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Anonimato e avaliação cega por pares

EDITORIAL

Anonimato e avaliação cega por pares

Quando um manuscrito é submetido à avaliação para publicação em periódico científico, ele deve se apresentar de tal maneira que os avaliadores não identifiquem seus autores, um princípio fundamental do processo de avaliação cega por pares. As normas para publicação de nossa Revista estabelecem que informações como nome dos autores, filiação institucional, endereço e agradecimentos devem aparecer apenas na página de rosto identificada, que não é enviada para os consultores. A grande maioria dos manuscritos recebidos por nossa Revista atende corretamente a essa exigência.

Há outros indícios, no entanto, que permitem a identificação dos autores de um manuscrito submetido a avaliação editorial. Se a comunidade acadêmica de um determinado setor ou campo de conhecimento tem proporções reduzidas (o que é bastante comum em nosso país), pequenos detalhes podem ser suficientes para a perda do anonimato, com consequente prejuízo da qualidade do processo avaliativo. Basta, por exemplo, que uma nota de rodapé faça referência a "esta pesquisa foi realizada junto ao laboratório de estudos tal", ou "participou da coleta de dados a equipe da clínica-escola tal", ou ainda "adaptado de dissertação orientada por Fulano, na instituição tal", para que um avaliador experiente, com trânsito pelas instituições e pessoas daquele campo, identifique a autoria. Não importa tanto se a identificação nessas condições é final, com total precisão, ou apenas aproximada; em qualquer dos casos, a "cegueira" dos pares terá deixado de existir.

Cuidado semelhante se aplica a referências bibliográficas que, a depender da natureza do manuscrito e das condições do campo de conhecimento, podem identificar a autoria, como no caso a seguir. Suponhamos que da lista de referências conste um relatório de pesquisa de uso restrito, interno à instituição em que foi realizado. Suponhamos, ainda, que tal relatório é mencionado no texto com alguma expressão do tipo "levantamento anterior realizado junto a essa comunidade (Sobrenome, ano) forneceu as bases para a presente pesquisa". Está fechado o circuito informativo que identifica a autoria. Outro exemplo, relativamente comum: "para maiores detalhes sobre a técnica empregada, consultar a seção de método da dissertação de Fulano (ano)".

Como tais ocorrências são mais comuns em trabalhos de autores menos experientes, permanece válida a tradicional recomendação de mostrar o texto final para o/a orientador/a, ou pessoa igualmente experiente no que diz respeito a publicações científicas na área, para ouvir uma apreciação crítica do material, antes do seu envio efetivo para a Revista.

A comunidade científica da Psicologia não ignora as múltiplas fontes de influência que podem atuar no processo de avaliação editorial pelos pares, até mesmo porque acompanha há décadas na literatura da própria área o efeito das profecias auto-realizadoras e do viés não-intencional decorrente das expectativas do pesquisador (Rosenthal, 1966). Ainda assim, um consultor pode acabar sendo excessivamente indulgente ou rigoroso na avaliação de um manuscrito, ainda que involuntariamente. Portanto, além de contar com a pontualidade, espírito de colaboração e honestidade dos colegas que fazem a avaliação dos trabalhos submetidos a este Periódico, é dever de nossa equipe assegurar que entre as possíveis fontes de viés não se inclua a identificação da autoria. Contamos com a participação dos autores nesse esforço.

Nesta edição apresentamos duas importantes reflexões: uma sobre a Psicologia, como ciência de fatos, em relação com a fenomenologia de Husserl, como base para a compreensão do sentido desses fatos, por Rafael Raffaelli; outra, por Lilia Lobo, sobre a crítica que Guilhon de Albuquerque faz da obra Manicômios, prisões e conventos, de Goffman.

Em uma discussão sobre o conceito de regra, Eileen Flores propõe a contribuição da análise de seus usos na linguagem cotidiana para o papel desse conceito na Análise Experimental do Comportamento. Grauben Assis e colaboradores analisam discriminações condicionais após a realização de treino de pareamento consistente de estímulos complexos. Medeiros e alunas que o auxiliaram no trabalho enfocaram o ensino de um repertório de leitura e escrita compatível com as séries iniciais por meio do desenvolvimento e sistematização de um procedimento de ensino via software. Em discussão metodológica que faz lembrar os clássicos estudos sobre viés do experimentador, Angela Santa-Clara e colegas enfatizam a influência da linguagem empregada pelo pesquisador em situação de coleta de dados sobre a compreensão de um texto pelos participantes.

Vários instrumentos de medida são objeto de estudo nesta edição. Valdiney Gouveia e José María Pietro apresentam uma análise fatorial da versão espanhola do conhecido teste de personalidade 16PF, ressaltando a necessidade de estudos sobre sua adequação à população brasileira. Claudette Vendramini e co-autoras relatam o desenvolvimento de escala para investigação da experiência de estudantes universitários, levando em conta condições de estudo, habilidade e compromisso do estudante, além de seu envolvimento em atividades extra-curriculares. Assunto pouco estudado em nosso meio, o consumo de materiais pornográficos e sentidos a eles atribuídos por universitários foi o alvo de instrumento desenvolvido e validado por Valeschka Guerra e colaboradores.

Profissionais do sexo, sua visão a respeito de AIDS e temas relacionados foram objeto das entrevistas analisadas por Oltramari e Camargo, em estudo que evidenciou diferenças importantes por elas terem, ou não, parceiros fixos. Lidia Weber e co-autoras investigaram práticas parentais de castigos e punições corporais, a partir das respostas de crianças e adolescentes a um questionário, enquanto Traverso e Morais analisaram a visão que estudantes da área da saúde apresentam sobre a profissão e o mundo do trabalho.

Dois estudos fizeram uso do referencial das representações sociais: Shimizu e Menin analisaram comparativamente as representações apresentadas por jovens argentinos e brasileiros a respeito de lei, justiça e injustiça; enquanto Brito e Catrib analisaram a subjetividade de pessoas portadoras de transtornos do humor.

Esta edição compreende ainda o Dossiê "Práticas psicológicas em instituição: atenção, desconstrução e invenção". No texto de apresentação, sua organizadora, a professora Elza Dutra, nossa colega de UFRN, explica que esse conjunto multiinstitucional de artigos teve origem na reunião de seus autores em Grupo de Trabalho do Simpósio da Anpepp de 2002, em Águas de Lindóia. Ainda que surgidos da psicologia clínica, os estudos incluídos no dossiê não se direcionam exclusivamente para essa área de atuação, tendo antes "como idéia central o acolhimento ao sofrimento psíquico; e como eixo norteador atitudinal das práticas psicológicas em instituições, a atenção psicológica".

Concluindo este número de Estudos de Psicologia, Fernando Louzada apresenta uma resenha do livro Trabalho em turnos e noturno na sociedade 24 horas.

Agradecemos a colaboração de todos cujos esforços contribuíram para mais este fascículo e esperamos que sua leitura seja proveitosa.

José Q. Pinheiro

Editor

Referências

Rosenthal, R. (1966). Experimenter effects in behavioral research. East Norwalk, Connecticut: Appleton Century Crofts.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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