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Produção de sentidos no uso que se faz de gráficos

The production of meanings in the use of graphs

Resumos

Este artigo discute os sentidos que leitores potenciais de jornais e revistas produzem para relações quantitativas apresentadas graficamente em textos da mídia impressa. Nosso foco é o processo de semiotização próprio à produção de sentidos em um contexto extra-escolar, que ilustramos através da análise de entrevistas com uma adolescente de 16 anos. A partir de uma leitura crítico-metodológica das proposições de L. Wittgenstein em Investigações Filosóficas, propomos a noção de trânsito lingüístico entre certa "gramática da escola" e os jogos de linguagem experienciados pelo sujeito no entendimento de gráficos, enquanto componente central do referido processo. O artigo visa contribuir para o debate acerca do uso que se faz de informações sobre quantidades na vida diária fora da escola, assim como para o desenvolvimento de uma perspectiva cognitiva acerca de questões relacionadas com a produção de sentidos.

produção de sentidos; gráficos; jogos de linguagem; formas de vida; wittgenstein


This article discusses the meanings that potential readers of newspapers and magazines produce for quantitative relations presented as graphs in texts of the printed media. Our focus is the semiotic process proper to the production of meanings in an out-of-school context, which we illustrate through the analysis of interviews with a 16-year-old girl. Starting with a critical-methodological reading of Wittgenstein’s Philosophical Investigations, we suggest the notion of the linguistic transit between a certain "school grammar" and the language games which are experienced by the subject in his or her understanding of graphs, as a central component of such a process. The article aims at contributing to the debate on the use of quantitative information in everyday life out-of-school, as well as for the development of a cognitive view on issues related to the production of meanings.

production of meanings; graphs; language games; forms of life; wittgenstein


ARTIGOS

Produção de sentidos no uso que se faz de gráficos

The production of meanings in the use of graphs

Luciano Lemos Meira; Marina Assis Pinheiro

Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia; Universidade Federal de Pernambuco Av. Acad. Hélio Ramos, s/n; CFCH, 8º andar Cid. Universitária; Recife, PE; 50670-901 Tel.: (81) 2126-7330 Fax: (81) 2126-7331 E-mail: meira.luciano@gmail.com

RESUMO

Este artigo discute os sentidos que leitores potenciais de jornais e revistas produzem para relações quantitativas apresentadas graficamente em textos da mídia impressa. Nosso foco é o processo de semiotização próprio à produção de sentidos em um contexto extra-escolar, que ilustramos através da análise de entrevistas com uma adolescente de 16 anos. A partir de uma leitura crítico-metodológica das proposições de L. Wittgenstein em Investigações Filosóficas, propomos a noção de trânsito lingüístico entre certa "gramática da escola" e os jogos de linguagem experienciados pelo sujeito no entendimento de gráficos, enquanto componente central do referido processo. O artigo visa contribuir para o debate acerca do uso que se faz de informações sobre quantidades na vida diária fora da escola, assim como para o desenvolvimento de uma perspectiva cognitiva acerca de questões relacionadas com a produção de sentidos.

Palavras-chave: produção de sentidos; gráficos; jogos de linguagem; formas de vida; wittgenstein

ABSTRACT

This article discusses the meanings that potential readers of newspapers and magazines produce for quantitative relations presented as graphs in texts of the printed media. Our focus is the semiotic process proper to the production of meanings in an out-of-school context, which we illustrate through the analysis of interviews with a 16-year-old girl. Starting with a critical-methodological reading of Wittgenstein’s Philosophical Investigations, we suggest the notion of the linguistic transit between a certain "school grammar" and the language games which are experienced by the subject in his or her understanding of graphs, as a central component of such a process. The article aims at contributing to the debate on the use of quantitative information in everyday life out-of-school, as well as for the development of a cognitive view on issues related to the production of meanings.

Keywords: production of meanings; graphs; language games; forms of life; wittgenstein

O discurso envolvendo o tratamento de quantidades e o enfrentamento de situações nas quais os indivíduos se engajam em decisões sobre cálculos e relações matemáticas das mais diversas ordens é freqüente em afazeres diários, inclusive profissionais, muitos deles estranhos ao cotidiano da escola. Carraher, Carraher e Schliemann (1988), por exemplo, já sugeriam como crianças e adultos com pouca ou nenhuma escolarização podem ser surpreendentemente hábeis na realização de cálculos aritméticos e estimações de medidas em situações com as quais se deparam em suas práticas profissionais (como mestres-de-obra, pescadores, feirantes, etc.). Lave (1988), por sua vez, sugeriu que mesmo adultos com elevados graus de instrução escolar usualmente não recorrem aos procedimentos escolares de computação ao responderem a "dilemas aritméticos" na vida diária fora da escola, como em situações nas quais realizam o balanço de suas despesas domésticas.

A este respeito, de la Rocha (1986) discutiu o caso de um indivíduo adulto com formação acadêmica pós-graduada e participante do programa Vigilantes do Peso. Perguntado como faria para calcular uma porção de queijo cremoso equivalente a três quartos dos dois terços de xícara normalmente prescritos em sua dieta, descartou a possibilidade de realizar operações sobre frações. Estando em sua própria cozinha, realizou as seguintes ações: depositou sobre uma mesa dois terços de uma xícara de queijo (utilizando um medidor culinário de volumes) e amassou-o até obter uma forma circular; dividiu essa "pizza de queijo" em quatro partes iguais por meio de dois cortes perpendiculares, e removeu uma das partes formadas, deixando sobre a mesa os três quartos de dois terços solicitados.

Muitos outros pesquisadores produziram exemplos e teorias acerca de como os indivíduos tratam informações sobre quantidades na vida diária fora da escola (Acioly-Régnier, 1997; Civil, 2002; Knijnik, 1996; Saxe, 1991; Scribner, 1984). Freqüentemente, estes estudos discutem tais habilidades em termos do desenvolvimento de uma "compreensão numérica" (number sense), que possibilitaria o trato flexível de quantidades, principalmente por meio de estimativas computacionais e "intuições" acerca dos fenômenos e situações às quais as quantidades se referem (Greeno, 1991; Fisher & Sowder, 1995; Reys & Yang, 1998).

A reflexão apresentada neste artigo pretende contribuir para a discussão da pesquisa em "street mathematics", como é muitas vezes chamado o conjunto de trabalhos descrito acima, mas o faremos a partir de uma perspectiva outra, particularmente no que diz respeito ao papel atribuído à linguagem e ao discurso em tais práticas. Esta reflexão será desenvolvida a partir da questão dos sentidos que se faz de gráficos em práticas de produção e leitura de textos noticiosos em jornais e revistas.

Do ponto de vista daqueles que os produzem (e.g., jornalistas, editores de notícias, estatísticos profissionais), o emprego de gráficos se justifica como suporte matemático à narrativa ou argumento pretendido pela notícia. Mas é do ponto de vista do leitor que estará nossa atenção central: que sentidos leitores potenciais de jornais e revistas produzem para as quantidades e relações graficamente apresentadas no contexto de uma notícia jornalística? Com esta questão, discutiremos aspectos relevantes à pesquisa sobre práticas matemáticas fora da escola. Ao mesmo tempo, discutiremos um tema consideravelmente mais amplo: o problema da produção de sentido. Iniciaremos, portanto, com uma discussão da noção de sentido, a partir de uma concepção pragmática da linguagem, à luz da qual abordaremos questões relacionadas ao uso que se faz de gráficos.

Considerações sobre a produção de sentido a partir do pragmatismo lingüístico

A noção de sentido, como seria de se esperar, é uma das tantas com múltiplas perspectivas de conceitualização em Psicologia. A que aludiremos resumidamente a seguir possui uma longa tradição em filosofia analítica e estudos da linguagem, de William James ao Wittgenstein das Investigações Filosóficas (1958/2004), e além (e.g., Austin, 1962; Edwards & Potter, 1992; Marcuschi, 2003; Searle, 1969). Uma apresentação exaustiva dos pressupostos, métodos e implicações da visão pragmática de linguagem que orientará o debate posterior está, obviamente, além do escopo deste artigo. Alguns pontos, entretanto, são de grande relevância para a discussão oferecida aqui.

O problema do sentido numa perspectiva pragmática está notadamente relacionado ao uso que se faz das palavras, e à dinâmica da enunciação e do discurso na experiência humana. Posto em termos wittgensteineanos, o sentido não é um advento ou apêndice ao uso das palavras, muito pelo contrário, o uso é a dimensão pela qual e na qual o sentido atualiza-se. Podemos, assim, propor que a inteligibilidade, ou a possibilidade de entendimento num dado campo intersubjetivo, emerge à luz de nossa participação em jogos de linguagem próprios a uma determinada cultura, ou forma de vida. Esta noção, que não encontra em Wittgenstein uma definição propriamente dita, aponta em nossa leitura para a idéia de práticas culturais, ou seja, as regularidades no campo da ação e dos discursos de um dado grupo social (Lave & Wenger, 1991); ou, ainda, os repertórios compartilhados (rotinas, artefatos, vocabulários, etc.) que membros de uma dada comunidade desenvolvem ao longo do tempo (Wenger, 1998). Sendo assim, constitui uma prática cultural específica à atividade de comércio realizada pelos jovens feirantes em Carraher, Carraher e Schliemann (1988), na medida em que participam de forma regular e cotidiana dos modos de ação e discurso pelos quais realizam cálculos e negociam produtos.

O sentido de uma palavra, expressão, enunciado, conversação ou discurso depende dos processos e das disposições lingüísticas pelas quais nos tornamos responsíveis no andamento dos jogos de linguagem. Tais jogos emergem Investigações Filosóficas (Wittgenstein, 1958/2004) como uma referência de oposição a certa concepção de linguagem como um veículo de representação ou espelhamento do mundo, tal qual encontramos no Platão da clássica distinção entre o mundo das idéias e o mundo das formas. Em Wittgenstein, os jogos de linguagem são apresentados, através de seus exemplos, como algo resistente a uma descrição exaustiva ou rígida conceitualização. Portanto, ao tentar definir o que são jogos através da abstração de um conjunto de propriedades comuns e universais entre eles, logo nos frustraremos (ver também Lakoff, 1987). Nas palavras do próprio filósofo:

Como explicaríamos para alguém o que é um jogo? Creio que descrevendo jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: "isto e coisas semelhantes são chamados jogos". E sabemos, nós próprios, mais do que isto?... Não conhecemos os limites, porque não se traçou nenhum limite. (Wittgenstein, 1958/2004, § 69)

Assim, da mesma maneira que outras noções em Investigações Filosóficas, a de jogos de linguagem é propositadamente desprovida de uma positividade descritiva. Por jogos devemos sempre nos orientar pelo caráter de plasticidade, fluidez e ambigüidade das regras ou modos de ação e discurso que são experimentados pelo sujeito como uma trama organizadora e performaticamente inventiva de sua participação em práticas culturais específicas ou, conforme explicitamos acima, formas de vida. Transpondo as reflexões acima para o estudo dos sentidos que se faz de gráficos, elabora-se a seguinte indagação: como a questão do sentido a partir da noção de jogos de linguagem se traduz na análise do entendimento de uma dada forma simbólica, neste caso, a linguagem gráfica (supostamente matemática) do texto noticioso?

Usamos com freqüência a expressão fazer sentido a fim de atestarmos nosso entendimento acerca de um enunciado, como quando alguém diz para um parceiro conversacional: "— isso faz sentido para mim". Observe neste exemplo que, no fluxo de sua fala, o indivíduo normalmente não se ocupará do exame (ou da "definição ostensiva") dos possíveis referentes do termo isso, ou da avaliação do entendimento que, por seu turno, o ouvinte produz acerca desse dêitico. Isso ocorre porque, por um lado, falante e ouvinte compartilham um universo lingüístico no qual: (1) o fluxo de uma conversação é tal que ambos, falante e ouvinte, são responsáveis (e responsivos) pelo dito e, portanto, previamente acordados sobre muitas das regras inerentes à conversação (a troca de turnos, uma certa manutenção de sua coerência, etc.; ver Marcuschi, 2003); (2) o que faz sentido neste caso o fará apenas na medida em que o falante, na seqüência, emprega em sua fala o suposto sentido (que ele ou ela diz fazer), de acordo com o jogo de linguagem também partilhado pelo ouvinte. Por sua vez, o falante espera que o entendimento que o ouvinte tem de sua fala seja, de uma forma ou de outra, algo da ordem daquilo que o ouvinte (desde o princípio, também um falante) responderá na seqüência; de forma que podemos inclusive dizer do primeiro sujeito neste diálogo ilustrativo que: "— não sei se entendeu, mas respondeu como se o tivesse".

Podemos, então, resumir assim alguns primeiros pontos: (1) o sentido não é algo que se "tenha em mente", posto que a metáfora mente como um container contraria o que acima sugerimos acerca da noção pragmática de mente (ou, neste caso, entendimento) como um construto sintetizador de um movimento dialógico1 1 Toma-se por "movimento dialógico" a condição humana pela qual podemos conceber, criar e comunicar sobre nossa realidade social em termos do outro ( alter). (Holquist, 1990); (2) a linguagem (a fala, as expressões que a acompanham, mais um outro número de coisas) é uma forma de ação, para a qual esperamos, sempre, responsividade de um outro dialógico (Rommetveit, 1990); (3) posto que a linguagem produz sentido enquanto ação, efetivada pelo uso que dela se faz, torna-se desnecessário atribuir à mente uma capacidade representacional, na qual as palavras se referem a objetos ou eventos do mundo, quando a dimensão representacionalista da linguagem seria apenas uma dentre tantas outras funções da linguagem.

Segundo Wittgenstein, se nosso funcionamento cognitivo ocorresse numa dimensão representacional, seria "como se acreditássemos que a instrução escrita sobre uma vaca, que alguém deve me entregar, devesse vir sempre acompanhada de uma representação da vaca, a fim de que esta instrução não perca o seu sentido" (1958/2004, § 449). Conforme o argumentado, não seria desta forma que operamos na linguagem. O próprio uso da linguagem constituiria nossa forma de pensar. Em outras palavras, agimos e pensamos lingüisticamente. Este modo de entender o funcionamento cognitivo tem na linguagem a ferramenta-e-resultado (no sentido atribuído por Vygotsky a esta expressão; ver Newman & Holzman, 1993) da produção de sentidos enquanto um processo semiótico no qual o pensamento constitui-se, existe, assim como ilustraremos a seguir. Ou, como aponta Halliday (1993): "a forma prototípica da semiótica humana é a linguagem... o processo pelo qual a experiência torna-se conhecimento" (pp. 93-94).

Na próxima seção, apresentamos uma discussão acerca da representação gráfica como um universo lingüístico propulsor da produção de sentidos (na escola e na mídia), e em seguida um exemplo de análise, baseada em entrevistas com uma aluna do ensino médio.

Gráficos e produção de sentidos

O uso de gráficos tem uma presença marcante em uma variedade de contextos e atividades cotidianas, entre as quais: (1) na divulgação de notícias em jornais e revistas, nos quais gráficos são freqüentemente utilizados para ilustrar, descrever ou argumentar sobre fatos relativos a temáticas sociais, econômicas, políticas, etc.; (2) na atividade científica, como dispositivos para a construção e representação de conhecimentos, como na física acadêmica, por exemplo; (3) em uma variedade de profissões técnicas não-acadêmicas, como instrumento de monitoramento de processos os mais diversos, como na intervenção médica; (4) na prática escolar, na qual gráficos são geralmente tomados como objetos de estudo, atividade pela qual supõe-se instrumentalizar todos os demais usos exemplificados acima.

Tradicionalmente, a pesquisa em educação matemática discutiu amplamente o desempenho de crianças e adolescentes em tarefas envolvendo a "leitura" de gráficos, com particular interesse sobre os chamados erros de interpretação e a partir da perspectiva de competências cognitivas. Um quarto de século atrás, Bell & Janvier (1981) já relatavam dois tipos comuns de "erros" entre alunos do ensino médio: (1) gráficos acerca, por exemplo, do movimento de um objeto são usualmente interpretados como a forma de seu percurso (Figura 1a); e (2) valores absolutos correspondentes à ordenada de um ponto no gráfico são interpretados como a taxa de crescimento da curva naquele ponto (Figura 1b).



A despeito das supostas "leituras errôneas" produzidas pelos estudantes, fato que poderia comprometer o sucesso das práticas escolares que tomam as formas gráficas de representação como objetos de estudo em si mesmos, o entendimento desta forma de representação poderia, segundo outros autores, desempenhar um papel importante no desenvolvimento de "intuições" a respeito de fenômenos dinâmicos. Por exemplo, dez anos após a linha de pesquisa exemplificada acima, diSessa, Hammer, Sherin e Kolpakowski (1991) estudaram extensivamente tais "intuições" entre crianças e adolescentes. Apesar de não contemplarem em seus gráficos certos aspectos "formais" enfatizados na instrução escolar, estes indivíduos (ver também diSessa, 2002) apresentavam uma produção surpreendentemente rica e diversa para o registro gráfico de relações espaço-tempo, como ilustra a Figura 2.


Estas habilidades, até então denominadas "intuitivas", foram também reconhecidas e detalhadas por Nemirovsky, Carraher e Schliemann (1995), ao sugerirem que:

Posições relativas, inclinações, mudanças de direção, e outras classes de propriedades, requerem interpretações baseadas nos fenômenos descritos [pelos gráficos]. O que significa, em um gráfico, uma linha que vai da esquerda para a direita horizontalmente? Qual o significado desta linha quando ela entra numa região específica do gráfico?... As respostas a estas questões não estão contidas nos símbolos matemáticos, nem nos rótulos para dimensões tais como "distância" e "tempo". Estas questões requerem que os estudantes pensem como eventos, relações e propriedades de situações podem ser representados por eventos, relações e propriedades de gráficos. (p. 4)

Diferentemente do que ocorre com o conhecimento escolar sobre gráficos, tomados como objetos de estudo mais que instrumentos para pensar sobre os eventos que de alguma forma representam (como em Nemirovsky et al., 1995), os gráficos parecem funcionar na mídia impressa como suporte a um discurso argumentativo que pretende enfatizar relações quantitativas entre variáveis, mostrar tendências de comportamento e oferecer previsões. Entender os gráficos que acompanham textos noticiosos, e em particular entender suas relações com o argumento construído na notícia impressa, pode requerer do leitor experiências prévias com representações de quantidades, estimativas, narrativas, atributos visuais de formas, reconhecimento de padrões, etc. O sucesso do leitor pode também, de acordo com Carraher, Schliemann & Nemirovsky (1995), estar associado às suas expectativas acerca do próprio fato noticioso. Assim, mesmo sem instrução específica ou extensa sobre gráficos, os indivíduos podem engajar-se na produção de sentidos para os gráficos publicados na mídia.

Carraher et al. (1995), por exemplo, descrevem o caso de uma mulher adulta (Zefinha, 50 anos, zeladora) que havia completado apenas até a terceira série do ensino fundamental. Quando solicitada a comentar um dos últimos gráficos publicados na imprensa escrita acerca das pesquisas de intenção de voto nas eleições presidenciais de 1994 no Brasil, Zefinha foi capaz de reconhecer os movimentos de queda e ascensão dos dois candidatos mais votados e indicar os momentos de "ultrapassagem" entre eles. Interessantemente, entretanto, Zefinha às vezes parecia desconfiar de seus próprios comentários sobre o gráfico, ao confessar o empenho com que ela própria trabalhara pelo candidato em queda nas pesquisas.

O potencial de sentidos que emerge do uso de gráficos na mídia é alimentado também pelo seu caráter figurativo, ou de ilustração dos objetivos argumentativos que se tem com a notícia. Da forma como são utilizados, tais gráficos são despidos do rigor matemático que seria requerido na escola e ganham uma nova linguagem, atualizando outros sentidos. Observe-se, por exemplo, os gráficos apresentados na Figura 3 acerca dos efeitos da importação de automóveis sobre a indústria automotora brasileira entre 1991 e 1994. Os gráficos e o texto da reportagem a eles associado foram muito nitidamente orientados ao argumento segundo o qual a importação no referido quadriênio não havia afetado a produção e a exportação de automóveis no Brasil, visto que todas as curvas indicavam crescimento.


Entretanto, observe-se que estes gráficos representam formas bem distintas de crescimento, aspecto sequer mencionado no texto da reportagem. Assim, se tomarmos os valores anuais apresentados nos gráficos e reconstruirmos as curvas calculando o percentual de crescimento de um ano ao próximo (crescimento bianual), veremos que existe uma relação inversa entre importação e exportação no período analisado (ver Figura 4): as exportações apresentam crescimento negativo quando as importações aumentam, e crescimento positivo quando as importação diminuem. Existem pois, como se vê, sentidos possíveis não explorados na matéria jornalística e que podem ou não fazer parte da leitura que, eventualmente, se faz da notícia.


Portanto, a análise de aspectos ditos "formais" de um instrumento simbólico, em nosso caso a representação gráfica, faz sentido apenas na medida em que podemos dar conta das práticas e cenários nos quais tais instrumentos tornam-se recursos para a ação (no exemplo acima, práticas de convencimento próprias da chamada "grande mídia"). Em Meira (1995), o autor discutiu como representações matemáticas (e.g., tabelas de coordenadas) são continuamente transformadas na atividade de estudantes, tendo em vista as circunstâncias interacionais, discursivas e materiais de situações específicas. Tais representações emergiam na atividade dos estudantes como, ao mesmo tempo, efeito e razão do funcionamento cognitivo, ou sua ferramenta-e-resultado (ver também Meira, 1998; Vygotsky, 1996; Wertsch, 1991). Em outras palavras, a referida investigação discutiu como a produção de representações no papel não é redutível à aplicação de conhecimentos (pretensamente formais) previamente construídos sobre os sistemas simbólicos da matemática. Mostrou também como tabelas de coordenadas (enquanto dispositivos lingüísticos) organizavam a própria atividade matemática, ao fazer emergir um contexto para processos inferenciais e interacionais diversos.

Portanto, aquilo que outros autores, inadvertidamente, descartaram como "leitura errônea" ou simplesmente justificaram como intuição, é para nós um efeito da dinâmica peculiar da produção de sentidos, efeito que tentamos compreender a partir da análise das proposições simbólico-representacionais e dos discursos próprios a certo "trânsito lingüístico" entre diferentes jogos de linguagem, noção esta a qual retornaremos na próxima seção.

Um exemplo de análise

O exemplo que se segue faz uso de uma entrevista realizada em 1995 como parte, à época, de um estudo sobre "resolução de problemas". As tarefas do referido estudo consistiam na apresentação, a um grupo de estudantes do ensino médio, de vários gráficos coletados em revistas e jornais de circulação nacional, tais como Veja, Isto É, e Folha de São Paulo. Os gráficos utilizados eram de colunas ou linhas e tratavam de temas tão diversos quanto comportamento, sociedade, economia, investimento, política e tecnologia. A Figura 5 apresenta um dos gráficos utilizados nas entrevistas e algumas das questões previamente elaboradas, com as quais pretendíamos abordar os indivíduos entrevistados.


As entrevistas foram realizadas com um grupo de adolescentes entre 16 e 19 anos de idade, alunos de uma escola pública em Recife, Brasil. A escolha desse grupo de sujeitos deveu-se ao fato seguinte. Parte significativa das pesquisas em "matemática das ruas" considerada anteriormente é formada por estudos de natureza "comparativa", nos quais a "competência" de indivíduos não-escolarizados é analisada em função dos conceitos matemáticos (tal como concebidos na escola) aos quais estariam supostamente respondendo. Deste modo, tornou-se pertinente um estudo que fizesse um movimento distinto das investigações anteriores, ao explorar a dinâmica cognitiva própria aos indivíduos cuja formação era, de alguma forma, atravessada pelos referidos conceitos matemáticos. No argumento ora desenvolvido, toma-se que tal perspectiva de "comparação" é delicada. Discutir a competência de mestres-de-obra, por exemplo, tendo por referência uma estrutura conceitual da matemática enquanto disciplina, opõe-se à idéia amplamente reconhecida na perspectiva de linguagem e produção de sentidos aqui adotada, segundo a qual "mesmo que um leão falasse, nós não o compreenderíamos" (Nentwich, 2001). Isto diz o quão sensível é o entendimento de uma determinada forma de vida (sujeitos não-escolarizados) a partir de um universo lingüístico (a matemática) que não se constituiria como jogo de linguagem próprio à dinâmica cognitiva dos indivíduos investigados. Esta comparação é de muita valia quando se pretende apontar as diferenças envolvidas nas duas formas de vida estudadas, mas, talvez, torne-se frágil na descrição das especificidades dos processos cognitivos daqueles que formavam a população daqueles estudos.

No presente artigo, ao dedicarmos atenção à linguagem na qual e pela qual estudantes fazem sentido de gráficos da mídia, pretendemos investigar os jogos de linguagem próprios aos indivíduos no contexto experiencial da escola e como estes mesmos indivíduos tentam "dar conta" de representações gráficas também amplamente utilizadas fora dela. Observa-se que, neste caso, não assumimos que tais representações são, per si, "formas matemáticas". Assumir esse pressuposto na concepção de linguagem aqui empregada seria negar o princípio wittgensteineano anti-essencialista, segundo o qual a linguagem não é determinada por uma estrutura fixa, ou regras de sintaxe anteriores ao seu próprio uso. Ao invés disso, acreditamos, conforme é indicado na análise ilustrativa que se segue, que os gráficos, muito antes de serem concebidos como "formas matemáticas", são tomados pelos leitores como um recurso argumentativo imagético e sintetizador das idéias exploradas no contexto discursivo em que os gráficos emergem.

Assim, o alvo desta análise toma forma na investigação do como, ou seja, do processo, da dinâmica envolvida na produção de sentidos, a partir do exercício de um trânsito lingüístico entre a "gramática da escola" e dos jogos de linguagem lançados pelos sujeito no entendimento dos referidos gráficos. Pontua-se, portanto, que nossa questão não é como se usam os conceitos da escola "na rua", ou como "importar" práticas "da rua" para o contexto escolar, ou ainda uma comparação dos conceitos empregados num e noutro contextos; mas analisar os jogos de linguagem produzidos pelos indivíduos ao se lançarem no entendimento de certos artefatos simbólicos de amplo uso na sociedade, como são as representações gráficas neste caso.

A análise ilustrativa a seguir enfoca a entrevista com Fabiana, 16 anos, segundo ano do ensino médio, acerca dos gráficos "Direção segura", mostrados na Figura 5. Neste exercício de análise, procuraremos ilustrar o que acima nos referimos como o trânsito lingüístico que caracteriza as ações comunicativas da entrevistada frente às perguntas da entrevistadora, como uma forma de entendermos a dinâmica própria da produção de sentidos e do uso que se faz de gráficos.

Entrevistadora: O que é que você entendeu desses gráficos? A que conclusões pode-se chegar a partir da leitura dele?

Fabiana: Assim, que esse primeiro (subabdominal)(.) muitos acidentes... trinta e três por cento das pessoas foram salvas por causa do cinto, no outro quarenta e quatro por cento, do cinto diagonal, no de três pontos cinqüenta e sete por cento.

Chamamos a atenção em primeiro lugar para a forma pela qual a entrevistadora coloca a questão. Observa-se que a mesma introduz dois focos de atenção potencialmente distintos em relação aos gráficos: num primeiro, o indivíduo é perguntado acerca de seu "entendimento" (dos gráficos), no outro acerca de suas "conclusões" (aquelas a que se pode chegar a partir da "leitura" dos gráficos). Isso é importante porque a responsividade do entrevistado se dará em um contexto que emerge também com base nas demandas discursivas que lhe são feitas. Dizer acerca do entendimento é diverso de falar sobre possíveis conclusões basicamente porque, no primeiro caso, parece buscar-se uma forma de aproximar o gráfico das experiências do sujeito, abrindo-se aí um potencial de sentidos (meaning potential, Rommetveit, 1990) que libera, por assim dizer, o respondente de obrigações com os jogos de linguagem próprios do formalismo matemático. "A que conclusões pode-se chegar", por outro lado, tende a canalizar de maneira menos abrangente tal potencial pois "conclusões", diferentemente de "entendimento", são possíveis apenas a partir de um conjunto mais ou menos bem delimitado de deduções. Se preferirmos, poderíamos dizer que a solicitação de uma "conclusão" alude a um exercício de síntese por parte do sujeito, e no universo da síntese a multiplicidade da produção de sentidos próprios ao entendimento é constrangida ao campo do significado, ao campo da tentativa de estabilização da tensão polissêmica dos sentidos.

Essa possível diferença fica ainda mais clara quando observamos, no protocolo aqui posto em debate, que na primeira pergunta a entrevistadora refere-se ao entendimento de um sujeito especificável (referido pelo pronome você), enquanto na segunda um sujeito é apenas suposto através do uso da construção pode-se chegar. O modo impessoal da segunda proposição pode ser pensado como uma espécie de sinalizador de certo distanciamento, ou transposição do contexto discursivo do entendimento para o contexto discursivo da interpretação. Conforme nos ensina Wittgenstein, a diferença entre o entendimento e a interpretação dá-se na perspectiva de que, no entendimento, falamos de nossa possibilidade (enquanto usuários competentes da língua) de participar de uma forma de vida, e na interpretação lançamo-nos na ficção de apreender uma dimensão simbólica supostamente neutralizadora e explicativamente causadora da errância própria ao universo dos sentidos.

Tais formas discursivas criam uma tensão à qual Fabiana responde com uma "leitura" peculiar do gráfico. Nesta leitura, o "quanto eles [os cintos] aumentam as chances de sobrevivência" (ver texto descritivo dos gráficos na Figura 5) é elaborado por Fabiana em termos da porcentagem de pessoas "salvas por causa do cinto". Observe-se que a fala da entrevistada é uma resposta efetiva ao gráfico na medida em que o uso da expressão "trinta e três por cento" (ou ainda, "quarenta e quatro por cento" e "cinqüenta e sete por cento") dá conta de uma expressão também presente no gráfico, na forma "33%" (ou, respectivamente, "44%" e "57%"). Entretanto, Fabiana subverte o predicado da expressão 33% (no gráfico, "aumento das chances de sobrevivência"), fazendo emergir um contexto discursivo no qual, aparentemente, a chance ou probabilidade de sobrevivência advindo do uso do cinto é entendida enquanto seu sucesso efetivo. De acordo com o predicativo da sentença apresentada no gráfico da notícia – "o quanto eles [os cintos] aumentam a chance de sobrevivência" – o termo chance alude, em seu emprego, a uma dimensão probabilística da sobrevivência, situada numa temporalidade futura. Entretanto, é interessante observar que Fabiana as constrói como fatos consumados, numa temporalidade da ordem do passado: "trinta e três por cento das pessoas foram salvas por causa do cinto". Temos aqui, portanto, um primeiro aspecto do trânsito lingüístico ao qual nos referimos anteriormente, segundo o qual a produção de sentidos dá-se pela marcação, no discurso, de uma estrutura temporal dos eventos (Croft, 1998). Utilizamos esta noção aqui para destacar como os indivíduos continuamente constroem uma recorrência2 2 Utilizamos o termo recorrência como modo de enfatizar que concebe-se a história de cada indivíduo não como algo estático, situado numa dimensão cristalizada do tempo, mas como uma construção discursiva reinventada lingüisticamente a cada contingência à qual o sujeito é submetido. histórica de suas experiências através da linguagem, a fim de responderem a uma dada contingência demandante de produção de sentidos. Assim, os sujeitos lançam mão de um trânsito ora retrospectivo, ora prospectivo entre diferentes jogos de linguagem.

O discurso de Fabiana deixa entrever ainda uma segunda particularidade acerca dos trânsitos lingüísticos próprios da produção de sentidos. Mais adiante na mesma entrevista, após admitir que o cinto pode, de fato, "evitar alguma lesão do acidente" (portanto, inserindo-se mais apropriadamente no "passeio" prospectivo potencialmente pretendido pelo autor da notícia), Fabiana responde assim às últimas perguntas da entrevistadora:

Entrevistadora: Você se sente confortável usando o cinto de segurança como passageiro?

FabianaL Sinto muito mais do que sem ele.

Entrevistadora: Por quê?

Fabiana: Não sei, vai ver porque eu já bati a cabeça no/

Entrevistadora: Você bateu a cabeça no/

Fabiana: Foi no pára/ eu tava andando na frente aí (.) meu pai tava passando (.) aí de repente passou uma moto (.) aí eu meti a cabeça no pára-brisa.

Trata-se aqui do como Fabiana marca suas opiniões e argumentos com base em (mas não necessariamente por causa de) sua imersão em vivências passadas específicas. Neste exemplo, ela declara sentir-se "muito mais [confortável] do que sem ele [o cinto]" porque, como afirma, "eu já bati com a cabeça no... pára-brisa" em um acidente. Ao pontuar esta possível relação entre um evento passado e sua atualização no discurso presente, não queremos dizer que tal lembrança constitui-se como um "fator" e que o mesmo "tem um significado" no discurso de Fabiana acerca do gráfico, como parecem defender Monteiro e Ainley (2004), em artigo recente sobre a interpretação de gráficos da mídia e "senso crítico". Com base em estudos de Curcio e colegas (1987; Friel, Bright, & Curcio, 1997), nos quais sugere-se que a compreensão adequada de gráficos deve envolver a leitura, interpolação e extrapolação de informações, Monteiro e Ainley (2004) explicam assim o discurso de uma de suas entrevistadas que, coincidentemente, responde acerca de um gráfico sobre mortes em rodovias, sendo que ela própria se envolvera, anos antes, em um acidente automobilístico:

Podemos inferir desta análise que as motivações e desejos de Hillary [a entrevistada] desempenharam um papel proeminente em sua interpretação. O fato que acidentes nas estradas lhe são relevantes, e que ela própria esteve envolvida em um deles foi um aspecto essencial do sentido do gráfico para Hillary. Por exemplo, ela tentava ver o que desejava [em termos de decisões demandadas pela tarefa], mesmo que criticando e reconhecendo os limites de sua interpretação. (p. 7)

Na concepção que informa a citação acima, noções como motivação e desejo aparentam ser posicionadas em termos de um causalismo subjetivista (quando, por exemplo, os autores sugerem que o respondente foi capaz de "fazer explícito um fator, potencialmente significativo para sua interpretação"; Monteiro & Ainley, 2004, itálicos adicionados). Em nossa perspectiva, os aspectos envolvidos na dinâmica das experiências cotidianas do indivíduo, ao invés de serem pensados como aquilo que estaria na ordem da causa ou fator, são tomados como contingência lingüística da possibilidade de entendimento, de semiotização dos registros matemáticos com os quais lidamos na mídia impressa. Em outras palavras, talvez possamos prescindir do enigmático e precário escopo do vocabulário dos "afetos" no discurso sobre processos cognitivos, por uma compreensão da função da noção de forma de vida e jogos de linguagem como condição da produção de sentidos. Sendo assim, propomos que a lembrança de Fabiana acerca de seu acidente não funciona como causa de sua "interpretação" do gráfico, mas, alternativamente, enquanto sua razão para sentir-se "muito mais [confortável] de que sem ele [o cinto]". A razão que não é causa sinaliza, portanto, para uma diferença entre o determinismo de sistemas impessoais e, por outro lado, aquilo que é motivado discursivamente como explicação relacional e não-determinística. A resposta de Fabiana indicaria, assim, um modo de entendimento próprio aos jogos de linguagem na entrevista, enquanto resposta às indagações da entrevistadora acerca do quanto ela "se sente confortável usando o cinto de segurança".

Comentários

Nesta sessão, pontuaremos algumas contribuições da discussão ora realizada ao campo de reflexões acerca da produção de sentidos. Conforme argumentado no presente artigo, oferecemos um deslocamento do enfoque "comparativo" das pesquisas que versam sobre "competências matemáticas" para um olhar mais centrado nas contingências lingüístico-culturais. Em outras palavras, acredita-se que aquilo que identificamos como o método "comparativo" (entre indivíduos escolarizados versus indivíduos não-escolarizados, por exemplo) pode ofuscar uma descrição mais verticalizada sobre as especificidades dos processos cognitivos e das formas de vida daqueles grupos de sujeitos que formam as amostras das investigações. Acerca do modo como tais formas de vida são uma aprendizagem culturalmente produzida na e pela linguagem, assim como propusemos, Wittgenstein pergunta-se: "Como reconheço que a cor é vermelha? -Uma resposta seria: ‘eu aprendi português.’" (Wittgenstein, 1958/2004, § 381).

A noção de formas de vida nos foi útil também como alternativa ao delicado vocabulário dos afetos na psicologia cognitiva. É sabido que a produção do conhecimento voltado para processos cognitivos não nos tem oferecido, ao menos tradicionalmente, um discurso acerca das propriedades afirmativas de termos como desejo, motivação, subjetividade. Muito pelo contrário, o debate acerca do vocabulário dos afetos na psicologia cognitiva é marcado pela função de erro, ou ainda como território estrangeiro às preocupações e concepções de sujeito deste campo do saber. Entretanto, no movimento próprio à dialética entre sujeito epistêmico e "dado", cá e lá a pesquisa vê-se envolta em explicações da ordem dos "afetos", quer seja na relação estabelecida entre investigador e sujeito, quer seja numa causuística branda ou resto não analisável dos protocolos de pesquisa. Este debate faz-se necessário, mesmo que o deixemos aqui apenas indicado, na medida em que reaparece freqüentemente em pesquisas que se voltam, mais especialmente, para aquilo que aqui nomeamos como produção de sentidos.

Outro aspecto importante diz respeito à relevância de investir-se na formulação de métodos de análise baseados na relação sujeito e linguagem, tal como tipicamente realizado na pesquisa de inspiração sócio-histórica. A referida importância pode ser pensada em relação à pertinência metodológica que o pragmatismo lingüístico oferece sobre temas tão caros ao estudo da cognição humana, como os processos de aprendizagem e a formação de conceitos. A exemplo disso, encontramos tal possibilidade no diálogo entre Vygotsky e o Wittgenstein de Investigações Filosóficas, como ilustrado em Newman e Holzman (1993). Esse exercício fortaleceria um intercruzamento entre a psicologia cognitiva e perspectivas filosóficas de base pragmática, acerca de temas tais como pensamento e linguagem. Isto significaria não só a reapropriação das reflexões epistemológicas ao universo da cognição, em termos de uma ferramenta crítico-metodológica, mas o restabelecimento do profícuo continuum entre a produção do conhecimento sobre o sujeito cognoscente e suas inegáveis bases e heranças filosóficas, em prol de uma ética científica mais sensível ao que nos parece humanamente mais útil.

Referências

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Notas

Recebido em 19.jun.06

Reformulado em 18.jul.07

Aceito em 25.ago.07

Luciano Rogério de Lemos Meira, doutor em Educação Matemática pela University of California, Berkeley (EUA), é professor adjunto na Universidade Federal de Pernambuco.

Marina Assis Pinheiro, mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, é doutoranda na Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: marinaassis.pinheiro@gmail.com

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  • 1
    Toma-se por "movimento dialógico" a condição humana pela qual podemos conceber, criar e comunicar sobre nossa realidade social em termos do outro (
    alter).
  • 2
    Utilizamos o termo
    recorrência como modo de enfatizar que concebe-se a história de cada indivíduo não como algo estático, situado numa dimensão cristalizada do tempo, mas como uma construção discursiva reinventada lingüisticamente a cada contingência à qual o sujeito é submetido.
  • Endereço para correspondência:
    Departamento de Psicologia; Universidade Federal de Pernambuco
    Av. Acad. Hélio Ramos, s/n; CFCH, 8º andar
    Cid. Universitária; Recife, PE; 50670-901
    Tel.: (81) 2126-7330
    Fax: (81) 2126-7331
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Revisado
      18 Jun 2007
    • Recebido
      19 Jun 2006
    • Aceito
      25 Ago 2007
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