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Faces da juventude brasileira: entre o ideal e o real

Faces of Brazilian youth: between the ideal and the real

Resumos

O estudo da temática da juventude vem, paulatinamente, ganhando espaço no meio científico e na agenda pública. Permeada por históricas contradições, seja na forma como a sociedade a concebe, seja como os próprios jovens se percebem enquanto sujeitos, a juventude consiste em uma categoria social heterogênea, construída de acordo com épocas e sociedades distintas. O objetivo deste artigo é fazer uma conceituação da juventude a partir do resgate dessa construção social. São apontadas as fronteiras que a delimitam, bem como os contextos paradoxais nos quais está inserida, em que são elucidadas as diferentes faces com as quais esse fenômeno se apresenta na sociedade, especialmente a partir da perspectiva da sociedade atual a seu respeito, em contraponto à realidade de violações de direitos que assola grande parte da juventude brasileira.

juventude; sociedades; violação de direitos humanos


The study of youth has been gradually conquering space in public agenda and in the scientific field. Permeated by historical contradictions, either in the way the society conceives it, or how the young population realize themselves as subjects, youth consists of a heterogeneous social category, built in accordance with different eras and societies. The aim of this paper is to develop a concept of youth from the rescue of this social construction. Boundaries that delimitate this concept are pointed out, as well paradoxal contexts in which it is inserted, where different faces in which this phenomenon presents itself in society are elucidated, specially from the perspective of present day society, in contrast to reality of rights violation that ravages a large part of brazilian youth.

youth; societies; human rights abuses


DOSSIÊ: JUVENTUDES E VULNERABILIDADES: DILEMAS E PROPOSTAS

Faces da juventude brasileira: entre o ideal e o real

Faces of Brazilian youth: between the ideal and the real

Candida de Souza; Ilana Lemos de Paiva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

O estudo da temática da juventude vem, paulatinamente, ganhando espaço no meio científico e na agenda pública. Permeada por históricas contradições, seja na forma como a sociedade a concebe, seja como os próprios jovens se percebem enquanto sujeitos, a juventude consiste em uma categoria social heterogênea, construída de acordo com épocas e sociedades distintas. O objetivo deste artigo é fazer uma conceituação da juventude a partir do resgate dessa construção social. São apontadas as fronteiras que a delimitam, bem como os contextos paradoxais nos quais está inserida, em que são elucidadas as diferentes faces com as quais esse fenômeno se apresenta na sociedade, especialmente a partir da perspectiva da sociedade atual a seu respeito, em contraponto à realidade de violações de direitos que assola grande parte da juventude brasileira.

Palavras-chave: juventude; sociedades; violação de direitos humanos.

ABSTRACT

The study of youth has been gradually conquering space in public agenda and in the scientific field. Permeated by historical contradictions, either in the way the society conceives it, or how the young population realize themselves as subjects, youth consists of a heterogeneous social category, built in accordance with different eras and societies. The aim of this paper is to develop a concept of youth from the rescue of this social construction. Boundaries that delimitate this concept are pointed out, as well paradoxal contexts in which it is inserted, where different faces in which this phenomenon presents itself in society are elucidated, specially from the perspective of present day society, in contrast to reality of rights violation that ravages a large part of brazilian youth.

Keywords: youth; societies; human rights abuses.

A juventude é uma categoria social que tem conquistado espaço na agenda pública e nas discussões científicas. Este artigo se propõe a fazer um resgate da categoria social da juventude, abordando aspectos que se referem às diversas nuances que perpassam esse conceito. Para tanto, procurou-se discutir as fronteiras que foram delineando esse segmento populacional ao longo do tempo, bem como elucidar as diferentes faces com as quais esse fenômeno se apresenta na sociedade. Por se tratar de um estudo teórico, lançou-se mão dos principais autores na temática da juventude na atualidade, bem como foi feito um resgate de dados oficiais a respeito da realidade da juventude brasileira. Inicialmente, apresenta-se um apanhado histórico acerca da construção social da juventude, além de discutir como esse segmento vem se configurando de forma ambígua na realidade brasileira. Em seguida, faz-se uma reflexão acerca da ideal juventude que habita o imaginário social, em contraponto à apresentação da real juventude brasileira, com toda a sua configuração de violações de direitos e ausência do Estado. Tais componentes dão subsídio para a discussão acerca de quem é o jovem da atualidade, em que contexto ele está inserido e que papel representa na sociedade.

Afinal, o que é ser jovem?

A juventude não se trata de um conceito que está dado, mas sim de vários conceitos, que são fruto de uma histórica representação específica dessa população. Diferentemente da adolescência, que tem sido delimitada pela fronteira da faixa etária estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8069/90) como o período que compreende de 12 a 18 anos incompletos, a juventude refere-se a um período não necessariamente delimitado pela idade, mas que compreende outros fatores, relacionados a intensas transformações biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que variam de acordo com as diferentes classes sociais, culturas, épocas, etnias, gênero, dentre outros determinantes (UNESCO, 2004).

Não existe uma concepção social única que caracterize e delimite o grupo geracional no qual os jovens estão inseridos, visto que se trata de uma categoria em permanente construção social e histórica. Assim, cabe falar em diferentes juventudes, que possuem a construção da identidade como questão central, mas que se destacam no imaginário social a partir de múltiplas referências da sociedade.

No entanto, como bem discute Souza (2005), essa definição plural na sociedade de consumo provoca um entrave à construção da identidade juvenil, em que a reivindicação mercadológica tolhe outros estilos de vida não condizentes com a lógica do capital e classifica determinado padrão de juventude como modelo. Sobre esse aspecto, Esteves e Abramovay (2007) sugerem que:

Sujeitos de uma sociedade de consumo ostentatória – cujo principal traço é suscitar nas juventudes, mas não apenas entre elas, aspirações que, muitas vezes, deságuam em frustrações, porque irrealizáveis para a grande maioria –, transitam no seio de uma arquitetura social cuja desigualdade e acirramento das diferenças constituem algumas de suas faces mais visíveis (p. 27).

Desta forma, percebe-se uma remodelação da representação juvenil, a partir da dicotomia que emerge nas classes sociais; aqui considerado o principal fator que define a pluralidade das juventudes.

Apesar de a delimitação do grupo populacional jovem sofrer variações segundo contextos particulares, convenciona-se o estabelecimento de ciclos de idade, definidos a partir de fatores relacionados à aquisição da autonomia, inserção no mercado de trabalho, expectativa de vida da população, dentre outros fatores (Aquino, 2009). Alguns países, como o Japão, por exemplo, classificam os jovens como indivíduos até 35 anos (Chaves, 1999), enquanto outros adotam outras delimitações bem variadas.

Nos países ocidentais não se observa tanta polêmica quanto ao limite inferior, que geralmente é definido em 15 anos. Para essa delimitação, o enfoque é biológico e psicológico, relacionado ao desenvolvimento das funções sexuais e reprodutivas. No entanto, a delimitação superior não é tão consensual. Estudos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO (2004) indicam importantes fatores que devem ser considerados: há uma crescente abrangência do segmento juvenil, relacionada à passagem do rural ao urbano, do industrial à sociedade do conhecimento; há uma perda das características que definem um adulto, principalmente devido à tendência à "juvenilização"; em contraponto, os jovens vivem um processo de "adultização" acelerado, decorrente das incertezas e desafios advindos da crescente globalização (UNESCO, 2004). Esses fatores se fazem significativos à medida que a juventude contemporânea se configura enquanto uma categoria que já tem condições de produzir e de se inserir ativamente na lógica de mercado, mas que, ao mesmo tempo, ainda é considerada enquanto uma etapa de preparação para tornar-se produtiva na sociedade.

A saber, a Assembleia Geral das Nações Unidas define, para a América Latina, jovens como sendo o grupo de pessoas com idade entre 15 e 24 anos (UNESCO, 2004). No Brasil, essa era a demarcação adotada para delimitar as fronteiras da juventude, até 2005. No entanto, a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) e o Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE), órgãos que representam o marco oficial do surgimento de uma preocupação estatal com a juventude brasileira, criados em 2005, seguem a delimitação de 15 a 29 anos, dividida nos seguintes subgrupos: 15 a 17 anos – jovem-adolescente; 18 a 24 anos – jovem-jovem; 24 a 29 anos – jovem adulto. De acordo com Aquino (2009), a dilatação para 29 anos não é uma peculiaridade brasileira, e está ocorrendo na maioria dos países que pretendem implementar políticas para a juventude. Tal variação é justificada por dois fatores: maior dificuldade de essa população ganhar autonomia – devido às aceleradas mudanças no mundo do trabalho – e aumento da expectativa de vida da população em geral.

Essa polêmica que circunda o lugar geracional da população juvenil tende a dificultar o processo de implementação e execução de ações efetivas destinadas a esse segmento. Castro, Aquino e Andrade (2009) apontam que as políticas carecem de um marco que referencie o conceito de juventude de forma mais coesa. No entanto, essa ausência de coesão acerca da juventude encontra explicações na história, que se confundem com a própria forma de organização da sociedade a cada época. Conforme apresentado a seguir, existem outras polêmicas além da faixa etária que historicamente circundam a representação social da juventude.

Juventudes e sociedades

Conforme aponta Quiroga (2005), a juventude não consiste um fenômeno meramente demográfico. Trata-se de uma complexa condição social, que influencia e é influenciada pelas diferentes culturas e possui uma condição dinâmica e mutável ao longo do tempo, de acordo com as transformações da sociedade. Não se pode, portanto, falar de uma juventude universal, visto que não consiste de um fenômeno que está posto em qualquer lugar e tempo, sem implicações sociais.

Questionar o caráter universal da juventude é reconhecer a sua historicidade. Ela, assim como todos os outros segmentos populacionais, vem sendo delineada e contornada ao longo da história (Novaes, 2007a). Parte-se então de uma perspectiva de conceituação sócio-histórica da juventude, em que cada época e sociedade aprovam sua concepção própria e lhe atribuem papéis particulares (Fraga & Iulianelli, 2003).

A influência das teorias racistas e eugênicas da Europa, na segunda metade do século XIX, contribuiu para que a preocupação com a juventude mundial durante esse período (e até meados do século seguinte) apresentasse um caráter tutelar e repressivo. Existia grande preocupação com a disciplina dos jovens pobres, em que emergia a necessidade de colocar ordem naqueles que tinham "comportamentos desviantes", através de diversas práticas, inclusive coercitivas e violentas. Iulianelli (2003) aponta que o enfoque na juventude nesse período era o controle da delinquência, visto que se tratava de um perigo social que diuturnamente ameaçava a população. De acordo com Novaes (2007b), pequenas contravenções dos jovens eram mais preocupantes do que ações mais graves dos adultos, o que reforçava a ideia da repressão dessa etapa (concebida como) problemática da vida (Aquino, 2009).

Com o advento do capitalismo liberal no século XX, acirra-se o processo de formação de riqueza e a consequente disseminação da miséria. Assim como toda a população, a juventude sofreu com a acumulação de capital em detrimento dos investimentos sociais. Conforme apontam Coimbra e Nascimento (2003), o processo de concentração do capital provoca efeitos poderosos: exclusão, estigmatização e tentativa de destruição das classes pobres – notadamente da juventude pobre – por meio da opressão e criminalização. As ações decorrentes desse contexto socioeconômico, muitas vezes invisíveis, acabam por levar os jovens pobres ao extermínio e à clausura.

Consoante a esse processo, no Brasil, tais discursos e práticas também passam a se consolidar, sofrendo forte influência do movimento higienista, na década de 1920, em que se constrói a ideia dos bandidos de nascença e do mito no qual os jovens pobres estão diretamente associados à periculosidade e, portanto, devem ser descartados. Diante desse quadro, os jovens pobres, que escapavam ao extermínio, representavam a parcela excluída por excelência, pois sequer conseguiam chegar ao mercado de trabalho formal e se caracterizavam, então, como um "perigo social" que deveria ser controlado, o que justificava e fortalecia o modelo dominante das políticas repressoras voltadas a essa população. Essa vinculação da juventude com a desordem social é uma concepção que contribui fortemente até os dias atuais para reforçar a relação entre vadiagem/ociosidade/pobreza, bem como entre pobreza e periculosidade/violência/criminalidade (Coimbra & Nascimento, 2003), apesar de ainda haver ambiguidade na interpretação da condição juvenil.

Fraga (2008) vem apontar os jovens pobres como as principais vítimas da violência criminal:

A capacidade de vitimizar pessoas cada vez mais jovens dos estratos populares, de forma tão banalizada e invisível, apresentou-se como um dos aspectos mais relevantes da violência da criminalidade dos anos 1990. Banalizada, pela frequência constante com que ocorre o evento, e invisível, pelo fato de a ocorrência dessas mortes não produzir manifestações públicas ou reivindicações políticas para reverter o quadro existente ou nem mesmo ganhar relevante destaque na imprensa. (p. 86)

Por outro lado, é produzido um discurso de que esses mesmos jovens são os principais – ou únicos – responsáveis pelo constante aumento da violência real, especialmente nos centros urbanos. Discurso esse proveniente dos setores médios atingidos direta ou indiretamente por essa violência, gerando posicionamentos apoiados apenas em indicadores econômicos e sociais e que não analisam mais amplamente os contextos nos quais é produzida toda a violência (Fraga, 2008). Tal concepção corrobora a abordagem da juventude encarada como um "grupo de risco", não fazendo referência à sua condição cidadã e não priorizando iniciativas que fomentem a sua participação na dinâmica da sociedade.

Não obstante a ideação pessimista acerca da condição juvenil, a partir da segunda metade do século XX, começam a surgir novas concepções que irão se disseminar de maneira a contribuir com o debate sobre a juventude, instaurando um processo de posicionamentos ora contrários, ora complementares acerca dessa questão.

De acordo com Aquino (2009), por volta das décadas de 1950 e 1960, a juventude passa a ser vista como uma fase preparatória e transitória da vida, que exige da família e da escola uma atenção e esforço contínuos, que visem preparar o jovem para a socialização. Nessa concepção, os possíveis problemas que emergem são alvo de redefinição e são entendidos como disfunções ou desvios desse processo de socialização e não mais como inerentes à condição do jovem.

Iulianelli (2003) discute que, nesse mesmo período, a temática da juventude insurge de forma ambígua: por um lado, é vista como agente de transformação social e, por outro, como uma parcela populacional ingênua e irracional. Essa ambiguidade também é apresentada por Fraga (2008), ao discorrer sobre a visão social dos jovens como promotores e vítimas de violências terríveis que se instauram na América Latina na década de 1980, em conflito com a visão de que estes mesmos atores seriam responsáveis pela reserva ética das sociedades e pelo destino da humanidade. Novaes (2007a) também aponta a ambivalência da condição juvenil entre a contradição da sua subordinação à família e à sociedade, coexistindo com as grandes expectativas de emancipação desses jovens. Essa ambiguidade se torna mais evidente na juventude, especialmente ao se analisar que a alta incidência de violências que perpassa esse público o marginaliza, enquanto que, ao mesmo tempo, a sociedade capitalista, ao forjá-lo enquanto modelo ideal, o enaltece.

Além destas concepções, outros pontos de partida para o debate acerca da juventude são apresentados por Abramo (2008):

a) o foco nas possibilidades e condições de participação dos jovens na sociedade, a partir dos seus valores, opiniões e atuação social, tanto implicados na mudança do destino da nação, como nas questões particulares que os afetam;

b) a juventude como um fator demográfico, em que se consideram os fatores de inclusão e exclusão nas diversas formas de participação na sociedade;

c) a concepção do jovem como um sujeito de direitos, em que se procura analisar, a partir das peculiaridades da condição juvenil, os direitos emergentes, que devem ser garantidos pelo Estado e pela sociedade. Vale salientar que, no que se refere à parcela dos jovens que se enquadra na categoria da adolescência devido à sua faixa etária, esta perspectiva de sujeitos de direitos está contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente, no entanto, para os demais, esse é um debate que ainda necessita ser construído.

Diante dessa diversidade de abordagens, a concepção da juventude como uma condição transitória – diferentemente de outras categorias como classe social ou gênero, que se apresentam de formas mais permanentes – passa a ter lugar em diversos espaços de discussão. Falar na característica da transitoriedade específica da juventude implica retomá-la a partir do contexto da lógica do consumo, isto é: um período em que os sujeitos teoricamente possuem as condições necessárias para ingressar na esfera da produtividade no mercado, mas que, por uma razão ou outra, ainda estão "esperando" que isso aconteça. Segundo discutem autores como Novaes (2007b) e Dayrell (2007), tal aspecto implica no desenvolvimento da ideia da juventude como um período de moratória social, em que sua condição consiste apenas em uma etapa de preparação para uma vida futura, repleta de inserções nas mais diversas dimensões da vida em sociedade.

Aquino (2009), ao contextualizar a condição social dos jovens no Brasil, tem o cuidado de apreciar as diferentes implicações da juventude como moratória social. Aponta que, com a crise do desemprego na década de 1990, a restrição de oportunidades ameaça a incorporação dos jovens (e a permanência dos trabalhadores) no mercado de trabalho, o que implica em duas tendências, quais sejam: os jovens pobres se submetem a condições precárias de trabalho e continuam dependentes do seu núcleo familiar, mesmo que este também não apresente boas condições de sobrevivência; e, os jovens privilegiados em sua origem social acabam por adiar a busca pela inserção profissional, perpetuando-se na condição de estudantes, e também continuam dependendo das suas famílias, o que provoca um prolongamento da moratória social. A inserção prematura e precária dos jovens pobres no mercado de trabalho informal, ou a sua desocupação prolongada, diferencia sua condição de moratória social da dos jovens de classes mais abastadas, posto que àqueles é associada uma perspectiva negativa dessa condição, enquanto a estes estão intrínsecos os ideais da liberdade, conforto, e tolerância do meio familiar à fase de moratória, aspectos tidos como naturais da juventude.

Tem-se então uma clara distinção da condição socioeconômica no que diz respeito à moratória social. Esse termo, originado da precarização do mundo do trabalho, faz emergir as diferentes expectativas de futuro que a sociedade neoliberal reserva para jovens de estratos sociais diferentes. Se para uns a busca pela qualificação é condição sine qua non à educação, mesmo provocando um adiamento do ingresso no mundo do trabalho, para outros, a falta de oportunidades de emprego formal e a sua posição social no limite do exército de reserva adiam perversamente a sua entrada na adultez.

Concorda-se com Aquino (2009) quando atenta ainda para as consequências da existência de tal conjuntura e sugere que, uma vez fora do sistema produtivo, os jovens estariam suspensos da vida social, situando-se no limite dos processos de criação e decisão, próximos à marginalidade. Além disso, essas tendências apontam para um entrave na emancipação econômica dos jovens, implicando em uma frustração das expectativas de mobilidade social, o que acaba por provocar um adiamento do rompimento da dependência e um prolongamento da condição juvenil. Outra consequência apontada por Ribeiro e Lourenço (2003) reside no fato de que a juventude tida como esperança exige uma redução da participação no presente, tanto no âmbito singular desses jovens, como na esfera social.

Em contraponto a essa condição de moratória social relacionada às questões socioeconômicas e de independência dos jovens, tem-se cada vez mais cedo uma inserção dessa população no "mundo dos adultos" quanto ao quesito da vida afetiva e sexual. Camarano (2006) discorre acerca do rearranjo da nupcialidade, que muitas vezes é o fator que caracteriza a transição para a vida adulta, em que os jovens cada vez mais cedo saem da casa dos pais e constituem um novo domicílio e uma nova família, adquirindo responsabilidades que são vistas como pertencentes à adultez. Mais uma vez, fica claro que essa conceituação de vida adulta é perpassada por questões socioeconômicas. Se, por um lado, observa-se que os jovens de estratos mais abastados possuem condições de se desvincular das suas famílias e constituir a sua própria, adquirindo responsabilidades e autonomia, inclusive financeira, o mesmo não é verdade para os jovens das classes pauperizadas. Nestes espaços, é comum a constituição de novas famílias sem que se ocupe um novo domicílio, devido às condições precárias de sobrevivência, o que acaba gerando um adensamento demográfico tanto dentro do lar como na comunidade em geral e trazendo implicações diretas na convivência familiar e comunitária.

A partir dessas considerações, defende-se que o ingresso no mercado de trabalho não necessariamente se constitui como único fator implicado na transição da juventude para a vida adulta. Este processo de transição consiste em fenômeno complexo e multicausal que se dinamiza a cada sociedade e a cada contexto histórico. No contexto atual, com a consolidação do modo de produção capitalista, um dos principais elementos – ou o principal – dessa complexidade é a classe social na qual o jovem está inserido. Seja considerando os aspectos de construção de um novo núcleo familiar ou de limites e possibilidades de inserção tardia na lógica de mercado, a desigualdade na distribuição dos recursos apresenta-se como fator determinante para as diferentes experiências de moratória social vivida pelos jovens.

Não obstante o apresentado, Quiroga (2005) discute que essa noção de moratória social – na qual os jovens têm a garantia de complacência da sociedade para a espera do exercício da vida adulta e responsável – foi ressignificada nos últimos anos. A juventude provocou uma reversão em seu lugar social e se impôs enquanto segmento e enquanto condição social não homogeneizável. Sobre esse aspecto, Aquino (2009) aponta uma nova visão sobre a juventude: a de ator estratégico do desenvolvimento. Tal noção apresenta implicações diretas na atenção das autoridades a essa população e provoca uma reatualização da visão preparatória da juventude. O autor destaca alguns fatores decorrentes dessa nova significação, quais sejam: a reivindicação de uma boa educação, que favoreça a formação do capital humano dos jovens; a exigência de um recorte específico para a juventude nas ações públicas; e o apoio à participação política dos jovens.

No Brasil, o forte movimento juvenil da década de 1990 contribuiu significativamente para o surgimento dessa nova concepção da juventude. Nessa década, bastante crítica no processo socioeconômico mundial, observou-se uma crise do Estado de Bem-Estar social nos países desenvolvidos, o que refletiu em índices elevadíssimos de desemprego e precarização das relações de trabalho, inclusive no Brasil. Nesse período, há um acirramento da desigualdade social e uma deterioração das condições de trabalho e de sobrevivência, agravando vários problemas sociais como fome, criminalidade, violência e pobreza (Alencar, 2008; Anderson, 1995). O receituário neoliberal começava a ser seguido e a economia nacional estava sujeita às determinações de capitais internacionais, entravando o desenvolvimento de políticas sociais ao mesmo tempo em que fortalecia o processo de privatizações (Yamamoto, 2007). Paralelamente a esse contexto socioeconômico, aconteceu um fenômeno singular na história do país, a denominada "onda jovem": os índices demográficos da população juvenil cresceram significativamente nessa década.

Tal conjuntura implicou em diversas consequências, que caracterizaram esse período histórico. Instaurou-se um contexto na América Latina em que o abandono das crianças e jovens, bem como a violência da qual eram vítimas se tornaram uma problemática de saúde pública. Ao mesmo tempo, vários movimentos culturais, como o rap, o hip-hop e o funk, emergiram em todo o país, o que fortaleceu os espaços de convivência dos grupos de jovens, favorecendo a sua mobilização social e política e se constituindo de espaços singulares no exercício da formação da identidade desses jovens (Iulianelli, 2003; Aquino, 2009). Quiroga (2005) e Alves (2005) apontam que, no Brasil, especificamente o movimento hip-hop, em que inicialmente os jovens se organizavam para construir uma nova forma de lazer, se constituiu de um movimento fundamental no protagonismo juvenil contra a violência urbana que veio assolando a juventude brasileira na década de 1990.

Nesse novo contexto ideológico, os jovens, gradativamente, vão ocupando um lugar diferenciado no imaginário da sociedade, passando a ser vistos a partir das suas especificidades e necessidades e começando a ganhar importância como uma fase específica do ciclo de vida, e não mais como uma mera transição para a idade adulta. Desta forma, o foco da juventude se transfere para o presente. Para Aquino (2009), as configurações dos espaços de convivência e interação dos jovens preenchem as lacunas deixadas por instituições como as escolas e favorecem o estabelecimento de várias (sub)culturas juvenis, que influenciam fortemente na renovação dos valores e práticas sociais.

A partir dessa reconsideração da condição juvenil, passa a ocorrer um fenômeno que pode ser denominado de juvenilização da sociedade, no qual – apesar de persistir a ambiguidade do papel social do jovem – o que se observa é uma adoração do modelo cultural construído para a juventude. Vale fazer breve reflexão a respeito das questões implicadas nesse processo de valorização da juventude na sociedade contemporânea.

A (ideal) juventude contemporânea

Em um período em que as desigualdades econômicas e sociais estão cada vez mais acirradas, a sociedade está vivenciando um processo de individualização que se intensifica à medida que o capitalismo impõe a cultura da "liberdade individual" e da meritocracia. Nesse sentido, observa-se, mais intensamente a partir do século XXI, que a velocidade da modernização econômica e a ênfase no imediatismo têm gerado um novo conteúdo para a representação social da experiência de "ser jovem". A indústria cultural está cada vez mais dirigida às novas gerações: ora à infância, impondo papéis que antes se restringiam à adultez, ora à juventude, tida como uma geração que consegue acompanhar a modernidade e que convive com a incessante nostalgia dos adultos, que são alvo da promessa do rejuvenescimento (Ribeiro & Lourenço, 2003). Sobre esse aspecto, Ribeiro (2004) aponta que a juventude contemporânea constitui certo ideal social que talvez nunca termine, visto que cada vez mais a sociedade está marcada por valores associados à mocidade, como a ideia de liberdade pessoal. Para Fraga e Iulianelli (2003),

Os valores da juventude passaram a ser os mais desejados pelos indivíduos, projetando o tema da juventude sobre todas as faixas etárias. Os jovens participam de forma dúbia da cultura de massa: integram-se a ela, mas consomem determinados produtos em função dos quais lhes possa ser atribuída uma singularidade. Os jovens, contudo, somente são invitados ao consumo em torno de um modelo. (p. 9)

Diante disso, tem-se um processo de alargamento da etapa da juventude, pelo menos no que se refere ao ideal vislumbrado pela sociedade contemporânea. No entanto, como bem aponta Quiroga (2005) ao distinguir entre jovens e juventude, os primeiros constituem um segmento populacional, enquanto a última trata-se de uma condição social, que não é passível de homogeneização. Ao se construir uma concepção da juventude de forma tão idealizada incorre-se no risco de cair no vazio da discussão construída historicamente acerca das peculiaridades dessa população, tanto no que diz respeito às suas especificidades comparadas às outras faixas etárias, como com relação às distinções existentes entre as próprias formas diferenciadas de juventude. Desta forma, conforme apontam Ribeiro e Lourenço (2003), constitui-se uma noção objetivada e naturalizada do jovem, que diverge daquela ideia de jovem dotado de aspectos sociais e experiências históricas cuja ação é voltada para o futuro.

As consequências da consolidação desse ideal da juventude apresentam-se nas exigências impostas aos jovens para sua adequação às mudanças da sociedade atual, que criam vários obstáculos à sua projeção da vida. A abstração da categoria juventude dá margem à manipulação da experiência subjetiva desse jovem, dificultando o seu processo identitário e contribuindo para uma crise, uma vez que, ao mesmo tempo em que ele faz parte de uma concepção voltada para os ideais de autonomia, liberdade e vigor, trata-se de um sujeito muitas vezes ameaçado e limitado, exposto a realidades claramente afastadas das suas condições particulares.

Nesse sentido, Fraga e Iulianelli (2003) apontam para uma reflexão: ter a juventude valorizada significa proporcionar espaços sociais relevantes a esse grupo populacional? Ora, é sabido que existe uma distância abismal entre essa representação ideal da juventude e as diversas realidades em que se encontra a maioria dos jovens do Brasil. A distinção que mais se faz presente é a que coloca em lados opostos os jovens de classes sociais distintas, de modo que a ambiguidade nas representações outrora apresentadas logo encontra os sujeitos que as sustentam: para os jovens pobres, resta o estigma da marginalidade e associação à violência e criminalidade e, para os demais, prevalece a ótica progressista, embasada na ilusória liberdade individual.

Isto posto, tem-se que a valorização da idealizada juventude, construída no seio da sociedade de consumo, não está associada, em nenhum aspecto, à oferta de espaços sociais relevantes à população jovem. Ao contrário, tem-se o fato de que os jovens das classes subalternizadas não se adéquam às molduras simbólicas da juventude, o que só contribui para o aumento da significação da pobreza como sinônimo de risco social e para a escassez desses sonhados espaços sociais relevantes.

Vale relembrar que as distinções aqui apresentadas são fruto de uma realidade de extremas desigualdades, que provoca consequências concretas no desenvolvimento da identidade e na vida destes jovens. Desta forma, cabe apresentar algumas informações acerca da configuração sociodemográfica da juventude contemporânea no Brasil.

A (real) juventude contemporânea

Os principais indicadores sociodemográficos apresentados pelas pesquisas oficiais referentes a jovens relacionam-se a índices como educação, trabalho, saúde, violência, dentre outros. As informações apresentadas a seguir, referem-se, em sua maioria, à população na faixa etária de 15 a 24 anos, visto que os relatórios apresentados utilizam essa faixa etária como referência para a população juvenil.

Com relação às taxas de alfabetização, observou-se uma redução do percentual de jovens analfabetos ao longo dos anos, visto que em 1993, 8,2% dessa população era analfabeta e, em 2006, esse índice correspondia a 2,4%. Vale ressaltar que cerca de 65% do total de analfabetos jovens encontrava-se na região Nordeste nesse período (Waiselfisz, 2007). De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/2009 (IBGE, 2010), apesar de ter havido redução desse índice em 2009, a referida região continua apresentando mais que o dobro da média nacional de analfabetos jovens.

Não é coincidência que a região Nordeste apresente tais índices e também seja uma das regiões com menores indicadores de renda per capita do país. Os índices de analfabetismo estão diretamente associados à distribuição de renda no Brasil. Dos jovens 20% mais pobres do país, o percentual que não sabe ler nem escrever é de 6,4%; esse índice vai caindo progressivamente até que, no quintil mais rico, o índice é de 0,4%. Além disso, observa-se uma reprodução familiar do analfabetismo, na qual mais da metade dos pais e mães dos jovens analfabetos também o são. Especificamente no Rio Grande do Norte, a taxa de analfabetismo correspondia, em 2006, a 7,7% na faixa etária jovem, o que demonstra um grande atraso com relação à evolução dos índices nacionais.

Com relação à escolarização, Waiselfisz (2007) aponta ainda que mais da metade (53,1%) dos jovens se encontra fora das salas de aula e, quando matriculados, grande parte está em um nível de ensino que não corresponde à sua faixa etária. Cerca de 14% dos jovens escolarizados cursam níveis de ensino que não correspondem à sua fase de vida. Ao associar esses dois índices, restam menos de 33%, ou seja, um em cada três jovens, que estudam em um nível compatível com sua idade.

Mais um índice nacional que perpassa a questão das classes sociais diz respeito à escolarização adequada, isto é, aquela que abrange pelo menos a formação do Ensino Médio em diante. Dos jovens que compõem os 10% mais pobres da população, apenas 16% tem escolarização adequada, enquanto dos 10% mais ricos, 62,6% possuem essa escolarização.

As diferentes condições socioeconômicas, no que diz respeito aos índices de acesso à educação, reflete a ineficácia da política educacional brasileira. Trata-se de um dos aspectos que mostra que o desenvolvimento econômico no país vem acontecendo em detrimento do desenvolvimento social. O Estado atuante no contexto do modelo neoliberal, em vez de se voltar para aspectos essenciais à população, como a educação, serve às normas do mercado, que regula a economia e limita o acesso à educação de qualidade para alguns que podem pagar.

Outro aspecto relevante a ser abordado com relação à juventude é a sua inserção no mercado de trabalho. Conforme discute Waiselfisz (2007), em 2006, a proporção de jovens que frequenta escola (46,9%) é levemente inferior à dos que trabalham (51%). Mais detalhadamente, aponta que na faixa etária dos 15 aos 17 anos, o estudo prevalece como principal atividade; entre os 18 e os 19 anos, há uma transição do educacional para o mundo do trabalho e, a partir dos 20 anos, este último prepondera. Sobre esse aspecto, a PNAD/ 2009 indica que pouco mais da metade (50,7%) dos jovens de 18 e 19 anos tinham alguma ocupação em 2009, enquanto a proporção era mais elevada (66,9%) entre aqueles na faixa de 20 a 24 anos de idade (IBGE, 2010).

Com relação à ocupação dos jovens, dados apontados pela Organização Internacional do Trabalho – OIT (2001) indicam que dos 22 milhões de jovens economicamente ativos em 2006, no Brasil, cerca de 3,9 milhões estavam desempregados e 11 milhões exerciam ocupações informais. Isto significa que 67% dos jovens brasileiros economicamente ativos se encontravam excluídos de um emprego formal. Esse índice é cerca de 10 pontos percentuais mais elevado com relação à taxa de desemprego e de ocupação formal dos adultos. Também com relação à informalidade, o Nordeste está à frente das demais regiões do país, apresentando 81% dos seus jovens ocupados em situação informal de trabalho. Ao se comparar a formalidade com o índice de escolaridade dos jovens, observa-se uma elevada correlação negativa, ou seja, quanto maior o grau de escolaridade, menor se apresenta o índice de informalidade na ocupação da população. Tal dado se refere tanto a dados nacionais quanto à região Nordeste.

Nagamine (2009) discute que a ocupação informal pode reduzir as possibilidades de o jovem se inserir em um emprego formal no futuro. Assim, os índices de exclusão do trabalho decente devido ao desemprego e à informalidade se constitui em um novo indicador de exclusão social desses jovens, decorrente das desigualdades sociais características do modo de produção capitalista. Aliados a isso, dados da OIT (2001) informam ainda que quase 20% do total de jovens brasileiros não estudavam nem trabalhavam em 2006, o que caracteriza um em cada cinco jovens brasileiros nessa situação de exclusão, que muitas vezes é agravada por determinantes de gênero e raça.

Quando comparados à população em geral, os índices de desemprego dos jovens ganham significativo destaque. Dados da OIT (2001) apontam que independentemente do grau de escolaridade dos jovens, os indicadores de desemprego se apresentam cerca de 2,5 vezes maiores que as taxas das pessoas a partir de 25 anos.

Para facilitar a mensuração da situação de ocupação dos jovens, foi desenvolvido o Índice de Vulnerabilidade Juvenil, que se constitui a partir da soma entre o percentual dos jovens desempregados, os que estão na informalidade, os em condição de inativos e os que não estudam. De acordo com essa definição, em 2006, 55,7% do total dos jovens brasileiros se encontrava em situação de vulnerabilidade – aqui concebida de acordo com Castro (2002), enquanto uma conceituação que sai do círculo meramente descritivo e parte-se para os diferentes níveis de um sistema que contribuem para que certos indivíduos sejam mais vulnerabilizáveis, mesmo dentro de uma mesma classe social.

Associado a tais índices de escolarização e situação laboral, outro aspecto que tem caracterizado a situação juvenil no Brasil refere-se à alta incidência de violência que atinge essa população, principalmente quando relacionada à população em geral. De acordo com Waiselfisz (2010), entre 1997 e 2007, houve um aumento de 23,8% de homicídios contra jovens no Brasil, crescimento superior àqueles cometidos na população total (17,8%). Durante esse período, os homicídios ocorridos na faixa etária entre 15 e 24 anos correspondem a 37,5% do total da população; caso se considere a população entre 15 e 29 anos, esse percentual aumenta para 54,8%. Vale salientar que o contingente de jovens de 15 a 29 anos representava apenas cerca de 20% da população em 2006 (Waiselfisz, 2007), o que agrava a interpretação dos índices de homicídios nessa faixa, visto que se trata de um quinto da população que é alvo de mais da metade das ocorrências desse tipo de violência. Outra informação que corrobora esse índice de vitimização de jovens é referente às causas da mortalidade em que, enquanto na população em geral os homicídios equivalem a apenas 1,8%, com relação aos jovens, esse índice cresce para 39,7% (Waiselfisz, 2011).

Ao se analisar os dados referentes aos homicídios no Rio Grande do Norte, observa-se um quadro semelhante ao encontrado em âmbito nacional. Waiselfisz (2010) aponta que houve um acréscimo de 150,6% nos homicídios ocorridos entre 1997 e 2007 na população geral do estado. Referente ao mesmo período, no entanto, dados da Coordenadoria de Direitos Humanos e Defesa das Minorias (CODEM)1 1 . A Coordenadoria de Direitos Humanos e Defesa das Minorias – CODEM é um órgão vinculado à Secretaria de Estado de Justiça e de Cidadania – SEJUC/RN que realiza um levantamento estatístico dos homicídios ocorridos no estado, através de informações fornecidas pelo Instituto Técnico e Científico de Polícia do RN – ITEP/RN, órgão responsável por registrar e emitir os laudos de exames cadavéricos no RN. apontam estatísticas diferentes, em que se calcula um aumento de 226,6% na ocorrência de homicídios na população do RN, também no decênio citado. Tal discrepância nas informações referentes à situação dos homicídios no RN dificulta o processo de diagnóstico desse tipo de violência, o que inviabiliza uma análise mais aprofundada a respeito da situação da população local em relação à população brasileira, visto que se trata de fontes que apontam indicadores diferentes. Visando sanar essa dificuldade, opta-se por apresentar os dados referentes ao Rio Grande do Norte a partir das informações obtidas pela CODEM.

A situação dos jovens no RN está condizente com o quadro nacional, e, por vezes, se agrava em muitos índices. Entre 1997 e 2007, houve um aumento de 165,4% nos homicídios ocorridos contra jovens de 15 a 24 anos no estado; caso se considere a faixa de 15 a 29, o número decresce para 133,6%. Com relação à capital do estado, Natal/RN, houve um aumento de 202% de homicídios entre as pessoas de 15 a 24 anos, e de 183,3%, ao considerar a faixa de 15 a 29 anos. Vale salientar que nos últimos três anos, os homicídios ocorridos contra jovens em Natal/RN equivalem a cerca de 65% dos ocorridos contra a população total.

Com relação aos dados da violência nacional, o Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ), apresentado por Waiselfisz (2004), estabelece uma correlação entre os índices de renda dos estados e de mortalidade de seus jovens por causas violentas, revelando que existe uma relação intermediária entre essas mortes e as desigualdades sociais. Corroborando essa informação, os dados locais apontam grande concentração das ocorrências de homicídios (mais de 50%) nos cinco bairros com maiores indicadores de pobreza de Natal/RN, que são classificados geralmente entre os últimos colocados na análise da renda per capita, com relação às outras regiões (Natal, 2009).

Considerações finais

Diante das informações apresentadas, entende-se que grande parcela da população juvenil apresenta reais dificuldades de concretização de seus projetos de vida, visto que a sua esfera social determina os limites até onde esse jovem pode ir na sociedade e contribui para a marginalização dos setores mais pobres, em que o acesso a políticas de educação, segurança, bem como ao mercado de trabalho formal apresentam-se de maneira escassa. Isso quer dizer que, como uma construção social, não há um único modo de vivenciar a juventude, já que a mesma ora se apresenta sob diversas faces, entre o ideal e o real.

Como aponta a literatura na área, a combinação de fatores como inserção deficitária na educação e no mercado de trabalho, ausência de oportunidades de lazer e de formação ética para uma cultura de paz têm sido os principais responsáveis por situar esses jovens à margem de uma participação democrática que colabore na construção de identidades pautadas por compromissos de cidadania. Desta forma, esses são alguns dos indicadores que devem colocar a questão juvenil em um papel central na atenção tanto do Estado como da sociedade civil.

A principal preocupação das políticas públicas tem sido combater a violência, por meio da segurança pública, enquanto as iniciativas da sociedade civil estão, em grande parte, centradas na profissionalização desses jovens. No entanto, cabe a seguinte reflexão: será essa a única forma, ou a forma mais eficaz de intervenção de ambos os setores com relação aos jovens?

Defende-se aqui que, para além da realização de políticas e ações paliativas que busquem apenas minimizar os índices apresentados, é necessária a compreensão de que as ações voltadas para os jovens devem ir além da garantia de um direito e estar orientadas ao fomento da participação. A juventude consiste numa categoria social relevante, seja pelas dificuldades ou potencialidades. Cabe então pensar os desafios inerentes à questão da atenção aos jovens, aproximando a temática da juventude das reflexões sobre o desenvolvimento do país. Não basta somente realizar investimentos nas condições sociais e econômicas, mas sim identificar áreas estratégicas para a construção de projetos juvenis de vida, que incorporem sentimento de pertencimento por parte dos jovens em relação à sociedade e desenvolvam ações que possam oferecê-los às ferramentas necessárias para a emancipação e construção da autonomia. Isso por que acredita-se em ações que considerem os jovens como sujeitos políticos, capazes de contribuir com um outro projeto de sociedade.

Nota

Recebido em 05.jul.12

Revisado em 27.nov.12

Aceito em 20.dez.12

Candida de Souza, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Pró-Reitoria de Extensão, Centro de Referência em Direitos Humanos. Av. Gustavo Guedes, 1880, Capim Macio. CEP: 59078-380 – Natal/RN. Caixa-postal: 1524. E-mail: didasouza@gmail.com

Ilana Lemos de Paiva, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é professora do Departamento de Psicologia da UFRN. E-mail: ilanapaiva@hotmail.com

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      05 Jul 2012
    • Aceito
      20 Dez 2012
    • Revisado
      27 Nov 2012
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