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Práticas educativas coercitivas de mães de diferentes níveis socioeconômicos

Coercive childrearing practices in mothers from different socioeconomic levels

Resumos

Este estudo comparou o uso de práticas coercitivas em mães de diferentes níveis socioeconômicos. Participaram do estudo 40 mães com filhos na faixa etária de 5 a 6 anos de ambos os sexos. Vinte mães eram de nível socioeconômico baixo e 20 mães eram de nível socioeconômico médio/alto de acordo com os critérios de Hollingshead. As mães responderam uma ficha de dados sociodemográficos e uma entrevista estruturada sobre práticas educativas maternas. Os resultados indicaram que as mães de nível socioeconômico baixo apresentaram maior frequência média de respostas na categoria punição física. Discutem-se as relações entre as variáveis sociodemográficas e as práticas coercitivas, destacando-se o efeito da escolaridade na maior variabilidade de repertório materno para a regulação do comportamento infantil.

coerção; práticas educativas parentais; nível socioeconômico


The present study compared coercive childrearing practices between mothers of different socioeconomic status. Participants in the study were 40 mothers of children of both sexes, aged 5 to 6 years. Twenty mothers were of low socioeconomic status, and twenty mothers were of medium/high socioeconomic status according to the criteria established by Hollingshead. The mothers were administered a sociodemographic data form and were interviewed about childrearing practices. The results indicated that the mothers of low socioeconomic status exhibited a greater average frequency of responses in the corporal punishment category. The relations between sociodemographic variables and coercive practices are discussed, emphasizing the effects of schooling on the greater variability in the maternal repertoire for regulating child behavior.

coercion; parental childrearing practices; socioeconomic level


ARTIGOS

Práticas educativas coercitivas de mães de diferentes níveis socioeconômicos

Coercive childrearing practices in mothers from different socioeconomic levels

Paulo Henrique Barbosa do CarmoI; Patrícia AlvarengaII

IFaculdade Metropolitana de Camaçari

IIUniversidade Federal da Bahia

RESUMO

Este estudo comparou o uso de práticas coercitivas em mães de diferentes níveis socioeconômicos. Participaram do estudo 40 mães com filhos na faixa etária de 5 a 6 anos de ambos os sexos. Vinte mães eram de nível socioeconômico baixo e 20 mães eram de nível socioeconômico médio/alto de acordo com os critérios de Hollingshead. As mães responderam uma ficha de dados sociodemográficos e uma entrevista estruturada sobre práticas educativas maternas. Os resultados indicaram que as mães de nível socioeconômico baixo apresentaram maior frequência média de respostas na categoria punição física. Discutem-se as relações entre as variáveis sociodemográficas e as práticas coercitivas, destacando-se o efeito da escolaridade na maior variabilidade de repertório materno para a regulação do comportamento infantil.

Palavras-chave: coerção; práticas educativas parentais; nível socioeconômico.

ABSTRACT

The present study compared coercive childrearing practices between mothers of different socioeconomic status. Participants in the study were 40 mothers of children of both sexes, aged 5 to 6 years. Twenty mothers were of low socioeconomic status, and twenty mothers were of medium/high socioeconomic status according to the criteria established by Hollingshead. The mothers were administered a sociodemographic data form and were interviewed about childrearing practices. The results indicated that the mothers of low socioeconomic status exhibited a greater average frequency of responses in the corporal punishment category. The relations between sociodemographic variables and coercive practices are discussed, emphasizing the effects of schooling on the greater variability in the maternal repertoire for regulating child behavior.

Keywords: coercion; parental childrearing practices; socioeconomic level.

Introdução

O uso da coerção pelos pais na regulação do comportamento de seus filhos tem sido investigado por diversos pesquisadores devido a suas consequências negativas para o desenvolvimento infantil. Segundo Sidman (1995), a coerção pode ser definida como o uso da punição e do reforçamento negativo como forma de controle do comportamento. No que se refere às práticas educativas parentais, surras, castigos e ameaças são exemplos comuns do cotidiano de muitas famílias. Depressão (Webster-Stratton, 1991), ansiedade (Bender et al., 2007), dificuldades de aprendizagem escolar (Salvo, Silvares, & Toni, 2005), agressividade e comportamentos antissociais (Reid, Patterson, & Snyder, 2003), são alguns dos prejuízos que estão relacionados ao uso frequente de práticas coercitivas. Crianças frequentemente expostas ao controle aversivo tendem também a reproduzi-lo em outros contextos, aprendendo a legitimidade do uso da coerção em seus relacionamentos e tendo maiores chances de repetir este padrão futuramente com seus próprios filhos (Granic & Patterson, 2006).

Diversos estudos vêm apontando uma série de preditores relacionados ao uso da coerção no processo de socialização da criança no contexto familiar. Tais preditores podem ser classificados nas seguintes categorias: a) Preditores psicológicos: estresse e abuso de substâncias (Carpenter & Donohue, 2006), temperamento da criança (Forget-Dubois et al., 2007), eficácia da punição em curto prazo (Reid et al., 2003), falta de rede de apoio social (Cecconello, Antoni, & Koller, 2003), problemas conjugais, e experiência dos pais com seus próprios cuidadores (Straus & Stewart, 1999); e b) Preditores sociodemográficos: baixa escolaridade (Ribas, Moura, & Bornstein, 2003), nível socioeconômico (Knutson, DeGarmo, Koppl, & Reid, 2005), e monoparentalidade (Grogan-Kaylor & Otis, 2007).

O nível socioeconômico (NSE) embora considerado um fator importante para a compreensão das práticas educativas parentais, ainda é um aspecto controverso. Muitas investigações encontraram relações entre baixo NSE e maior frequência de práticas coercitivas (Knutson et al., 2005; Mistry, Vandewater, Huston, & Mcloyd, 2002; Pinderhughes, Bates, Dodge, Pettit, & Zelli, 2000; Ribas et al., 2003). Alguns desses estudos explicam esta relação a partir da hipótese de que as dificuldades econômicas gerariam condições de vidas adversas, que, por sua vez, causariam impacto no bem-estar psicológico das pessoas, aumentando níveis de agressão nas relações familiares (Gershoff, Aber, Raver, & Lennon, 2007; Giles-Sims & Lockhart, 2007; Shor, 2000). Em outros estudos, essa relação foi discutida com base no argumento de que o baixo NSE estaria diretamente relacionado com um baixo nível de escolaridade e, consequentemente, pouco conhecimento sobre cuidados parentais e desenvolvimento infantil (Bem & Wagner, 2006; Ribas et al., 2003; Straus & Stewart, 1999).

Entretanto, para alguns autores o fator econômico não deve ser encarado como o principal determinante no uso de práticas coercitivas pelos pais. Esses estudos revelam uma ênfase maior nas características culturais do contexto em que a família está inserida. Por exemplo, Wiehe (1990) e Grogan-Kaylor e Otis (2007) verificaram que características socioeconômicas das mães (idade, nível educacional, tipo de bairro em que reside e renda) não possuíam relação com a presença ou ausência de crenças sobre a legitimidade da punição física. A religião adotada pelas mães foi o fator mais fortemente relacionado à crença na legitimidade da punição física. Nesta mesma perspectiva, Doe (2000), ao investigar as práticas parentais punitivas na cultura coreana, verificou que 76,7% das 1045 crianças pesquisadas relataram sofrer punições físicas por membros da família. Para a autora, características da cultura coreana como a necessidade exagerada de obediência, e de que a criança viva de acordo com as expectativas dos adultos, assim como a aceitação entre pais e professores da punição corporal como prática disciplinadora legítima, explicariam esses dados.

Contudo, para alguns estudiosos as variáveis culturais não podem ser analisadas separadamente do NSE. Variáveis como as crenças e os valores familiares estariam incorporadas ao conceito de nível socioeconômico, e funcionariam como mediadores da relação entre o NSE e o uso de práticas coercitivas pelos pais. Garmezy (1993) reconhece os valores da família e o suporte social externo como variáveis moderadoras entre o NSE e o uso da coerção pelos pais. Reid et al., (2003), Guerra, Tolan, Huesmann, Acker e Eron (1995) e Pinderhughes et al. (2000) também afirmam que as crenças parentais sobre disciplina infantil funcionam como moderadores entre o NSE e as práticas parentais.

É importante atentar para o fato de que as discordâncias entre os autores em relação à influência da cultura nas práticas educativas podem estar relacionadas à forma como cada pesquisador define o termo cultura. Ao se pesquisar características culturais relacionadas às práticas parentais, se está estudando como os grupos sociais mantém determinadas práticas de regulação do comportamento infantil, e como elas são compartilhadas por seus membros através de gerações. Nesse sentido, o conceito de cultura não se refere a um único fator, mas trata-se da manutenção de padrões similares de comportamento através de gerações (Baum, 2006; Skinner, 1971). Segundo Andery, Micheletto e Sério (2005), o conceito envolve a repetição de comportamentos operantes análogos entre indivíduos de uma dada geração e entre gerações de indivíduos, sejam estes comportamentos publicamente observáveis (práticas) ou comportamentos privados (crenças).

Embora existam controvérsias quanto à distinção do NSE e de variáveis mediadoras ou moderadoras na determinação das práticas educativas parentais, as evidências quanto ao impacto desta variável preditora indicam sua relevância e a necessidade de que novos estudos sejam conduzidos, especialmente no contexto brasileiro. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo comparar o uso de práticas coercitivas de mães de diferentes níveis socioeconômicos, utilizando a escala de quatro fatores de Hollingshead (1975) adaptada por Tudge e Frizzo (2002) para a classificação do nível socioeconômico. Com base nos achados mais recentes da literatura, a hipótese é que mães de nível socioeconômico baixo relatarão com maior frequência a utilização de práticas coercitivas na regulação do comportamento infantil.

Método

Participantes

Participaram do estudo 40 mães, casadas ou em união estável, com idade entre 25 e 45 anos (M = 33,2 e DP = 6,6), e com filhos entre cinco e seis anos de idade. Foram constituídos dois grupos de mães: 1) NSE-B: grupo formado por 20 mães de nível socioeconômico baixo; 2) NSE-M: grupo formado por 20 mães de nível socioeconômico médio/alto. As crianças, 20 meninos e 20 meninas, a respeito das quais as mães responderam as entrevistas, foram igualmente distribuídas quanto ao gênero nos dois grupos investigados. As mães foram contatadas através de uma escola pública e uma escola privada na cidade de Salvador.

A classificação do nível socioeconômico das famílias foi feita a partir dos critérios propostos por Hollinshead (1975) adaptados por Tudge e Frizzo (2002). Esta escala avalia o nível socioeconômico através de quatro fatores: educação, ocupação, estado civil e sexo. Detalhes sobre as características sociodemográficas dos dois grupos são apresentados na Tabela 1.

A análise com o Teste t de Student e com o teste de qui-quadrado revelou algumas diferenças significativas entre os grupos NSE-B e NSE-M. Quanto à idade da criança, foi constatada uma diferença significativa (t = 2,04; p = 0,04), que indica uma maior idade das crianças do grupo NSE-M. Na variável idade da mãe também foi encontrada uma diferença significativa (t = 2,24; p = 0,03), que indica uma maior idade das mães do grupo NSE-M. Outras diferenças significativas foram encontradas em escolaridade da mãe (t = 5,54; p = 0,001), indicando um maior número de anos de estudo das mães do grupo NSE-M, e em renda familiar (t = 11,46; p = 0,001), indicando que as famílias do grupo NSE-M têm uma renda mensal maior. As diferenças encontradas na escolaridade das mães e na renda familiar haviam sido previstas por se tratarem de características relacionadas à classificação do nível socioeconômico das famílias. Nesse sentido, a discrepância entre os grupos era esperada nessas variáveis, e era condição necessária para o delineamento escolhido para o presente estudo.

Em relação às diferenças encontradas entre os grupos na idade da criança e na idade da mãe, como indicam os dados apresentadas na Tabela 1, tais variáveis foram inseridas como covariantes nas análises das práticas coercitivas, já que a literatura indica tais variáveis como importantes na determinação desses fatores. Por essa razão, optou-se pela utilização da análise multivariada de variância para a análise das diferenças entre os grupos quanto às práticas coercitivas. Além disso, tais variáveis foram correlacionas com as práticas coercitivas na sessão de resultados.

Procedimento

As mães foram selecionadas e contatadas a partir de informações obtidas através das escolas. Inicialmente, as mães receberam nas escolas uma carta e uma ficha de contato solicitando o nome e o telefone. Além disso, a carta explicava os objetivos da pesquisa e instruía quanto à devolução da ficha de contato preenchida, caso a mãe consultada optasse por participar do estudo. O primeiro contato com o pesquisador aconteceu por telefone, quando foram agendadas data e hora das entrevistas. As entrevistas ocorreram na própria escola ou na residência das participantes, dependendo da disponibilidade e da escolha de cada mãe. Na data, horário e local agendado, a participante respondeu a Entrevista sobre Práticas Educativas Maternas e a Ficha de Informações Demográficas da Família. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para análise.

Instrumentos

Entrevista Sobre Práticas Educativas Maternas. Esta entrevista estruturada é uma adaptação da proposta de Alvarenga & Piccinini (2001) com questões abertas para a investigação das práticas educativas utilizadas pelas mães na regulação do comportamento dos filhos, priorizando as práticas coercitivas, através de situações de conflito usuais do cotidiano de mães e crianças na fase pré-escolar. Foram apresentadas cinco situações que normalmente ocorrem no cotidiano envolvendo comportamentos inadequados ou desobediência da criança: a) a criança recusa-se a obedecer; b) a criança fala palavrões; c) a criança mexe em objetos perigosos expondo-se ao perigo; d) a criança faz birra; e) a criança bate em outra criança. Em cada situação a mãe foi solicitada a responder: a) se ela já havia passado pelo problema descrito com seu filho; e b) o que ela havia feito para resolver o problema ou, caso não tivesse passado pelo problema, o que faria se o problema ocorresse. As respostas das mães foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 2008) e foram classificadas de acordo com a seguinte estrutura de categorias: a) Punição física: apresentação de qualquer estímulo que causasse dor ou danos físicos à criança, como palmadas, tapas e surras; b) Ameaça de punição física: descrição de uma futura ou possível apresentação de um estímulo aversivo que causasse dor ou danos físicos; c) Punição verbal: apresentação de qualquer estímulo verbal aversivo que visasse suprimir o comportamento da criança, contudo, sem descrever uma futura consequência aversiva. O tom de voz hostil utilizado pela mãe durante a descrição da prática foi um dos critérios utilizados para incluir unidades de análise nesta categoria; d) Ameaça de retirada de privilégios: descrição de uma futura ou possível retirada de reforçadores positivos como jogos, brinquedos ou televisão; e) Ameaças religiosas ou fictícias: comportamento verbal que descrevesse uma possível ou futura punição vinda de Deus ou de personagens folclóricos, como o Papai Noel; f) Retirada de privilégios/castigo: remoção de situações ou de objetos que fossem reforçadores positivos para a criança; g) Coação física: uso da força física que induzisse a criança a se comportar de determinada forma e cujo objetivo não é provocar dor ou danos físicos, embora isto possa ocorrer. A estrutura das categorias foi construída a partir da proposta de Alvarenga e Piccinini (2001) e considerou apenas as práticas coercitivas relatadas pelas mães. As práticas não coercitivas foram desconsideradas.

Ficha de Informações Demográficas da Família. Visou obter informações demográficas da família, tais como: idade, profissão e nível de instrução dos pais, renda familiar, sexo e idade da criança. A ficha foi utilizada para a classificação do NSE de acordo com os critérios de Hollinshead (1975).

Escala dos quatro fatores de Hollinshead (1975) adaptada por Tudge e Frizzo (2002). Esta escala classifica o nível socioeconômico de acordo com quatro fatores: educação, ocupação, estado civil e sexo. Multiplica-se o nível da ocupação (que pode variar de 1 a 9) por 5 e o nível educacional (que pode variar de 1 a 7) por 3, e esses dois valores são somados. A escala prevê ainda outras possibilidades de arranjos familiares para o cálculo do NSE: a) Se a esposa trabalhar, soma-se o NSE da esposa e o do marido e divide-se o valor por 2; b) Se a esposa não trabalhar, o cálculo deve envolver apenas o marido; c) Caso um dos cônjuges seja divorciado e estiver recebendo pensão alimentícia do ex-cônjuge, o NSE do ex-cônjuge também deve ser contabilizado; d) Se um dos cônjuges for divorciado, trabalhar e também receber pensão alimentícia, calcula-se o NSE dos dois cônjuges e divide-se por 2. Se um dos cônjuges for viúvo e não trabalhar, mas receber pensão do cônjuge falecido, calcula-se o NSE a partir da ocupação e educação da pessoa falecida.

Resultados

A classificação das práticas coercitivas relatadas pelas mães foi realizada por dois codificadores que receberam treinamento e que desconheciam o grupo ao qual cada mãe pertencia. O índice de fidedignidade entre os codificadores foi calculado utilizando-se o Coeficiente Kappa, com uma amostra de 30% das entrevistas, e atingiu 0,90.

A partir da análise de conteúdo das respostas das mães às cinco situações investigadas, foram identificadas 268 práticas coercitivas das quais 54% (146) foram relatadas pelo grupo NSE-B e 46% (122) pelo grupo NSE-M. A Figura 1 ilustra a distribuição de porcentagem de práticas coercitivas maternas nas cinco situações.


Examinando-se os percentuais totais das práticas coercitivas em cada grupo constata-se que a categoria punição verbal foi a mais citada nos dois grupos (NSE-B: 35%; NSE-M: 37%). Enquanto no grupo NSE-B a segunda categoria mais citada foi a punição física (25%), no grupo NSE-M foi a retirada de privilégios/castigo (23%). Já a terceira categoria mais citada no grupo NSE-B foi a retirada de privilégios/castigo (23%), enquanto no grupo NSE-M, foi a punição física (17%). Destaca-se ainda, em particular, uma diferença entre os dois grupos na categoria ameaça de retirada de privilégios (NSE-B: 5%; NSE-M: 11%). Nas outras categorias as porcentagens foram iguais ou muito semelhantes: ameaça de punição física (NSE-B: 6%; NSE-M: 6%), ameaça religiosa ou fictícia (NSE-B: 3%; NSE-M: 4%), coação física (NSE-B: 3%; NSE-M: 3%).

Com o objetivo de avaliar as diferenças nas médias das frequências das práticas coercitivas entre os dois grupos, foi realizada uma análise de variância multivariada com as frequências médias para cada categoria de prática coercitiva no total das cinco situações. As variáveis idade da mãe e idade da criança foram incluídas como covariantes. A Tabela 2 apresenta a média, o desvio padrão, o valor de F e o nível de significância do total de práticas educativas coercitivas mencionadas pelos dois grupos nas cinco situações.

Os resultados demonstraram não haver diferença significativa no total de práticas coercitivas mencionadas pelas mães nos dois grupos (F = 0,66; p = 0,58). Com relação a cada uma das categorias de práticas coercitivas, a única que apresentou diferença estatisticamente significativa entre os grupos foi a punição física (F = 2,87; p = 0,04), indicando maior frequência desta prática no grupo NSE-B. Nas demais categorias de práticas as frequências de respostas das mães dos dois grupos foram semelhantes.

Com o objetivo de verificar eventuais relações entre as variáveis sociodemográficas e as práticas coercitivas, foi realizado o Teste de Correlação de Pearson entre a instrução materna e outras variáveis sociodemográficas que, na literatura, estão associadas ao uso de práticas coercitivas, e as sete categorias de práticas coercitivas. As variáveis foram: idade da criança, número de pessoas na casa, número de filhos, idade da mãe, escolaridade da mãe, renda familiar. As correlações foram feitas levando em consideração todos os participantes, isto é, desconsiderando os grupos NSE-B e NSE-M. Esta segunda etapa da análise foi utilizada como uma alternativa aos critérios de Hollingshead (1975), para que pudesse ser verificada a relação de cada indicador específico do nível socioeconômico (ex. renda, escolaridade, etc.) sobre as práticas coercitivas.

A Tabela 3 apresenta as correlações entre as características sociodemográficas dos participantes e as práticas coercitivas relatadas independentemente dos grupos. Os dados demonstraram apenas uma correlação negativa entre escolaridade da mãe e punição física (r = -0,41 p < 0,01), que indica que quanto menor a escolaridade da mãe maior a frequência de punição física.

Discussão

Os resultados que demonstraram o uso mais frequente de punição física pelas mães do grupo NSE-B corroboram os achados da literatura que indicam que esse tipo de prática estaria relacionado ao nível socioeconômico baixo (Conte, 1996; Knutson et al., 2005; McClure & May, 2008; Mistry et al., 2002; Ribas et al., 2003; Straus & Stewart, 1999). De acordo com Gershoff et al. (2007), as dificuldades materiais teriam grande impacto no nível de estresse e de agressividade dos pais e levariam ao uso mais frequente da punição física. Pessoas que pertencem a camadas sociais menos favorecidas economicamente têm piores condições de moradia e costumam residir em bairros com maiores índices de violência. Esse conjunto de fatores implicaria um nível de estresse elevado dessas famílias e, consequentemente, menor qualidade de vida.

Shor (2000), analisando os efeitos de residir em bairros pobres sobre as práticas parentais, descreve que as famílias com baixa renda que residem em bairros pobres apresentam maior frequência de práticas coercitivas em função da percepção da necessidade de maior controle sobre seus filhos. O autor verificou que tais famílias enfatizavam o perigo de viver em suas comunidades e, por isso, acreditavam que um controle mais rigoroso sobre o comportamento das crianças seria importante para a segurança delas.

Para Sidman (1995) e Skinner (1971), o grau de aversão do ambiente é uma variável fundamental na determinação de comportamentos agressivos, dentre eles a punição física. Segundo Skinner (1953/2002), as contingências aversivas produzem estados emocionais que aumentam a probabilidade da emissão de comportamentos agressivos. Nesta mesma perspectiva, Margolin e Gordis (2003) relatam que famílias submetidas a eventos aversivos constantes possuem alto grau de estresse, e tornam-se mais suscetíveis às múltiplas formas de agressão nas relações familiares.

Além disso, de acordo com o modelo de seleção por consequências, devem ser consideradas as modificações ambientais produzidas pela ação do organismo. Quando utilizada, a punição física cessa imediatamente o comportamento indesejado da criança, reforçando negativamente o comportamento de punir dos pais (Sidman, 1995; Skinner, 1953/2002). Assim, é possível compreender o fortalecimento desse tipo de prática no repertório parental e, consequentemente, a alta frequência de uso da punição física na regulação do comportamento infantil, apesar dos prejuízos e desvantagens desse tipo de estratégia como depressão, ansiedade, dificuldades de aprendizagem escolar, agressividade e comportamentos antissociais (Bender et al., 2007; Reid et al., 2003; Salvo, Silvares, & Toni, 2005; Webster-Stratton, 1991).

Quanto às correlações entre os fatores sociodemográficos e as práticas coercitivas, a única correlação estatisticamente significativa encontrada foi entre o fator escolaridade da mãe e a prática punição física. Os dados indicaram que quanto menos anos de estudo a mãe possuísse maior seria a frequência da utilização da punição física. Tal resultado corrobora os achados de Bornstein, Hahn, Suwalsky e Haynes (2003), em que o único componente da escala de Hollingshead (1975) que consistentemente pôde prever práticas maternas foi o nível de instrução das mães. Nesse sentido, foi encontrada uma correlação negativa entre o nível educacional materno e o uso da punição física. Além disso, existem pesquisas em diferentes culturas indicando que o grau de escolaridade dos pais tem demonstrado ser um fator relevante na determinação da qualidade das interações entre pais e filhos. Por exemplo, estudos conduzidos na China (Leung, Wong, Chen, & Tang, 2008), no Iémen (Alyahri & Goodman, 2008), na Índia (Malhi & Ray, 2004) e em 14 países da Europa (Gracia & Herrero, 2008) indicam que, dentre as variáveis que demonstram relação com práticas educativas mais ou menos adequadas, o nível de educação dos pais foi um fator significativo comum a todas essas investigações. Nesses estudos, o maior nível de instrução dos pais esteve relacionado a práticas não-coercitivas, enquanto o menor nível de instrução foi um fator preditor de práticas coercitivas. É possível que o maior nível educacional, ou o acesso ao ensino de melhor qualidade, favoreçam a ampliação do repertório comportamental dos pais, fazendo com que eles disponham de um conjunto maior e mais variado de práticas educativas e que, portanto, tenham menor necessidade de lançar mão de estratégias coercitivas como a punição física. Para Ribas et al. (2003), a estreita relação entre NSE e práticas educativas pode ser explicada pelo fato de que quanto menor o NSE menor o grau de conhecimento materno sobre cuidados com crianças e sobre o desenvolvimento infantil. Para esses autores, a compreensão dos processos de cuidado e do desenvolvimento infantil promoveria a qualidade das práticas educativas e interações mais positivas entre mães e filhos. Nesse sentido, intervenções voltadas para esse tipo de população, que promovam maior conhecimento sobre o desenvolvimento infantil e sobre as práticas educativas parentais são fundamentais. Com maior variabilidade comportamental, os pais poderiam agir de outras formas na regulação do comportamento infantil, adotando alternativas não coercitivas, e utilizando a punição física com menor frequência.

A hipótese inicial do estudo de que as mães do grupo NSE-B relatariam mais práticas coercitivas do que o grupo NSE-M não foi integralmente apoiada pelos resultados, visto que apenas a punição física foi mais frequente no primeiro grupo. Esse achado pode ser tomado como um indicador positivo, pois, ao contrário do que era esperado, as mães do NSE-B não demonstraram utilizar mais práticas coercitivas no geral. Contudo, é importante destacar que esses resultados, contrários ao que a literatura indicava, também podem estar associados a questões metodológicas. A própria classificação do nível socioeconômico, fundamental para a divisão dos participantes em grupos, varia muito de um estudo para o outro. Além disso, as definições das categorias de práticas parentais coercitivas, por mais que sejam semelhantes, possuem diferenças conceituais que resultam em diferentes formas de análise e numa percepção singular de cada autor sobre o fenômeno. De qualquer modo, considera-se que a ausência de diferenças nas demais categorias de práticas coercitivas entre os dois níveis socioeconômicos avaliados deva ser objeto de novas investigações.

Embora não haja consenso nos níveis conceitual, metodológico ou filosófico, os prejuízos para as crianças que são submetidas constantemente a práticas coercitivas são confirmados por inúmeros estudos empíricos realizados em diferentes países (Bender et al., 2007; Patterson, Derbayshe, & Ramsey, 1989; Salvo et al., 2005; Webster-Stratton, 1991). À medida que mais pesquisadores sem distinções de abordagens teóricas e metodológicas estiverem envolvidos na tentativa de compreender e descrever as relações responsáveis pelo surgimento e manutenção das práticas coercitivas, mais apta se tornará a sociedade para minimizar tal forma de controle.

Hollingshead, A.B. (1975). Four factor index of social status. Manuscrito não publicado.

Tudge, J. R.H., & Frizzo, G.F. (2002). Classificação baseada em Hollingshead do nível sócio-econômico das famílias do estudo longitudinal de Porto Alegre: da gestação à escola. Manuscrito não publicado.

Recebido 31.ago.10

Revisado 27.jul.11

Aceito 28.fev.12

Paulo Henrique Barbosa do Carmo, mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia, é professor da Faculdade Metropolitana de Camaçari. Endereço para correspondência: Rua Francisco Jorge, nº 85, Residencial Altos de Salvador Apto. 1305, Bairro: Santa Teresa, Salvador-BA CEP:40265-010. E-mail: phbc@oi.com.br

Patrícia Alvarenga, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é professora adjunta da Universidade Federal da Bahia. E-mail: palvarenga66@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2012

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2010
  • Aceito
    28 Fev 2012
  • Revisado
    27 Jul 2011
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