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Histórias infantis: um recurso para a compreensão dos estados mentais

Children's storybooks: a resource to the understanding of mental states

Resumos

Este estudo examinou uma amostra de 100 livros de histórias infantis nacionais para crianças pré-escolares de quatro a seis anos de idade quanto à ocorrência de termos/expressões referentes a estados mentais a partir de três eixos de análise: via palavras e expressões no texto; via figuras; e via presença de ironia e crença falsa na narrativa. A análise dos termos mentais foi realizada por um grupo de três avaliadores. Foi encontrado que 92% dos livros analisados apresentavam termos denotando estados mentais, 12% apresentavam ironia situacional, 11% continham crença falsa e que as figuras representavam o estado mental expresso no texto. Os resultados sugerem que os livros infantis nacionais podem ser utilizados como recurso para promover o desenvolvimento sociocognitivo das crianças.

teoria da mente; histórias infantis; estados mentais


This study examined a sample of 100 national children's storybooks directed to pre-school children aged four to six years to identify words/utterances that denote mental states according to three views of analysis: via words and expressions in the text; via the pictures; and via presence of irony or false beliefs in the narrative. The analysis of mental words was realized by a group of tree people. It was found that 92% of the analyzed books contained internal state language, 12% contained situational irony, 11% contained false belief and the pictures represented the mental state concepts expressed in the text. The results point out that the national children's storybooks can be used as a resource to promote socio-cognitive development of clildren.

theory of mind; children´s storybooks; mental states


ARTIGOS

Histórias infantis: um recurso para a compreensão dos estados mentais

Children's storybooks: a resource to the understanding of mental states

Marisa Cosenza Rodrigues; Jacqueline Silva Rubac

Universidade Federal de Juiz de Fora

RESUMO

Este estudo examinou uma amostra de 100 livros de histórias infantis nacionais para crianças pré-escolares de quatro a seis anos de idade quanto à ocorrência de termos/expressões referentes a estados mentais a partir de três eixos de análise: via palavras e expressões no texto; via figuras; e via presença de ironia e crença falsa na narrativa. A análise dos termos mentais foi realizada por um grupo de três avaliadores. Foi encontrado que 92% dos livros analisados apresentavam termos denotando estados mentais, 12% apresentavam ironia situacional, 11% continham crença falsa e que as figuras representavam o estado mental expresso no texto. Os resultados sugerem que os livros infantis nacionais podem ser utilizados como recurso para promover o desenvolvimento sociocognitivo das crianças.

Palavras-chave: teoria da mente; histórias infantis; estados mentais

ABSTRACT

This study examined a sample of 100 national children's storybooks directed to pre-school children aged four to six years to identify words/utterances that denote mental states according to three views of analysis: via words and expressions in the text; via the pictures; and via presence of irony or false beliefs in the narrative. The analysis of mental words was realized by a group of tree people. It was found that 92% of the analyzed books contained internal state language, 12% contained situational irony, 11% contained false belief and the pictures represented the mental state concepts expressed in the text. The results point out that the national children's storybooks can be used as a resource to promote socio-cognitive development of clildren.

Keywords: theory of mind; children´s storybooks; mental states

A teoria da mente constitui um campo recente de estudo e pesquisa interdisciplinar. O termo teoria da mente surgiu no âmbito de experimentos sobre cognição animal, no fim da década de 70, que investigavam a possibilidade de os chimpanzés serem hábeis em atribuir estados mentais para si e aos outros, por meio da interpretação da intenção de um ator humano (Jou & Sperb, 1999; Santana & Roazzi, 2006). Atualmente, esse campo de estudo inclui vários estudiosos como os etologistas, filósofos da mente, psicólogos cognitivistas e do desenvolvimento e especialistas em autismo. O interesse por essa área de estudo no Brasil é recente e vem despertando interesse de vários estudiosos e pesquisadores como demonstram os trabalhos de Jou e Sperb (1999) e Maluf, Deleau, Panciera, Valério e Domingues (2004).

De maneira geral, podemos entender por teoria da mente o nome que se dá à maneira como sentimos e entendemos a mente dos outros, ou seja, a capacidade de atribuir estados mentais para si mesmo e para os outros (Caixeta & Caixeta, 2005). Premack e Woodruff (1978, citados por Jou & Sperb, 1999; e Caixeta & Caixeta, 2005), que introduziram o termo nas ciências cognitivas, o definem como a capacidade de inferir a respeito dos estados mentais dos outros, desenvolvendo uma medida daquilo que os outros pensam, sentem, desejam, acreditam, duvidam, ou seja, um sistema de referências que viabiliza comparações entre o mundo interno individual e o mundo externo dos outros.

Alguns pesquisadores tendem a definir a teoria da mente de maneira mais específica como a área que se dedica a investigar a habilidade das crianças pré-escolares de compreender seus próprios estados mentais e dos outros e de utilizarem esta informação para predizer suas ações e comportamentos (Jou & Sperb, 1999; Dias, 1993; Feldman, 1992, Lourenço, 1992). Maluf e colaboradores (2004) complementam essa definição destacando como teoria da mente o entendimento que as crianças elaboram, durante os primeiros anos de vida, a respeito da mente, isto é, a respeito das emoções, intenções, pensamentos e crenças das pessoas com quem convivem.

A teoria da mente dos pré-escolares configura uma área de extrema importância para a cognição social, oferecendo explicações do comportamento dos outros e permitindo prever suas ações ao referir-se a suas crenças, desejos, percepções, pensamentos, emoções e intenções (Flavel, Miller, & Miller, 1999). Essa capacidade possibilita a sofisticação das relações e da comunicação intra e inter-grupo, o entendimento dos artifícios da expressão humana como a ironia, a dissimulação, o sofrimento, o interesse, a falsidade (Caixeta & Caixeta, 2005). Tendo em vista as implicações desse conhecimento para o favorecimento do desenvolvimento social e da aprendizagem escolar durante os primeiros anos de vida, Maluf e colaboradores (2004) ressaltam a importância de psicólogos e educadores compreenderem como se desenvolve na criança a compreensão da mente do outro.

Muitas pesquisas surgiram na tentativa de investigar quando a criança desenvolve a compreensão a respeito da própria mente e da alheia. Segundo Caixeta e Caixeta (2005), a psicologia do desenvolvimento praticamente assumiu a dianteira dos estudos nessa área, que se consolidou no âmbito da tradição experimental com o paradigma da crença falsa. Crença falsa pode ser definida como a crença que diverge da realidade por estar pautada em informações perceptuais parciais sobre uma dada situação (Santana & Roazzi, 2006), ou como sintetiza Rodrigues (2004), a capacidade de compreender que as pessoas podem ter crenças que são contraditórias e conflitantes com a realidade.

No contexto nacional, pesquisas apontam diferenças na idade em que a compreensão da crença falsa surge em crianças brasileiras (Dias, 1993; Dias, Soares, & Sá, 1994; Roazzi & Santana, 1999; Santana & Roazzi, 2006), sugerindo, porém, que tal compreensão já é aparente por volta dos cinco anos de idade. No entanto, Rodrigues (2004) ressalta a necessidade de realização de mais pesquisas visando fomentar o desenvolvimento desta área do conhecimento psicológico, ainda pouco explorada na realidade brasileira. De forma complementar, Maluf et al. (2004) apontam a falta de estudos na literatura brasileira com enfoque longitudinal, assim como de estudos de intervenção, ambos com freqüência crescente na literatura internacional, devido às possibilidades que oferecem de maior compreensão do fenômeno e de intervenção positiva na realidade individual e social.

No plano internacional, alguns estudos fornecem subsídios que contribuem para a compreensão e promoção do desenvolvimento de uma teoria da mente na criança: conversações pais-filhos (Bretherton & Beeghly, 1982; Dunn, Bretherton, & Munn, 1987), o número de irmãos (Perner, Ruffman, & Leekam, 1994), envolvimento em brincadeiras de faz-de-conta (Leslie, 1987; Lillard, 2001; Roazzi & Santana, 1999) e pesquisas no contexto educativo (Astington & Pelletier, 2000).

Na perspectiva da leitura como recurso preventivo e promotor de desenvolvimento humano (Witter, 2004), é possível vislumbrar a possibilidade de se utilizar os livros de histórias infantis como fonte de conhecimento e compreensão dos estados mentais. Estudos internacionais (e.g., Cassidy et al., 1998; Dyer, Shatz, & Wellman, 2000; Ruther, 1997, citado por Dyer, Shatz, & Wellman, 2000) demonstram que os livros de histórias para crianças pequenas, pelo conteúdo do material textual que apresentam, pelo tipo de linguagem que utilizam e por centrarem suas ações e interações em pessoas ou animais personificados, constituem fonte relevante de informações sobre estados internos, podendo ampliar as habilidades infantis no domínio da compreensão das intenções, desejos, crenças, emoções, conhecimento de si próprio e dos outros (Rodrigues, 2004).

No estudo de Dyer, Shatz e Wellman (2000), foram analisados 90 livros de histórias infantis publicados nos Estados Unidos, com base nas referências voltadas para os estados mentais. Foram considerados três eixos de análise: (a) via palavras e expressões; (b) via figuras; e (c) por meio das situações irônicas encontradas no texto. Os resultados obtidos foram altamente favoráveis, indicando que os livros apresentaram uma alta proporção de referências textuais para estados mentais. No tocante à análise das figuras contidas nos livros, os dados indicaram que, sozinhas, as figuras falharam em representar conceitos de estado mental expressos no texto. Entretanto, figura e texto juntos expressaram ironia situacional em um terço dos livros analisados. Como assinalam os autores, os resultados sugerem que a informação relativa aos estados mentais foi amplamente expressa via palavras e ironia, permitindo a afirmação de que mesmo crianças muito novas se beneficiam com essa atividade na compreensão da mente. Embora tenha empregado metodologia menos refinada, o estudo de Ruther (1997, citado por Dyer, Shatz, & Wellman, 2000) analisou 30 livros de histórias para crianças de dois a seis anos de idade encontrando também alta freqüência de termos referindo-se a estados mentais. Cassidy et al. (1998) analisaram conceitos relativos ao conteúdo da teoria da mente em uma ampla amostra de 371 livros infantis. Os resultados encontrados indicaram que 78% dos livros continham linguagem voltada para os estados internos, 34% continham crenças falsas, e 43% continham descritores de personalidade permitindo concluir que conceitos da teoria da mente são parte integrante da literatura lida para a criança pré-escolar. É importante salientar que nesses estudos não são apresentadas informações quanto ao tamanho do livro (número de páginas).

O presente trabalho é parte integrante de uma pesquisa mais ampla desenvolvida pelas autoras e outras colaboradoras (Rodrigues, Oliveira, Rubac, & Tavares, 2006), e teve por objetivo investigar o potencial da literatura infantil nacional para a formação de uma teoria da mente nas crianças por meio da análise de uma amostra de 100 livros de histórias infantis nacionais quanto à presença de linguagem voltada para estados mentais, de crença falsa e ironia situacional.

Método

Foi selecionada uma amostra de cem livros infantis nacionais para crianças na faixa etária pré-escolar (de quatro a seis anos) por meio de consultas ao Ministério da Educação e Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil, visando atender critérios de qualidade. Com relação à adequação da faixa etária, foi utilizada uma listagem de livros infantis disponibilizada pela Secretaria Estadual de Educação (MG) contendo indicação de faixa etária e tipo de leitor e catálogos de editoras de renome nacional na área da literatura infantil. Os livros selecionados apresentam em média vinte páginas, todas ricamente ilustradas e coloridas com temáticas variadas de acordo com a idade, interesse e capacidade de compreensão da criança pré-escolar.

A metodologia utilizada foi semelhante àquela empregada por Dyer, Shatz e Wellman (2000). As referências a estados mentais nos livros foram codificadas de três modos: (1) registro da ocorrência e freqüência dos termos e expressões mentais considerando termos cognitivos, emocionais, desejos/intenções e avaliação moral/obrigação; (2) análise da convergência das figuras com a informação do estado mental encontrada no texto; (3) identificação da presença de ironia situacional e crença falsa; gerando-se um instrumento para análise de cada livro. Considerando os três eixos mencionados, os livros foram analisados por um grupo de três pessoas que concordaram entre si quanto à categorização dos termos identificados (as discordâncias foram discutidas).

Para a análise dos termos e expressões mentais foi elaborada uma listagem de termos mentais subdivididos nas quatro categorias acima mencionadas, baseada nos estudos dos autores citados e na lista de termos denotando estados mentais gerados por Bretherton e Beeghly (1982), Seguiu-se a definição das categorias de termos proposta pelos autores: (1) termos cognitivos: termos que remetem a conhecimento, memória, incerteza, sonho, realidade versus pretensão, utilizados para se referir aos próprios estados mentais e aos dos outros; (2) termos emocionais: referem-se a comportamentos emocionais (e.g., abraço, beijo, sorriso, choro, etc.) e aqueles referentes a emoções ou sentimentos atuais (e.g., amor, gostar, feliz, etc.); (3) termos de desejo/intenção: delimitados pelo uso da palavra desejar, precisar, gostaria, indicando volição, motivação; e (4) termos de avaliação moral e obrigação: delimitados pelo sentido de expressões como ter que, mostrar que, malcriado, etc. A listagem serviu como base para a codificação dos termos mentais encontrados nos livros, sendo utilizada como critério de discussão das discordâncias pelo grupo dos três avaliadores.

A análise da convergência entre figura e estado mental investigou se as figuras do livro condiziam com o estado mental informado no texto. Buscando abranger toda a narrativa foram consideradas figuras correspondentes ao início, meio e fim do livro, totalizando três figuras analisadas em cada livro. Nos livros com narrativas muito curtas ou muito pobres em termos mentais foi analisado o número de figuras de acordo com o número de páginas contendo termos ou expressões mentais independentes da parte da narrativa em que essa figura se localizava. Foi utilizada uma escala variando de 0 a 3 pontos: 0 (figura nada convergente); 1 (figura pouco convergente); 2 (figura convergente); e 3 (expressiva convergência). A análise dos livros quanto à convergência entre figura e estado mental foi realizada considerando a média aritmética entre as notas atribuídas pelos juízes e a pesquisadora principal para cada livro analisado.

A ironia situacional analisada no presente estudo foi aquela que se torna evidente no fim da história e que, de acordo com Dyer, Shatz e Wellman (2000), encoraja o leitor a uma perspectiva além da que é imediatamente dada, fornecendo informação sobre mente e experiência nos diversos assuntos. A crença falsa foi categorizada pelo envolvimento do disfarce conjugado com a pretensão de enganar o outro, pela percepção equivocada da realidade e pela carência de informações. Tanto a ironia situacional quanto a crença falsa foram categorizadas como presentes ou ausentes segundo a indicação do grupo de três avaliadores, considerando sua ocorrência ou não.

Resultados e discussão

Os resultados obtidos considerando o primeiro eixo de análise (codificação e freqüência dos termos e expressões mentais) indicaram um alto número de referências a estados mentais; 92% dos livros para crianças pré-escolares evidenciaram termos denotando estados mentais, totalizando 1563 referências. Aplicadas as categorias de análise aos livros que apresentaram referências a estados mentais (média de 20 páginas), obtivemos os resultados detalhados na Tabela 1: 30,5% contemplaram as quatro categorias; 29% contemplaram três categorias; 30,5% apresentaram duas categorias; e10% contemplaram apenas uma categoria. Esses resultados corroboram os obtidos no estudo de Cassidy et al. (1998), em que foi evidenciado um índice de 78% de referências a estados internos, assim como aqueles encontrados na pesquisa de Dyer, Shatz e Wellman (2000), na qual 69% dos livros infantis apresentavam mais de 15 referências a estados mentais; embora, como já foi dito, esses estudos não especifiquem informações relativas ao número de páginas dos livros analisados.

Nos livros analisados foi possível observar que palavras cognatas foram usadas para representar o mesmo tipo de termo mental (e.g., alegre, alegrar, alegremente). Dessa forma, agrupando-se os cognatos dos 1563 termos, evidenciaram-se 213 tipos diferentes de termos denotando estados mentais; sendo que 126 (59%) não constavam da listagem tomada como referência. Considerando a existência de importantes diferenças lingüísticas, a maior variedade de termos encontrados no presente estudo reflete, possivelmente, o número bastante extenso de vocábulos na língua portuguesa, se comparado ao da língua inglesa.

Considerando a freqüência de termos mentais encontrados na análise (Tabela 2), os resultados mostraram que houve mais referências a estados emocionais, com 87% dos livros analisados apresentando referências a estados emocionais. Foram encontrados 633 termos (41%); agrupando-se os cognatos, totalizaram 94 tipos diferentes de palavras (e.g., calmo, carinho, coitado, gostar, gritar, feliz, lágrimas, triste, medo, rir).

Dentre os termos emocionais, o termo mais freqüente foi gostar; houve 42 referências a essa palavra (6,6%). Como mostra a Tabela 3, dentre os estados emocionais foram encontrados 27 termos (28,5%) denotando estados emocionais positivos (e.g., alegria, felicidade, diversão, adorar, sorrir), 56 termos (59,5%) indicando estados emocionais negativos (e.g., tristeza, susto, medo) e 12 termos (12%) categorizados como neutros (e.g., boquiaberta, saudade). Esses resultados coincidem com os dados obtidos por Dyer, Shatz e Wellman (2000), que encontraram 101 tipos diferentes de palavras referindo-se a estados emocionais nos dois grupos de livros (para crianças de 3-4 anos e 5-6 anos). Aproximam-se também dos resultados do estudo de Cassidy et al. (1998), no qual 80% dos livros analisados apresentaram predominância de termos e expressões denotando estados emocionais. Histórias em quadrinhos também se encontram repletas de termos emocionais, como ressalta Cyrus (1998, citado por Alves, 2001), que identificou uma grande variedade de palavras emocionais nos quadrinhos da revista Turma da Mônica. Semelhante ao presente estudo, foi evidenciada uma regularidade do uso das palavras alegria, tristeza, medo e raiva, possibilitando que as crianças, ao lerem histórias em quadrinhos, tenham oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre emoções.

A segunda categoria mais freqüente (Tabela 2) refere-se aos estados cognitivos, que apareceram em 80% dos livros num total de 612 palavras (39%). O detalhamento da ocorrência destes termos, como mostra a Tabela 4, envolve 72 tipos diferentes (e.g., saber, pensar, achar, resolver, perguntar, esquecer). O termo mais freqüente foi saber e seus cognatos, com 99 referências a esse termo (16%). O estudo de Bretherton e Beeghly (1982), embora não tenha focalizado a análise de livros de histórias infantis, mas conversações entre crianças e mães, aponta o termo saber como o termo cognitivo mais evocado por crianças de até 28 meses. Os autores evidenciaram que palavras referindo-se a estados fisiológicos foram mais comuns no vocabulário de crianças de 28 meses do que referências a afetos e obrigação moral. Da mesma forma, os termos cognitivos foram os menos comuns, aparecendo mais tardiamente no vocabulário das crianças. Os dados obtidos nessa pesquisa corroboram os encontrados por Dyer, Shatz e Wellman (2000), segundo os quais os livros (para ambos os grupos de idade) utilizaram 68 diferentes tipos de palavras referentes a estados cognitivos.

As referências a desejos e intenções foram evidenciadas em 56% dos livros; 186 termos (12%) denotando desejo ou intenção foram encontrados, num total de 12 tipos diferentes (desejar, "estar a fim", intenção, necessário, pedir, precisar, preferir, procurar, propósito, querer, vontade, fazer). Dentre esses termos, querer predominou com 58% sobre os demais; houve 107 referências a essa palavra. O estudo de Dyer, Shatz e Wellman (2000) possui pontos convergentes e discrepantes com o presente estudo no que se refere a desejos e intenções. Foram identificadas 213 referências a desejos e intenções no estudo dos autores, próximo ao encontrado no presente estudo, porém, essas citações representavam apenas cinco tipos de palavras: espero, preciso que, desejo, gostaria, sendo que nesta pesquisa foram encontrados 12 diferentes tipos de palavras. Mais uma vez a diversidade da língua portuguesa pode ter influenciado. Segundo Feinfield, Blacher e Baker (1999), por envolver planos e planejamentos, aprender sobre intenções e sua relação com os outros estados mentais e com o comportamento constitui parte significativa do desenvolvimento geral da teoria da mente, de forma que a presença desses termos nas narrativas nacionais indica a possibilidade concreta de exploração desses termos o que poderia contribuir para o desenvolvimento da teoria da mente nas crianças.

O termos denotando avaliação moral e obrigação foram identificados em apenas 8% dos livros analisados, sendo identificados 132 termos. Ao serem agrupados por semelhança, como mostra a Tabela 5, encontraram-se 35 tipos diferentes de palavras (obedecer, mandar, "ter que", castigo, ordem). Nessa categoria o termo mais encontrado foi mandar com 25 referências (18%). Alves (2001) discute o surgimento da literatura infantil como estando relacionada a preocupações pedagógico-moralizantes provenientes da necessidade da classe burguesa sedimentar seus valores utilitaristas a partir da infância. Segundo Becker (2001), tal posicionamento veio se modificando, instaurando-se uma linguagem simples e dirigida diretamente às necessidades e fantasias da criança. A pouca expressividade dos termos denotando avaliação moral e obrigação encontrados no presente trabalho pode refletir a tendência contemporânea de maior incorporação do lúdico na literatura infantil nacional.

No que se refere à convergência figura e estado mental, todos os livros apresentaram um índice de convergência, com 34% do total de livros apresentando-se como totalmente convergentes, 52% como convergentes e 14% como pouco convergentes. Não foi encontrada nenhuma figura totalmente divergente do(s) termo(s) mental(is) envolvido(s) na narrativa. Esses resultados divergem em parte daqueles obtidos por Dyer, Shatz e Wellman (2000), os quais indicaram que sozinhas as figuras falharam para representar de modo independente conceitos de estado mental expressos no texto, com apenas um pequeno número de figuras ilustrando o texto. Para Camargo (1995), a análise da ilustração necessita focalizar os significados que decorrem não só do que a imagem representa, mas também de como ela o faz, expressando coerência entre imagem e narrativa. Ramos e Panozzo (2004) discutem o papel da ilustração não mais como um mero complemento do texto, mas como uma forma de linguagem própria, cuja função é produzir sentido, pelo diálogo que provoca com o leitor, por si mesma, como também na interação com a palavra. O alto índice de convergência entre figura e estado mental encontrado neste estudo, reflete essa condição qualitativa constituindo razão adicional para serem utilizadas como recurso promotor no domínio aqui proposto.

A ironia situacional foi identificada em 12% dos livros analisados, contemplando dois diferentes contextos: (1) quando a informação era explícita, se restringindo aos eventos apresentados ao longo do texto, com três livros denotando surpresa e cinco livros contendo um tom sarcástico; e (2) quando a ironia só poderia ser interpretada por meio de um conhecimento prévio do leitor; quatro livros se adequaram a essa categoria. Esses resultados divergem dos encontrados por Dyer, Shatz e Wellman (2000), que encontraram situações que expressavam ironia em 39% dos livros por eles analisados. Dado que a ironia, segundo esses autores, encoraja o leitor a uma perspectiva além da que é imediatamente dada, estimulando a compreensão da teoria da mente, os resultados pouco expressivos obtidos com a amostra de livros nacionais, sugerem que esse aspecto deve ser mais explorado pelos autores brasileiros.

A crença falsa foi evidenciada em 11 dos 100 livros (11%); estando presente nos seguintes contextos: (a) o envolvimento do disfarce conjugado com a pretensão de enganar o outro (presente em três livros); (b) percepção equivocada da realidade (dois livros); e (c) carência de informações (seis livros). Cassidy et al. (1998) identificaram a presença de crença falsa em 34% dos livros analisados, resultado que pode ser corroborado com os do presente estudo, embora a presença de crença falsa nos livros nacionais tenha sido evidenciada com menor freqüência. Esses autores discutem a maior freqüência de referências a estados internos em comparação à ocorrência de crença falsa justificando a possibilidade de ser mais fácil organizar uma narrativa sem crença falsa do que sem referências a estados mentais. A presença de crença falsa nos livros infantis pode auxiliar no desenvolvimento de uma teoria da mente ao estimular a metarepresentação, definida por Roazzi e Santana (1999) como a habilidade de refletir sobre modelos alternativos do mundo real como, por exemplo, a capacidade da criança de comparar as crenças falsas de outros com seus próprios conhecimentos do que aconteceu, refletir sobre seus próprios modelos mentais e sobre os modelos de outros.

Considerações finais

A realidade do sistema educacional brasileiro, com altos índices de evasão e repetência escolar, em meio a outros fatores, tem movido os psicólogos escolares a redefinir o modelo tradicional de atuação na direção de modelos alternativos mais adequados às condições socioeconômicas e culturais do país. Guzzo (2001) propõe transformações das práticas cristalizadoras acerca do desenvolvimento humano para estratégias que promovam a saúde e o bem-estar dos sujeitos, substituindo o paradigma da doença para o da saúde psicológica. Essa opção por uma atuação mais preventiva e promocional de saúde mental decorre, segundo Almeida e Guzzo (1992), de movimentos da Educação e da Psicologia, rompendo com uma visão reducionista, para lançar-se em objetivos amplos, segundo os quais a saúde mental passou a ter relevância, abarcando a responsabilidade pelo desenvolvimento integral dos educandos.

A presente investigação, embora não constitua uma proposta de intervenção, oferece subsídios práticos, na medida em que evidencia que os livros infantis nacionais analisados encontram-se repletos de termos denotando estados mentais, fazendo explícitas referências aos pensamentos, sentimentos, intenções e desejos dos personagens, indicando que as histórias infantis oferecem um rico e útil referencial para a implementação de práticas promotoras de desenvolvimento infantil em nosso contexto.

Tendo em vista que a escola constitui um dos importantes contextos para a educação e promoção da saúde, formando os recursos psicológicos necessários para um funcionamento integral da pessoa (Martinez, 1996), e que os livros de histórias infantis constituem um recurso barato e de fácil acesso, o presente estudo fornece suporte para que tanto psicólogos escolares quanto educadores possam se beneficiar do uso de livros de histórias infantis como auxílio para o desenvolvimento de competências sociocognitivas.

Embora cada vez mais os psicólogos escolares busquem formas de atuação mais preventivas e promotoras de saúde e a teoria da mente venha despertando cada vez mais interesse no contexto nacional, poucos estudos têm sido realizados no Brasil, havendo necessidade de mais pesquisas que possam, dentre outros aspectos, ampliar a gama de livros infantis nacionais pesquisados e viabilizar sua utilização no âmbito da educação infantil.

Recebido em 27.fev.07

Reformulado em 12.nov.07

Aceito em 12.mar.08

Marisa Cosenza Rodrigues, doutora em Psicologia como Profissão e Ciência, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, é docente no Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Endereço para correspondência: Praça Jarbas de Lery Santos, 37, ap. 103, Bairro São Mateus; Juiz de Fora, MG; 36016-390. Tel. (32) 3229-3117; (32) 3216-1029. E-mail: rodriguesma@terra.com.br

Jacqueline Silva Rubac é graduada em Psicologia pela UFJF. E-mail: jac_rubac@yahoo.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008

Histórico

  • Aceito
    12 Mar 2008
  • Revisado
    12 Nov 2007
  • Recebido
    27 Fev 2007
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