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Associação entre déficit visual e aspectos clínico-funcionais em idosos da comunidade

Resumos

OBJETIVO: Identificar os fatores funcionais associados com o déficit visual em idosos da comunidade. MÉTODOS: Foram avaliados 96 idosos quanto à acuidade visual por meio da tabela direcional de Snellen e categorizados em relação à baixa visão (acuidade visual <0,3) e visão normal (acuidade visual >0,3). Os fatores funcionais analisados foram: número de quedas, presença de doenças visuais, saúde mental, pela Geriatric Depression Scale (GDS), funcionalidade nas atividades diárias pelo Brazilian OARS Multidimensional Functional Assessment Questionnaire (BOMFAQ) e a mobilidade funcional pelo Timed Up & Go Test (TUG). A análise inferencial foi realizada por meio dos testes Qui-Quadrado, Mann-Whitney e Coeficiente de Correlação de Spearman, considerando α=0,05. RESULTADOS: Apresentaram baixa visão 17,7% (n=17) dos idosos. Em relação aos idosos com visão normal, os idosos com baixa visão apresentaram idade mais avançada (p<0,001), maior número de doenças de olho e anexos (p=0,023), maiores pontuações para humor deprimido (p=0,002), pior equilíbrio no TUG (p=0,003) e maior número de atividades instrumentais de vida diária comprometidas (p=0,009). Na análise de correlação, quanto menor a acuidade visual, maior a idade, o número de quedas, o número de atividades comprometidas e o tempo no TUG. CONCLUSÕES: Os idosos com déficit visual desta amostra exibiram maior comprometimento funcional. Os dados deste estudo contribuem para a elaboração de uma avaliação fisioterapêutica voltada aos aspectos que possam identificar as limitações funcionais dos idosos com déficit visual e, consequentemente, estabelecer um plano terapêutico mais direcionado a sanar as dificuldades no cotidiano desses idosos.

acuidade visual; baixa visão; atividades cotidianas; limitação da mobilidade; idoso


OBJECTIVE: To identify functional factors associated with visual deficits among community-dwelling older adults. METHODS: Ninety-six older adults were assessed for visual acuity by means of the Snellen Eye Chart and categorized as low vision (visual acuity < 0.3) or normal vision (visual acuity >0.3). The functional factors analyzed were the number of falls, presence of eye diseases, mental health according to the Geriatric Depression Scale (GDS), functional status in daily activities according to the Brazilian OARS Multidimensional Functional Assessment Questionnaire (BOMFAQ) and functional mobility according to the Timed Up & Go Test (TUG). Inferential analysis was performed using the chi-square test, Mann-Whitney test and Spearman correlation coefficient, taking α=0.05. RESULTS: Low vision was found in 17.7% (n=17) of the older adults. Compared to the older adults with normal vision, those with low vision had more advanced age (p<0.001) and more eye and adnexa diseases (p=0.023), higher scores for depressed mood (p=0.002), worse balance in the TUG (p=0.003) and higher numbers of impaired instrumental activities of daily living (p=0.009). Lower visual acuity was correlated with more advanced age, greater number of falls, greater number of impaired activities and longer time spent on the TUG. CONCLUSIONS: The visually impaired older adults in this sample showed greater functional impairment. The data from the present study will contribute to the development of physical therapy assessments that can identify functional limitations among visually impaired older adults and thus establish a better therapeutic plan for resolving the daily difficulties of these individuals.

visual acuity; low vision; activities of daily living; mobility limitation; older adult


ARTIGO ORIGINAL

Associação entre déficit visual e aspectos clínico-funcionais em idosos da comunidade

Lívia C. LuizI; José R. RebelattoII; Arlete M.V. CoimbraIII; Natalia A. RicciII

ICurso de Fisioterapia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos (SP), Brasil

IIDepartamento de Fisioterapia, UFSCar

IIIPrograma de Pós-graduação em Gerontologia, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas (SP), Brasil

Correspondência para Correspondência para: Lívia Cocato Luiz Rua Joaquim de Paula Leite, 407, Vila Suíça CEP 13333-400, Indaiatuba (SP), Brasil e-mail: liviacocato@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Identificar os fatores funcionais associados com o déficit visual em idosos da comunidade.

MÉTODOS: Foram avaliados 96 idosos quanto à acuidade visual por meio da tabela direcional de Snellen e categorizados em relação à baixa visão (acuidade visual <0,3) e visão normal (acuidade visual >0,3). Os fatores funcionais analisados foram: número de quedas, presença de doenças visuais, saúde mental, pela Geriatric Depression Scale (GDS), funcionalidade nas atividades diárias pelo Brazilian OARS Multidimensional Functional Assessment Questionnaire (BOMFAQ) e a mobilidade funcional pelo Timed Up & Go Test (TUG). A análise inferencial foi realizada por meio dos testes Qui-Quadrado, Mann-Whitney e Coeficiente de Correlação de Spearman, considerando α=0,05.

RESULTADOS: Apresentaram baixa visão 17,7% (n=17) dos idosos. Em relação aos idosos com visão normal, os idosos com baixa visão apresentaram idade mais avançada (p<0,001), maior número de doenças de olho e anexos (p=0,023), maiores pontuações para humor deprimido (p=0,002), pior equilíbrio no TUG (p=0,003) e maior número de atividades instrumentais de vida diária comprometidas (p=0,009). Na análise de correlação, quanto menor a acuidade visual, maior a idade, o número de quedas, o número de atividades comprometidas e o tempo no TUG.

CONCLUSÕES: Os idosos com déficit visual desta amostra exibiram maior comprometimento funcional. Os dados deste estudo contribuem para a elaboração de uma avaliação fisioterapêutica voltada aos aspectos que possam identificar as limitações funcionais dos idosos com déficit visual e, consequentemente, estabelecer um plano terapêutico mais direcionado a sanar as dificuldades no cotidiano desses idosos.

Palavras-chave: acuidade visual; baixa visão; atividades cotidianas; limitação da mobilidade; idoso.

Introdução

O declínio na função visual dos idosos é fonte de preocupação no âmbito da saúde pública1. Apesar de sua alta prevalência2, a maioria dos idosos não refere queixa da visão por considerarem essa debilidade típica da idade avançada2,3. Dessa forma, o déficit visual em idosos torna-se pouco detectado na prática clínica2. No sistema visual, o comprometimento pode ocorrer de forma cumulativa e progressiva por meio de danos metabólicos e ambientais, caracterizando a relação de estreita intimidade entre a visão e a senescência3. Associadas às mudanças fisiológicas que ocorrem na visão devido ao envelhecimento, doenças oculares crônicas corroboram o declínio da habilidade visual do idoso4.

O comprometimento visual é usualmente definido pelo valor da acuidade visual, que é parte da visão funcional de um indivíduo4. A acuidade visual é o parâmetro que expressa de forma mais genérica a capacidade de discriminação de formas e contrastes, além de ser um método para se medir o reconhecimento da distância entre dois pontos no espaço e da resolução de suas respectivas imagens sobre a retina5. É o melhor valor que, sozinho, caracteriza a perda visual2, sendo utilizado como critério para definir o comprometimento visual pela Organização Mundial da Saúde (OMS)6.

Um importante fator associado à dificuldade de realização das atividades cotidianas é o déficit visual em idosos7-9. A restrição da participação social e limitação nas atividades que os idosos desejam ou precisam realizar levam à diminuição da qualidade de vida7, o que relaciona a presença de problemas oftalmológicos em idosos às altas taxas de depressão8.

Além disso, a execução segura das atividades cotidianas é dependente, em grande parte, do equilíbrio, sendo que maiores graus de déficit visual foram associados a maior instabilidade postural10,11. As quedas são atribuídas, pelo menos em parte, ao declínio na habilidade que os idosos possuem de extrair informações relevantes do ambiente em que se encontram para a estabilização12 e realização de ações corretivas em meio ao desequilíbrio corporal13,14.

Idosos com comprometimento visual tendem a se exercitar menos, com consequente perda de força muscular, funcionalidade e equilíbrio12, constituindo uma população alvo para os cuidados fisioterapêuticos. Entender por que isso acontece nessa população é importante para que se possam definir estratégias de intervenção eficazes na manutenção da função e da qualidade de vida desses idosos. No entanto, para definir tais estratégias, faz-se necessário investigar a relação entre a baixa visão e a capacidade funcional. O reconhecimento dos fatores relacionados à funcionalidade pode-se dar por meio de medidas diretas e indiretas. As medidas diretas são baseadas na qualidade de execução de testes de desempenho físico, já as medidas subjetivas ou indiretas são compostas por dados de autorrelato para identificar a percepção quanto à função física. Nos idosos, geralmente as medidas diretas indicam mais limitações do que as medidas indiretas15, o que revela que o idoso, muitas vezes, não percebe como prejuízo de função uma dificuldade em sua atividade cotidiana.

Essa tríade, fisioterapia/função/comprometimento visual, entretanto, é pouco estudada, sendo a investigação da relação entre a visão e aspectos clínico-funcionais necessária para a compreensão das dificuldades inerentes ao déficit visual associado ao envelhecimento.

Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo identificar os fatores funcionais associados com o comprometimento visual em idosos da comunidade.

Materiais e métodos

Foi realizado estudo descritivo analítico por meio de pesquisa quantitativa de corte transversal. A presente pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), protocolo número 766/2005.

A amostra de conveniência foi constituída por 96 idosos residentes na comunidade, no município de Amparo, localizado no estado de São Paulo. Para selecionar os participantes de acordo com os critérios de inclusão e exclusão, foi realizada consulta no banco de dados de uma pesquisa populacional sobre o envelhecimento que continha o cadastro dos idosos nas Unidades de Saúde da Família do município.

Os critérios para inclusão foram: idade igual ou superior a 65 anos, gênero masculino ou feminino e deambulação sem dispositivos auxiliares à marcha. Foram excluídos os idosos que apresentaram: limitações físicas e sensoriais absolutamente incapacitantes às atividades de vida diária (AVD), déficit cognitivo (incapacidade de compreender e atender a comando verbal simples e imitar movimentos), cegueira (acuidade visual menor que 0,1 pela Tabela de Snellen10), amputação ou uso de próteses de membros inferiores ou superiores, sequelas neurológicas, doença de Parkinson, fratura em membros inferiores ou coluna após os 65 anos, doença coronariana grave, labirintopatia severa, neuropatia diagnosticada e deformidade incapacitante nos pés.

Todos os participantes foram convidados a participar do estudo de forma voluntária e receberam informações sobre a pesquisa e os procedimentos básicos. Aqueles que se dispuseram a participar assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido conforme as Resoluções 196/96 preconizadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

Os participantes foram submetidos ao protocolo de pesquisa, que incluiu dados sociodemográficos (gênero, idade, estado civil e grau de escolaridade) e clínico-funcionais (número de quedas, doenças visuais, acuidade visual, capacidade funcional, mobilidade funcional e saúde mental).

O número de quedas autorrelatado foi relativo ao último ano, e considerou-se como queda um evento não intencional que tem como resultado a mudança de posição do indivíduo para um nível inferior em relação a sua posição inicial, sem precedência de perda da consciência ou resultante de força externa, como um acidente inevitável16.

Os idosos foram questionados quanto à presença das doenças visuais em entrevista, e foi feita a análise do prontuário das Unidades de Saúde. Essas doenças foram classificadas em "Doenças do Olho e Anexos", categoria contemplada pela Classificação Internacional de Doenças (CID)17.

A avaliação da acuidade visual foi realizada por meio da tabela direcional de E ou Snellen (Snellen-E chart), que é uma medida padronizada para a análise da visão18. Essa avaliação é amplamente utilizada por ser compreendida por alfabetizados e não-alfabetizados, sendo de fácil aplicação e baixo custo10. O teste é realizado com o indivíduo sentado a uma distância de cinco metros da tabela, fixada na parede no nível dos olhos do avaliado. O indivíduo deve indicar para qual direção (para cima, para baixo, para a direita ou para a esquerda) aponta a porção aberta da letra "E". A avaliação visual pode ser feita com cada olho separadamente ou ambos, ou utilizando ou não lentes corretivas, dependendo do objetivo da medida. Como, na presente pesquisa, a intenção era verificar a funcionalidade da visão, foi permitido ao idoso usar lentes corretivas, caso essas fossem de uso habitual, e os dois olhos foram avaliados simultaneamente.

A pontuação é realizada conforme a última linha em que o indivíduo conseguiu acertar todos os "Es". O valor da acuidade visual é descrito pelos valores decimais expostos na lateral de cada uma das linhas da tabela. Entre outras formas de descrição, encontram-se a logarítmica, que utiliza o sistema logMAR19; a descrição fracionária, que utiliza o sistema em metros (3/60) ou em pés de distância (20/400)6. Para se chegar à equivalência entre os métodos, existe uma padronização por meio da equação [0,1 x distância do teste em metros/5], que fornece o valor final em pontuação decimal10. No presente estudo, foi considerado que valores abaixo de 0,3 (ou seus equivalentes fracionários 20/60 e 6/18) são indicativos de baixa visão, como adotados por diversos autores1,6,20.

Para a avaliação da capacidade funcional, foi aplicado o instrumento Brazilian OARS Multidimensional Functional Assessment Questionnaire (BOMFAQ)21. Esse é um instrumento de fácil aplicação e com validade transcultural para o Brasil que avalia a dificuldade autorreferida na realização de oito AVD e sete atividades instrumentais de vida diária (AIVD). As AVDs avaliadas são deitar e levantar da cama, comer, pentear o cabelo, andar no plano, tomar banho, vestir-se, ir ao banheiro em tempo e cortar as unhas dos pés. As AIVDs avaliadas são subir escada, medicar-se na hora, andar perto de casa, fazer compras, preparar refeições, sair de condução e fazer limpeza de casa. Foi utilizado o total de AVD em cuja realização os idosos apresentavam dificuldade; o total de AIVD em que os idosos relataram dificuldade e também o somatório de atividades comprometidas (AVD + AIVD).

Para a avaliação da saúde mental, foi aplicado o instrumento Geriatric Depression Scale (GDS) ou Escala Geriátrica de Depressão22, traduzido e validado para o Brasil23. A versão abreviada tem 15 questões referentes ao estado emocional do paciente na semana anterior à avaliação, com respostas do tipo sim/não. O ponto de corte 5/6 foi considerado como mais adequado para indicar valores de normalidade e valores indicativos de humor deprimido, respectivamente24.

Para a avaliação da mobilidade funcional, foi utilizado o Timed Up & Go Test (TUG), cujo desempenho está relacionado com o equilíbrio, marcha e capacidade funcional de idosos25. Utiliza-se uma cadeira e um cronômetro para marcar o tempo que o idoso leva para levantar de uma cadeira, andar três metros, girar, andar de volta à cadeira e sentar-se25.

Os participantes foram recrutados por meio de contato telefônico ou visitas domiciliares para o agendamento de data e horário de aplicação do protocolo de avaliação. Todo o protocolo foi aplicado em um único dia por três avaliadores previamente treinados (duas fisioterapeutas e um agente de saúde) para a aplicação dos testes, com duração de aproximadamente uma hora em uma sala calma e bem iluminada.

Análise estatística

Para caracterização da amostra, foi realizada análise descritiva dos dados. Foi aplicado o teste de Kolmogorov-Smirnov para verificar a distribuição normal dos dados. Devido à ausência de distribuição normal da variável dependente, foram aplicados testes não-paramétricos. A variável dependente do estudo foi a acuidade visual, utilizada para caracterizar grupos com visão normal (acuidade visual >0,3) e com baixa visão (acuidade visual <0,3).

Ao comparar as variáveis qualitativas categóricas com a variável dependente, foi utilizado o teste Qui-Quadrado; ao ser comparada com as variáveis quantitativas, o teste aplicado foi o de Mann-Whitney. Para verificar a correlação entre o resultado da Tabela de Snellen e as demais variáveis foi utilizado o Coeficiente de Correlação de Spearman.

A análise estatística foi realizada por meio do programa computacional Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) - versão 10.0, com nível de significância para os testes estatísticos de 0,05 (5%).

Resultados

A amostra total foi constituída por 96 idosos residentes na comunidade com idades entre 65 e 91 anos e média etária de 74,82 (±6,93) anos. Esses idosos foram distribuídos igualmente quanto ao gênero (50,0% feminino e 50,0% masculino), sendo que 66,7% (n=64) dos idosos relataram ter vida conjugal, e 42,7% (n=41) dos idosos tinham primário completo.

Em relação à acuidade visual, 82,3% dos idosos (n=79) apresentaram visão normal (acuidade visual >0,3) e 17,7% (n=17) baixa visão (acuidade visual <0,3). Não houve diferença significativa entre homens e mulheres em relação aos diferentes grupos de acuidade visual. A presença de Doenças de Olho e Anexos bem como as pontuações mais altas no GDS (indicativas de humor depressivo) foram significativamente maiores no grupo com acuidade visual mais baixa (<0,3) em relação ao grupo de idosos com visão normal (acuidade visual >0,3) (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta os resultados da análise comparativa da acuidade visual dos idosos com a idade e variáveis funcionais.

Os idosos com baixa visão, comparados aos idosos sem déficit visual, tinham idade mais avançada, pior mobilidade e maior número de AIVD comprometidas. Somente o número total de AVD comprometidas não foi estatisticamente significante quanto à acuidade visual (Tabela 2).

Em relação ao valor total da acuidade visual pela Tabela de Snellen, foi verificada correlação negativa significativa com todas as variáveis quantitativas analisadas, conforme descrito na Tabela 3. Todas as correlações foram fracas, com exceção da idade que teve moderada correlação com o déficit visual.

Discussão

O sistema visual é responsável por mediar parte do aprendizado motor de um indivíduo11. Esse aprendizado é decorrente da integração entre as informações vestibulares, proprioceptivas e visuais ao caracterizar o meio externo para que tarefas cotidianas sejam realizadas de forma eficaz e com pouco esforço11. Ao que tudo indica, existe um ciclo de incapacidade que envolve a deficiência visual. Os idosos com déficit visual apresentam dificuldade para realizar as tarefas cotidianas, andar em ambiente externo de forma segura e, com isso, tendem a diminuir sua participação e isolar-se socialmente, comprometendo sua saúde mental e física3,4. Os resultados deste estudo revelaram a perpetuação desse mesmo ciclo de fatores associados ao déficit visual.

Os idosos deste estudo apresentaram idade superior a 65 anos, caracterizados como grupo de terceira idade pela OMS8. Nessa faixa etária, a prevalência das doenças oculares aumenta e contribui significativamente para a diminuição da visão3,8. Em relação aos idosos de idades mais avançadas, entre os 75 anos e até mais de 90 anos, a prevalência de baixa visão aumenta drasticamente de 5,6% para 30,0%20. Essa relação entre idade e problemas visuais é reforçada pela constatação de que os idosos com acuidade visual mais baixa desta amostra apresentaram maior presença de "Doenças de Olho e Anexos" e também possuíam idade mais avançada do que os idosos com visão normal.

É importante citar ainda que, entre as variáveis correlacionadas com os valores da Tabela de Snellen, a idade foi a de maior correlação com o déficit visual, sendo o fator mais comumente citado como associado ao comprometimento visual2,4,8-10.

Neste estudo, não houve diferença significativa entre os gêneros quando comparados os grupos com diferentes acuidades visuais. No entanto, mais homens apresentaram comprometimento visual, corroborando os achados de Romani3, que afirma que homens apresentam mais frequentemente incapacidade visual do que mulheres. Segundo esse autor, os homens exercem profissões que, provavelmente, os exponham a condições visuais de maior risco3. Segundo Lee e Scudds10, as mulheres têm risco aumentado em 67% de apresentarem comprometimento visual, quando comparadas aos homens, mesmo controlando a idade20. No entanto, não há na literatura um consenso em relação à prevalência do comprometimento visual em relação ao gênero ou etnia26.

Este estudo revelou que idosos com maior comprometimento visual obtiveram maiores pontuações na GDS, confirmando que a idade acima de 60 anos e a incapacidade visual são fatores associados à presença de aspectos depressivos8. Hayman et al.27 verificaram que pessoas com pontuações indicativas de sintomas depressivos na GDS tinham níveis mais altos de prejuízo físico e visual. A saúde mental, a física e o déficit visual são os fatores mais importantes para explicar a depressão em idosos27, O uso do Impact of Vision Impairment (IVI) revelou que os idosos se sentem frustrados e preocupados com a piora visual "uma boa parte do tempo"9. Fatores como a baixa visão e a falta de oportunidade ou confiança para se socializar, associados ao comprometimento funcional, podem contribuir para a depressão27.

O comprometimento visual também está diretamente relacionado à restrição na participação dos idosos, isso porque a baixa visão, especialmente quando somada às limitações nos contextos pessoais e ambientais do idoso, contribui para o declínio funcional e consequentemente dificulta a realização de tarefas do cotidiano9. Ribeiro et al.8 afirmam que a diminuição progressiva e gradual da visão obriga o idoso a adaptar o modo como realiza suas atividades.

O estudo de Berger e Porell4 estabeleceu uma relação hierárquica entre AVD e AIVD para idosos com comprometimento visual. Assim, a baixa visão está associada à maior risco de comprometimento em ambas, no entanto as AIVDs são mais comprometidas pela baixa visão do que as AVDs4. Isso ocorre porque as AIVDs são atividades mais desafiadoras e que necessitam de habilidades visuais e cognitivas complexas para serem bem realizadas, ao contrário das AVDs, que exigem mais habilidades motoras em um ambiente conhecido4. Idosos com baixa acuidade visual tiveram dificuldade na realização das AIVDs e no número total de atividades comprometidas, corroborando os achados de Berger e Porell4. A ausência de diferença significativa em relação às AVDs em idosos com comprometimento visual pode indicar que esse comprometimento ainda não é expressivo o suficiente para que essas atividades, que são as mais simples, também estejam prejudicadas, ou ainda pode indicar que, em uma avaliação indireta como o BOMFAQ, os idosos não referem como prejuízo de função uma dificuldade na realização da tarefa quando conseguem finalizá-la. Isso ressalta a importância da avaliação dos idosos por meio de medidas direta e indireta já que a avaliação pelo desempenho pode identificar o início do declínio na função antes que esse seja referido pelo idoso15.

Lamoureux, Hassell e Keeffe9 também encontraram relação entre a acuidade visual e a restrição na participação. Por meio da aplicação do IVI, a acuidade visual foi considerada fator de risco para dificuldade autorrelatada9. Os idosos relataram ter "uma boa quantidade" de restrição para realizar atividades nos domínios de "lazer e trabalho", "consumo e interação social" e "mobilidade"9. No entanto, as atividades dos domínios "tarefas domésticas e cuidados pessoais" apresentaram "um pouco" de dificuldade9.

Ao contrário das AVDs, que são atividades realizadas dentro de casa, as AIVDs são mais complexas e, geralmente, realizadas em ambiente externo. Idosos com déficit visual e comprometimento na realização das AIVDs geralmente têm dificuldades para andar em meio externo, mais perigoso e com menos segurança, além de maior risco de quedas14. Assim, o nível de acuidade visual afeta também o equilíbrio10. Segundo Lee e Scudds10, idosos sem comprometimento visual foram mais estáveis em relação aos idosos com comprometimento visual nas atividades propostas pela Escala de Equilíbrio de Berg, isso porque os idosos com baixa visão não podem contar com o feedback visual do ambiente que auxilia o sistema nervoso central (SNC) a controlar o equilíbrio10.

Em uma metanálise descritiva, Bohannon28 determina os valores de referência do tempo gasto no TUG para idosos de acordo com as faixas etárias. Os idosos deste estudo excederam os valores médios de tempo gasto no TUG em relação aos valores previstos, mesmo para a faixa etária mais avançada (11,3 segundos), independente do comprometimento visual. Contudo, a piora na acuidade visual aumenta ainda mais o tempo gasto no TUG.

Idosos sem comprometimento visual se comportam de maneira distinta frente a um obstáculo no percurso12. Eles focalizam o obstáculo a ser transposto antes e, com isso, transferem a atenção da atividade que estão realizando para o planejamento da atividade futura12. Desviar o foco de atenção da atividade em realização é um comportamento perigoso para idosos, porque pode aumentar o risco de quedas. Esse comportamento é ainda mais perigoso quando o foco da atenção for um objeto complexo cuja boa visualização é prejudicada pelo déficit visual.

Assim, a dificuldade de permanecer estável frente a ambientes e tarefas complexas pode predispor o idoso às quedas. Houve correlação entre o número de quedas dos idosos e os valores da Tabela de Snellen neste estudo, confirmada pelo fato de os idosos com baixa visão terem idade mais avançada e pior mobilidade em relação aos idosos com visão normal. A relação entre quedas e comprometimento visual foi demonstrada por alguns autores1,2,29, bem como a relação entre quedas e idade12,14,30 e quedas e mobilidade; e quedas e dificuldade de realização de atividades cotidianas10,29, corroborando os achados deste estudo.

Em pessoas com comprometimento do campo visual bilateralmente, mesmo com acuidade visual >0,3, a chance de sofrer quedas é seis vezes maior do que em idosos sem comprometimento de campo visual1, o que indica que não apenas a acuidade visual mas também a perda de campo visual são causas relacionadas ao risco de queda1.

As projeções da OMS6, baseadas na população mundial, preveem 58 milhões de cegos em 2010 e 75 milhões em 2020, sendo que as estimativas em relação à baixa visão afetam aproximadamente três vezes mais pessoas. No Brasil, existem 16,6 milhões de pessoas com algum grau de deficiência visual, sendo quase 150 mil cegos e os demais com comprometimento visual importante31. Vale ressaltar que este estudo avaliou idosos saudáveis quanto à visão funcional, isto é, ambos os olhos e com correção óptica (óculos ou lentes), sendo essa uma limitação, tendo em vista a prevalência inferior do déficit visual (17,7%) em relação às projeções populacionais. No entanto, essas características do estudo revelam que mesmo entre idosos saudáveis é preciso considerar a existência de comprometimento visual associado a prejuízos funcionais importantes.

Quanto às limitações do estudo, é necessário considerar que o relato do histórico de quedas pode ter como viés a memória em relação tanto ao número como ao tipo de instabilidade que os idosos julgam como queda, mesmo sendo utilizada pela pesquisa a definição de Tinetti, Speechley e Ginter16. Embora não tenham sido incluídos idosos com diagnóstico de demência, o uso de teste de rastreio cognitivo, como critério de exclusão, pode auxiliar em dados mais precisos nas medidas de autorrelato.

No presente estudo, os idosos com déficit visual apresentaram idade mais avançada, maior número de Doenças de Olho e Anexos, maiores pontuações para humor deprimido no GDS, pior desempenho no TUG, maior número de quedas, maior número de AIVD e atividades com dificuldade. Assim, os idosos com prejuízo na acuidade visual exibiram maior comprometimento funcional do que aqueles sem problemas visuais. Em termos de aplicações dessas informações na reabilitação, no entanto, a literatura é escassa, sendo a ênfase da fisioterapia restrita às quedas e à adaptação ambiental13,14,32. Desse modo, os achados deste estudo podem auxiliar no desenvolvimento de propostas para uma reabilitação voltada para a população com déficit visual. É importante que os idosos tenham conhecimento sobre como a deficiência visual afeta a execução das tarefas do cotidiano e o equilíbrio na interação com o ambiente, predispondo à queda. Exercícios terapêuticos, associados ao treino funcional e de equilíbrio, realizados especialmente em meio externo, podem oferecer maior segurança na execução das atividades aos idosos com comprometimento visual.

O fisioterapeuta pode propor modificações ambientais, tais como retirar ou fixar tapetes soltos, pintar os degraus, melhorar a iluminação, instalar corrimãos nas escadas, barras para segurar nos banheiros e remover obstáculos13, que podem ser extremamente efetivas na segurança e na facilitação da execução das tarefas.

Dessa forma, a assistência aos idosos com déficit visual é um campo aberto para a reabilitação fisioterápica. Por meio das dificuldades relatadas, apresentadas e caracterizadas por este estudo, o fisioterapeuta pode guiar seu tratamento. Pode ainda estabelecer critérios simples para avaliar os pacientes idosos em relação ao comprometimento visual e direcionar o tratamento para melhorar o equilíbrio, a mobilidade e as atividades diárias. Ainda assim, mais pesquisas são necessárias para caracterizar a população idosa geral com comprometimento da visão.

Recebido: 18/11/2008

Revisado: 17/02/2009

Aceito: 10/03/2009

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009

    Histórico

    • Aceito
      10 Mar 2009
    • Revisado
      17 Fev 2009
    • Recebido
      18 Nov 2008
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