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Avaliação do desempenho motor global e em habilidades motoras axiais e apendiculares de lactentes frequentadores de creche

Resumos

OBJETIVO: Analisar o desempenho motor global em habilidades motoras axiais e apendiculares de lactentes que frequentavam, em tempo integral, duas Escolas Municipais de Educação Infantil. MÉTODOS: Estudo longitudinal do qual participaram 30 lactentes avaliados aos 12 e 17 meses de vida com a escala motora das Bayley Scales of Infant and Toddler Development-III, que possibilita a análise do desempenho motor global, apendicular e axial e a discrepância entre eles. Utilizaram-se o teste de Wilcoxon e o Coeficiente de Correlação de Spearman. RESULTADOS: A maioria dos participantes apresentou desempenho motor global dentro dos limites de normalidade, porém abaixo da média de referência aos 12 e 17 meses, com 30% classificados como suspeitos de atraso em pelo menos uma das avaliações. O desempenho motor axial foi inferior ao apendicular aos 12 e aos 17 meses, com grande discrepância entre eles especialmente na 2ª avaliação. Observou-se marcada variabilidade individual nas habilidades motoras apendiculares, com fraca correlação linear no desempenho entre a 1ª e a 2ª avaliações nesse domínio. Nas habilidades axiais e no desempenho motor global, encontrou-se menor variabilidade individual, com correlações moderadas e positivas entre a 1ª e a 2ª avaliações. Identificaram-se quatro lactentes com suspeita de atraso no desenvolvimento motor em ambas as avaliações. CONCLUSÕES: O estudo aponta necessidade de maior atenção ao desenvolvimento motor durante os primeiros 17 meses de crianças que frequentam creches, com especial vigilância à motricidade axial (considerando que ela é parte integrante do desenvolvimento global da criança) e às crianças com desempenho suspeito de atraso em duas avaliações consecutivas.

creches; lactente; desenvolvimento infantil


OBJECTIVE: To analyze the global motor performance and the gross and fine motor skills of infants attending two public child care centers full-time. METHODS: This was a longitudinal study that included 30 infants assessed at 12 and 17 months of age with the Motor Scale of the Bayley Scales of Infant and Toddler Development, Third Edition (Bayley-III). This scale allows the analysis of global motor performance, fine and gross motor performance, and the discrepancy between them. The Wilcoxon test and Spearman's correlation coefficient were used. RESULTS: Most of the participants showed global motor performance within the normal range, but below the reference mean at 12 and 17 months, with 30% classified as having "suspected delays" in at least one of the assessments. Gross motor development was poorer than fine motor development at 12 and at 17 months of age, with great discrepancy between these two subtests in the second assessment. A clear individual variability was observed in fine motor skills, with weak linear correlation between the first and the second assessment of this subtest. A lower individual variability was found in the gross motor skills and global motor performance with positive moderate correlation between assessments. Considering both performance measurements obtained at 12 and 17 months of age, four infants were identified as having a "possible delay in motor development". CONCLUSIONS: The study showed the need for closer attention to the motor development of children who attend day care centers during the first 17 months of life, with special attention to gross motor skills (which are considered an integral part of the child's overall development) and to children with suspected delays in two consecutive assessments.

day care centers; infant; child development


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação do desempenho motor global e em habilidades motoras axiais e apendiculares de lactentes frequentadores de creche

Carolina T. SouzaI; Denise C. C. SantosI; Rute E. TolockaII; Letícia BaltieriIII; Nathália C. GibimIII; Fernanda A. P. HabechianIII

IPrograma de Pós-Graduação em Fisioterapia, Faculdade de Ciências da Saúde (FACIS), Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Piracicaba (SP), Brasil

IIPrograma de Pós-Graduação em Educação Física, FACIS, UNIMEP

IIICurso de Fisioterapia, FACIS, UNIMEP

Correspondência Correspondência para: Denise Castilho Cabrera Santos Universidade Metodista de Piracicaba Rodovia do Açúcar, Km 156 - Taquaral CEP 13400-911, Piracicaba (SP), Brasil e-mail: dcsantose@unimep.br

RESUMO

OBJETIVO: Analisar o desempenho motor global em habilidades motoras axiais e apendiculares de lactentes que frequentavam, em tempo integral, duas Escolas Municipais de Educação Infantil.

MÉTODOS: Estudo longitudinal do qual participaram 30 lactentes avaliados aos 12 e 17 meses de vida com a escala motora das Bayley Scales of Infant and Toddler Development-III, que possibilita a análise do desempenho motor global, apendicular e axial e a discrepância entre eles. Utilizaram-se o teste de Wilcoxon e o Coeficiente de Correlação de Spearman.

RESULTADOS: A maioria dos participantes apresentou desempenho motor global dentro dos limites de normalidade, porém abaixo da média de referência aos 12 e 17 meses, com 30% classificados como suspeitos de atraso em pelo menos uma das avaliações. O desempenho motor axial foi inferior ao apendicular aos 12 e aos 17 meses, com grande discrepância entre eles especialmente na 2ª avaliação. Observou-se marcada variabilidade individual nas habilidades motoras apendiculares, com fraca correlação linear no desempenho entre a 1ª e a 2ª avaliações nesse domínio. Nas habilidades axiais e no desempenho motor global, encontrou-se menor variabilidade individual, com correlações moderadas e positivas entre a 1ª e a 2ª avaliações. Identificaram-se quatro lactentes com suspeita de atraso no desenvolvimento motor em ambas as avaliações.

CONCLUSÕES: O estudo aponta necessidade de maior atenção ao desenvolvimento motor durante os primeiros 17 meses de crianças que frequentam creches, com especial vigilância à motricidade axial (considerando que ela é parte integrante do desenvolvimento global da criança) e às crianças com desempenho suspeito de atraso em duas avaliações consecutivas.

Palavras-chave: creches; lactente; desenvolvimento infantil.

Introdução

Mundialmente, as referências sobre creches são unânimes em afirmar que elas foram criadas para cuidar das crianças pequenas, cujas mães passaram a realizar trabalhos extradomiciliares. Essa mudança na forma de cuidar e educar as crianças teve início com a Revolução Industrial na Europa (século 18) e se espalhou pelo mundo ocidental. Até hoje, o trinômio mulher-trabalho-criança determina grande parte da demanda por vagas em creches ou instituições de educação infantil1.

Em diversas regiões do mundo, pesquisadores e governo passaram a se preocupar com as repercussões no desenvolvimento da criança decorrentes de cuidados não maternais, associados à inclusão de crianças pequenas em instituições de cuidado coletivo ou creches. Nos Estados Unidos da América, a preocupação se intensificou nos anos 80, quando surgiram os primeiros trabalhos que apontaram resultados desfavoráveis ao comportamento infantil e à relação mãe-filho relacionados a crianças que frequentavam creches2. Esses achados, associados à realidade de crescente inserção de crianças norte-americanas em creches, foram o motor propulsor do maior estudo já conduzido sobre o impacto que esse tipo de situação pode ter no desenvolvimento infantil, o Study of Early Child Care (SECC) instituído pelo National Institute of Child Health and Human Development. Desde 1991, mais de 1.200 crianças têm sido acompanhadas longitudinalmente desde o nascimento até o início da adolescência. Os resultados do SECC apontam que a exposição a creches de boa qualidade é preditiva de avanço funcional nas áreas cognitiva e de linguagem. Por outro lado, nos primeiros quatro anos, a maior exposição (em horas) ao ambiente de creche, ainda que de boa qualidade, está relacionada a elevados níveis de problemas comportamentais2. Resultados semelhantes foram observados em outro grande estudo realizado na Inglaterra, conhecido como EPPE Study (Early Effective Provision of Preschool Education), o qual acompanhou 3000 crianças3.

A literatura internacional demonstra grande preocupação com o impacto da inserção de crianças cada vez mais jovens e por longos períodos nas creches, especialmente no que se refere ao desenvolvimento cognitivo, linguístico socioemocional e comportamental2-4. No entanto, principalmente estudos estrangeiros não incluem o desenvolvimento motor como aspecto a ser investigado. No Brasil, contudo, a preocupação com as repercussões desse modelo de cuidado e educação sobre o desenvolvimento motor tem sido crescente, possivelmente impulsionada pela quantidade de estudos que apontam problemas quanto ao preparo dos profissionais, infraestrutura, adoção de rotinas rígidas com predomínio de atividades voltadas para a alimentação e higiene, além de maior exposição a processos infecciosos5-8.

Santos et al.9 destacam que, no Brasil, diversos estudos relatam suspeita de atrasos no desenvolvimento, incluindo a área de motricidade; no entanto, os resultados não são conclusivos, pois a prevalência de atraso ou suspeita de atraso é bastante heterogênea entre os estudos, variando de 10% a 43%10-15. Outros aspectos marcantes na literatura são os frequentes achados de discrepância ou diferença no desempenho entre os domínios motores axial e apendicular11,13,15,16 além dos relatos de que o ambiente de educação infantil/creche nem sempre age como promotor do desenvolvimento motor nos primeiros anos17,18.

Os estudos brasileiros revistos, embora apontem atrasos ou suspeita de atrasos no desenvolvimento motor, não analisaram a trajetória desse desenvolvimento em crianças de creches, e a maioria realizou apenas uma medida do desenvolvimento (desenho transversal). Considera-se que apenas dados longitudinais permitem conhecer o padrão de emergência de funções desenvolvimentais19 e identificar a natureza variável e não linear do desenvolvimento20.

Dessa forma, propõe-se, neste estudo, analisar o desempenho motor global e em habilidades motoras axiais e apendiculares de lactentes que frequentavam em tempo integral duas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI) na cidade de Piracicaba (SP), Brasil, avaliados longitudinalmente aos 12 e aos 17 meses de vida. São objetivos específicos do estudo: analisar o desempenho motor global e comparar as habilidades axiais e apendiculares aos 12 e aos 17 meses em busca de discrepância entre elas; analisar as trajetórias do desempenho motor axial, apendicular e global dos 12 aos 17 meses de vida; além de identificar os lactentes com suspeita de atraso no desenvolvimento motor considerando as duas medidas do desempenho motor global.

Materiais e métodos

Estudo descritivo e longitudinal no qual 30 lactentes (50% do sexo feminino), frequentadores de duas EMEIs de Piracicaba (SP), Brasil, foram avaliados quanto ao seu desempenho motor global e habilidades motoras axiais e apendiculares aos 12±0,61 meses de vida (1ª avaliação) e aos 17±0,33 meses de vida (2ª avaliação). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Protocolo nº 61/06) da Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba (SP), Brasil.

As EMEIs participantes foram indicadas pela Secretaria de Educação do Município, considerando o interesse da direção local e supervisão regional em participar do projeto e não possuírem nenhuma atividade de Fisioterapia, Educação Física ou qualquer outra atividade intervencionista. Para a seleção do grupo de estudo, foram considerados os seguintes critérios de inclusão: serem frequentadores em tempo integral de EMEI; idade cronológica ou corrigida para prematuridade entre 11 e 13 meses (1ª avaliação) e 17-18 meses (2ª avaliação) e terem o termo de consentimento assinado pela família. Foram excluídas do estudo crianças com alterações neurológicas, síndromes genéticas ou malformações. Para a avaliação do desempenho motor, utilizou-se a escala motora das Bayley Scales of Infant and Toddler Development-III (BSITD-III)21, a qual possibilita a análise do desempenho motor global, apendicular e axial, além de possível discrepância entre os últimos. O desempenho nos domínios axial e apendicular foi expresso por meio de escore padronizado que varia de 1 a 19 pontos, com média de referência de 10±3. O desempenho motor global é a resultante do desempenho axial e apendicular e é expresso por meio de escore padronizado que varia de 40 a 160 pontos, com média de referência de 100±15. Considerando as variações possíveis acima ou abaixo da média de referência, a escala preconiza que o desempenho motor global seja classificado como muito superior (escore 130 ou acima), superior (escore entre 120-129), médio-alto (escore entre 110-119), médio (escore entre 90-109), médio-baixo (escore entre 80-89), limítrofe (escore entre 70-79) e extremamente baixo (escore 69 ou abaixo). Neste estudo, o ponto de corte estabelecido para a classificação de suspeita de atraso no desempenho motor global foi a pontuação abaixo de 90, ou seja, foram consideradas suspeitas de atraso as crianças com desempenho classificado como médio-baixo, limítrofe ou extremamente baixo.

Cada criança foi avaliada considerando a idade cronológica ou corrigida para prematuridade por dois avaliadores, um responsável pela administração do teste e outro pelo registro dos resultados. Os avaliadores participaram de sessões de treinamento da BSITD-III e estudo de concordância incluindo 15 lactentes avaliados independentemente por cada examinador. O coeficiente de correlação interexaminador e correspondente intervalo de confiança (95%) para os desempenhos apendicular, axial e global foram, respectivamente, 0,98 (0,95-0,99); 0,99 (0,98-0,99) e 0,99 (0,98-0,99). Para as avaliações, utilizaram-se colchonete, mesa com cadeira, material original da BSITD-III. A criança deveria estar alerta e livre de roupas que restringissem seus movimentos, o horário do teste seguiu a rotina das creches, respeitando momentos de refeição, banho e sono.

Os dados foram armazenados e processados pelo programa Statistical Package for Social Sciences for Personal Computer (versão 11.0). Para o teste de normalidade, utilizou-se o teste de Shapiro-Wilk para os domínios motor axial (p=0,019), apendicular (p=0,002) e global (p=0,792). Considerando que apenas a variável desempenho motor global apresentou distribuição normal, optou-se pela análise não paramétrica dos dados. A caracterização do grupo foi feita por meio de estatística descritiva. As variáveis contínuas foram expressas por medidas de tendência central e dispersão e as variáveis categóricas por frequências. Para a análise de dados pareados, utilizou-se o teste de Wilcoxon e, para a análise de correlação, aplicou-se o Teste de Correlação R de Spearman e analisou-se o diagrama de dispersão. O nível de significância adotado no estudo foi de 5%.

Resultados

Participaram do estudo 30 lactentes, dos quais quatro (13,8%) nasceram pré-termo (abaixo de 37 semanas) e dois (7%) com baixo peso (abaixo de 2500 gramas). Quanto ao índice de Apgar, a menor pontuação obtida foi oito no 1º minuto de vida. Nenhum lactente apresentou complicações clínicas ao nascer. Os participantes frequentavam em tempo integral duas EMEIs, nas quais a proporção criança/educadora era de 7:1 na faixa etária estudada, com turmas de 14 crianças.

Considerando a classificação recomendada pela escala, a maioria dos participantes apresentou desempenho motor global dentro dos limites de normalidade (acima de 80), porém abaixo da média de referência (100) aos 12 (mediana=97, mínimo=70, máximo=121) e 17 meses (mediana=98, mínimo=79, máximo=124), com nove (30%) participantes classificados como suspeitos de atraso, segundo o ponto de corte adotado no estudo (desempenho médio-baixo ou limítrofe), em pelo menos uma das avaliações (Figura 1A). Mais especificamente, quatro lactentes se classificaram como suspeitos de atraso apenas na 1ª avaliação, quatro na 1ª e 2ª avaliações e um apenas na 2ª. Em ambas as avaliações, nenhum lactente apresentou desempenho extremamente baixo (escore <69).



A comparação do desempenho entre os domínios motores axial e apendicular (teste de Wilcoxon) mostrou diferença significativa, com pior desempenho axial tanto na 1ª avaliação, aos 12 meses (p=0,008), quanto na 2ª avaliação, aos 17 meses (p<0,001), com grande discrepância entre eles especialmente na 2ª avaliação em que 63,3% dos lactentes estudados apresentaram diferença significativa entre os domínios axial e apendicular (Figura 1B).

A trajetória do desenvolvimento motor global, apendicular e axial entre a 1ª e a 2ª avaliações foi analisada por meio do Coeficiente de Correlação de Spearman e do diagrama de dispersão (Figura 2). O diagrama de dispersão (Figura 2A) mostrou marcada variabilidade nos desempenhos individuais entre a 1ª e a 2ª avaliações nas habilidades motoras apendiculares, encontrando-se fraca correlação nesse domínio (r=0,291; p=0,119). Menor variabilidade foi observada nas habilidades axiais e no desempenho motor global, indicada pelas correlações lineares moderadas e positivas entre a 1ª e a 2ª avaliações no domínio motor axial (r=0,616; p<0,001) e no desempenho global (r=0,543; p=0,02) (Figuras 2B e 2C).




Na 1ª avaliação, 22 lactentes foram classificados com desempenho adequado e oito com desempenho suspeito de atraso. Dos 22 lactentes com desempenho adequado na 1ª avaliação, apenas um apresentou desempenho suspeito de atraso na 2ª avaliação. Por outro lado, dos oito lactentes suspeitos de atraso na 1ª avaliação, quatro permaneceram suspeitos na 2ª avaliação, enquanto os demais apresentaram desempenho motor adequado. Em outras palavras, dos 30 lactentes acompanhados neste estudo, foram identificados quatro (13%) com desempenho global suspeito de atraso (pontuações abaixo de 90) em ambas as avaliações. Dentre esses, apenas um nasceu pré-termo (32 semanas de gestação) e com baixo peso (1670 gramas). Os demais nasceram a termo e com peso acima de 2500 gramas.

Discussão

Neste estudo, embora a maioria dos participantes tenha apresentado desempenho motor global dentro dos limites de normalidade, 30% foram classificados como suspeitos de atraso motor global em pelo menos uma das avaliações realizadas. Evidenciou-se ainda desempenho axial inferior ao apendicular aos 12 e aos 17 meses de idade e grande discrepância entre eles, especialmente na 2ª avaliação. Corroborando os achados do presente estudo, a literatura revista aponta com frequência situações de suspeita de atraso ou atraso no desenvolvimento entre crianças frequentadoras de creches. De maneira geral, esses estudos assinalam a multiplicidade de fatores possíveis de afetar o desenvolvimento motor, incluindo riscos biológicos (i.e. baixo peso ao nascer, prematuridade), condição socioeconômica desfavorável, baixa escolaridade dos pais, situações de estresse múltiplo, além de baixo nível de estimulação, muitas vezes decorrentes do ambiente de creche10,12,14,22.

Apoiando os achados do presente estudo, a literatura revista aponta, com frequência, situações de discrepância ou diferença no desempenho entre os domínios motores axial e apendicular, sendo que por vezes, há melhor desempenho apendicular e, por vezes, melhor desempenho axial11,13,15,16. Além de desprivilégio das habilidades axiais em relação às apendiculares, o presente estudo também evidenciou maior variabilidade individual na trajetória da motricidade apendicular, comparada à axial e ao desempenho motor global, ou seja, o domínio motor com pior desempenho (axial) também apresentou menor variabilidade individual entre os 12 e os 17 meses de vida.

Esses achados vãos ao encontro de estudos que revelam que o curso do desenvolvimento é marcado por intensa variabilidade em que períodos de quiescência no desenvolvimento são sucedidos por períodos de alta taxa de aquisições, refletindo em variabilidade nos escores intraindividuais, interindividuais e entre diferentes domínios do desenvolvimento. Pesquisadores contemporâneos têm reforçado a premissa de que a variabilidade, e não a linearidade, é característica do desenvolvimento típico19,20,23,24. Esses pressupostos tornam ainda maior o desafio de identificar corretamente situações de atraso ou alterações no desenvolvimento. Darrah et al.19, ao analisarem a estabilidade intraindividual nos escores de desempenho motor grosso de lactentes típicos ao longo dos primeiros 18 meses de vida, mostraram que a pontuação individual dos lactentes variou consideravelmente, não sendo possível identificar padrão sistemático de mudanças entre eles. Esse achado corrobora o resultado obtido no presente estudo, especialmente referente às habilidades apendiculares, para as quais houve grande variabilidade individual.

Em 2003, Darrah et al.23 investigaram a estabilidade nos escores nas áreas de motricidade fina, grossa e comunicação, em um estudo longitudinal do 9º ao 21º meses de vida. Encontrou-se alta variabilidade nos escores intra-indivíduos, entre os indivíduos e entre os diferentes domínios estudados. Os autores enfatizam que o desenvolvimento típico é marcado pela não linearidade, ao invés de ocorrer em uma taxa constante, com escassa correlação entre o desenvolvimento motor axial e apendicular, sugerindo que essas duas áreas motoras se desenvolvem de forma independente, contradizendo os pressupostos de estabilidade ipsativa ou intraindividual.

Considerando o desafio que é o diagnóstico precoce de alterações, Rosenbaum24 sugere que a identificação de diferenças e variações no desenvolvimento deve ser interpretada cautelosamente, tendo em vista que variações normais ocorrem na infância precoce e que há sempre a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento de uma criança ao invés de basear uma decisão em uma única observação/avaliação. O conceito de vigilância no desenvolvimento também foi enfatizado em estudo que acompanhou a trajetória do desenvolvimento axial e apendicular de um grupo de lactentes desde o 9º mês até o 5º ano de vida20. Os resultados do estudo de Darrah, Senthilselvan e Magill-Evans20 apoiam a hipótese de que a trajetória de aquisição das habilidades motoras axial e apendicular é caracterizada por variabilidade intraindividual e flutuação na taxa de emergência delas.

A diferença entre os domínios motores dos lactentes desta pesquisa pode ser justificada ainda pelo baixo nível de estimulação ambiental ou escassez de oportunidades para que o potencial de desenvolvimento seja atingido. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil17 aponta que há evidências de que, em muitas instituições, os bebês passam a maior parte do dia dentro dos berços, o que limita as oportunidades de exploração do ambiente e de interação com as outras crianças, com possível repercussão nas habilidades motoras.

A pesquisa realizada por Barros, Halpern e Menegon25 objetivou verificar o funcionamento das creches nos aspectos relacionados aos cuidados das crianças (controle de saúde, higiene, alimentação), à organização (responsáveis, qualificação, pessoal mínimo e número de crianças por monitora) e à estrutura física (dependências e áreas mínimas, padrões de construção). Os resultados apontam que as creches públicas atendem um número maior de crianças por unidade do que as privadas, e cada funcionário é responsável por cerca de seis crianças na faixa etária de zero a dois anos. Nas creches participantes do presente estudo, a proporção criança/educadora foi de 7:1, com turmas com até 14 crianças, podendo chegar a 15. Embora, no Brasil, a proporção praticada nas creches municipais seja aceitável26, o National Center for Education and Child Health27, em consonância com a Associação Americana de Saúde Pública e Academia Americana de Pediatria, recomenda que, durante o primeiro ano de vida, a proporção criança/funcionário seja de, no máximo, 3:1, com turmas de até seis crianças e, na faixa etária de 13-30 meses, que essa proporção seja de 4:1, com turmas de, no máximo, oito crianças.

Condições não favoráveis ao desenvolvimento motor em crianças frequentadoras de creches também foram relatadas em outros estudos11,14,22. De Barros et al.11, ao considerarem fatores de risco ambientais para o desenvolvimento motor em crianças saudáveis frequentadoras de creche pública ou privada, apontaram a utilização de brinquedos inadequados para a faixa etária, a inadequação do local onde a criança era mantida em idade precoce, a falta de orientação pedagógica e de socialização extrafamiliar precoce, além da baixa condição socioeconômica familiar. Os resultados indicam que o desenvolvimento de crianças biologicamente saudáveis pode sofrer influência negativa de fatores de risco ambientais. No estudo de Eickmann et al.22, a queda dos índices de desenvolvimento (após suplementação semanal de ferro) em crianças de quatro a 24 meses foi atribuída ao baixo nível de estimulação recebido, decorrente de precárias condições socioeconômicas e ambientais, além da permanência, a maior parte do tempo, na creche, com um número escasso de cuidadores. Maciel14 aponta que, nas creches, a sobrecarga de trabalho, associada à deficiência de conhecimentos sobre técnicas de estimulação do desenvolvimento infantil, pode afetar a qualidade da estimulação psicossocial oferecida às crianças e, por conseguinte, seu desenvolvimento mental e motor.

Outro resultado a ser discutido neste estudo foi a identificação de quatro lactentes com suspeita de atraso no desenvolvimento motor ao se considerarem ambas as avaliações, aos 12 e 17 meses. Embora este resultado deva ser apreciado com cautela, tendo em vista que foram realizadas apenas duas avaliações durante o estudo, é importante destacar que foi decorrente da avaliação por meio de instrumento de diagnóstico do desenvolvimento. Os testes de diagnóstico, embora sejam mais caros e demandem mais tempo de aplicação, são considerados padrão-ouro para medir resultados no desenvolvimento, proporcionando medidas objetivas, válidas e confiáveis da condição do desenvolvimento da criança28. Este resultado é relevante em termos de prevenção, na medida em que identificou quatro (13%) crianças com suspeita de atraso em duas medidas repetidas, além de alertar para a importância da vigilância/acompanhamento do desenvolvimento como estratégia de identificação de situações de risco, o que tem sido uma recomendação marcante na literatura20,23,24.

Destaca-se aqui a possibilidade de que, ao menos para uma das quatro crianças identificadas como suspeitas de atraso nas duas avaliações, os resultados no desempenho motor tenham sido influenciados pela ocorrência de prematuridade e baixo peso ao nascer. Embora a influência de fatores de risco neonatais no desenvolvimento motor seja bastante reconhecida, neste estudo, não foram relatadas complicações clínicas neonatais, e as crianças pré-termo foram avaliadas considerando-se a idade corrigida. Há evidências de que, na ausência de complicações clínicas e com a correção da idade em pré-termos, o desenvolvimento motor possa ser semelhante ao de crianças nascidas a termo29.

Rosenbaum24 destaca ao menos dois motivos que justificariam o acompanhamento do desenvolvimento: a maioria das desordens do desenvolvimento se manifesta no decorrer do tempo e o fato de que o diagnóstico das alterações no desenvolvimento é baseado na observação de fenômenos ou no julgamento que se faz a partir da história e avaliação. Darrah et al.23 destacam que, em conjunto, os resultados de avaliações repetidas podem auxiliar na compreensão a respeito de pontuações baixas obtidas por uma determinada criança no sentido de saber se isso representa uma situação verdadeira de atraso ou apenas um período de quiescência ou estabilidade no desenvolvimento.

Embora os resultados referentes ao desempenho motor do grupo estudado não sejam tão alarmantes, chama atenção o fato de que o domínio motor com pior desempenho (axial) também apresentou menor variabilidade dos 12 aos 17 meses de vida. Para um diagnóstico fidedigno do desenvolvimento motor, sugere-se a presença de três condições20: resultados desfavoráveis no(s) teste(s) de avaliação, manifestação de preocupação por parte da família quanto ao desenvolvimento da criança (no caso deste estudo, também preocupações por parte da creche devem ser consideradas), além da observação e impressão clínica do avaliador. Das quatro crianças com suspeita de atraso nas duas avaliações, duas delas agregam essas três condições que, juntas, contribuem para a identificação de alterações no desenvolvimento.

De maneira geral, o estudo aponta a necessidade de maior atenção ao desenvolvimento motor durante os primeiros 17 meses de idade de crianças que frequentam creches públicas em tempo integral, com especial vigilância à motricidade axial (considerando ser essa parte integrante do desenvolvimento global da criança) e às crianças com desempenho suspeito de atraso em avaliações consecutivas.

Como implicação clínica deste estudo, aponta-se a pertinência do acompanhamento do desenvolvimento motor em instituições de educação infantil por profissionais especializados, o que possibilita a análise da trajetória do desenvolvimento nos primeiros meses e anos de vida, a identificação de crianças com maior risco de atraso e, consequentemente, o estabelecimento de estratégias de intervenção e promoção do desenvolvimento. Essa implicação está em consonância com as orientações para o estabelecimento de estratégias de vigilância do desenvolvimento preconizadas na literatura nas áreas de Fisioterapia Pediátrica e Ciências da Reabilitação20,23,24,28.

Como limitações deste estudo tem-se o acompanhamento até os17 meses de idade, a realização de apenas duas medidas do desempenho e a não investigação da qualidade da atenção dispensada às crianças nas creches e no ambiente familiar.

Agradecimentos

Fundo de Apoio à Pesquisa da UNIMEP/Prot. 369/05; Fundo de Apoio à Extensão da UNIMEP/Prot. 21/06; Bolsas de Iniciação Científica PIBIC/CNPq e FAPIC/UNIMEP; Núcleo de Estudos e Pesquisas em Pedagogia do Movimento - NUPEM/UNIMEP.

Recebido: 27/02/2009

Revisado: 24/08/2009

Aceito: 21/10/2009

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  • Correspondência para:
    Denise Castilho Cabrera Santos
    Universidade Metodista de Piracicaba
    Rodovia do Açúcar, Km 156 - Taquaral
    CEP 13400-911, Piracicaba (SP), Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      27 Fev 2009
    • Aceito
      21 Out 2009
    • Revisado
      24 Ago 2009
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