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Fatores determinantes da capacidade funcional em idosos longevos

Resumos

CONTEXTUALIZAÇÃO: A faixa etária que mais cresce no Brasil e no mundo é a de idosos com 80 anos e mais. Entre esses indivíduos, a prevalência de incapacidades e morbidades é maior que em outros grupos. OBJETIVOS: Investigar a influência de fatores socioeconômicos, demográficos, biológicos e de saúde, nutricionais, de relações sociais, além da autoavaliação da saúde sobre a capacidade funcional de idosos longevos (80 anos e mais). MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, em que os dados foram obtidos por meio de questionários e medidas antropométricas. A capacidade funcional foi avaliada utilizando-se o modelo desenvolvido por Andreotti e Okuma (1999). Foram realizadas análises univariada e multivariada. RESULTADOS: Os fatores independentes associados à pior capacidade funcional foram: ter 85 anos e mais (OR=2,91), ser do gênero feminino (OR=6,09), fazer uso contínuo de cinco ou mais medicamentos (OR=2,67), não visitar parentes e/ou amigos pelo menos uma vez por semana (OR=11,91) e considerar a própria saúde pior que a de seus pares (OR=4,40). CONCLUSÕES: Os resultados sugerem que a capacidade funcional está associada a uma complexa rede de fatores multidimensionais, sendo importante o desenvolvimento de ações relacionadas àqueles fatores que são passíveis de intervenção, visando propiciar melhores condições de saúde e qualidade de vida a esses indivíduos.

capacidade funcional; atividades cotidianas; idoso; modelos logísticos; envelhecimento; saúde do idoso


BACKGROUND: The fastest-growing age group in Brazil and around the world is the oldest-old group (aged 80 and over). Among these individuals, the prevalence of disability and morbidity is higher than in other groups. OBJECTIVES: To investigate the influence of socioeconomic, demographic, biological, health, nutritional, and social factors, as well as perceived health, on the functional status of the oldest old. METHODS: This was a cross-sectional population-based study in which the data were collected by means of questionnaires and anthropometric measurements. The functional status was evaluated according to the model developed by Andreotti and Okuma (1999). Univariate and multivariate analyses were used. RESULTS: The independent factors associated with worse functional status were: age 85 years and over (OR=2.91), female gender (OR=0.69), continuous use of five or more medications (OR=2.67), no visits to friends and/or relatives at least once a week (OR=11.91), and worse perceived health relative to peers (OR=4.40). CONCLUSIONS: The results suggest that functional status is associated with a complex web of multidimensional factors. Thus, it is important to develop programs related to the factors that are susceptible to intervention in order to provide a better quality of life to the oldest old.

functional status; daily activities; older adult; logistical models; aging; older adult health


Fatores determinantes da capacidade funcional em idosos longevos

Silvana L. NogueiraI; Rita C. L. RibeiroI; Lina E. F. P. L. RosadoI; Sylvia C. C. FranceschiniI; Andréia Q. RibeiroI; Eveline T. PereiraII

IDepartamento de Nutrição e Saúde, Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa (MG), Brasil

IIDepartamento de Educação Física, UFV

Correspondência para Correspondência para: Silvana Lopes Nogueira Av. José Maria dos Santos, nº 345, Centro CEP 36.550-000, Coimbra (MG), Brasil e-mail: sillnogueira@yahoo.com.br

RESUMO

CONTEXTUALIZAÇÃO: A faixa etária que mais cresce no Brasil e no mundo é a de idosos com 80 anos e mais. Entre esses indivíduos, a prevalência de incapacidades e morbidades é maior que em outros grupos.

OBJETIVOS: Investigar a influência de fatores socioeconômicos, demográficos, biológicos e de saúde, nutricionais, de relações sociais, além da autoavaliação da saúde sobre a capacidade funcional de idosos longevos (80 anos e mais).

MÉTODOS: Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, em que os dados foram obtidos por meio de questionários e medidas antropométricas. A capacidade funcional foi avaliada utilizando-se o modelo desenvolvido por Andreotti e Okuma (1999). Foram realizadas análises univariada e multivariada.

RESULTADOS: Os fatores independentes associados à pior capacidade funcional foram: ter 85 anos e mais (OR=2,91), ser do gênero feminino (OR=6,09), fazer uso contínuo de cinco ou mais medicamentos (OR=2,67), não visitar parentes e/ou amigos pelo menos uma vez por semana (OR=11,91) e considerar a própria saúde pior que a de seus pares (OR=4,40).

CONCLUSÕES: Os resultados sugerem que a capacidade funcional está associada a uma complexa rede de fatores multidimensionais, sendo importante o desenvolvimento de ações relacionadas àqueles fatores que são passíveis de intervenção, visando propiciar melhores condições de saúde e qualidade de vida a esses indivíduos.

Palavras-chave: capacidade funcional; atividades cotidianas; idoso; modelos logísticos; envelhecimento; saúde do idoso.

Introdução

O aumento da longevidade é um fenômeno mundial, e a faixa etária mais crescente no mundo é a de indivíduos com 80 anos e mais1.

Em 1980, havia no Brasil 591 mil idosos longevos (80 anos e mais), e as projeções indicam que, em 2050, eles serão 13,8 milhões, o que corresponde a um aumento de 2.226%, enquanto a população total aumentaria 81,6% e a de idosos 436%, no mesmo período2.

Esse fenômeno delineia uma série de implicações sociais, culturais e epidemiológicas, uma vez que, nesse grupo etário, a prevalência de morbidades e incapacidades é maior. Apesar disso, ainda são escassos os estudos referentes a idosos longevos, de forma a permitir o conhecimento das condições de saúde desse segmento no pais3,4.

No contexto dos estudos sobre envelhecimento, a morbidade é um dos principais indicadores de saúde analisados. Com menor frequência, encontram-se aqueles que avaliam a capacidade funcional e a autonomia, embora em muitos cenários eles sejam mais importantes que a morbidade, pois se relacionam diretamente com a qualidade de vida5.

A capacidade funcional refere-se à condição que o indivíduo possui de viver de maneira autônoma e de se relacionar em seu meio. Sua perda está associada a maior risco de institucionalização e quedas6 e, em alguns estudos com longevos, foi considerada um fator de risco independente para mortalidade7,8.

Inúmeros estudos têm demonstrado associação entre o aumento da idade e a maior chance de dependência funcional9-12, como também a alta prevalência de incapacidade funcional ou capacidade funcional limitada na população idosa13-16. Essas pesquisas destacam que os anos a mais adquiridos devem ser acompanhados de qualidade de vida e isentos de um alto custo de dependência.

O declínio da capacidade funcional pode estar associado a uma série de fatores multidimensionais, que interagem e determinam essa capacidade em idosos17-19, sendo que a identificação precoce desses fatores pode auxiliar na prevenção da dependência funcional neste grupo.

Diante do exposto, vislumbra-se a importância de investigações sobre os determinantes da capacidade funcional em idosos, considerando-se a possibilidade de medidas de intervenção e prevenção, tanto no que diz respeito à atuação de profissionais que assistem essa população (tais como o fisioterapeuta), quanto do planejamento de políticas públicas. Assim, o presente estudo objetivou determinar os fatores associados à capacidade funcional em idosos longevos, levando-se em conta as dimensões socioeconômicas, demográficas, da saúde, do estado nutricional e das relações sociais.

Materiais e métodos

Realizou-se um estudo de delineamento transversal de base populacional com idosos longevos (80 anos e mais) no município de São Geraldo (Minas Gerais), Brasil, no período de fevereiro a maio de 2008. A cidade se encontra entre os 20 municípios mineiros com maior percentual de idosos e, na microrregião a qual pertence, é a que possui maior proporção desse grupo etário. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa (MG), Brasil, parecer nº 058/2007.

A amostra incluiu 129 idosos longevos, não institucionalizados, de ambos os sexos, representando 96,3% do total da população dessa faixa etária, residentes na zona urbana do município. Os participantes foram localizados a partir do cadastro no Programa de Saúde da Família (PSF) e, ao concordarem, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

O rastreamento de idosos com quadros demenciais foi feito por meio de busca no prontuário do PSF e por relato dos cuidadores. Nesses casos, as perguntas foram respondidas pelo cuidador, e acredita-se que isso não tenha comprometido a validade dos resultados obtidos.

Previamente à coleta de dados, realizou-se um estudo piloto, visando treinamento de entrevistadores e ajuste dos instrumentos de avaliação. A aplicação do questionário com as variáveis de interesse foi feita por entrevistadores. A aferição de medidas antropométricas e a aplicação dos questionários para avaliação da capacidade funcional (CF) e das relações sociais foram realizadas apenas pela pesquisadora principal.

A pesquisa ocorreu em nível domiciliar, e a maior parte dos participantes respondeu ao questionário sozinho, mas na presença de um acompanhante. Em 12,4% dos casos, as respostas foram fornecidas pelo cuidador, pois o idoso não tinha condição de responder.

A partir das medidas antropométricas de peso e estatura, foi calculado o Índice de Massa Corporal (IMC), obtido a partir da relação peso/altura2. Para o diagnóstico do estado nutricional, foram adotados os pontos de corte propostos por Lipschitz20, que considera baixo peso, eutrofia e sobrepeso valores de IMC menores que 22 kg/m2, entre 22 kg/m2 e 27 kg/m2, e acima de 27 kg/m2, respectivamente. A circunferência da cintura (CC) foi medida durante o movimento expiratório normal, no ponto médio entre o último arco costal e a crista ilíaca, com o indivíduo em posição ortostática, adotando-se os pontos de corte recomendados pela Organização Mundial da Saúde21. Entre os idosos que estavam impossibilitados de ficar na posição em pé, não foi feita a medida da circunferência da cintura e, para a estimativa da estatura, foi realizada a medida de altura do joelho, utilizando-se, para tal predição, a equação proposta por Nahas22. Houve uma perda amostral de 9,3% em relação a essas medidas.

Além das medidas antropométricas descritas, o questionário constou dos seguintes blocos de variáveis:

• Socioeconômicas e demográficas: gênero, faixa etária, escolaridade, estado civil, renda, história e tempo de residência na zona rural23.

• Biológicas e de saúde: uso de serviços de saúde e de medicamentos, visão e audição autorreferidas, ocorrência de quedas nos últimos três meses e morbidades autorreferidas, agrupadas de acordo com a Classificação Internacional de Doenças24. A informação sobre os medicamentos de uso contínuo consumidos foi comprovada pela verificação de suas embalagens. A polifarmácia foi definida como o uso simultâneo de cinco ou mais medicamentos25.

• Relações sociais: visitar amigos e/ou parentes pelo menos uma vez por semana, participar de obras sociais, participar de alguma comunidade religiosa, participar de eventos sociais.

• Autoavaliação da saúde: saúde autorreferida e saúde em comparação com seus pares.

As análises estatísticas foram realizadas por meio dos programas Epi Info 6.04 e Stata 7.0, constando de análises univariada e multivariada dos dados. Considerou-se como variável dependente a CF. Para avaliá-la, utilizou-se o modelo desenvolvido por Andreotti e Okuma26, que inclui 40 questões (com valor de 4 pontos cada), envolvendo atividades da vida diária (AVDs) e atividades instrumentais da vida diária (AIVDs). De acordo com a soma de pontos, o idoso foi classificado como tendo CF muito ruim, ruim, média, boa ou muito boa. Para análise dos dados, os participantes foram agrupados em duas categorias: aqueles com CF muito ruim, ruim e média (pior capacidade funcional) e aqueles com CF boa e muito boa (melhor capacidade funcional).

Na análise univariada, empregaram-se os testes de qui-quadrado de Pearson, teste exato de Fisher, e a medida de associação selecionada foi o odds ratio (OR). De acordo com os resultados da análise univariada, foram selecionadas para modelagem multivariada aquelas variáveis que se associaram com a variável dependente com um valor p<0,20.

A análise multivariada foi realizada por meio da regressão logística múltipla hierarquizada. A construção dos modelos fundamentou-se no modelo teórico proposto por Victora et al.27, em que as variáveis foram agrupadas em blocos, de acordo com a precedência com que atuariam sobre a capacidade funcional. Sendo assim, as variáveis mais distais serviram de fatores de ajuste para os blocos hierarquicamente inferiores e foram mantidas nos demais modelos, mesmo que sua significância estatística não fosse preservada. Foram consideradas determinantes distais as variáveis socioeconômicas e demográficas; intermediárias, as biológicas e de saúde, além das atividades sociais, e proximais, as variáveis de autoavaliação da saúde, conforme se visualiza no Anexo 1 Anexo 1 .

Na interpretação dos resultados da regressão, considerou-se p<0,05 como indicativo de associação estatisticamente significante e independente entre um determinado fator e a pior capacidade funcional (PCF) após ajuste para os possíveis fatores do mesmo bloco e dos blocos hierárquicos superiores. Realizou-se o teste de Wald comparando entre si os modelos dos diferentes blocos, testando-se a significância.

Resultados

Foram avaliados 129 idosos, sendo quase 53% do gênero feminino. A idade variou entre 80 e 96, com mediana de 83 anos, sendo que cerca de 65% tinham menos de 85 anos. Parcela considerável dos idosos eram viúvos (46,5%), a distribuição de renda se concentrou na faixa de meio a três salários mínimos, e a escolaridade média foi de 2,4 anos. A grande maioria já havia residido na zona rural (80%), sendo que mais da metade morou por mais de 26 anos no campo. A maioria apresentou capacidade funcional muito boa e boa (71,3%), quase 1/4 apresentava baixo peso, cerca de 1/3 utilizava exclusivamente serviços públicos de saúde e 41% consideravam sua saúde como boa ou ótima.

Na Tabela 1, observa-se o resultado da análise univariada entre as variáveis socioeconômicas e demográficas e a capacidade funcional (CF). O gênero feminino, a faixa etária e a ausência do cônjuge se associaram significativamente à PCF.

Conforme descrito na Tabela 2, diversos fatores relacionados aos aspectos biológicos e de saúde também se associaram à PCF, como a polifarmácia e algumas morbidades, como a depressão, as artropatias, além daquelas classificadas como doenças do sistema nervoso.

No bloco dos aspectos de relações sociais (Tabela 3), verifica-se que o fator "não visitar parentes e/ou amigos pelo menos uma vez por semana" apresentou associação positiva com a PCF, assim como "não participar de alguma obra social e não participar de eventos sociais". Também se observou associação positiva entre pior autopercepção da saúde em comparação à de seus pares e pior capacidade funcional.

Na Tabela 4, encontram-se os resultados da análise de regressão logística múltipla hierarquizada. No Modelo 1, observa-se que a chance de um indivíduo com mais de 85 anos apresentar dependência funcional é três vezes maior do que a de um com menos de 85 anos. Além disso, a chance de uma idosa apresentar PCF é seis vezes maior comparada a de um idoso.

Após ajuste pelos fatores socioeconômicos e demográficos (modelo 2), observou-se associação positiva e independente entre polifarmácia e PCF.

A PCF se mostrou independentemente associada também ao fator "não visitar amigos/parentes pelo menos uma vez por semana", após ajuste pelos fatores socioeconômicos, demográficos, biológicos e de saúde (Modelo 3).

A pior percepção da saúde em relação aos seus pares, após ajuste pelas variáveis dos blocos mais distais, mostrou-se como um fator independentemente associado à PCF (Modelo 4).

O teste de Wald mostrou que a inclusão de cada bloco de variáveis contribuiu de maneira estatisticamente significante para o ajuste dos modelos.

Discussão

Acredita-se que a relevância do presente estudo consiste no fato de que são raras as pesquisas sobre condições de vida e saúde dos idosos longevos no Brasil. Assim, optou-se por estudar os determinantes da capacidade funcional, um dos mais importantes indicadores de saúde em idosos. Ressalta-se a importância de estudos não apenas nos grandes centros urbanos, mas também em cidades que pertencem ao interior do estado e do país, uma vez que 71% dos municípios brasileiros possuem até 20 mil habitantes, que reúnem 18% da população total28.

Cabe destacar que, embora essa pesquisa tenha sido conduzida com idosos residentes na zona urbana, a cidade está localizada no interior do estado e possui características peculiares, algumas tipicamente rurais, tais como menor utilização de transportes motorizados, maior contato de seus moradores com o ambiente rural e hábitos sociais típicos de cidades interioranas, como encontrar os amigos na praça da cidade.

Observou-se que 71% dos longevos do presente estudo apresentaram CF boa ou muito boa, o que significa um alto índice de independência nessa população, sobretudo porque se refere a indivíduos com idade avançada. Ponderadas as diferenças metodológicas, esse resultado é semelhante ao observado por estudos conduzidos em países desenvolvidos, tais como Portugal e China. No primeiro caso, 62% dos idosos com 75 anos ou mais apresentavam melhor CF29. Na China, um estudo longitudinal com longevos identificou uma prevalência de capacidade para realização das AVDs de 83% entre aqueles com 80 a 89 anos, e 63% entre aqueles com 90 a 99 anos30. Não foram identificadas pesquisas nacionais que tenham avaliado a prevalência de incapacidade funcional especificamente em longevos. Ademais, os protocolos utilizados por outros estudos são diferentes, além das questões culturais, o que limita a com-paração dos nossos resultados.

As maiores chances de dependência funcional com o au-mento da idade encontradas nesse trabalho corroboram os resultados de outros trabalhos no âmbito nacional e internacional no que diz respeito ao aumento da idade como um importante fator de risco para a redução da CF10,12,17,31,32.

Destaca-se, neste estudo, a forte associação entre gênero feminino e CF após ajuste pelas variáveis de controle. Esse resultado está em consonância com o observado por outros estudos tanto com idosos em geral11,19,33,34 quanto com idosos longevos35,36. Por outro lado, difere do observado por estudos realizados em Belo Horizonte e São Paulo, embora esses não tenham sido específicos com idosos longevos14,18.

O maior risco de incapacidade entre as idosas pode ser atribuído à maior sobrevida e também à ligeira incapacidade apresentada por elas na vida adulta, o que levaria, portanto, ao maior risco de desenvolverem algum grau de incapacidade funcional35. Numa coorte de idosos, Murtagh e Hubert37 compararam fatores determinantes da incapacidade funcional entre homens e mulheres e observaram grande prevalência de condições não fatais associadas à incapacidade funcional, tais como depressão, fraturas, osteoporose, que contribuem substancialmente para maior incapacidade funcional entre as idosas comparadas aos idosos.

Os participantes do presente estudo apresentaram, em média, cinco morbidades autorreferidas, sendo que 96% disseram ter pelo menos algum tipo de doença. Entretanto, não foi encontrada associação independente entre morbidades (tanto isoladas quanto agrupadas) e a CF. Se por um lado a idade avançada é frequentemente acompanhada por maior número de morbidades, por outro, ter uma doença diagnosticada não significa, necessariamente, ter o mesmo grau de prejuízo nos níveis de saúde e de desempenho nas AVDs e AIVDs38. A independência, por sua vez, é um fator preditivo para o envelhecimento bem sucedido, tanto para os homens quanto para as mulheres idosas39.

No que se refere à associação observada entre polifarmácia e PCF, foram identificados poucos trabalhos que tenham abordado essa questão, sendo que nossos resultados são concordantes com alguns deles40-43.

Peres et al.43 encontraram associação positiva entre a progressão da incapacidade funcional e o número de medicamentos (quatro ou mais) em uma coorte com idosos (65 anos e mais). O alto consumo de medicamentos pode se constituir em uma medida do estado de saúde do indivíduo43. Além disso, pode refletir outros aspectos que não somente as comorbidades, tais como a gravidade da comorbidade ou a probabilidade de iatrogenia e/ou o uso de medicamentos inadequados44. Nesse sentido, Hanlon et al.45 encontraram associação significativa entre o uso inadequado de medicamentos e o declínio da CF em uma coorte de idosos americanos (65 a 105 anos) da comunidade.

Alguns tipos de medicamentos específicos podem estar associados a um pior desempenho funcional, como fármacos anticolinérgicos46. Além disso, tanto a polifarmácia quanto o uso de medicamentos específicos (tais como os benzodiazepínicos) podem estar associados ao maior risco de quedas em idosos47,48. Esse fato alerta para o importante papel que os medicamentos desempenham na manutenção da saúde e da CF dos idosos, sendo fundamentais ações que promovam sua adequada prescrição no processo de atenção à saúde dessa população.

Entre os resultados obtidos, destaca-se a associação independente entre relações sociais e CF. Embora o desenho transversal do estudo não permita estabelecer a direção dessa associação, os resultados observados são consistentes com os achados de outros estudos longitudinais49,50 e transversais14,18,51. Além de melhorar a CF, a vida social do idoso parece interferir positivamente na capacidade de memória, e idosos mais integrados na comunidade apresentam perda de memória mais lenta do que aqueles que não apresentam vida social ativa52, além de terem menor chance de apresentar depressão53.

Em um estudo longitudinal realizado na Dinamarca, a diversidade de relações sociais e elevada participação social foram importantes fatores para a manutenção da capacidade funcional entre idosos com 75 anos e mais, ao passo que a falta de apoio social foi um fator de risco para o declínio funcional entre os homens com 80 anos e mais49. Boult et al .54 também identificaram o apoio social como um fator protetor contra o declínio funcional, embora outro estudo55 não tenha encontrado associação significante entre apoio social e CF.

A associação encontrada entre considerar a própria saúde pior que a de seus pares e ter PCF também foi observada em outros trabalhos11,14,17,31. A autoavaliação da saúde é uma medida global e subjetiva que contempla aspectos cognitivos, emocionais e de saúde física56, e tem se destacado como um impor-tante indicador de saúde, sendo que, em alguns estudos8,57-59, foi considerada um forte indicador de mortalidade para idosos.

Conslusão

Após a modelagem hierarquizada, verificou-se que ter 85 anos e mais, ser mulher, fazer uso contínuo de cinco ou mais medicamentos, não visitar parentes e/ou amigos pelo menos uma vez por semana e considerar a própria saúde pior que a de seus pares se associaram, de forma independente, à pior CF em idosos longevos, o que demonstra a existência de uma complexa rede de fatores associados à CF nessa população.

Deve-se ter cautela ao extrapolar os resultados para outros grupos de idosos longevos, frente a diferenças culturais, socio-econômicas e de estilo de vida. Também é importante ressaltar que a CF foi avaliada por meio de autorrelato, uma vez que a idade avançada dos avaliados, especialmente considerando as questões éticas, dificultaria uma avaliação direta. Novos estudos se fazem necessários nesse sentido.

Considerando-se que ocorrerá aumento expressivo de idosos longevos nas próximas décadas no Brasil, e também a relevância do tema em questão, destaca-se a natureza prevenível de alguns dos fatores associados ao nível de CF neste estudo, tais como o número de medicamentos e as relações sociais. Ações que promovam o uso racional de medicamentos e estratégias que favoreçam a inserção social de idosos podem contribuir para a redução das taxas de prevalência de dependência funcional e melhorar a saúde e a qualidade de vida de idosos longevos.

Recebido: 05/03/2009

Revisado: 24/08/2009

Aceito: 15/12/2009

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Anexo 1

  • Correspondência para:

    Silvana Lopes Nogueira
    Av. José Maria dos Santos, nº 345, Centro
    CEP 36.550-000, Coimbra (MG), Brasil
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Revisado
      24 Ago 2009
    • Recebido
      05 Mar 2009
    • Aceito
      15 Dez 2009
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