciente e sem duvidar do amadurecimento do processo. Nyman (1998) propõe que falar sobre o abuso, expressar seus sentimentos negativos sobre ele e sentimentos ambivalentes sobre o abusador são etapas fundamentais para a aceitação da experiência negativa, que precisa ser assimilada para posteriormente ser transformada.

Fase III - Aceitação

A terceira fase (sessões 11 e 12) objetivou promover a aceitação do abuso e seu lugar na história de vida da pessoa, trabalhando também a emoção da raiva.

Nestas sessões as participantes trabalharam em conjunto em um vaso de argila que havia sido previamente quebrado em pedaços grandes. Foi solicitado às participantes que colassem o vaso e o pintassem, dando-lhe posteriormente um nome. Após colarem os pedaços, falaram sobre as rachaduras no vaso, fazendo uma analogia com suas próprias "feridas não cicatrizadas" e dizendo que "a dor é a água que vazaria de dentro"; mostraram que compreenderam que abuso deixou marcas emocionais. Foi um passo importante para aceitar ajuda. Disseram que o vaso sofreu uma violência, que cada uma delas "era como aquele vaso" e que "tem gente ajudando". A metáfora do conserto do vaso quebrado foi eficaz no sentido de promover uma analogia com o abuso sexual que deixa marcas. A compreensão sobre a possibilidade de consertar as marcas do vaso e "consertar" as marcas do abuso, revelou-se na dedicação com que realizaram a tarefa. O nome que deram ao vaso ("marcas do passado, marcas do silêncio") sugeriu uma aceitação destes fatos em suas vidas. Nyman (1998) afirma ser fundamental falar sobre o trauma para aceitá-lo.

Posteriormente (sessão 12), trabalhou-se novamente a raiva como um sentimento que ajudaria a bloquear cadeias de comportamentos que a incluíssem, como acontece com o abuso. Painter e Howell (1999) afirmam que este sentimento está presente nas falas de mulheres que recriam padrões de abuso em seus relacionamentos, deixando-se revitimizar. A expressão da raiva é reprimida durante o crescimento através de ameaças de retirada do afeto ou de repreensões. As participantes do grupo descreveram comportamentos autolesivos que emitiam quando sentiam raiva, como bater a cabeça na parede, gritar, cortar-se ou agredir outros. As terapeutas solicitaram que escrevessem em pedaços de papel as situações ou pessoas que nelas geravam sentimento de raiva. Em seguida colocaram os papéis dentro de um recipiente e atearam fogo. Escrever sobre a raiva é uma alternativa de expressão desta emoção, não autolesiva e que permite o enfraquecimento gradual dos estímulos desencadeadores deste sentimento e conseqüentemente da expressão do próprio sentimento. A hipótese etológica (Eibl-Eibesfeldt, 1977; Gomide & Sperancetta, 2002) salienta que a expressão da raiva permite à vítima desvincular-se de afetos positivos em relação ao abusador e que este processo é facilitador para a desculpabilização e, por conseguinte, facilitador da aprendizagem de um repertório de autoproteção.

O mesmo parece ter acontecido em relação à culpa. Segundo Nyman (1998), deve haver espaço no processo terapêutico para a expressão de sentimentos de culpa, raiva, vergonha, decepção, tristeza, agressão, ansiedade em relação ao agressor. Jongsma (1999) afirma que este processamento é importante para a alteração da auto-imagem da pessoa que sofreu abuso.

Knell e Ruma (1999), ao apresentarem as características das vítimas de abuso, chamam a atenção para a síndrome dos "bens danificados" (sentimento de que a inocência foi perdida, sentimento de que os sonhos foram destruídos) e sentimento de raiva e hostilidade reprimidas, além da capacidade para confiar prejudicada. As participantes deste estudo mostraram estas características, as quais foram objeto de intervenção visando a facilitação da expressão da raiva através de uma relação terapêutica de confiança.

Fase IV - Prevenção

A última fase (sessões 13, 14 e 15) teve o objetivo de permitir uma reflexão sobre a prevenção de abusos futuros através da aprendizagem de comportamentos de autoproteção (Friedrich, 1998; Krahé et al., 1999). Discutir a sexualidade (sessão 13) permitiu a correção de uma série de concepções errôneas sobre atitudes sexuais e sobre o próprio corpo. Tabus, ausência de conhecimento da anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais masculinos e femininos tornam estas moças presas mais fáceis para abusadores. Krahé et al. (1999) salientam que a aquisição de repertório inadequado de comportamento sexual, associando sexualidade com experiências de punição e dor, desamparo aprendido e autoconfiança diminuída são componentes presentes na história das vítimas e preconizam que se a cadeia original de comportamentos não for alterada, poderá haver revitimização.

Neste mesmo sentido, Verduyin e Calam (1999), ensinam que o tratamento deve envolver intervenções que aumentem as habilidades e competências e também que alterem as concepções errôneas, particularmente a da vítima que se vê como agente do abuso sexual.

O momento seguinte (sessão 14) foi de teste, quando se verificou a capacidade das participantes de encontrarem alternativas para futuras situações de risco de abuso. A História de Rosinha (ficção criada pela terapeuta) serviu para avaliar a aprendizagem de autoproteção. Rosinha é uma menina, envolvida pelo pai progressivamente em situações de risco de abuso; a cada momento tem a oportunidade esquivar-se, ou não, do abusador. As participantes eram convidadas a fazer comentários fictícios sobre os pensamentos e sentimentos da personagem. Os sentimentos presentes numa situação de abuso apareceram claramente nas falas das participantes: medo, raiva, "uma dor por dentro". A ambivalência também apareceu: carinho e ódio em relação ao abusador.

Comentários sobre a percepção do risco, tais como, "ela é ingênua"; "eu acho que ela não vai, que vai correr dele"; "agora ela vai ser esperta" também foram obtidos. As falas mostraram a possibilidade de discriminação de sinais de perigo. Isto é um sinal inicial para o estabelecimento de um repertório comportamental adequado de autoproteção.

A relação com a mãe apareceu de maneira forte. As participantes fizeram silêncio quando a terapeuta perguntou de que forma poderiam ser convincentes ao contarem o abuso para a mãe. O silêncio continuou quando foi colocada a questão da culpa, indicando uma dificuldade em apresentarem um relato convincente. Segundo Perrone e Nannini (1998), é comum, nas histórias de vítimas de abuso sexual, que as mães sejam omissas e permissivas, negando e desqualificando as tentativas de relatos e pedidos de ajuda das filhas. Friedrich (1998) afirma que a história de vida da mãe deve ser considerada, pois ela também pode ser uma vítima de abuso e isto se refletir em dificuldades de proteger os filhos.

Durante a última sessão foi pedido às participantes que confeccionassem um "caminho de grupo", ou seja, uma representação gráfica de todo o processo vivenciado por elas. Cada uma deveria desenhar individualmente seu próprio caminho. Nos comentários finais, a terapeuta deu ênfase aos comportamentos adquiridos no decorrer do processo, mostrando-lhes o modo como se expuseram gradualmente até relatarem abertamente o abuso sofrido e de como puderam refletir sobre maneiras apropriadas de se proteger contra futuros abusos em suas vidas.

Considerações Finais

O objetivo geral deste estudo foi analisar um processo terapêutico em grupo, desenvolvido com cinco adolescentes do sexo feminino que haviam sido vítimas de abuso sexual intrafamiliar. A descrição do processo forneceu informações para a sua análise em relação a alguns objetivos específicos propostos: (1) facilitar a auto-exposição e a revelação do abuso sexual, (2) facilitar a exposição de sentimentos ligados a ele, (3) facilitar a aceitação do abuso sexual, e (4) facilitar a aprendizagem de um repertório de comportamentos que impeçam a revitimização.

O processo foi conduzido considerando-se duas hipóteses: (1) a vítima forma o conceito de que revelar o abuso sexual sofrido traz conseqüências negativas e, portanto, o terapeuta deve desenvolver uma relação de confiança com audiência não punitiva e (2) a vítima desenvolve sentimentos ambivalentes pelo abusador que devem ser expressos na terapia, para que seja possível a desculpabilização da vítima, facilitada pelo trabalho em grupo. A terapia de grupo para adolescentes é preferível à terapia individual (Furniss, 1993). Já que vítimas de abuso sexual definem a si mesmas inteiramente através de sua experiência de abuso, e sentem-se únicas nesta experiência, culpadas, isoladas e diferentes de seus iguais (Padilha, 2001), a experiência em grupo torna-se facilitadora para romper o segredo e o isolamento. O desenvolvimento deste grupo terapêutico mostrou que o processo de exposição deve ser gradual para que a adolescente aprenda que pensamentos e lembranças do abuso não precisam ser evitados e podem ser confrontados (Heflin & Deblinger, 1999).

Elementos do processo puderam ser analisados como resultantes do método utilizado que empregou estratégias específicas para a exploração do tema abuso sexual. O convite feito às participantes nas entrevistas preliminares colocou de forma clara o objetivo principal do grupo. Entretanto, nenhuma delas falou diretamente de sua história de abuso sexual durante as entrevistas preliminares, mas todas fizeram a auto-exposição no decorrer do processo.

Levando-se em conta os objetivos de facilitar a auto-exposição, ou seja, a revelação do abuso e a exposição de sentimentos a ele relacionados, pode-se considerar que o processo terapêutico proposto foi adequado e eficaz. Deve-se lembrar que, segundo Furniss (1993), a criança abusada tem uma participação involuntária no abuso, numa relação com o abusador que muitas vezes é a mais significativa de toda a sua vida. Isso explicaria em parte a dificuldade em revelar o abuso e falar sobre a ambivalência de sentimentos. Por outro lado, para Painter e Howell (1999), as vítimas de abuso crescem reprimindo a raiva, por medo de punições, de maneira que obter a expressão destes sentimentos é um importante marco no processo de intervenção.

Durante o processo terapêutico houve revelação, exposição de sentimentos, falou-se da ambigüidade de sentimentos típica das situações de abuso intrafamiliar, falou-se em "consertar marcas", e também sobre a necessidade e formas de prevenção de abusos futuros. Ao falarem sobre as marcas deixadas pelo abuso e a necessidade de retomarem suas vidas a partir deste entendimento, demonstraram claros sinais de aceitação de sua história, o que permite considerar que o terceiro objetivo, a aceitação da experiência de abuso, foi bem sucedido. De acordo com Nyman (1998), as experiências difíceis não podem ser totalmente esquecidas, mas devem ser transformadas e aceitas.

O quarto objetivo, descrito como a operacionalização dos comportamentos de autoproteção contra a revitimização foi iniciado, e neste sentido sugere-se que outras intervenções, como técnicas de dramatização ou outras apropriadas à clientela atendida, devam ser implementadas para facilitar a aprendizagem destes comportamentos. A aprendizagem da autoproteção contra a revitimização é um importante objetivo de qualquer intervenção com pessoas vítimas de maus-tratos, pois, como afirma Widom (1989), abuso gera abuso e violência gera violência. O indivíduo que aprende a se proteger estará mais apto a proteger aqueles que lhe são próximos.

Algumas alterações poderiam ser feitas em trabalhos futuros com o objetivo de melhorar a eficácia do atendimento. A fase de preparação poderia ser reduzida, visto que as participantes demonstraram sinais de perfeita adaptação à situação terapêutica desde o seu início. Por outro lado, um aumento nas sessões que lidem com sentimentos de culpa e raiva seria pertinente, pois são o eixo central da intervenção, ainda que se busque dar ênfase à operacionalização dos comportamentos que impedem a revitimização.

Estes mesmos procedimentos podem ser aplicados a adolescentes que permanecem no ambiente familiar. Nestes casos, porém, é necessário que o procedimento terapêutico seja ampliado para o atendimento dos demais membros da família, principalmente a mãe e o abusador, caso ele ainda esteja presente. São caminhos alternativos de prevenção terciária, através dos quais se pretende atuar sobre todo o núcleo atingido.

Este estudo objetivou demonstrar uma modalidade de trabalho dirigida a uma população ainda pouco focada pelos que fazem intervenção em Psicologia as vítimas de abuso sexual. Considerar que pessoas maltratadas quando crianças ou adolescentes podem multiplicar os maus-tratos remete-nos à conclusão de que investir em estratégias de tratamento de seqüelas emocionais do abuso sexual poderá se revelar numa importante fonte de prevenção de danos a gerações futuras.

Recebido em 23.jul.02

Revisado em 04.fev.03

Aceito em 19.abr.04

Maria da Graça Saldanha Padilha, mestre em Psicologia da Infância e Adolescência pela Universidade Federal do Paraná, é professora no Departamento de Psicologia, Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: maria.padilha@utp.br e mari.gra@zipmail.com.br

Paula Inês Cunha Gomide, doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo, é professora na Universidade Federal do Paraná.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2004

    Histórico

    • Aceito
      19 Abr 2004
    • Revisado
      04 Fev 2003
    • Recebido
      23 Jul 2002
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