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Crianças de um acampamento do MST: propostas para um projeto de educação infantil

Children of a settlement of MST: indications to an infantile education

Resumos

Este trabalho tem por objetivo descrever as indicações de uma amostra de 23 crianças (quatro a seis anos), de um acampamento do MST, para um espaço de educação infantil em fase de planejamento, através de desenhos e de explicações/descrições. Os dados indicam: o interesse pelo ambiente externo e natureza; sugestões de elementos de diversão e brincadeiras e atividades ou materiais pedagógicos. Cabe destacar a indicação de materiais de construção, principalmente janelas, preocupações que se justificam pelas condições precárias de sobrevivência, já que as famílias vivem a 8 anos em barracos de lona. Os resultados apresentam as crianças como informantes competentes para a realidade educacional que irão freqüentar.

crianças; movimentos sociais; educação infantil


This work aims to describe the indications of a sample of 23 children (from 4 to 6 years old), from a settlement of MST, to an infantile education, that is in the planning phase, through drawings and explanations/descriptions. The data indicate: the interest for external environment and nature; suggestions of entertainment and fun elements and pedagogic activities or materials. It is necessary to emphasize the indication of building materials, mainly windows that are preoccupation justified by the precarious conditions of survival, because the families live for 8 years in cottages of canvas. The results indicate the children are able informants in regard to the educational reality they will attend to.

children; social movements; infantile education


ARTIGOS

Crianças de um acampamento do MST: propostas para um projeto de educação infantil

Children of a settlement of MST: indications to an infantile education

Liana Gonçalves Pontes Sodré

Universidade do Estado da Bahia

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Turquesa, 160 Condomínio Kaikan Teixeira de Freitas, Bahia CEP 45995-000 Tel. (73) 3263-2039, ou (73) 9987-8002 E-mail: lianasodre@tdf.com.br

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo descrever as indicações de uma amostra de 23 crianças (quatro a seis anos), de um acampamento do MST, para um espaço de educação infantil em fase de planejamento, através de desenhos e de explicações/descrições. Os dados indicam: o interesse pelo ambiente externo e natureza; sugestões de elementos de diversão e brincadeiras e atividades ou materiais pedagógicos. Cabe destacar a indicação de materiais de construção, principalmente janelas, preocupações que se justificam pelas condições precárias de sobrevivência, já que as famílias vivem a 8 anos em barracos de lona. Os resultados apresentam as crianças como informantes competentes para a realidade educacional que irão freqüentar.

Palavras-chave: crianças; movimentos sociais; educação infantil

ABSTRACT

This work aims to describe the indications of a sample of 23 children (from 4 to 6 years old), from a settlement of MST, to an infantile education, that is in the planning phase, through drawings and explanations/descriptions. The data indicate: the interest for external environment and nature; suggestions of entertainment and fun elements and pedagogic activities or materials. It is necessary to emphasize the indication of building materials, mainly windows that are preoccupation justified by the precarious conditions of survival, because the families live for 8 years in cottages of canvas. The results indicate the children are able informants in regard to the educational reality they will attend to.

Keywords: children; social movements; infantile education

O projeto surgiu de uma demanda da população do Acampamento Rosa do Prado, nos municípios de Prado e Alcobaça, extremo sul da Bahia. Eles solicitaram um local para as crianças em idade pré-escolar ficarem enquanto os pais estão trabalhando. Responder a este interesse não é necessariamente construir uma creche ou uma pré-escola. Temos claro que estas instituições devem atender às expectativas e às necessidades de seus usuários. Neste sentido, entendemos que, inicialmente, precisávamos compreender melhor o desenvolvimento físico, social e psicológico destas crianças e de seu contexto sociocultural. Para tanto, procuramos conhecer os indicadores relevantes para o desenvolvimento das crianças em idade pré-escolar, que fossem compatíveis com suas características, pois, só conhecendo as crianças, suas histórias e seu contexto, poderíamos nos instrumentalizar para contribuir para a construção dos meios e modos de atenção à saúde, educação e desenvolvimento das mesmas.

Por este motivo, na primeira parte da pesquisa elaboramos um roteiro de entrevista. Um instrumento extenso que procurou cobrir os diferentes aspectos da realidade de vida das crianças e suas famílias, buscando entender as necessidades e proposições, no que diz respeito à educação infantil. Para essa fase recorremos aos pais de crianças pequenas (menores de seis anos), que residem no Acampamento, como informantes. Mais do que um instrumento, a atividade de produção dos dados foi planejada de modo a permitir explorar, organizar, rever, entender e avaliar o contexto socioeconômico, enfim, propiciar condições para uma análise rica das expectativas destas famílias.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tem se pautado por uma luta pela conquista de direitos, de forma organizada, visando o desenvolvimento socioeconômico e cultural de todos, em uma proposição de conquistas tais como foram descritas nos estudos de Marçano (1997) e Pizetta (1999). São projetos que favorecem ações e iniciativas que podem promover definições políticas e sociais mais amplas. Assim, pode-se romper com um processo de desenvolvimento, que tem se baseado na exclusão e na miséria de muitos (BRASIL/MEC, 2004a), para uma realidade na qual as conquistas resgatem a possibilidade de construção de relações sociais mais favoráveis e novas possibilidades de desenvolvimento, até mesmo o das crianças.

Portanto, neste projeto, as crianças assumem um papel ativo, criativo e empreendedor na construção de sua cidadania. Seus valores, interesses e participação são reconhecidos e valorizados, rompendo com o individualismo, a ordem, a autoridade e a submissão, que coloca o Brasil como um país de grandes contrastes e como parâmetro de desigualdades sociais, que vem favorecendo mais o direito adquirido pelas iniciativas privadas e mantendo as pessoas tuteladas à ordem social e às distribuições de bens já consolidadas (PNUD, 2004). Alterar o rumo dessa história implica em investir na infância e nos projetos sociais a ela direcionados, em especial os que estão voltados para a educação.

O espaço planejado para o desenvolvimento infantil deve ter uma proposta pedagógica que favoreça a autonomia, a criatividade e a participação das crianças, de modo a possibilitar a promoção de uma construção compartilhada, seja no meio familiar ou social. Esta afirmativa de Franchi, Vasconcellos e Ferreira (2002) pode ser complementada com a de Souza (2003), quando ressalta que os ambientes são tão importantes quanto as propostas planejadas, pois eles podem favorecer ou limitar iniciativas e proposições.

Talvez por serem dependentes da intervenção do adulto, geralmente as crianças não participam das decisões que as envolvem. O exercício de poder dos adultos foi se generalizando ao longo do tempo e elas passaram a ser educadas muito mais para se tornarem submissas, do que pessoas questionadoras e criativas. Consequentemente, o conceito de infância que se difundiu não favoreceu a análise da condição infantil e, principalmente, o significado social deste período (Sodré, 2002).

Os estudos de Lawson e Ruff (2004), Lordelo, Fonseca e Araújo (2000) e Quaiser-Pohl, Lehmann e Eid (2004) têm mostrado o quanto as variações ambientais e a qualidade do ambiente são importantes na socialização e no desenvolvimento de crianças. Acrescentam, ainda, que as análises dos diferentes ambientes, onde as crianças estão presentes, nos desafiam a buscar meios para uma melhor compreensão das potencialidades e limitações que favorecem a cada uma delas. O importante é que o indivíduo se perceba, independentemente de sua idade, como participante ativo, analisando as conseqüências de suas ações e decisões.

Por entender que a criança deve ser um sujeito ativo no processo de definição das condições para seu desenvolvimento, este trabalho objetivou ouvi-las sobre o projeto de Educação Infantil, no propósito de envolvê-las diretamente no mesmo, através de instrumentos e procedimentos adequados às suas idades e peculiaridades.

A construção do espaço educacional

A importância do ambiente físico escolar para construção do conhecimento é um tema que tem sido estudado e deve ser aprofundado através da interação de pesquisas em arquitetura, educação e meio ambiente. Além disso, em um documento recentemente elaborado pelo MEC (BRASIL, 2004a) estão claramente indicados cuidados com a estrutura espacial e sua organização, de modo a favorecer ações construtivas entre os diferentes atores da educação.

O primeiro espaço em que a criança vive uma experiência coletiva, depois do espaço familiar, é a escola. Assim, através das experiências nestes espaços é que a mesma começa a definir limites e territórios e as vivências de deslocamento são de vital importância para o desenvolvimento de suas habilidades.

A arquitetura e a psicologia ambiental vêm discutindo a necessidade de o indivíduo ter uma melhor qualidade de vida, através das análises das relações usuário-ambiente, construído ou natural. De acordo com Azevedo e Bastos (2002), é no curso das interações com os outros e com o meio que os indivíduos constroem continuamente seu conhecimento. O ambiente físico é o espaço onde a criança vivencia suas relações sociais, interagindo com o mesmo e dividindo nele o processo de construção das idéias nos diálogos, debates e jogos. Realiza, através da experimentação, oportunidades para desenvolver e organizar seus pensamentos.

A escola não é apenas um local ou um espaço geométrico tridimensional, mas uma construção social que proporciona conhecimento, participação e interação com seus usuários, em um processo permanente de relação sujeito-meio. O espaço destinado às crianças deve ser organizado de acordo com as mesmas, pois elas delimitam seu território. Isso fará com que haja interação maior entre a criança e o ambiente, pois o espaço deve proporcionar liberdade, experimentação e favorecer o "brincar" coletivo e as interações interpessoais.

Como a criança é a principal usuária da escola, deve-se refletir com elas suas necessidades de desenvolvimento físico, motor, sócio-afetivo e intelectual que serão os requisitos essenciais para formulação do contexto educacional.1 Notas Azevedo e Bastos (2002) relatam que cabe à escola oferecer boas condições ambientais, com o propósito de fortalecer as relações entre as pessoas que ali convivem, nos diferentes ambientes em que estas interações ocorrem. Como exemplo óbvio, fica evidente que lugares abafados, úmidos e mal ventilados não dão conforto e podem contribuir para a redução da atenção. Os autores afirmam que, no projeto de arquitetura, a organização do espaço deve ser de integração de vários ambientes, facilitando a construção da idéia de conjunto, de totalidade das partes.

Para eles, destinar espaços às brincadeiras e jogos infantis, tanto na área interna como externa, é importante para o ensino e a aprendizagem, e o espaço precisa estar organizado de forma compatível com a faixa etária (zero a seis anos). O mobiliário deve estimular o aprendizado com cores claras e alegres, pois a cor reforça o caráter lúdico, despertando os sentidos e a criatividade, sendo que nos ambientes de recreação podem ser usados tons mais fortes. Quanto ao ambiente interno, eles ressaltam a importância da variedade dos materiais de acabamento como, objetos ásperos, lisos, duros, macios, desde que as paredes e os pisos sejam laváveis.

Um ambiente mal estruturado, de acordo com Sommer (2002), pode causar sérios problemas aos seus usuários, sendo um deles o de comportamento (agressividade, etc.). Ele ainda faz crítica ao ambiente da sala de aula, destacando: cadeiras juntas e ausência de cores. Na sua pesquisa, realizada com a ajuda de psicólogos e arquitetos, procurou ouvir os alunos de uma determinada escola. Os estudantes montaram projetos e, assim, modificaram o ambiente de acordo com os desejos dos próprios usuários. Como resultado, constatou um maior grau de satisfação deles, o que veio a contribuir para um ambiente mais favorável aos processos interacionais para todos, já que é o lugar em que passam a maior parte do dia.

Sanger, Sperb, Roazzi e Martins (2003) já ressaltavam em seus estudos que o pátio da escola precisa oferecer diversidade de espaço e oportunidades para diferentes tipos de brincadeiras, e acrescentam, ainda, que a criança, ao brincar em pátios definidos e com variedades de opções de atividades, fica mais concentrada nas atividades, o que torna o ambiente mais tranqüilo, com menos agressões e conflitos.

Carpigiani e Minozzi (2002) ressaltam a importância da forma como o espaço construído integra e recupera os processos de desenvolvimento social, sintetiza condições próprias a um acontecimento social e, ao mesmo tempo, permite realizações nas esferas dos espaços pessoais e coletivos. Acrescentando a isso, Azevedo e Bastos (2002) perceberam que a interação entre o objeto e o sujeito é eficaz quando se consolida em um ambiente físico favorável, capaz de estimular e desafiar, visando um desenvolvimento em que o sujeito constrói e reconstrói continuamente, tornado-se cada vez mais apto ao equilíbrio.

Para os autores, o desenvolvimento da criança pode ser dramaticamente afetado por essa troca com o ambiente, principalmente nos primeiros anos de sua infância, tendo em vista que essa confrontação espacial deveria contribuir para o seu processo de aprendizagem e responder às suas necessidades de desenvolvimento físico-motor, sócio-emocional e intelectual.

Nos seus estudos, Souza (2003) identificou que o espaço deve ser construído visando analisar a influência que o mesmo terá no comportamento e desenvolvimento da autonomia das crianças. Por isso, para essa autora, é preciso ouvir também os usuários deste espaço. Em seu trabalho, através de desenhos elaborados pelas crianças, avaliou a opinião das mesmas sobre uma creche que freqüentavam. Neste estudo, constatou que os desenhos podem ser uma grande fonte de informação, pelo fato de as crianças não possuírem ainda uma maior amplitude de vocabulário, o que pode vir a comprometer a comunicação verbal. Ao final, conclui que é importante rever a concepção de espaço educacional convencional, com a preocupação com a satisfação de seus usuários e, desta forma, abrir possibilidades para a criança (educando), de modo a favorecer suas experiências. Ressalta que se desenvolver em um ambiente educacional comprometido com esses detalhes construtivos pode levar as crianças a se sentirem mais atuantes no local, pois todo indivíduo tem necessidade de se apropriar do espaço que vivencia. Acrescenta também que o espaço bem planejado pode contribuir para o desenvolvimento e a autonomia da criança, assim como para a conscientização dos educadores da importância dos arranjos espaciais.

Vasconcellos e Dias (1999) também dedicaram seus estudos à análise do espaço educacional. Neles, pesquisaram a influência da organização do ambiente físico sobre o desenvolvimento das crianças e como ele repercute nas atividades e na interação professor-criança, de modo a promover resultados mais significativos. Chamam a atenção para o fato de que nem toda interação garante o desenvolvimento das crianças, pois existem condições específicas para que isso ocorra. Como exemplo, destacam que as condições oferecidas, a estruturação do espaço físico dos ambientes educacionais e a forma como o educador organiza o ambiente podem favorecer ou dificultar comportamentos sociais de interação e aprendizagem.

Afirmam os autores que o professor tem um papel relevante na organização do espaço em que atua, fazendo com que o mesmo esteja de acordo com seus objetivos pedagógicos, pois é importante o processo de interação entre as crianças dentro desse ambiente para que estes objetivos sejam alcançados.

Ressaltam ainda que esses espaços podem ser organizados de acordo com as necessidades e experiências de cada turma, sendo modificados quando necessário, em função de interesses manifestados pelas crianças. Além disso, as condições oferecidas por um ambiente físico como a creche devem ter um contexto de: afetividade entre os adultos e as crianças, interesse para realizar atividades com as mesmas e de disponibilidade para interagir e brincar com elas, tornando assim o ambiente educativo e construtivo.

Enfatizando melhor estas proposições, cabe a preocupação de Vasconcellos e Dias (1999), quando afirmam que mediadas pela cultura, nossas interações reconstroem dialeticamente as experiências vividas, atribuindo-lhes significados coerentes com os elementos culturais presentes no nosso cotidiano. Estas autoras destacam que o educador, que é o mediador, pode e deve propiciar situações que criem a zona de desenvolvimento proximal2 2 . Zona de Desenvolvimento Proximal ou ZDP, tal como é descrita por Vasconcellos e Santana (2004) caracteriza-se por certa tensão entre o que o sujeito é capaz de fazer e o nível de desenvolvimento potencial favorecido pelo grupo social. Com base em Vygotsky, as autoras interpretam que no processo de interação social, as diferentes habilidades dos membros envolvidos influenciam outros para o desenvolvimento e a aprendizagem de todos. . Além disso, através de planejamentos que envolvam organizações do ambiente educacional, devem promover interações entre as crianças e os espaços, para manifestações afetivas e emocionais das mesmas. Acrescentam que existem várias formas de organização do sujeito dentro de seu espaço social, pois o mesmo aprende a se organizar no mundo em função das interações vividas com outros sujeitos sociais, por isso não deve ser feita a separação entre aspectos do sujeito e de sua história.

Estudos anteriores (Sodré & Santos, 2004; 2005) constataram que crianças de duas escolas de educação infantil da cidade de Teixeira de Freitas (BA), ao serem questionadas sobre o que mais gostam ou desejam para o ambiente educacional que freqüentam, expressaram, através de desenhos e explicações, elementos que foram agrupados em categorias, assim definidas: ambiente externo e natureza; elementos para diversão e brinquedos; animais; atividades ou materiais pedagógicos; além de citarem também elementos variados que não permitem a inclusão em uma categoria específica, por isso foram englobados como outros. Verificaram que a categoria mais presente no imaginário delas é a composta por elementos do ambiente externo e da natureza. Contudo, as demais categorias indicam a atenção em brinquedos e brincadeiras, animais e materiais e atividades pedagógicas. Todos os elementos indicados por elas estão efetivamente dentro das preocupações dos que estudam ou lidam com essa população.

Apesar de pequenas (4 a 6 anos), as crianças foram capazes de expressar aspectos relevantes e, o mais importante, destacar, pela freqüência, os mais desejados. Quanto mais freqüente um elemento nos desenhos ou nas descrições das crianças, mais ele se configurava ser relevante para elas. Contudo, é preciso ressaltar que nem sempre os elementos mais presentes nos desenhos refletiam a realidade do contexto educacional que freqüentavam. Em uma das escolas (Sodré & Santos, 2004), quando perguntamos às crianças do que mais gostavam no espaço de educação infantil que freqüentavam, desenharam elementos de ambientes externos. Era uma casa pequena, adaptada para acolher estas crianças, mas sem os cuidados necessários que um ambiente preocupado com o processo educacional e com a saúde das mesmas deveria ter. Tendo em vista que não havia nenhum local aberto onde pudessem brincar ou tomar sol, este fato nos causou estranheza. O que justificou a indicação das crianças foi a explicação posterior da diretora, que esclareceu que semanalmente elas brincavam em um parque infantil do Batalhão da Polícia Militar.

O exemplo citado e outros não detalhados aqui permitem afirmar que estes dois estudos evidenciam a falta de cuidados das autoridades responsáveis pela educação no município com as especificidades que esta educação requer. Em Por uma política nacional de educação infantil: pelos direitos das crianças de zero a seis anos à educação (MEC/BRASIL, 2004b), há uma preocupação em afirmar a importância de se ultrapassar a função meramente assistencialista ou de caráter compensatório para um status educacional em que as crianças, como sujeitos de direito, sejam vistas a partir de sua cultura e recebam uma atenção coerente com suas necessidades. O documento preconiza a importância da qualidade do espaço, entre outras coisas, e ressalta também o protagonismo das crianças desde a mais tenra idade.

Quando se reconhece que a educação e o desenvolvimento só se tornam efetivos a partir da participação de todos os atores envolvidos, é mais coerente ressaltar a importância das indicações das crianças para a realidade educacional. O desafio é construir meios e modos que garantam a contribuição das crianças.

Este trabalho encara este desafio e se propõe a produzir com as crianças do Acampamento em estudo informações que possam colaborar para a construção e planejamento do espaço de educação infantil. Isto posto, cabe enfatizar que se trata de um trabalho em que a participação das crianças é muito importante para a definição das características do espaço de educação infantil em foco. Como suas verdadeiras usuárias, contribuem com suas indicações para a organização e definição do ambiente educacional.

Método

Trata-se de um estudo exploratório junto a uma parcela da população de quatro a seis anos de um acampamento do MST para o qual está sendo planejado um espaço de educação infantil.

O Acampamento

Antes de descrever o Acampamento3 3 . Apesar do tempo de residência (8 anos) e como ainda está em fase de litígio, o termo mais adequado para este local é acampamento. Só passa a ser assentamento quando o processo de distribuição legal da terra já está concluído. em questão, é preciso ter clareza dos aspectos que caracterizam esta forma organizativa que tem resistido ao processo de urbanização crescente em nosso país. Neste sentido, várias definições podem ser encontradas e em todas há uma preocupação em detalhar aspectos que lhe são peculiares. Para Pizetta (1999, p.15), "é um espaço geográfico onde um conjunto de famílias, oriundos de um processo de mobilização e luta pela terra, passam a viver e a trabalhar organizadamente seu desenvolvimento socioeconômico e cultural". Acrescentando a isso, Marçano (1997) afirma que é uma fração do território conquistado. É um novo recurso na luta pela terra, significando parte das possíveis conquistas e, portanto, representa a possibilidade de êxito no processo de distribuição da territorialidade de nosso país. São projetos em que as iniciativas das ações envolvem definições políticas e sociais mais amplas.

Este Acampamento é o resultado de um processo de mobilização e luta pela terra que não teve a oportunidade de seguir as orientações legais no seu início. Está localizado no município do Prado (Bahia), em região de mata atlântica, possui 5.070 hectares, em área que pertenceu à Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. A cidade mais próxima ao Acampamento é Teixeira de Freitas, que fica a 68 km. Para o acesso, os acampados dispõem de duas linhas não regulamentadas de ônibus. Para sua implantação foram necessárias 18 tentativas de ocupação, intensa e violentamente reprimidas pela Polícia Militar da Bahia. Atualmente se encontra em processo final de litígio, mas, desde 1996, as 270 famílias já estão instaladas, em lotes com distribuição interna, em que trabalham e residem. Os lotes distribuídos estão organizados por proximidade geográfica em grupos de dez famílias para facilitar a comunicação, a organização interna, a discussão dos problemas e o encaminhamento das decisões.

As famílias são oriundas dos municípios de Teixeira de Freitas, Itamaraju, Eunápolis, Itabela, Prado e Alcobaça. Todos são municípios circunvizinhos, o que deve favorecer o conhecimento do clima e das culturas da região. Produzem mandioca, feijão, milho, amendoim, batata doce, abóbora, quiabo e jiló. Têm uma casa de farinha comunitária movida a eletricidade, e outras artesanais. As moradias ainda não são de construção sólida, pois o processo de litígio impede construções definitivas. São, portanto, barracos de plástico preto e taipa. O mesmo princípio se verifica na construção de duas escolas, exceto a antiga sede da fazenda que se transformou em escola. Estão cursando o Ensino Fundamental 1.298 alunos, em idades a partir de 7 anos. São estas três escolas que os irmãos menores de seis anos freqüentam, sem que haja condições ou espaços planejados para eles. A presença destas crianças menores, perambulando pelas salas dos irmãos mais velhos, ou brincando na área externa das escolas, sem a atenção dos adultos, representa, de fato, uma alternativa para as mães que trabalham a terra e que não dispõem de recursos de apoio para esta faixa etária.

Participantes

Participaram do estudo 23 crianças, com idades variando entre quatro a seis anos, sendo: 10 de quatro anos, 5 de cinco anos e 8 de seis anos. Esta faixa etária justifica-se pelos seguintes motivos: as menores, porque poderiam ter dificuldade para reproduzir em desenhos ou em palavras seus desejos e intenções; quanto às maiores, porque estão fora da faixa etária estabelecida no projeto.

Os recursos

Para aumentar a possibilidade de contar com as explicações e/ou descrições das crianças, utilizou-se como recurso desencadeador a elaboração de desenhos e posterior descrição dos mesmos. As expressões gráficas são instrumentos já utilizados em outros estudos, a exemplo dos de Souza (2003), e que têm demonstrado eficácia na produção de elementos ricos para análises de ambientes educacionais. Além disso, Gobbi (2002), questionando sobre os registros históricos deixados pelas crianças, argumenta que o desenho e a oralidade infantil podem ser "compreendidos como reveladores de olhares e concepções dos pequenos e pequenas sobre seu contexto social, histórico e cultural, pensados, vividos e desejados" (p. 71). Além das autoras citadas, outros pesquisadores (Grubits, 2003; Leite, 2004; Silva, 2004) têm trabalhado as relações entre a fala e o desenho das crianças, como recursos mediadores para o acesso à subjetividade infantil.

Por conseguinte, o recurso definido para o estudo foi um desenho, no qual elas expressaram propostas para o local que está sendo planejado. Além dos desenhos, cada criança descrevia o que havia reproduzido e porque considerava esses elementos importantes para o local. As explicações e/ou descrições favoreceram a identificação dos interesses e das indicações das crianças. Para tanto, foi suficiente levar folhas de papel sulfite branco e caixas de lápis cera. Além disso, os auxiliares de pesquisa4 4 . Participaram do trabalho uma professora, uma bolsista de iniciação científica e alunos voluntários do curso de Pedagogia. levaram uma folha de registro para cada criança, apenas com um cabeçalho de identificação, ficando o espaço restante destinado à transcrição das explicações e/ou descrições de cada criança sobre o desenho.

Procedimento

O grupo de pesquisadores dirigiu-se ao Acampamento, em data e horário previamente acordados, pois este trabalho fazia parte da segunda etapa dos estudos, tal como foi indicado no início deste relato. As famílias e as crianças já conheciam o grupo, e todas as atividades já haviam sido planejadas em parceria com os moradores. No Acampamento, as crianças já aguardavam na escola que fica na sede da antiga fazenda. Este é um ponto de referência para uma série de atividades sociais dos acampados. O grupo iniciou a abordagem junto às crianças com algumas atividades lúdicas: músicas e brincadeiras. Tais atividades propiciaram condições para a interação pesquisadores-pesquisados.

A partir do momento em que as crianças começaram a demonstrar descontração e interação efetiva com as pesquisadoras, foram convidadas a participar de uma conversa. Organizou-se uma grande roda na área externa, quando as pesquisadoras explicaram as atividades planejadas. Cada uma receberia um papel para desenhar o que gostariam de ter ou ver em um local que seria construído para elas, lembrando que naquele espaço iriam brincar, comer, dormir, conhecer coisas novas, etc. Esclareceram que poderiam desenhar em uma ou mais folhas de papel e que, ao final do desenho, cada uma explicaria o que havia desenhado e justificaria a importância de cada elemento elaborado. Cada criança foi encaminhada a uma das salas da escola com um membro do grupo para realizar a atividade sem interferência ou interrupções, enquanto as demais aguardavam brincando na área externa da escola.

Devidamente acomodadas nas carteiras, as crianças receberam folhas de papel de tamanho A4 e caixas de lápis cera e foram incentivadas a desenhar. Após seu término, solicitaram-se à criança esclarecimentos sobre o que tinham desenhado e por que queriam tais coisas naquele local. As respostas foram anotadas em uma folha de registro, que foi grampeada com o desenho de cada uma delas.

Tratamento e análise dos dados

No processo de produção dos dados, as palavras das crianças que descreviam o que haviam produzido foram muito importantes, pois os desenhos nem sempre estavam claros. Assim, dos desenhos e das descrições foram extraídos os indicadores apontados pelas crianças, os aspectos que elas apontaram como relevantes para o espaço de educação infantil. Foram categorizados e organizados em listagens diferentes, com suas respectivas justificativas: as questões referentes aos aspectos construtivos fizeram parte de uma lista, os referentes a brinquedos em outra, e assim por diante. Este procedimento de análise e produção de dados já havia sido testado e refinado em estudos anteriores (Sodré & Santos, 2004; 2005).

Resultados e Discussão

As crianças do MST, que vivem distantes dos centros urbanos, deixam claro que já têm uma visão dos elementos fundamentais para um espaço de educação infantil quando repetem as mesmas categorias citadas por crianças que já freqüentam esses espaços, quais sejam: ambiente externo e natureza; diversão e brinquedos; animais; atividades ou materiais pedagógicos. Nos seus desenhos e explicações, estão presentes as mesmas categorias já apontadas por crianças dessa mesma faixa etária, em estudos anteriores (Sodré & Santos, 2004; 2005).

É preciso esclarecer que a distância entre a sede da equipe de pesquisa (campus universitário) e o Acampamento é grande (50 km.); por conseguinte, realizaram-se dois estudos junto à população infantil de mesma faixa etária da cidade de Teixeira de Freitas. Estes dois primeiros trabalhos foram planejados para treinar os pesquisadores e analisar os instrumentos e procedimentos para o estudo aqui relatado.

Além disso, serviram também para a produção de um artigo (Sodré & Santos, 2004) e de um relatório (Sodré & Santos, 2005), que foram apresentados à Secretaria de Educação e à Coordenadoria de Educação Infantil da cidade de Teixeira de Freitas. Os elementos revelados nos desenhos e as explicações e/ou descrições das crianças mostraram-se por demais relevantes para serem ignorados, cabendo, a nosso ver, uma discussão sobre o assunto com os responsáveis pelo projeto educacional do município.

A constatação de proposições semelhantes nestes estudos deu indícios de que essa faixa etária estava configurando categorias de interesses que se repetiam. As crianças da cidade se mostraram interessadas: no ambiente externo e natureza; nos elementos voltados para diversão e brinquedos; em ter contatos com animais; em lidar com atividades ou materiais pedagógicos.

As crianças do MST, no nosso entender, integrantes e atuantes de um movimento social, preocupam-se com os aspectos construtivos do projeto e, provavelmente, em função disto indicaram os seguintes elementos: telha, tijolo, lajota, lâmpada, banheiro, parede, calçada, torneira e janela. Esses elementos passaram a constituir para eles uma quinta categoria de interesse, a categoria denominada materiais de construção.

Ainda dentro desse conjunto de elementos, chama a atenção o fato de que parede e janela foram os mais citados (3 crianças cada). Para compreender melhor o valor desses elementos, cabe esclarecer que há oito anos as famílias dessas crianças vivem em barracas de plástico preto e taipa, já que o processo de litígio ainda não foi concluído e, enquanto isso, não é possível fazer construções sólidas e definitivas.

Os desenhos delas foram categorizados e estão dispostos na Tabela 1. Nela, a primeira informação que merece destaque é que as duas categorias mais freqüentes foram os elementos para diversão e brinquedos e as atividades ou materiais pedagógicos. Nesse ponto, elas indicaram um resultado diferente das crianças da cidade de Teixeira de Freitas. Nos estudos de Sodré e Santos, as crianças da cidade, que já freqüentam espaços de educação infantil, apontaram em primeiro lugar elementos do ambiente externo e da natureza.

Observa-se na Tabela 1 que o item atividades ou materiais pedagógicos, pela freqüência em que aparece, merece destaque nesta população infantil. Além disto, evidencia na análise dos elementos que o compõem uma preocupação com a aprendizagem das letras e do nome (11 crianças). As crianças também citaram: caneta, lápis, papel, borracha, cadeira, livro, quadro, desenhos e até prova. A presença destes elementos deve-se justificar pela influência das atividades dos mais velhos na escola, porém, escrever o nome ou reconhecer suas letras pode significar ou representar um valor especial para essa população e para seus pais ou uma indicação na possibilidade de êxito no processo educacional.

Os animais desenhados foram: vaca, gato, tatu, cobra, aranha, jacaré, cachorro e borboleta. Excetuando o jacaré (desenhado apenas por uma criança), os demais estão presentes no meio rural do Acampamento e o interesse pelos mesmos merece aprofundamento em estudos posteriores. É preciso ter mais clareza para entender se elas querem: ter, ver, acompanhar o desenvolvimento, ou apenas gostam desses animais.

Quanto aos elementos para diversão e brinquedos, elas desenharam: bola, casa de brinquedo, carros, caminhões, ônibus, bonecas, balanço e escorregador. Todos são brinquedos típicos dessa faixa etária, o que permite inferir que essas crianças não parecem sofrer influência dos brinquedos divulgados pela televisão ou por outros meios de publicidade e que podem ter sido idealizados a partir de experiências pessoais, já que muitos podem ter recebido (ou visto ser distribuído) este tipo de brinquedo em situações especiais como natal e aniversário.

A categoria ambiente externo e natureza está presente em 16,6% dos desenhos e está em terceiro lugar para elas. Em sua composição encontramos: estrela, calçada, terra, jardim, flor, plantas, pé de árvore, pé de guandu, pé de coco e cisterna. O sol, que estava muito presente nos desenhos das crianças da cidade, não se encontrava reproduzido nos das crianças do MST. Nestes, do firmamento só apareceu a estrela (não só nos desenhos, como também nas descrições/explicações). O sol, a lua, as nuvens, a chuva e o arco-íris que foram detectados nos das crianças da cidade também não apareceram nos desenhos das crianças do MST. É evidente que as famílias olham para o tempo, as nuvens, o sol e a chuva, haja vista que elas vivem da terra e do que dela produzem. Contudo, a importância da reprodução destes elementos da natureza merece um estudo voltado para este fim. É possível que o sol tenha sua representação gráfica facilitada pela experiência da educação infantil. Assim como as nuvens, são desenhos estereotipados que as crianças logo aprendem a reproduzir quando começam a freqüentar a escola. O que fica evidente é que, para elas, a terra parece realmente ser uma referência mais forte que os elementos do firmamento.

Na perspectiva de Sarmento (2002), a escola está associada à constituição social das crianças, como espaço voltado para o seu desenvolvimento e engajado no curso da história da humanidade. O autor chama a atenção, porém, para que seja propiciada a elas a capacidade de constituir suas próprias culturas, que, necessariamente, não sejam redutíveis às culturas dos adultos. Nesse ponto, cabe ressaltar que as quatro categorias identificadas parecem estar indicando uma necessidade do universo infantil abordado nestas pesquisas. Contudo, fazendo uma projeção para a possibilidade de universalidade dessas proposições, estudos de outros contextos poderão corroborar, ou não, essas indicações.

Este e os estudos anteriores (Sodré & Santos, 2004; 2005) demonstram que crianças de contextos diferentes apresentam interesses semelhantes, alguns específicos sempre se destacando, porque parecem depender do grau de pertinência local dos mesmos, por exemplo: as crianças da cidade parecem desejar mais contato com o ambiente externo e a natureza e as do meio rural com elementos de diversão e brinquedos e atividades ou materiais pedagógicos. Mesmo reconhecendo estas diferenças, este estudo e os dois anteriores já citados apontaram o seguinte resultado: crianças de quatro a seis anos desejam lidar, no espaço de educação infantil, com a natureza, com brinquedos e brincadeiras, com atividades e materiais didáticos e com animais. Estudos de outras realidades poderão confirmar essa afirmativa, ou não, e indicar os elementos que são desejados por essa população.

O interesse da faixa etária evidenciado nestes três estudos pode estar indicando uma necessidade por espaços abertos e/ou contato com a natureza. Tanto as crianças que vivem na cidade como as que vivem no Acampamento incluíram nos seus desenhos elementos como flores, árvores, plantas, grama e animais. Logo, a despeito do fato desses elementos estarem muito presentes nos desenhos infantis, estas pesquisas parecem dar indícios claros de que aquela alegria que vemos nelas ao correrem em áreas externas, o interesse que demonstram por plantas e animais, o sucesso que faz uma caixa de areia e um parquinho, podem ser evidências de uma necessidade inerente a esta faixa etária.

Entretanto, verificamos a ausência do sol nos desenhos do MST. Na realidade, apenas desenharam a estrela como único elemento do firmamento. Isto nos reporta a uma discussão sobre a presença do sol no desenho infantil, ou seja: (1) será que ele é desenhado pelas crianças da cidade com formas simples (círculo rodeado de traços) e estereotipadas, e esta reprodução está influenciada por modelos facilmente imitados e por isso depende de aprendizagem? (2) será que é um valor maior para as crianças da cidade que ficam mais tempo em espaços construídos? (3) será que, por viverem sofrendo diretamente o calor que dele emana (em baixo do plástico ou a céu aberto), se sentiam incomodados com sua presença? (4) ou será que sua forma real – uma luz intensa – é uma abstração que eles não conseguem reproduzir? São perguntas que merecem maior atenção em estudos junto a essa população.

A posse da terra, um tema muito constante no MST, deve contribuir para um olhar diferenciado para os elementos da natureza, e o fato de suas crianças desenharem plantas, jardim, grama, flores e pés de árvores, que podem ser considerados saborosos ou nutritivos (guandu e côco), confirma, a nosso ver, esse aspecto. O que pode não ser muito importante para essas crianças é a relação entre os produtos da terra com os elementos da natureza (sol, nuvens e chuva), já que não é uma região que sofre de seca, pois pertence ao corredor de mata atlântica que corre paralelo ao litoral nesta região.

O desejo de sair do ambiente construído, de casas e apartamentos, poderia ser plenamente justificável para as crianças que ficam restritas a esses ambientes, porém, as crianças do MST, que convivem diuturnamente com o ambiente externo, põem em questão estas análises e nos remetem para um novo olhar da relação criança-natureza. Esta é a questão que merece maior destaque nestes estudos. Educadores e responsáveis pela educação infantil precisam dar mais atenção a isso e redimensionar as atividades planejadas – em ambientes internos e externos.

A depender da qualidade do pátio e da variedade de opções (árvores, arbustos, grama, ladrilhos, areia, um galpão com material solto, cordas, bolas, sucatas e outros) o espaço físico externo pode contribuir ainda mais para o desenvolvimento infantil, favorecendo as brincadeiras e as interações com o grupo e propiciando melhores condições de saúde para as crianças.

Considerações finais

A pesquisa detectou elementos de interesse das crianças que podem contribuir para o projeto de construção do ambiente educacional que está em fase de planejamento. Contudo, como se trata de um estudo exploratório, entender o valor e o significado de cada um vai depender de uma maior compreensão do processo cultural e histórico destas crianças e suas famílias. Ressalte-se, nessa perspectiva, que a história de luta desse acampamento pode justificar a indicação de materiais de construção – principalmente as janelas. As residências precárias de plástico contribuem para a idealização de uma construção sólida, com janelas, onde haja trocas entre o interior e o exterior (ventilação, vista externa ou expansão do espaço). Quem mora em uma residência que dispõe deste conforto visual e térmico pode não estar atento ou dar importância a esses detalhes construtivos. São exemplos como estes que mostram, de maneira inequívoca, a importância das contribuições dessas crianças como informantes críticos, como sujeitos ativos no próprio processo de desenvolvimento.

Estudos dessa natureza podem contribuir para as pesquisas desenvolvidas pela Arquitetura e pela Psicologia Ambiental, pois estão indicando necessidades ou interesses da faixa etária de quatro a seis anos de idade. Azevedo e Bastos (2002) já haviam identificado que boas condições ambientais fortalecem as relações entre as pessoas que nele convivem. Os resultados aqui relatados põem em evidência, mais uma vez, a importância de contar com a opinião dos usuários para um planejamento ou um processo de construção compartilhado.

Muitas pesquisas discorrem sobre as crianças e a infância a partir de olhares adultos. Elas são "vistas de fora" (Gobbi, 2002, p. 72) e, muitas vezes, se tornam alvo de propostas espúrias que refletem mais o imaginário adulto do que o infantil. Aos pesquisadores cabe ampliar o leque de informações sobre a infância e as crianças abordadas, tomando-se por base seus próprios relatos e análises, com instrumentos metodológicos como os descritos – os desenhos infantis conjugados com a oralidade –, na medida em que estão se confirmando como um espelho de seus interesses. Foi essa a preocupação de nosso trabalho, que mostrou claramente que as contribuições das crianças são subsídios fundamentais para as intervenções que vão direta ou indiretamente estar voltadas para elas.

1. Eventualmente, ampliamos o conceito de espaço físico para contexto educacional. Apesar de reconhecer as diferentes possibilidades que o termo contexto suscita nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, nesse estudo ele está sendo utilizado com o propósito de abarcar, como afirma Lordelo (2002), a diversidade de aspectos que compõem o conjunto de potencialidades e limitações de determinadas circunstâncias de vida de cada sujeito.

Recebido em 08.nov.04

Revisado em 23.jun.05

Aceito em 18.jul.05

Liana Gonçalves Pontes Sodré, doutora em Educação pela UNICAMP, é professora titular na Universidade do Estado da Bahia.

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  • Notas
  • 2
    . Zona de Desenvolvimento Proximal ou ZDP, tal como é descrita por Vasconcellos e Santana (2004) caracteriza-se por certa tensão entre o que o sujeito é capaz de fazer e o nível de desenvolvimento potencial favorecido pelo grupo social. Com base em Vygotsky, as autoras interpretam que no processo de interação social, as diferentes habilidades dos membros envolvidos influenciam outros para o desenvolvimento e a aprendizagem de todos.
  • 3
    . Apesar do tempo de residência (8 anos) e como ainda está em fase de litígio, o termo mais adequado para este local é
    acampamento. Só passa a ser
    assentamento quando o processo de distribuição legal da terra já está concluído.
  • 4
    . Participaram do trabalho uma professora, uma bolsista de iniciação científica e alunos voluntários do curso de Pedagogia.
  • Endereço para correspondência:

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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      18 Jul 2005
    • Recebido
      08 Nov 2004
    • Revisado
      23 Jun 2005
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