Acessibilidade / Reportar erro

Dor osteomuscular, perfil e qualidade de vida de indivíduos com doença falciforme

Resumos

CONTEXTUALIZAÇÃO: As doenças falciformes constituem um grupo frequente no Brasil. Suas alterações ocasionam vaso-oclusão, resultando em isquemia, inflamação, disfunções, dor e hemólise crônica, gerando danos irreversíveis, comprometendo a qualidade de vida. OBJETIVO: Verificar a relação entre a dor osteomuscular, considerando sua localização corporal, e características sociais, econômicas e de qualidade de vida em indivíduos com doença falciforme. MÉTODOS: Foram coletadas informações pessoais, sociais e econômicas, além de dados do Questionário Nórdico de Sintomas Osteomusculares (QNSO) e Short Form 36 em 27 indivíduos. Os dados foram analisados descritivamente por meio de frequências e porcentagens. A análise inferencial usou o teste do qui-quadrado (variáveis dicotômicas) e t de Student (variáveis contínuas), com significância de 5%. Análises de regressão logística utilizaram como variáveis dependentes cada uma das que se relacionaram com dor. RESULTADOS: A média de idade foi de 31,77 anos, predominando sexo masculino, negros, emprego ativo, escolaridade média e rendimento inferior a três salários mínimos. Quadril/membros inferiores, região dorsal, lombar e braços foram mais acometidos pela dor. A capacidade funcional apresentou o maior valor, e saúde mental, o menor. Aspectos físicos foram comprometidos pela dor nos braços, coluna dorsal e lombar. Aspectos sociais não se associaram com a dor, indicando influência de outros fatores. A dor nos braços foi mais frequente entre os negros e os com baixa escolaridade. CONCLUSÃO: A dor nas regiões corporais analisadas relacionou-se com a raça e a escolaridade e com todos os domínios referentes ao componente físico do SF-36. Os componentes vitalidade e saúde mental apresentaram associação significativa com a dor.

anemia falciforme; dor; fisioterapia; qualidade de vida


BACKGROUND: Sickle cell disease is a prevalent condition in Brazil. Its clinical presentation includes vascular occlusion that result in ischemia, inflammation, dysfunctions, pain and chronic hemolysis, causing irreversible damage and compromising quality of life. OBJECTIVE: The objectives of this study were to verify the relationship between musculoskeletal pain, from different body parts, with social economic characteristics and quality of life among individuals with sickle cell disease. METHODS: 27 individuals with sickle cell disease were interviewed with the use of a structured questionnaire with questions about personal, social, economic and cultural variables, the Nordic musculoskeletal symptoms questionnaire and the SF-36 Health Survey. Data were analyzed descriptively using frequencies and percentages. The inferential Chi-Square test was used for dichotomous variables and the Student t- test for continuous variables, with a significance of 5%. A logistic regression was performed using all variables that correlated with pain as dependent variables. RESULTS: The mean age was 31.77 years, predominantly male, black, registered active employment, with average education and income up to three minimum wages. The regions most affected by pain were hip/limbs, chest, lower back and arms. Physical Functioning from the SF-36 had the highest score and mental health the lowest score. Musculoskeletal pain was present in the arms, chest and lower back. Social Functioning was not associated with pain, indicating the influence of other factors. Arm pain was more frequent in black individuals and those with low education. CONCLUSION: Body pain was associated with race and education and all pain areas were associated with the physical components of the SF-36. Pain was significantly associated with vitality and mental health components of the SF-36.

sickle cell disease; pain; physical therapy; quality of life


Dor osteomuscular, perfil e qualidade de vida de indivíduos com doença falciforme

Daniela G. OharaI; Gualberto RuasII; Shamyr S. CastroII; Paulo R. J. MartinsIII; Isabel A. P. WalshII

IFisioterapeuta, Uberaba, MG, Brasil

IIDepartamento de Fisioterapia Aplicada, Instituto de Ciências da Saúde (ICS), Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil

IIIDepartamento de Medicina, ICS, UFTM, Uberaba, MG, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

CONTEXTUALIZAÇÃO: As doenças falciformes constituem um grupo frequente no Brasil. Suas alterações ocasionam vaso-oclusão, resultando em isquemia, inflamação, disfunções, dor e hemólise crônica, gerando danos irreversíveis, comprometendo a qualidade de vida.

OBJETIVO: Verificar a relação entre a dor osteomuscular, considerando sua localização corporal, e características sociais, econômicas e de qualidade de vida em indivíduos com doença falciforme.

MÉTODOS: Foram coletadas informações pessoais, sociais e econômicas, além de dados do Questionário Nórdico de Sintomas Osteomusculares (QNSO) e Short Form 36 em 27 indivíduos. Os dados foram analisados descritivamente por meio de frequências e porcentagens. A análise inferencial usou o teste do qui-quadrado (variáveis dicotômicas) e t de Student (variáveis contínuas), com significância de 5%. Análises de regressão logística utilizaram como variáveis dependentes cada uma das que se relacionaram com dor.

RESULTADOS: A média de idade foi de 31,77 anos, predominando sexo masculino, negros, emprego ativo, escolaridade média e rendimento inferior a três salários mínimos. Quadril/membros inferiores, região dorsal, lombar e braços foram mais acometidos pela dor. A capacidade funcional apresentou o maior valor, e saúde mental, o menor. Aspectos físicos foram comprometidos pela dor nos braços, coluna dorsal e lombar. Aspectos sociais não se associaram com a dor, indicando influência de outros fatores. A dor nos braços foi mais frequente entre os negros e os com baixa escolaridade.

CONCLUSÃO: A dor nas regiões corporais analisadas relacionou-se com a raça e a escolaridade e com todos os domínios referentes ao componente físico do SF-36. Os componentes vitalidade e saúde mental apresentaram associação significativa com a dor.

Palavras-chave: anemia falciforme; dor; fisioterapia; qualidade de vida.

Introdução

A doença falciforme é constituída por um grupo de doenças genéticas mais frequentes no Brasil e em outros países. Caracteriza-se pela mutação no gene da cadeia β da hemoglobina, alterando sua estrutura normal (HbA), originando a S (HbS), podendo surgir ainda a HbSS, a HbSC, as S-talassemias, além de outras formas menos incidentes1,2.

A Portaria nº 1.391/GM instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras hemoglobinopatias, tendo como resoluções: criação de um cadastro nacional dessa população, integralidade da atenção por meio do atendimento de equipe multiprofissional, capacitação dos profissionais para a promoção da educação permanente, promoção do acesso à informação e aconselhamento genético aos familiares e às pessoas com a doença ou o traço falciforme, acesso aos medicamentos essenciais e estimulação à pesquisa para a melhoria da qualidade de vida3.

A HbS apresenta característica química diferenciada, tendo suas funções desempenhadas normalmente quando está em estado oxigenado. Porém, em situações de ausência ou diminuição da tensão de oxigênio, sofre polimerização, alterando a morfologia da hemácia, transformando-a em forma de foice (falcização), resultando em isquemia, inflamação, disfunções e dor, assim como hemólise crônica, que gera danos irreversíveis aos diversos tecidos e órgãos2,4-6.

As crises de dor são frequentes, sendo fatores contribuintes para esse processo: exposição ao frio, esforço físico intenso, hipóxia, desidratação, infecções e traumas gerais2,6. Geralmente, tais crises são a primeira manifestação dessa doença, consideradas como maiores responsáveis pelos altos índices de internações. Podem ocorrer nas extremidades e regiões dorsais e abdominais, impactando negativamente a qualidade de vida7-8.

Desse modo, a dor crônica é considerada como um grave problema de saúde pública, levando-se em consideração que seu tratamento requer uma intervenção distinta, devendo-se voltar a atenção para a superação da dor e estímulo à adoção de habilidades de autocuidado9.

Diversos estudos analisaram dor e qualidade de vida em indivíduos com doença falciforme10-20. No entanto, não se encontrou, em literatura disponível, nenhum que avaliasse a dor referida em regiões corporais específicas, especialmente no sistema osteomuscular (ossos, articulações, músculos, ou estruturas circunjacentes).

Embora os indivíduos devam ser considerados como um todo, fatores relacionados à localização da dor e aos aspectos da vida nos quais ela possa interferir devem ser analisados ao se traçarem objetivos para um plano terapêutico com atuação multiprofissional, em especial da fisioterapia, que pode ter um papel importante, visando à diminuição das crises álgicas, redução das internações recorrentes, melhora da mobilidade global e ganho de condicionamento físico, reduzindo as morbidades e favorecendo a qualidade de vida8.

O objetivo deste estudo foi verificar a relação entre a dor osteomuscular, considerando sua localização corporal, e características sociais, econômicas e de qualidade de vida em indivíduos com doença falciforme.

Método

Identificação do tipo de estudo e população

É um estudo descritivo, transversal, de caráter exploratório e metodologia quantitativa.

A amostra de conveniência foi realizada selecionando-se os indivíduos acima de 18 anos, por meio do levantamento de dados referentes aos cadastros acessados no Hemocentro Regional da cidade de Uberaba (HRU), MG, Brasil e na Associação Regional dos Falcêmicos de Uberaba (ARFA), totalizando 65 indivíduos. Desses, foram excluídos 38 por não terem sido encontrados pela desatualização dos contatos (telefone e endereço), por terem apresentado dificuldade de compreensão e não conseguirem responder aos questionários ou não aceitarem a participação.

Participaram deste estudo 27 indivíduos que atenderam aos critérios de inclusão: acima de 18 anos, diagnóstico de doença falciforme, estabilidade hemodinâmica e clínica, sem crise álgica na avaliação, que concordaram em participar e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

A coleta de dados foi realizada no período de julho a dezembro de 2011.

Procedimento para coleta de dados

Após o levantamento dos cadastros do HRU e da ARFA, iniciou-se a busca pelas datas do agendamento de suas consultas médicas no HRU, a fim de que, para maior comodidade, os questionários fossem aplicados no mesmo dia.

Procedeu-se à coleta dos dados por meio de entrevistas individuais, realizadas em uma sala reservada por um fisioterapeuta previamente treinado. Para manutenção do sigilo, os questionários foram numerados.

Instrumentos para a coleta de dados

Para avaliação do perfil dessa população, foi confeccionado e aplicado um questionário semiestruturado, com dados referentes ao sexo, idade, escolaridade, ocupação, renda mensal e história clínica.

O Questionário Nórdico de Sintomas Osteomusculares (QNSO)21 foi aplicado para a avaliação da dor osteomuscular. Ele foi desenvolvido com a proposta de padronizar a mensuração de relato de sintomas osteomusculares e facilitar a comparação dos resultados entre estudos, tendo sido traduzido para diversos idiomas na última década. Consiste em escolhas múltiplas ou binárias quanto à ocorrência de sintomas em nove regiões corporais, considerando a ocorrência dos sintomas nos 12 meses e nos sete dias precedentes à entrevista, tendo sido validado para o uso no Brasil22.

A avaliação da qualidade de vida foi realizada pelo Medical Outcomes Study 36 (Short Form 36), traduzido e validado no Brasil por Ciconelli et al.23. É um questionário genérico que permite comparações entre diferentes patologias e entre diferentes tratamentos. Considera a percepção dos indivíduos quanto ao seu próprio estado de saúde, contemplando seus aspectos mais representativos. É multidimensional, formado por 36 itens englobados em oito domínios que avaliam tanto aspectos negativos de saúde (doenças e enfermidades) como aspectos positivos (bem-estar). As respostas são transformadas em escores de 0 a 100 para cada componente, no qual zero corresponde ao pior nível de qualidade de vida e 100, ao melhor, não havendo um único valor que resuma toda a avaliação, resultando em um estado geral de saúde melhor ou pior23.

Preparação para o banco de dados

Por não apresentar distribuição normal, a idade foi categorizada em três faixas etárias: 19 a 30 anos, 31 a 42 anos e 43 a 54 anos; a raça, em branca, negra e parda; a escolaridade, em baixa (ensino fundamental), média (ensino médio) e alta (ensino superior) e a renda familiar, em menor que três, de três a seis e maior que seis salários mínimos.

A presença de dor por regiões, avaliada pelo QNSO, foi codificada nas categorias: "não e raramente" e "com frequência e sempre", criando-se uma nova variável dicotômica, tanto para os últimos sete dias quanto para os últimos 12 meses.

Análise dos dados

Os dados foram analisados descritivamente por meio de números absolutos, frequências e porcentagens. A análise inferencial foi realizada com a utilização do teste do qui-quadrado para variáveis dicotômicas e do teste t de Student para as variáveis contínuas, respeitando a normalidade das variáveis, com significância de 5%. Análises de regressão logística foram realizadas usando, como variáveis dependentes, cada uma das que se relacionam com a presença de dor. O método usado foi o backward stepwise selection, em que as variáveis que apresentaram significância na análise inferencial (independentes) foram inseridas todas ao mesmo tempo no modelo, sendo retiradas uma a uma. As variáveis que apresentaram significância entre 0,20 e 0,05 foram mantidas nos modelos de regressão para efeitos de ajuste. A significância adotada para o modelo e para as variáveis foi de 5%. O software estatístico utilizado foi o Stata 9,1.

A análise inferencial bem como a de regressão logística foram realizadas somente com a dor referida nos últimos 12 meses, considerando-se que, como nessa doença as crises de dor são frequentes2,7, os resultados baseados em um período maior poderiam melhor explicar sua repercussão na vida dos indivíduos.

Aspectos legais da pesquisa

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil, sob Protocolo nº 1818. Os indivíduos foram informados sobre os objetivos e a metodologia do estudo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Participaram deste estudo 27 indivíduos com diagnóstico de doença falciforme, sendo 85,20% na forma HbSS; 7,40%, na HbSC e 7,40%, na HbSβ. A média de idade foi de 31,77 anos (DP±1,87), com predominância do sexo masculino (55,56%) e raça negra (59,26%); 37,04% apresentaram emprego ativo com registro em carteira e 59,1% apresentaram média escolaridade e renda baixa (74,07% menor que três salários mínimos).

As médias dos escores referentes aos domínios do SF-36, em ordem decrescente, estão descritas na Figura 1.


Todos os indivíduos referiram dor nos últimos 12 meses e 81,5%, nos últimos sete dias, em pelo menos uma região corporal. Os resultados referentes à distribuição da dor por regiões corporais estão apresentados na Tabela 1. A maior ocorrência de dor foi em quadril/membros inferiores, seguida da região dorsal, lombar e braços, tanto nos últimos 12 meses como nos últimos sete dias.

Os resultados das associações significativas (p<0,05) e com p<0,20 encontrados na análise inferencial estão descritos na Tabela 2 e 3.

A Tabela 4 apresenta os resultados da análise de regressão logística.

Verifica-se que todos os domínios referentes ao componente físico do SF-36 (capacidade funcional, dor, aspectos físicos e estado geral de saúde) apresentaram redução significativa em função da dor nas regiões corporais analisadas, enquanto, dos quatro domínios referentes ao componente mental (saúde mental, aspectos emocionais, vitalidade e aspectos sociais), o resultado foi significativo somente para vitalidade e saúde mental.

Embora o domínio da capacidade funcional tenha sido o de menor comprometimento (escore 86,85), ela foi influenciada pela dor no pescoço/região cervical, ombros e antebraços.

Os aspectos sociais expressaram grande comprometimento (escore de 50,46), no entanto não se associaram significativamente com a dor em nenhuma das regiões estudadas.

O componente da saúde mental foi o mais comprometido no presente estudo (48,29), tendo sofrido influência da dor nos ombros e braços.

A dor nos braços interferiu significativamente na raça (negros apresentaram mais dor), escolaridade (indivíduos com baixa escolaridade tiveram mais dor) e redução dos domínios referentes aos aspectos físicos e saúde mental. A análise de regressão identificou que raça, escolaridade e aspectos físicos foram igualmente afetados pela dor nessa região.

Discussão

A média de idade no presente estudo foi de 31,77 (DP ±1,87) anos, revelando a baixa expectativa de vida a que os indivíduos estão propensos devido às complicações apresentadas por essa enfermidade. Segundo Alves24, 78,6% dos óbitos ocorridos em indivíduos com doença falciforme ocorreram até os 29 anos, demonstrando sua gravidade e letalidade.

A maior prevalência da raça negra está em concordância com a literatura, que descreve um maior acometimento nela, uma vez que a doença é de origem africana, trazida para as Américas por meio da imigração forçada dos escravos. No Brasil, negros e pardos são mais afetados, embora ocorra com uma menor frequência em brancos devido à miscigenação1.

Verificou-se que 100% dos indivíduos referiram dor nos últimos 12 meses e 81,5%, nos últimos sete dias, em pelo menos uma região corporal. Estudo realizado no mesmo local (HRU)25 também demonstrou que a causa mais prevalente dos atendimentos realizados foram as crises álgicas, perfazendo um total de 64,4%.

O sexo masculino foi predominante, talvez pelo pequeno tamanho da amostra. Ainda, não houve diferença estatística significante entre os gêneros com relação à dor. Smith et al.18 realizaram um estudo em que avaliaram a dor de adultos com doença falciforme e também não encontraram diferença.

A maior ocorrência de dor foi em quadril/membros inferiores, seguida da região dorsal, lombar e braços. Taylor et al.26 realizaram uma revisão de literatura sobre a múltipla dimensão da dor crônica em adultos com doença falciforme, encontrando também que a região mais acometida pela dor crônica foi o quadril (cuja variação nos estudos foi de 60% a 100%), seguida pela coluna. Silva e Marques17 refere que, entre os locais mais frequentemente acometidos por quadro álgico, estão o fêmur e a tíbia, e Felix, Souza e Ribeiro15 demonstraram que, entre os locais mais acometidos, estavam os membros inferiores.

A análise inferencial indicou associação significativa entre dor na coluna dorsal e quadril/membros inferiores e maior comprometimento na qualidade de vida no que concerne ao domínio da dor, que avalia a sua intensidade e sua extensão ou interferência nas atividades de vida diária (AVD) do paciente23.

Isso pode ser explicado, pelo menos em parte, pelo estudo de Ballas14, o qual indica que diversas complicações da doença falciforme podem estar envolvidas na dor crônica, como necrose avascular e úlceras em membros inferiores, verificando que 44% da amostra utilizada apresentava úlceras falciformes ou iria ser acometida por elas no decorrer da vida. Ainda, segundo Daltro et al.27, a prevalência da osteonecrose da cabeça do fêmur aumenta com o aumento da faixa etária.

Na doença falciforme, podem ocorrer deformidades, sendo a maioria em consequência da vaso-oclusão recorrente, que pode ocasionar infartos ósseos. Na coluna vertebral, os locais de infarto ósseo podem atingir regiões centrais dos platôs vertebrais, acarretando crescimento em excesso das regiões adjacentes, originando uma deformidade característica dos corpos vertebrais conhecida como "vértebra em H", em que há a depressão central dos platôs28,29.

Esses infartos também podem atingir as regiões epifisárias dos ossos, e metade deles desenvolve a osteonecrose de quadril até os 35 anos de idade, sendo esse mais um fator predisponente ao quadro de dor nessa região. Isso pode ocorrer em qualquer osso, contudo há uma predileção pelo úmero e fêmur29,30. Além disso, mais comuns em homens e tendo incidência aumentada com a idade, o desenvolvimento de úlceras em membros inferiores é frequente, geralmente com acometimento na região de maléolos, ocasionando dores intensas e difícil cicatrização31.

Considerando-se que a capacidade funcional contempla o desempenho das atividades diárias, como capacidade de cuidar-se, vestir-se, tomar banho e subir escadas23, era de se esperar que fosse influenciada pela dor no pescoço/região cervical, ombros e antebraços, como encontrado no presente estudo. Quanto à dor no ombro, sabe-se que pode causar prejuízos à sua mobilidade e força do membro superior como um todo, dando início à sobrecarga de outras estruturas, como a região cervical/pescoço32. No entanto, esse domínio da qualidade de vida foi o que apresentou maior valor, indicando que, apesar da dor, os indivíduos conseguem desempenhar suas atividades diárias. Isso pode ser explicado pelo fato de muitos indivíduos com doença falciforme apresentarem papel passivo no cuidado à saúde pela falta de orientação e de conhecimento de seus direitos, assumindo a dor como parte normal da doença. Acrescenta-se que Lobo, Marra e Silva16 relatam que, embora sintam dor intensa, muitos continuam exercendo suas atividades normalmente, sem demonstrar a imagem esperada de dor intensa que outros sem a doença demonstrariam nessa situação.

O domínio referente aos aspectos físicos, que incluem impacto da saúde física no desempenho das atividades diárias e/ou profissionais23, foi significativamente comprometido pela dor nos braços, coluna dorsal e lombar. Em muitas situações ocupacionais, as características organizacionais e físicas obrigam os trabalhadores a executar suas funções de forma inadequada para as estruturas corporais33. Assim, tais resultados podem estar diretamente relacionados às necessidades do desempenho das atividades profissionais desses indivíduos, visto que a maioria apresenta emprego ativo. Considerando-se o estudo de Ivo e Carvalho34 que, ao investigar os comportamentos dos pacientes com anemia falciforme, identificaram presença de deformidades de articulações em metade da amostra estudada, o que resulta em marcha e postura alteradas, poderíamos supor maior predisposição dos sujeitos do presente estudo à adoção dessas posturas, aumentando a sobrecarga, sendo um disparador e perpetuador das dores nessas regiões.

A baixa escolaridade associou-se significativamente com a dor nos braços, indicando que, além dos aspectos referentes à qualidade de vida, ela pode ajudar na compreensão da interferência da atividade laboral na dor. Segundo Wijnhoven, de Vet e Picavet35, baixa escolaridade e ocupações que englobam esforço físico em excesso (domésticas, trabalhadores da construção civil, serviços gerais, entre outros) são fatores de risco para o desenvolvimento da dor. Muitos indivíduos do presente estudo desempenhavam atividades como doméstica, serviços gerais e lavador de carros, predispondo-os à dor nos braços.

As alterações fisiopatológicas de vaso-oclusão poderiam explicar o fato de os aspectos referentes à avaliação da vitalidade, que engloba tanto o nível de energia como o de fadiga23, terem sofrido influência da dor nos ombros e antebraços. Essa obstrução dos vasos sanguíneos tem como regiões mais comuns de acometimento os ombros, a região de ossos longos e as vértebras, gerando dor e diminuição da concentração de oxigênio, acarretando fadiga17.

Strickland et al.20 verificaram que a dificuldade em lidar com os quadros dolorosos recorrentes comprometeram a qualidade de vida de indivíduos com anemia falciforme nos aspectos físicos, emocionais e sociais.

No presente estudo, os aspectos sociais, que analisam se a integração do indivíduo em atividades sociais foi afetada por seus problemas de saúde23, apresentaram expressivo comprometimento (escore 50,46); enquanto, para os aspectos emocionais, que abordam as limitações no tipo e quantidade de trabalho bem como o quanto essas limitações dificultam a realização do trabalho e de AVD do paciente23, ele foi menor (escore 71,16). No entanto, eles não se associaram significativamente com a dor em nenhuma das regiões estudadas. Esses resultados parecem indicar que tais domínios são influenciados por outros componentes da doença, que não a dor. A instabilidade ocupacional devida ao tratamento da doença, que exige constantes ausências, sendo um fator agravante para atingir um emprego estável e melhor remunerado34, associada à questão financeira, poderia explicar esses resultados, uma vez que, no presente estudo, a maioria apresentou emprego ativo, com registro em carteira e média escolaridade, apesar de a renda permanecer menor que três salários mínimos.

Acrescenta-se que o seu desenvolvimento corporal é mais lento, não correspondendo à sua idade cronológica, o que pode ocasionar diminuição da autoestima, associada ao isolamento social34.

McClish et al.36 avaliaram a qualidade de vida de 308 indivíduos com doença falciforme por meio do questionário SF-36 e verificaram que o domínio de saúde mental, que inclui questões relativas à ansiedade, depressão, alterações do comportamento ou descontrole emocional e bem-estar psicológico23, foi o único que não apresentou escore pior que o da população geral. Os autores explicaram esse evento como resultado do incremento do apoio social, ausência de outros estressores ou mudança de comportamento frente à sua saúde mental, adaptando-se às condições que a doença crônica proporciona. Contrariamente, no presente estudo, o domínio referente à saúde mental foi o mais comprometido (escore 48,29). O prejuízo referente a esse componente pode ser explicado pelo conhecimento da gravidade da doença e de seus comprometimentos, gerando insegurança quanto ao futuro próximo e medo da morte iminente34. Somado a isso, as crises de dor e internações frequentes sofridas no decorrer da sua vida causam ansiedade, depressão, comportamento agressivo e medo10.

Além disso, esse domínio sofreu influência da dor nos ombros e braços, podendo estar relacionada às atividades laborais exercidas, as quais exigem maior esforço físico, podendo diminuir o desempenho em função da dor, o que gera sentimento de inferioridade e baixa autoestima, refletindo diretamente na saúde mental, sendo mais uma das justificativas para o baixo valor atingido.

Algumas limitações foram identificadas no presente estudo. Embora o QNSO tenha se mostrado um instrumento adequado para avaliar a dor em regiões específicas nessa população, o fato de ter sido originalmente elaborado para avaliar a dor nos Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), não permitiu a comparação de seus resultados em indivíduos com doença falciforme, uma vez que não foram encontrados, na literatura disponível, outros estudos que utilizassem esse instrumento para tal população. Além disso, os estudos que associam dor à qualidade de vida geralmente não a identificam nas regiões corporais específicas, dificultando a discussão desta pesquisa com a literatura científica. Assim, novos estudos multicêntricos e com amostras maiores devem ser estimulados, a fim de comparar os resultados aqui encontrados, assim como aprimorar os conhecimentos sobre dor nessa doença.

Conclusão

A dor é um dos sintomas mais presentes no cotidiano dessa população, conforme se identificou neste estudo, no qual todos os avaliados a referiram em pelo menos uma região corporal.

Os aspectos físicos da qualidade de vida sofrem influência da dor em regiões corporais. A dor nos membros superiores contribui para a redução da capacidade funcional, vitalidade, aspectos físicos e saúde mental, além de associação com raça (negros apresentaram mais dor) e escolaridade (baixa escolaridade associou-se com dor). Na coluna vertebral e membros inferiores, a dor contribui para a redução dos escores dos domínios da capacidade funcional, aspectos físicos, estado geral de saúde, saúde mental e dor. A capacidade funcional, aspectos físicos, escolaridade e raça associam-se com a dor em membros superiores, enquanto o domínio dor e estado de saúde associam-se com as regiões das colunas dorsal e lombar.

Espera-se que os resultados desta pesquisa contribuam para o planejamento de intervenções não somente reabilitadoras, mas principalmente preventivas e de promoção da saúde por meio de assistência multiprofissional adequada. Quanto à fisioterapia, seus dados poderão subsidiar tomada de decisões na área, permitindo uma assistência rica em recursos e técnicas para a prevenção e reabilitação osteomuscular, com diminuição e melhora das algias, recuperação da mobilidade, melhora da resistência aos esforços, permitindo aos indivíduos maior aptidão na realização das AVDs e trabalho.

Agradecimentos

À Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação, ao HRU e à ARFA, MG, Brasil.

Referências

  • 1. ANVISA. Manual de diagnóstico e tratamento de doença falciforme. Brasília: [s.d.]; 2002.
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de eventos agudos em doença falciforme. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2009.
  • 3. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1391, de 16 de agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Diário Oficial da União, Brasília (DF), p. 40, col. 2, 2005.
  • 4. Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Manual de Educação em Saúde: autocuidado na Doença Falciforme. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. 70 p.
  • 5. Machado RFP. Hipertensão arterial pulmonar associada à anemia falciforme. J Bras Pneumol. 2007;33(5):583-91.
  • 6. Moreira GA. Repercussões respiratórias da anemia falciforme. J Bras Pneumol. 2007;33(3):xviii-xx.
  • 7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de condutas básicas na doença falciforme. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2006.
  • 8. Silva IA. Atuação fisioterapêutica na anemia falciforme. Lato & Sensu. 2003;4(1):3-5.
  • 9. Carpenter L, Baker GA, Tyldesley B. The use of the canadian occupational performance measure as an outcome of a pain mangement program. Can J Occup Ther. 2001;68(1):16-22.
  • 10. Santos ARR, Miyazaki MCO. Grupo de sala de espera em ambulatório de doença falciforme. Rev Bras Ter Comport Cogn. 1999;1(1):41-8.
  • 11. Filha ACS, Barros FNS, Carvalho FJR, Souza JB, Picão VS. Mensuração da dor em pacientes portadores de anemia falciforme. Revista Digital de Pesquisa CONQUER da Faculdade São Francisco de Barreiras. 2008;3:1-8.
  • 12. Asnani MR, Lipps GE, Reid ME. Utility of WHOQOL-BREF in measuring quality of life in sickle cell disease. Health Qual Life Outcomes. 2009;7:75.
  • 13. Galiza Neto GC, Pitombeira MS. Aspectos moleculares da anemia falciforme. J Bras Patol Med Lab. 2003;39(1):51-6.
  • 14. Ballas SK. Pain management of sickle cell disease. Hematol Oncol Clin North Am. 2005;19(5):785-802.
  • 15. Felix AA, Souza HM, Ribeiro SBF. Aspectos epidemiológicos e sociais da doença falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2010;32(3):203-8.
  • 16. Lobo C, Marra VN, Silva RMG. Crises dolorosas na doença falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007;29(3):247-58.
  • 17. Silva DG, Marques IR. Intervenções de enfermagem durante crises álgicas em portadores de anemia falciforme. Rev Bras Enferm. 2007;60(3):327-30.
  • 18. Smith WR, Penberthy LT, Bovbjerg VE, McClish DK, Roberts JD, Dahman B, et al. Daily assessment of pain in adults with sickle cell disease. Ann Intern Med. 2008;148(2):94-101.
  • 19. Pereira SAS, Cardoso CS, Brener S, Proietti ABFC. Doença falciforme e qualidade de vida: um estudo da percepção subjetiva dos pacientes da Fundação Hemominas, Minas Gerais, Brasil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008;30(5):411-6.
  • 20. Strickland OL, Jackson G, Gilead M, McGuire DB, Quarles S. Use of focus groups for pain and quality of life assessment in adults with sickle cell disease. J Natl Black Nurses Assoc. 2001;12(2):36-43.
  • 21. Kuorinka I, Jonsson B, Kilbom A, Vinterberg H, Biering-Sørensen F, Andersson G, et al. Standardised Nordic questionnaires for the analysis of musculoskeletal symptoms. Appl Ergon. 1987;18(3):233-7.
  • 22. Pinheiro FA, Tróccoli BT, Carvalho CV. Validação do questionário nórdico de sintomas osteomusculares como medida de morbidade. Rev Saúde Pública. 2002;36(3):307-12.
  • 23. Ciconelli RM, Ferraz MB, Santos W, Meinão I, Quaresma MR. Tradução para a língua portuguesa e validação do questionário genérico de avaliação de qualidade de vida SF-36 (Brasil SF-36). Rev Bras Reumatol. 1999;39(3):143-50.
  • 24. Alves AL. Estudo da mortalidade por anemia falciforme. Inf Epidemiol SUS. 1996;5(4):45-53.
  • 25. Martins PRJ, Moraes-Souza H, Silveira TB. Morbimortalidade em doença falciforme. Rev Bras Hemoter Hematol. 2010;32(5):378-83.
  • 26. Taylor LEV, Stotts NA, Humphreys J, Treadwell MJ, Miaskowski C. A review of the literature on the multiple dimensions of chronic pain in adults with sickle cell disease. J Pain Symptom Manage. 2010;40(3):416-35.
  • 27. Daltro G, Alencar DF, Sobrinho UB, Guedes A, Fortuna VA. Osteonecrose da cabeça femoral na anemia falciforme. Gazeta Médica da Bahia. 2010;80(3):29-32.
  • 28. Almeida A, Roberts I. Bone involvement in sickle cell disease. Br J Haematol. 2005;129(4):482-90.
  • 29. Lonergan GJ, Cline DB, Abbondanzo SL. Sickle cell anemia. Radiographics. 2001;21(4):971-94.
  • 30. Yanaguizawa M, Taberner GS, Cardoso FNC, Natour J, Fernandes ARC. Diagnóstico por imagem na avaliação da anemia falciforme. Rev Bras Reumatol. 2008;48(2):102-5.
  • 31. Minniti CP, Eckman J, Sebastiani P, Steinberg MH, Ballas SK. Leg ulcers in sickle cell disease. Am J Hematol. 2010;85(10):831-3.
  • 32. Santos MC, Lancman S. Avaliação da função do ombro em técnicos de trânsito pelo protocolo de Constant-Murley. Fisioter Pesqui. 2008;15(3):259-65.
  • 33. Picoloto D, Silveira E. Prevalência de sintomas osteomusculares e fatores associados em trabalhadores de uma indústria metalúrgica de Canoas - RS. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(2):507-16.
  • 34. Ivo ML, Carvalho EC. Assistência de enfermagem a portadores de anemia falciforme, à luz do referencial de Roy. Rev Latinoam Enferm. 2003;11(2):192-8.
  • 35. Wijnhoven HAH, de Vet HCW, Picavet HSJ. Explaining sex differences in chronic musculoskeletal pain in a general population. Pain. 2006;124(1-2):158-66.
  • 36. McClish DK, Penberthy LT, Bovbjerg VE, Roberts JD, Aisiku IP, Levenson JL, et al. Health related quality of life in sickle cell patients: the PiSCES project. Health Qual Life Outcomes. 2005;3:50.
  • Correspondence to:
    Daniela Gonçalves Ohara, Rua Felipe Achê, 447, Bairro Boa Vista, CEP 38070-030, Uberaba, MG, Brasil, e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      26 Fev 2012
    • Aceito
      18 Maio 2012
    • Revisado
      05 Fev 2012
    Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Fisioterapia Rod. Washington Luís, Km 235, Caixa Postal 676, CEP 13565-905 - São Carlos, SP - Brasil, Tel./Fax: 55 16 3351 8755 - São Carlos - SP - Brazil
    E-mail: contato@rbf-bjpt.org.br