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O diagnóstico psiquiátrico e a produção de vida em serviços de saúde mental

The psychiatric diagnosis and life process in mental health services

Resumos

A Reforma Psiquiátrica objetiva desconstruir a relação de tutela e objetificação sustentada pelo saber/práticas psiquiátricas para com a loucura. Um dos pilares dessa relação é o diagnóstico psiquiátrico que produz efeitos importantes nas trajetórias vital e institucional dos portadores de transtornos mentais. Essa pesquisa objetivou conhecer os sentidos do diagnóstico psiquiátrico para usuários do Ambulatório de Saúde Mental na cidade de Natal/RN e os efeitos produzidos em suas vidas. Trabalhamos com observações e um roteiro semi-estruturado de entrevista. Identificamos variações na concepção do diagnóstico, alterações nas suas vidas em função do mesmo tais como a perda do trabalho, a dependência familiar, mudanças nas relações sociais, as quais são sustentadas pelo saberes médico e jurídico. Entendemos que as relações tutelares com a família e os serviços de saúde se estabelecem a partir do momento que o diagnóstico é atestado e a vida passa a ser norteada pela "existência" do transtorno mental.

reforma psiquiátrica; diagnóstico; loucura


The objective of the Psychiatric Reform is to deconstruct the tutelage relation and the objetivation produced by the psychiatric knowledge and practices regarding madness. One of the pillars of that relationship is the psychiatric diagnosis. This tool produces important life process effects, as well as institutional, amongst individuals that are diagnosed with Mental Disorders. The purpose of this work is to present a research study conducted with clients of the Mental Health Ambulatory Unit in the city of Natal, RN. The objective of the study was to identify the meanings of the psychiatric diagnoses of the clients and the effects they produce on their daily lives. Working with observations and with a semi-structured interview, we identified that the diagnosis concept varies amongst the clients and that the diagnosis alters their lives in ways such as loss of a job, family dependence and disruption of social relations, effects that are sustained by the medical and judicial knowledge. We understand that the tutelage relations with the family and the health services are established when the diagnosis is made and the life style is then oriented by the "existence" of the mental illness/disorder.

psychiatric reform; diagnosis; madness


ARTIGOS

O diagnóstico psiquiátrico e a produção de vida em serviços de saúde mental1 1 . Trabalho realizado com o apoio financeiro do CNPq.

The psychiatric diagnosis and life process in mental health services

Ana Kalliny de Sousa Severo; Magda Dimenstein

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

A Reforma Psiquiátrica objetiva desconstruir a relação de tutela e objetificação sustentada pelo saber/práticas psiquiátricas para com a loucura. Um dos pilares dessa relação é o diagnóstico psiquiátrico que produz efeitos importantes nas trajetórias vital e institucional dos portadores de transtornos mentais. Essa pesquisa objetivou conhecer os sentidos do diagnóstico psiquiátrico para usuários do Ambulatório de Saúde Mental na cidade de Natal/RN e os efeitos produzidos em suas vidas. Trabalhamos com observações e um roteiro semi-estruturado de entrevista. Identificamos variações na concepção do diagnóstico, alterações nas suas vidas em função do mesmo tais como a perda do trabalho, a dependência familiar, mudanças nas relações sociais, as quais são sustentadas pelo saberes médico e jurídico. Entendemos que as relações tutelares com a família e os serviços de saúde se estabelecem a partir do momento que o diagnóstico é atestado e a vida passa a ser norteada pela "existência" do transtorno mental.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica; diagnóstico; loucura

ABSTRACT

The objective of the Psychiatric Reform is to deconstruct the tutelage relation and the objetivation produced by the psychiatric knowledge and practices regarding madness. One of the pillars of that relationship is the psychiatric diagnosis. This tool produces important life process effects, as well as institutional, amongst individuals that are diagnosed with Mental Disorders. The purpose of this work is to present a research study conducted with clients of the Mental Health Ambulatory Unit in the city of Natal, RN. The objective of the study was to identify the meanings of the psychiatric diagnoses of the clients and the effects they produce on their daily lives. Working with observations and with a semi-structured interview, we identified that the diagnosis concept varies amongst the clients and that the diagnosis alters their lives in ways such as loss of a job, family dependence and disruption of social relations, effects that are sustained by the medical and judicial knowledge. We understand that the tutelage relations with the family and the health services are established when the diagnosis is made and the life style is then oriented by the "existence" of the mental illness/disorder.

Keywords: psychiatric reform; diagnosis; madness

A Reforma Psiquiátrica objetiva modificar as relações da sociedade com as pessoas com transtornos mentais, tentando desconstruir os estigmas de periculosidade e incapacidade historicamente construídos. Desse modo, buscamos refletir como o diagnóstico psiquiátrico perpassa as histórias dos usuários dos serviços substitutivos, já que tradicionalmente ele demarca uma relação dupla com os indivíduos diagnosticados: a de procedimentos terapêuticos violentos e de objetificação dos sujeitos2 2 . Por objetificação estamos nos referindo, conforme Basaglia (1974), à deshistoricização operada pelo modo de funcionamento próprio dos asilos sobre o louco, bem como aos efeitos institucionalizantes que acabam por "influir sobre a idéia que o doente faz de si mesmo, o qual, através desse processo, só pode comportar-se como corpo doente" (p.39). .

O diagnóstico psiquiátrico é uma ferramenta científica com a finalidade de classificar doenças através de códigos e de uma variedade de sinais, sintomas e aspectos anormais. Dalgalarrondo (2000) afirma que o diagnóstico psiquiátrico é um tema polêmico, que provoca posicionamentos opostos. Alguns autores defendem que ele serve para rotular as pessoas, legitimando o controle de pessoas "desadaptadas" ou contestadoras, e outros afirmam ser o diagnóstico imprescindível na direção do tratamento e na evolução da ciência médica acerca dos transtornos mentais.

Entretanto, apesar de tais controvérsias, é necessário, como diz Amarante (2008), formar um pensamento crítico sobre a psicopatologia, sobre como se produziram as classificações em vigor e examinar que efeitos o diagnóstico psiquiátrico tem produzido na vida concreta das pessoas. Dentro do panorama da Reforma Psiquiátrica, o que tem sido construído efetivamente a partir do uso dessa ferramenta? A partir de que bases conceituais e com que finalidade ele foi construído historicamente?

Foucault (1963/1994) indicou que as classificações nosológicas e a própria idéia de doença mental surgiram e se modificaram de acordo com mudanças sociais, políticas e de configuração dos mecanismos de poder presentes no projeto de Modernidade, perdurando até os dias atuais. A Medicina evoluiu como uma estratégia do biopoder pretendendo o controle sobre a vida por meio da manipulação e adestramento dos corpos, retirando deles cada vez mais força.

Desse modo, a partir das mudanças ocorridas com a Revolução Francesa em que se valorizava a razão humana como norteadora da vida, desenvolveu-se uma concepção de doença mental atrelada à irracionalidade, atribuindo-lhe causas como distúrbios das paixões, cujo tratamento deveria ser moral. Inicia-se, através de Pinel, as primeiras classificações nosográficas, distinguindo o louco de outros indivíduos que não se adequavam ao novo ordenameno da vida, fazendo dele alvo de discurso científico (Amarante, 1996).

A partir do século XIX, a concepção de doença mental desenvolvida pelo saber médico é entendida em uma relação de dualidade e oposição à saúde, destacando-se a bipolaridade normal e patológico (Foucault, 1963/1994). Nesse processo, a clínica médica tornou-se ciência das doenças, dos desvios e dos distúrbios. O espaço hospitalar, anteriormente tido como asilo, foi sendo medicalizado e reorganizado, proporcionando a observação contínua do doente e o acompanhamento da evolução/curso da doença, tornando exequível a observação dos sinais e sintomas do fenômeno patológico (Foucault, 1979; Silveira, 2003).

Essas transformações na clínica médica responderam às necessidades de disciplinarização social e à gestão política sobre a vida das pessoas. A Psiquiatria nasce, assim, sintonizada com esses princípios, diagnosticando "indivíduos anormais" e levando-os para serem estudados e tratados no confinamento (Rosa & Silva, 2007). Desse modo, Foucault (1984) explicita que a idéia de doença mental se consolida associada à alienação, invalidez para o trabalho, periculosidade, desajustamento social, ou seja, aos comportamentos desviantes da norma.

Ainda no fim do século XIX, outras concepções de doença mental vêm à tona, passando a vigorar a corrente organicista de pensamento, havendo uma tentativa de localização anatômica para o fenômeno da doença mental. As classificações diagnósticas passam a girar em torno dessa localização e a anatomopatologia ganha espaço em detrimento da teoria pineliana em torno da loucura (Amarante, 1996).

Já no século XX, outras correntes teóricas psiquiátricas, psicológicas e psicanalíticas surgiram na tentativa de explicar os transtornos mentais. Dentre elas, a classificação nosológico-clínica feita por Kraepelin ganha destaque, por articular as explicações dos alienistas e dos organicistas, além de explicitar como a sintomatologia de cada quadro diagnóstico poderia evoluir, criando, desse modo, a idéia de curso e de prognóstico da doença.

Atualmente, a 4ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais e a 10ª revisão da Classificação Internacional das Doenças CID-10 são os sistemas diagnósticos mais utilizados mundialmente, sendo este último adotado oficialmente nos serviços de saúde do Brasil. Esse sistema diagnóstico caracteriza-se como um esquema de codificação alfa-numérico, distribuído em 10 classes diagnósticas específicas e 1 não específica. Ele foi elaborado na perspectiva de ser integral, abrangendo as mais diversas correntes teóricas descritas anteriormente.

Percebemos, por meio desse breve percurso histórico, a tentativa de apropriação objetiva e neutra do saber médico sobre a loucura. Entretanto, diversos autores questionam esse tipo de apropriação. Nesse sentido, Basaglia (1974) questiona: "Pode-se falar em diagnóstico objetivo, fundado em alguns dados científicos concretos? Não se trata antes de um simples rótulo que – sob as aparências de um juízo técnico especializado – dissimula mais ou menos bem sua profunda significação discriminatória?" (p.43). Segundo esse mesmo autor, a instituição psiquiátrica destina-se a gestão da exclusão de uma determinada massa social, pois os valores normativos que regem o saber científico sobre a loucura baseiam-se em valores de uma classe dominante. A idéia de doença mental serve para delimitar um problema social sob a ideologia médica e social, buscando mantê-lo sob controle e mascarando as contradições sociais que a loucura aponta.

Em outro contexto, Basaglia (2005) vai afirmar que a noção de doença mental serviu para legitimar o poder do saber psiquiátrico sobre a loucura, fazendo dela alvo de violência familiar, social e institucional. Assim, o diagnóstico psiquiátrico fundamenta-se nas normas circunscritas à sociedade em que vivemos, apresentando-se como uma categorização científica de algo que foge dessa norma. Nesse sentido, o autor acima concebe os especialistas como

os novos administradores da violência do poder, na medida em que – suavizando asperezas, dissolvendo resistências, resolvendo conflitos engendrados pelas instituições – limitam-se a permitir, mediante sua ação técnica aparentemente reparadora e não violenta, a perpetuação da violência global. Sua tarefa - que se chama terapêutica orientadora – consiste em preparar os indivíduos para que aceitem suas condições de objetos de violência, dando por aceito que, além das diversas modalidades de adaptação que possam escolher, ser objeto de violência é a única realidade que lhes é permitida. (Basaglia, 1974, p. 37)

O diagnóstico, portanto, é uma ferramenta de operacionalização dessa lógica, cuja finalidade é estender os limites da exclusão, descobrindo tecnicamente novas formas de desvios, tal como é possível perceber nas constantes atualizações dos manuais de classificação de doenças. Cada vez mais vai se patologizando aquilo que escapa aos modos instituídos de viver e criando-se novas categorias diagnósticas, sempre mais flexíveis, mais permeáveis, com poder de capturar as mais tênues diferenças com relação à norma. Um exemplo disso é a ampliação da variedade de sintomas e de classes diagnósticas descritas no CID-10, onde uma das diferenças marcantes de sua versão anterior, o CID-9, é o aumento de categorias disponíveis para a sua classificação diagnóstica.

O discurso da reabilitação, tomado, na maioria das vezes, como proposta principal da Reforma Psiquiátrica, acaba por não traduzir efetivamente o objetivo da desinstitucionalização defendida por Basaglia, sendo perpassado pelo ideal de normalização da loucura através da clínica centrada no diagnóstico e da produção de modos de vida que buscam recompensar uma suposta falta existente no louco diante do homem ideal de saúde perfeita (Coelho & Fonseca, 2007).

A partir do discurso do biopoder, o controle sobre a vida se dá através da criação de desejos de formas idealizadas de identidade subjetiva de ser saudável, exigindo uma autoconsciência em torno da saúde. Criam-se modelos ideais de sujeito, com "novos valores com base em regras de higiene e regimes de ocupação de tempo" (Ortega, 2004, p. 15). Esses modelos de identidade ideais acabam por ser percebidos como modos verídicos de formas de ser, de exercer a vida para se ter saúde, substituindo uma pluralidade de formas de existir (Hardt, 2000). O biopoder age como um discurso de verdade que busca homogeneizar as diferenças. Desse modo, formas práticas de vida são estruturadas a partir do discurso do auto-cuidado, do gerenciamento de si para se ter uma boa saúde. As diferenças são colocadas em termos de "bioidentidades sociais, construídas a partir de uma doença determinada" (Ortega, 2004, p. 16). Nessas bioidentidades, o sujeito percebe-se portador de déficits através dos diagnósticos médicos.

Trata-se, na verdade, de um processo de normatização social que diz respeito ao modo como vivemos e nos organizamos cotidianamente. Pelbart (2002) explica que, na sociedade atual, consumimos mais do que "bens materiais, conteúdos culturais, mais do que produtos concretos, formas de vida" (p. 252). Consumimos, também, formas de ser, de amar, de transformar, de criar, modos de sentir, de agir, de pensar, etc, por meio de uma circulação constante de bens e informações, de capitais e de pessoas. A condição de exclusão nessa sociedade é demarcada pelo consumo ou não dessas formas de vida padronizadas. A relação da sociedade com a loucura, bem como do louco consigo mesmo, são atravessadas pelos modos de exclusão vigentes na contemporaneidade. Dessa forma, faz-se necessário questionar o uso de um aparato técnico que se pretende neutro e verídico, mas que possui suas raízes fincadas em um sistema social, econômico e político extremamente excludente, produtor de saberes, dentre os quais o psiquiátrico, que operam para a salvaguarda de seus interesses e da regulação da vida. Assim, a quem ele serve? Quais processos de subjetivação o sistema clínico baseado no diagnóstico e tão presente nos serviços substitutivos engendram?

A vivência da experiência da crise e as representações em torno da doença serão determinantes na busca do sujeito por um determinado modo de tratamento. Estudos nesse campo enfatizam a necessidade de se compreender a realidade cultural e singular do usuário para ampliar a oferta de recursos terapêuticos para dos recursos medicamentosos (Bezerra Júnior, 2001; Fonseca, 2008).

A partir da proposta de desinstitucionalização, das mudanças materializadas para corresponder a essa proposta e dos movimentos constitutivos dos processos de produção de vida, objetivamos, aqui, mapear modos de existência que são criados a partir das histórias de vida marcadas pelo diagnóstico de transtorno mental. Em outras palavras, realizamos um estudo através do qual buscamos: (1) conhecer o que os usuários de serviços substitutivos pensam do diagnóstico de transtorno mental; (2) mapear as implicações que o diagnóstico psiquiátrico teve em suas vidas; (3) conhecer como o diagnóstico repercute nas práticas cotidianas desses usuários.

Método

Esse estudo é predominantemente qualitativo e, por meio deste, a elaboração do desenho metodológico processou-se de acordo com a interação do pesquisador com o campo. Na pesquisa, as trocas efetivadas com o campo permitiram a reconstrução do referencial teórico e dos procedimentos metodológicos, compreendendo-se, desse modo, que a "investigação implica a emergência do novo nas idéias do investigador, processo em que o marco teórico e a realidade se integram e se contradizem de formas diversas no curso da produção teórica" (González Rey, 1998, p. 42).

A pesquisa foi desenvolvida no Ambulatório de Saúde Mental da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico da cidade de Natal/RN ao longo do ano de 2007. Na ocasião, pudemos ter contato com os usuários em diversas atividades, podendo observar e ser co-participantes desses momentos, condição que permitiu perceber os conflitos, avanços, retrocessos e estagnações no cotidiano de cada usuário. No processo de investigação, estabelecemos uma relação interativa com o campo e com a população participante, dimensão essencial na construção de conhecimento.

Participantes

Quatro usuários do referido serviço foram escolhidos para a realização desta investigação, a partir dos seguintes critérios: ser participante de duas ou mais atividades desenvolvidas no serviço, dentre elas o grupo terapêutico; existência de histórico de internações psiquiátricas anteriores; usuários fora de crise psiquiátrica; disponibilidade em participar das entrevistas. A justificativa para tal escolhe parte da perspectiva de que se atribui importância à singularidade no processo de investigação de âmbito qualitativo (González Rey, 1998).

Instrumentos

Foram utilizados dados disponíveis nos prontuários do serviço sobre esses usuários que continham informações acerca de suas histórias clínicas. Também foram realizadas entrevistas a partir de um roteiro semi-estruturado constituído de pontos pré-formulados, cuja ordem das questões pôde variar no decorrer do processo, em função das colocações feitas pelos entrevistados. As questões relacionaram-se ao momento da primeira crise, à compreensão em torno do diagnóstico psiquiátrico, às repercussões da primeira crise e do diagnóstico para suas vidas, entre outras. A entrevista foi utilizada com a perspectiva de estimular a expressão e a construção de reflexões pelo entrevistado, permitindo ir além das possibilidades definidas a priori e buscando a emergência de temas e fatos novos (González Rey, 1999).

Procedimentos

Foi solicitada autorização para o exame dos prontuários à equipe do Ambulatório de Saúde Mental. Com essa permissão, selecionaram-se os participantes de acordo com os critérios citados anteriormente. Esses usuários foram contactados para a realização da pesquisa, sendo feitos esclarecimentos e pedidos de autorização para a participação. As entrevistas foram realizadas com dois usuários em seus domicílios contando com a participação dos familiares e com outros dois nos espaços do serviço. As entrevistas foram gravadas, ouvidas e, posteriormente, analisadas com base em categorias construídas no processo de interpretação dos dados.

Resultados e análise

Perfil

Dos quatro participantes, três são do sexo masculino e um do sexo feminino, cuja faixa etária está entre 40 e 60 anos. O nível de escolaridade dos usuários é variável, desde primeiro grau incompleto até segundo grau técnico. A maioria é natural da cidade de Natal. Quanto à história clínica, os dados presentes nos prontuários demonstram que os diagnósticos são G 40, doença convulsiva e, em sua maioria, F 20.0, esquizofrenia (Organização Mundial da Saúde, 1993). Foram internados, em média, cinco vezes ao longo da vida. A história clínica relacionada aos diagnósticos psiquiátricos iniciou-se, para a quase todos, em torno dos 20 anos de idade.

As práticas cotidianas e a eclosão da crise

Todos os usuários relataram alguma relação da crise psiquiátrica com as suas experiências cotidianas, destacando ora atividades que desencadearam as crises psiquiátricas, ora atividades que foram impossibilitadas após as crises.

Atividades exercidas que provocaram a crise. Os usuários relataram associações da primeira crise ao modo como vivenciaram péssimas condições de trabalho por longas horas ininterruptas de fome, insônia e forte pressão emocional. Percebemos, através desses casos, a permanência de um sistema de exclusão nascido a partir do século XVIII, segundo o qual aqueles que não se adequavam ao regime industrial e à modernidade foram colocados nos asilos, e as codificações científicas trataram de traduzir isso em anormalidade, comportando e mascarando as relações de exploração e dominação presentes na sociedade capitalista (Basaglia, 2005).

Esse processo equivale ainda ao que Basaglia (2005) aponta como sendo uma racionalização de um problema mediante sua delimitação dentro de uma ideologia médica e social que o mantenha sob controle reduzindo a ameaça social que ele comporta. As formas normatizadas de trabalho, a exploração excessiva dos corpos, a exploração do homem pelo homem, são mascaradas através desse processo de racionalização. O controle das atividades, dos movimentos, da contagem do tempo são tomados como formas normais aos quais os corpos naturalmente devem se adaptar.

Não queria chegar depois no trabalho, queria chegar antes e não depois. Só que me compliquei todo. Pra num chegar atrasado perdi minha vida inteira (...) Porque não deu tempo, não cheguei a assumir o trabalho nesse dia, caí no meio da rua, deu agonia e uma dor no corpo. Sentia a perna dormente. (JM)

Transformações na vida após as primeiras crises psiquiátricas. Todos os usuários relataram mudanças no exercício de suas atividades depois da crise psiquiátrica. Essas alterações consistiram na saída do mercado de trabalho e impossibilidade de retorno. Apesar das condições de trabalho estarem associadas às primeiras crises, o alvo das intervenções torna-se o próprio indivíduo. A disciplinarização dos espaços ocorre na medida em que o indivíduo que não se adapta às normas prescritas acaba sendo colocado à margem do processo produtivo. O diagnóstico justifica esse tipo de prática, na medida em que restringe a termos sintomatológicos os problemas gerados a partir dessas condições de trabalho. Os corpos que "resistem" às normas do processo produtivo vigente são retirados do trabalho, classificados como incapazes, doentes e necessitados de correção/cura. Desse modo, devemos (re)pensar, constantemente, qual a função dos serviços substitutivos diante de uma lógica social que sustenta relações de exclusão para com a loucura e para com o sofrimento em prol de um ordenamento social naturalizado.

Além disso, alterações na vida da família também se apresentam. Os recursos financeiros antes disponibilizados pelo indivíduo agora não existem, devido ao afastamento do mercado de trabalho. O envolvimento afetivo dos familiares, a responsabilização da família nuclear pelo cuidado, o distanciamento e a não aceitação de outros membros da família sobrecarregam os cuidadores diante das situações de crise (Rosa, 2003). As expectativas de vida são desfeitas e as práticas cotidianas movimentam-se em função da crise psiquiátrica que é perpetuada pela bioidentidade de ser uma pessoa doente e de ter que executar práticas em função de ter saúde. Uma usuária, ao relembrar sua história de vida depois das crises psiquiátricas explica:

A família estranhou porque teve que pagar remédios muito caros. Todos se afastaram de mim, depois que eu fiquei doente todos se afastaram. Hoje em dia não tenho mais amigo, só tenho minhas primas, minhas irmãs, mas amigo mesmo eu não tenho nenhum (...) Eu senti uma pessoa sem valor, sei lá... Uma pessoa que só toma remédio... Aí pra ter amizade fica difícil, as amigas se afastaram (...) Hoje em dia o pai do meu filho vai lá em casa, deixa as coisas do menino, e ele mesmo disse que não me queria porque eu tomava remédio. Ele me rejeitou por conta disso (...) Disse que não queria uma mulher doente. (S)

A saída do trabalho, o isolamento social, o consumo incessante de psicotrópicos, a dedicação do tempo e das atividades diárias aos serviços substitutivos consistem em práticas de auto-cuidado que devem ser assumidas pela pessoa com transtorno mental e que, muitas vezes, inviabilizam outros tipos de produção de vida, por serem práticas inquestionáveis justificadas pela racionalidade médico-psiquiátrica. O biopoder exerce regimes de verdade sobre o corpo e sobre a vida.

Além disso, Bezerra Júnior (2001) analisa a clientela de Ambulatórios de Saúde Mental e reafirma o quanto a noção de doença mental se distingue de acordo com a classe econômica. Na classe trabalhadora, a noção de saúde está atrelada à possibilidade de trabalhar, o que alarga as fronteiras do que seja saúde e retarda a procura por serviços de saúde se comparado à realidade da classe média que a compreende a saúde como bem-estar.

A concepção do diagnóstico psiquiátrico

As indicações das crises acima citadas, associadas às atividades de trabalho excessivo são reduzidas aos sintomas psicopatológicos através do diagnóstico de transtorno mental. Identificamos uma concepção mecanicista de doença enraizada no paradigma cartesiano através da busca uma causa orgânica para os problemas mentais apresentados. Exames de alta complexidade foram executados e os próprios usuários compreendem o transtorno mental associado a um distúrbio orgânico, sendo tal concepção atravessada pelo modo como se compreende as doenças de modo geral.

A noção de causalidade psíquica nas classes populares que procuram o tratamento ambulatorial pressupõe algo da ordem do científico, do somático, em detrimento do exame psíquico introspectivo comum nas classes médias altas (Bezerra Júnior, 2001). Os códigos culturais e linguísticos são diferenciados acentuando ainda mais a dificuldade de compreensão acerca do diagnóstico. Desse modo, o medicamento é o principal recurso terapêutico buscado por essa população, por compreendê-lo como algo que agirá sobre o corpo doente e que possibilitará o retorno das atividades anteriormente exercidas como o cuidado dos filhos e do exercício do trabalho. A demanda por tratamento deve ser compreendida pelos terapeutas como algo expresso através de códigos culturais diferenciados, alargando as possibilidades de intervenção para além do recurso medicamentoso e dos exames laboratoriais.

Entretanto, o que percebemos é o predomínio da imprecisão do diagnóstico psiquiátrico já que não se encontra uma correspondência orgânica e nem uma explicação causal para os transtornos mentais (Rotelli, de Leonardis, & Mauri, 2001). Sobre isso, um usuário conta que "fez um eletro e não acusou nada", afirmando ter "deficiência mental" (JV). A inexistência da objetividade do diagnóstico dado o faz recorrer à categoria da deficiência, ou seja, a uma falta encontrada em si mesmo. Muitos questionamentos surgem a partir do distanciamento do diagnóstico psiquiátrico da realidade cotidiana, onde os sintomas associados à materialidade da vida cotidiana, como as condições precárias e excessivas de trabalho, transforma-se em um diagnóstico impreciso, distante da realidade dos entrevistados, e a doença parece ser um corpo estranho que se apropriou desses sujeitos: "Dr. A. falou que era esquizofrenia tipo mista, ele não falou o que é que era. O que é uma pessoa esquizofrênica? É uma pessoa que perde a memória? Então não sei o que é que é (JV)."

Basaglia (2005) explica que no momento da observação médica o louco é objetificado, pois, anteriormente, seus comportamentos são "uma presença contraditória na realidade" (p. 146) e as pessoas ao seu redor ainda esperam uma mudança e cobram isso dele. Após o diagnóstico, há uma autorização para a regressão, em que existe a reafirmação de que algo se apropriou de seu corpo e que o deixou doente, tornando-o objeto de intervenções.

Essa concepção de doença adotada pela Medicina se inspira no paradigma mecanicista cartesiano, no qual o organismo é concebido como uma máquina, dividida em peças-órgãos, e funcionando de modo mecânico. A vertente organicista da Psiquiatria busca encontrar um órgão que esteja gerando mal-estar para intervir nesse "defeito" (Pessotti, 1996).

Mesmo entre usuários de serviços substitutivos, o diagnóstico persiste como um definidor de uma normalidade/anormalidade, orientação/desorientação, sendo a loucura tida como alteração quantitativa em relação à normalidade, de acordo com as exigências normatizadas para o convívio social, bem como daquilo que se veicula como sendo ideal de homem saudável. O usuário, a seguir, expressa uma compreensão hierarquizada de modos de ser e de agir, definindo características comportamentais quantitativas, que seriam determinantes para o diagnóstico psiquiátrico: "E essa quantidade de tempo que faço tratamento, isso é esquizofrenia? Ela disse: não A., é diferente, você é um paciente orientado, ela falou (...) você é mais orientado, não chega a esse ponto não (A)."

Faz-se necessário que os usuários passem a compreender a doença ou os sintomas como um problema, como uma experiência que exige crítica e reflexão, vivenciado-a como resultante de uma série de determinações que podem ser acessíveis a seu conhecimento (Bezerra Júnior, 2001).

Benefícios de tecnologias médicas diferenciadas

As entrevistas apontam para a importância da relação com o médico e de alguns procedimentos como o diálogo com o paciente e com a família, o vínculo duradouro, a disponibilidade em examinar as outras áreas da vida na execução e elaboração dos procedimentos terapêuticos. Os usuários explicitam nas narrações de suas histórias nomes de profissionais, sejam de psiquiatras ou de outras especialidades, e os modos de atendimento que priorizavam a atenção aos problemas familiares e ao trabalho diante das primeiras crises e internações psiquiátricas marcantes, afirmando a potência de superação do sofrimento quando as outras áreas da vida, para além do diagnóstico sintomatológico, são examinadas.

Sobre isso, Rotelli, de Leonardis e Mauri (2001) enfatizam que o cuidado em saúde mental deve buscar efetivar mudanças no modo como o usuário vive, buscando intervir no cotidiano e, consequentemente, transformando as situações concretas associadas às vivências de sofrimento. Nesse tipo de intervenção, o médico assume a responsabilidade de ajudar a vida do usuário, auxiliando-o a vivenciar o adoecimento como um momento de reconstrução e de mudança.

Procedimentos terapêuticos

Internações. Aspectos negativos são relatados quando se fala em internação psiquiátrica: queixas quanto ao longo tempo de internação, do distanciamento dos familiares, da violência sofrida nesse período, e da produção de comportamentos associados à doença mental.

A ocorrência de internações psiquiátricas foi justificada, inicialmente, a partir da necessidade do isolamento como recurso terapêutico, sob cuja perspectiva a família era tomada como prejudicial à saúde dos indivíduos. Ao mesmo tempo, afirmava-se que esse isolamento era necessário para proteger a sociedade do sujeito "desviante". A clínica psiquiátrica fundada a partir de Pinel justifica as internações como método de tratamento e de cura para a alienação mental, pois, é a partir daí que se restituirá a liberdade para o sujeito que está fora de sua própria razão.

Pinel inscreve-se nessa mesma ordem, ao propor a liberdade dos loucos que, embora liberados das correntes, devem ser submetidos a um tratamento asilar, sob um regime completo de isolamento. Este, no entanto, não significa a perda de liberdade, pois, muito pelo contrário, é o tratamento que pode restituir ao homem a liberdade subtraída pela alienação (Amarante, 1996, p. 41)

As justificativas de isolamento postas pelo discurso psiquiátrico são invalidadas a partir dos relatos, pois demonstram o sofrimento presente a partir desse isolamento. Ao mesmo tempo em que o indivíduo é isolado objetivando-se a cura, percebemos que os próprios procedimentos terapêuticos utilizados nas internações psiquiátricas permanecem a reproduzir a violência, gerando mal-estar e mais doenças:

No primeiro internamento, me deram choque, e eu tomava muito remédio (...) sentia muita dor de cabeça, tontura, muito calor no corpo (...) Horrível, muito sofrimento, batem na pessoa, a pessoa não pode nem dormir, eu lembro que minha chinela, quase todo dia minha mãe levava um par de chinelos, quando eu me acordava já não estava mais, eles carregavam que eu nem sentia (...) eu era amarrada porque eu não ficava quieta, não queria tomar injeção. (S)

Outro usuário explica: "Eu peguei esses internamentos todinhos (...) agressão, tive que agredir por ter sido agredido dentro do hospital, roubos dentro do hospital (JM)".

Apesar de o discurso psiquiátrico ter sustentado que o asilo era um espaço de cura, a produção da doença mental articula-se no interior desses espaços. A associação de comportamentos patológicos atribuídos à loucura foi produzida no confinamento em hospitais psiquiátricos, e dentre esses podemos destacar a violência (Amarante, 1996). Essa crítica é um dos pilares principais da Reforma Psiquiátrica em relação aos hospitais psiquiátricos. A força física foi utilizada pela Psiquiatria em tais estabelecimentos com a finalidade de corrigir comportamentos, adestrar o corpo, inscrevendo nele uma auto-anulação (Foucault, 1963/1994). Entretanto, apesar desses aparelhos produzidos a partir do séc. XIX terem por finalidade a cura, eles produzem sensação de mal-estar, inscrevem no corpo uma anulação, um adestramento.

O uso de instrumentos terapêuticos que o usuário desconhecia, o lugar de sujeição por ser considerado um "incapaz" de falar de si e de deter meios que auxiliassem no tratamento, a desconfiança/crítica acerca do saber médico utilizado, foram fatos marcantes em uma das experiências relatadas. Podemos afirmar que o estado de internação é de máxima objetificação do sujeito prevalecendo a ética da tutela praticada pela Psiquiatria com o objetivo de controle dos comportamentos tidos como desviantes, baseando-se em uma relação de saber-poder de um especialista sobre o usuário (Costa, 1996).

A permanência de uma relação terapêutica fundamentada nos princípios biomédicos que valorizam o saber do profissional em detrimento das experiências do usuário, fortalece uma relação hierarquizada onde só o médico sabe aquilo que é importante para a saúde tornando o usuário objeto passivo de intervenções e desapropriado de saber sobre sua própria vida. A escolha desse tipo de procedimento terapêutico é resultado de uma concepção de demanda psiquiátrica resultante de distúrbios somáticos ou psicológicos (Bezerra Júnior, 2001).

Medicamentos

O relato de uso de psicotrópicos aparece constantemente no discurso dos entrevistados, relacionando-se principalmente à manutenção da normalidade, evitar o aparecimento de alguns sintomas e o destaque ênfático da necessidade de se tomar a medicação. O uso da medicação emergiu como prática constante e eficaz para os transtornos mentais principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, período em que as Reformas Psiquiátricas permitiram a saída da loucura dos hospitais psiquiátricos. O largo uso dos neurolépticos, com a capacidade de reduzir os sintomas psicóticos, permitiram à Psiquiatria manter o seu mandato social sobre a loucura, "agindo como embaixatriz social das normas dominantes na sociedade" (Silva Filho, 2001, p. 96). Pelo uso dos medicamentos, vemos a atualização da objetificação do louco, e dos ideais de normalidade que regem a sociedade: "Hoje eu levo uma vida normal, tomando a medicação (...) Faz 32 anos que eu tomo a medicação. Eu não posso viver sem essa medicação (A)."

Para o usuário, a medicação constitui a própria condição para se viver, permitindo a condição de normalidade no meio social: "Eu me conscientizei e até hoje tomo a medicação. Eu sou louco pra tomar medicação, porque seu sei que tenho necessidade da medicação (A)." A autoconsciência indica um auto-cuidado, uma auto-vigilância, para manutenção da normalidade. Em uma sociedade atravessada e constituída pelo biopoder, o auto-cuidado é regido pelos ditames fornecidos pelo modelo biomédico, por meio do qual, partindo de uma identificação biológica se estabelecem formas de vida ideais correspondentes a isso (Menezes, 2002). O uso de psicotrópicos constitui uma prática necessária na vida desse usuário, de acordo com a bioidentidade de ser portador de transtorno mental.

A partir deste "ideal de saúde", propagado pela indústria médica, qualquer sinal de dor é visto como ultrajante e, portanto, como devendo ser aniquilado; qualquer diferença em relação ao ideal é vista como um desvio, um distanciamento maior e, insuportável, da perfeição colimada, devendo ser "corrigida" (Martins, 2005).

Além disso, a medicalização constitui uma estratégia da biopolítica, fazendo-se uma ferramenta de assujeitamento, pois o sofrimento não se torna objeto de reflexão e de produção de novas formas de ser e de transformação social (Ignácio & Nardi, 2007).

Os usuários buscam a medicação como recurso terapêutico essencial nas suas vidas por acreditar que ela restabelecerá a normalidade anteriormente perdida. Entretanto, o médico precisa utilizar esse tipo de demanda pela medicação como um momento de acesso a outro código cultural em relação ao adoecimento que é diferente do seu, da sua formação, buscando viabilizar outras estratégias de cuidado (Bezerra Júnior, 2001).

Estratégias médicas e jurídicas produzindo exclusão da loucura

O afastamento definitivo das atividades anteriores se dá a partir de ordens médicas e jurídicas, legitimando práticas de exclusão e de violência contra a loucura. A crise é um momento de sofrimento acentuado pelo modo como a sociedade lida com a loucura. Dois usuários destacam as conseqüências negativas das práticas médicas, legitimadas pelo diagnóstico, e as práticas jurídicas, pela via dos mandatos judiciais designando a periculosidade do portador de transtorno mental. Um dos usuários (JV) trabalhava na Polícia Militar e, após sua primeira crise psiquiátrica, foi avisado de que não tinha condição de portar arma (sic). Mesmo assim, foi enviado a uma missão com porte de arma, e, no retorno dessa missão, no ônibus de madrugada, lhe roubaram a arma. Vai a julgamento e a perícia médica diz que ele não tinha condição de responder pelos seus atos (inimputabilidade) no momento do acontecido. Entretanto, o promotor de justiça pediu uma internação em um hospital de custódia no período de um ano, justificando que ele era perigoso para a sociedade. "Teve de ficar no meio de marginais, estupradores, degoladores, no hospital de custódia (...) Tudo começou por aí (Familiar de JV)." A condenação judicial e a internação em um manicômio judiciário geraram muito sofrimento para ele e sua família.

A loucura foi, tradicionalmente, estigmatizada como (des)razão e periculosidade, de modo que sua relação com a sociedade continua, ainda hoje, atravessada por essa noção, sendo justificada e produzida pelos mecanismos jurídicos. Modificações jurídicas em relação à loucura foram constituídas a partir da Lei Paulo Delgado, aprovada em 2001, que traz, entre outros pontos, o respeito e a garantia da cidadania dos portadores de transtornos mentais. Entretanto, as questões relacionadas à interdição do paciente representam, em muitos casos, uma limitação na vida dos usuários. O Ministério da Saúde aponta para a necessidade de superação do estatuto de tutela (mecanismo de proteção legal que se baseia na noção de incapacidade civil e irresponsabilidade penal do portador de transtorno mental) que deve ser feito, principalmente, a partir das ações dos serviços substitutivos, para reverter o fenômeno da exclusão social relacionado à loucura durante séculos (Conselho Nacional de Saúde, 2002).

A partir das entrevistas realizadas, percebemos que o diagnóstico psiquiátrico é utilizado como um mecanismo que sustenta, ainda, essa limitação do usuário na sociedade. A relação estabelecida entre loucura e violência, apesar de tentar fornecer o estatuto de inimputável (irresponsável) como mecanismo de proteção, em muitas vezes não funciona, permanecendo ainda o estigma da violência como divisor entre o indivíduo e o social. Outro usuário fez um concurso seletivo e, diante da aprovação nas provas escritas, no exame de sanidade mental, é reprovado. O nome dele foi marcado por ele mesmo no Diário Oficial, atestando a aprovação. "Uma doutora explicou, que problema de armas de fogo, de passar a noite sem dormir, não podia (A)."

A condição de ser portador de transtorno mental limita o usuário acima no exercício da função de vigilante. Percebemos que nos dois casos as questões se entrecruzam. No primeiro, o usuário JV afirma que teve sua saúde mental prejudicada pelas condições de trabalho, de permanecer em vigilância por várias horas de sono, com fome, e, no segundo caso, A é impossibilitado de exercer essas atividades pela justificativa de diagnóstico de transtorno mental. Questionamos aqui se o problema não estaria no modo como essas atividades são exercidas, em vez de o problema estar nos sujeitos que as executam. O diagnóstico psiquiátrico, fornecido pelas ciências médicas e psicológicas, e o estatuto jurídico de periculosidade dado à loucura sustentam essa lógica de culpabilização desses sujeitos, excluindo-os dessas atividades.

Considerações finais

Com base nas experiências analisadas, percebemos a vigência de uma concepção mecanicista de doença mental, enraizada no paradigma cartesiano, o qual busca uma localização no corpo para a doença.

A disciplinarização da vida torna-se evidente na medida em que o indivíduo que não se adapta às normas prescritas nos diversos estabelecimentos acaba por ser substituído e ser colocado à margem do processo produtivo. Sobre isso, Basaglia (2005) afirma que as codificações científicas, desde o séc. XVIII, trataram de traduzir comportamentos diferentes dos exigidos pelo processo produtivo em anormalidade, comportando e mascarando as relações de exploração e dominação presentes na sociedade capitalista.

Nossa sociedade atual prefere definir-se como 'doente' a reconhecer nas próprias contradições o produto do sistema no qual se baseia. Em certo sentido, a doença desresponsabiliza tanto a sociedade quanto o indivíduo; o terreno das competências torna-se confuso, sobretudo se a doença conserva em si uma parte obscura da culpa, e a culpa, um indício de doença. (Basaglia, 2005, p. 148)

A partir dessa culpabilização que recai sobre a doença e que se situa no próprio indivíduo, as expectativas de vida antes da crise psiquiátrica são desfeitas, e as práticas de vida movimentam-se em função da nova condição. Isso é perpetuado pela bioidentidade de ser uma pessoa doente e de produzir a vida em função da busca de uma normalidade. A pessoa com transtorno mental inicia sua carreia de institucionalização ao infringir normas sociais, e paga em nome de um ideal de normalidade e de bem-estar (Basaglia, 2005). Essa carreira inclui não apenas a institucionalização definida dentro dos hospitais e serviços de saúde, mas no meio social onde existe estigma que produz formas de vida em função dele. É o que Ortega (2004) fala sobre a constituição de grupos biopoliticamente organizados em função da bioidentidade, que visa suprimir deficiências para seguir a mesma lógica social de ser indivíduo autônomo e com liberdade. "De fato, ganhamos autonomia para nos vigiarmos, a autonomia e a liberdade de nos tornarmos peritos, experts de nós mesmos, da nossa saúde, do nosso corpo" (p. 17). Os serviços substitutivos produzem, constantemente, "usuários peritos", que podem administrar a sua medicação, cuidarem de si, serem autônomos, mas é necessário questionar o modo como a sociedade se estrutura nesse ideal de bem-estar e de eliminação das diferenças. Faz-se necessário pensar o modo como se cuida do mal-estar dos indivíduos na contemporaneidade, verificando a responsabilidade dos danos gerados a partir dos modos de vida e de produção capitalista presentes na sociedade.

Brasil (1996), ao criticar a busca de resolutividade de todas as questões através do modelo biomédico, evidencia que não há uma efetiva produção de saúde sem transformações sociais. Através do diagnóstico, o sofrimento do homem gerado a partir de questões relacionadas às suas condições de vida é mascarado e vira um problema individual e natural, em que a única solução a ser dada serão os recursos terapêuticos ligado aos saberes médicos, e, no caso dos problemas mentais, dos saberes "psi".

A partir dessa racionalização dos problemas, o indivíduo é colocado sob uma relação de tutela para com o médico e para com o social. Costa (1996) evidencia que a prática psiquiátrica pode estar sendo regida pela ética da tutela, segundo a qual

O indivíduo é privado de razão e de vontade a partir de dois pontos de vista: em primeiro lugar, pela descrição fisicalista da maneira como ele se apresenta; ou seja , digo que tal e qual manifestação da conduta da pessoa tem uma causa fisiológica que escapa à razão e à vontade do sujeito. Número dois: ele também é privado de razão e de vontade não só pelas causas mas pelas consequências jurídico-legais dos seus atos (...) Porque ele possui um distúrbio ou apresenta uma conduta de origem biológica subjacente seus atos são lesivos ao meio em que vive e, consequentemente, ele é tido como incapaz ou irresponsável pelo que faz. (p.29)

No panorama da Reforma Psiquiátrica brasileira atual, objetiva-se, além da questão da reinserção social da pessoa com transtorno mental, novos modos da sociedade lidar com a loucura. Diante das experiências apresentadas, percebemos que a relação de tutela e objetificação do louco são sustentadas, principalmente, pelo diagnóstico psiquiátrico, que se apresenta como determinante no modo como a sociedade está lidando com a loucura. Desse modo, faz-se necessário tomar o diagnóstico psiquiátrico não mais como um divisor de águas, uma referência identitária para o sujeito que vai determinar todas as práticas subjetivantes em torno das questões do auto-cuidado, mas tomar o diagnóstico como um momento de análise em torno da situação de vida e do contexto sócio-cultural do usuário que precisa ser cuidado. "É inconcebível querer abordar ou resolver as questões decorrentes do sofrimento humano sem colocá-las em todos os níveis, dentro dos seus contextos sócio-culturais" (Brasil, 1996, p. 23).

O diagnóstico psiquiátrico deve ser um instrumento que sirva muito mais para nortear a prática de cuidados que valorizem a produção de subjetividades singularizadas do que uma ferramenta para constituir uma identidade subjetiva para o sujeito, massificando-o e produzindo subjetividades assujeitadas (Miranda, 2000). Para isso, é necessário abordar a questão da relação loucura e sociedade e as práticas médico-jurídicas que sustentam essa relação como uma questão política e social. Como propõe Ortega (2004) a partir do pensamento de Heller: "é a politização da questão social o que salvaria de tratar as mesmas questões biopoliticamente" (p. 17). A politização com o sentido de discutir, debater, decidir os diversos assuntos nos espaços públicos, ao contrário da reunião de grupos a partir de bioidentidades que se situam apenas no nível de reinvindicações da ordem social instituída (Ortega, 2004). A Reforma Psiquiátrica precisa refletir sobre a clínica fundamentada no diagnóstico psiquiátrico que se tem constituído nos estabelecimentos substitutivos tentando desonstruir a relação de desigualdade social da sociedade com a loucura.

Notas

Recebido em 20.fev.08

Revisado em 20.fev.09

Aceito em 15.abr.09

Ana Kalliny de Sousa Severo, graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é aluna do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma universidade. Endereço para correspondência: Rua Pintor Rodolfo de Amoedo, 528 (Pitimbú); Natal, RN; CEP: 59.069-150. Telefone: (84) 8813-9859. E-mail: kallinysevero@yahoo.com.br

Magda Dimenstein, doutora em Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora no Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: magda@ufrnet.br

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  • 1
    . Trabalho realizado com o apoio financeiro do CNPq.
  • 2
    . Por objetificação estamos nos referindo, conforme Basaglia (1974), à deshistoricização operada pelo modo de funcionamento próprio dos asilos sobre o louco, bem como aos efeitos institucionalizantes que acabam por "influir sobre a idéia que o doente faz de si mesmo, o qual, através desse processo, só pode comportar-se como corpo doente" (p.39).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Aceito
      15 Abr 2009
    • Revisado
      20 Fev 2009
    • Recebido
      20 Fev 2008
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