INTRODUÇÃO
Giardia duodenalis é um protozoário que infecta o ser humano, sendo responsável por cerca de 35% dos mais de 199 surtos por veiculação hídrica causados por protozoários no mundo no período de 2004 a 2010 (BALDURSSON & KARANIS, 2011). O hospedeiro infectado com Giardia spp. elimina na ordem de 107 cistos por grama de fezes, sendo que a ingestão de um pequeno número dessas formas infectantes (10 a 1.000 cistos) é suficiente para causar a infecção (CACCIÒ & RYAN, 2008). Cistos de Giardiaspp. persistem no ambiente, mantendo-se infectantes por até 2 meses em água doce a 20ºC, e há elevada resistência aos desinfetantes mais usualmente utilizados no tratamento da água para consumo humano, como, por exemplo, o cloro (RYU et al., 2008).
Os processos oxidativos avançados (POAs) são utilizados para obtenção do radical hidroxila (•OH), um agente de alto potencial oxidante (E=2,80 V) (CORDEIRO et al., 2004). Vários processos são utilizados para a geração desse radical: ozonização em meio básico (O3/OH-), fotocatálise heterogênea (TiO2/UV), reagente de Fenton (Fe2+/H2O2/H+), foto-Fenton (Fe2+/H2O2/H+/UV), peroxidação assistida com luz ultravioleta (H2O2/UV), dentre outros (MATTOS et al., 2003). Dentre os POAs, a H2O2/UV oferece como vantagem a acessibilidade comercial do peróxido de hidrogênio, sua estabilidade térmica e armazenagem no próprio local de uso (DOMÈNECH et al., 2001) e a radiação UV ser eficiente em inativar micro-organismos como bactérias e vírus (GUIMARÃES & BARRETTO, 2003).
Uma molécula de H2O2 produz, teoricamente, dois radicais hidroxila quando submetida a uma fonte de energia suficiente para romper a ligação entre os dois átomos de oxigênio (Equação 1). O rendimento quântico (f) é de 0,98 a 254 nm.
H2O2 →•OH+•OH UV (1)
Embora com eficiência comprovada para mineralização de compostos recalcitrantes e inativação de bactérias e vírus, estudos desse POA sobre patógenos mais resistentes, como protozoários e helmintos, são incipientes (RODRIGUES-SILVA et al., 2013). Poucos estudos sobre esses organismos indicam que a aplicação do POA (H2O2/UV) foi capaz de reduzir protozoários e helmintos presentes em amostras de esgoto (GUADAGNINI et al., 2013; GUIMARÃES et al., 2014).
Para avaliar a inativação dos cistos de Giardia spp., embora trabalhoso e demorado na geração dos resultados, o melhor modelo ainda é a experimentação animal (in vivo), uma vez que os corantes vitais e o método de excistação in vitro super ou subestimam a eficiência dos processos avaliados (SAKAMOTO et al., 2001). A avaliação da infectividade de protozoários de veiculação hídrica com métodos que associam o cultivo celular e os corantes vitais com a reação em cadeia de polimerase (polymerase chain reaction - PCR) tem sido realizada e se mostra promissora (ALUM et al., 2012; LIANG & KEELEY, 2012).
A alteração estrutural de cistos de Giardia spp. possui associação com resultados de experimentos de infecciosidade animal, sendo, assim, uma medida válida para a inferência da inativação desse organismo ao se observar danos à forma e/ou à fluorescência do cisto (WIDMER et al., 2002).
A identificação por meio de coloração com reação de imunofluorescência direta (RID), utilizando anticorpos monoclonais conjugados com o corante fluorogênico FITC (que confere fluorescência aos organismos), se mostra 12 vezes mais eficiente que as técnicas tradicionais de coloração de protozoários e pode ser uma medida indireta da integridade da parede do cisto de Giardia spp., área que, ao ser danificada, impede a reação antígeno anticorpo, levando a falhas na visualização desse organismo.
O objetivo do presente estudo foi avaliar os danos causados às paredes de cistos de G. duodenalis quando submetidos aos processos de peroxidação (H2O2) e peroxidação assistida por radiação ultravioleta (H2O2/UV).
METODOLOGIA
Em todos os experimentos foi utilizada solução aquosa, elaborada com água ultrapura (Milli-Q(r)) e adição de sais (APHA, 2005). Os cistos de G. duodenalis utilizados nos ensaios foram purificados de fezes humanas (SMITH & SMITH, 1989), e, para a identificação da espécie, foi utilizado Kit DNA ZR Fungal/Bacterial DNA(r), com amplificação por PCR usando gene da proteína β giardin (MAHBUBANI et al., 1992).
Os cistos foram inoculados na ordem de 2x103 em um litro da solução salina e submetidos aos processos oxidativo (H2O2) e oxidativo avançado (H2O2/UV), de acordo com as condições experimentais expostas na Tabela 1.
Tabela 1. Condições experimentais dos processos de peroxidação (H2O2) e peroxidação assistida por radiação ultravioleta (H2O2/UV).
Processo | No de ensaios |
CH2O2 (mg L-1) |
Tempo de ensaio (s) | Dose de UV (mW s cm-2) |
---|---|---|---|---|
Peroxidação | 3 | 6x10* | 3.600 | – |
3 | 6x103 | 1.800 | – | |
6 | 15** | 5,5 | – | |
H2O2/UV | 3 | 6x103 | 3.600 | 5.472*** |
3 | 6x103 | 1.800 | 2.736*** | |
6 | 15 | 5,5 | 44**** |
Com base em: *BARBEE et al. (1999) ; WEIR et al. (2002) ; QUILEZ et al. (2005) ; **DOMÈNECH et al. (2001) ; ***CLANCY et al. (2000) ; ****SHIN et al. (2009). UV: ultravioleta.
Foi utilizado um sistema experimental, conforme descrito em Rodrigues-Silva et al. (2013), que foi descontaminado após cada ensaio, recirculando soluções de eluição (Tween 80, 0,1%), hipoclorito de sódio a 1% e água ultrapura. Após os processos peroxidação e POA, os organismos presentes na solução eram concentrados por filtração em membrana de fibras mistas de ésteres de celulose (D=47 mm; porosidade nominal=3 μm), segundo Franco et al.(2001).
Visualização dos cistos de G. duodenalis por reação de imunofluorescência direta e microscopia eletrônica de varredura
Para a confecção da lâmina de RID, foi aplicado o protocolo de homogeneização de Redlinger et al. (2002) e visualizadas alíquotas de 15 μL (n=3). A RID é baseada na reação entre anticorpos monoclonais anti-Giardia (conjugados com o fluorocromo FITC) e epítopos da parede dos cistos (Figura 1). Quando observado em microscópio de epifluorescência, o fluorocromo gera a cor verde-maçã brilhante (USEPA, 2012).

Figura 1. Esquema da reação de imunofluorescência direta mostrando a ligação dos epítopos da parede de cistos (antígeno) com o anticorpo conjugado com FITC e a geração de fluorescência utilizada para observação.
Para facilitar a avaliação de um possível dano causado à parede dos cistos, foi proposta uma escala de classificação (Tabela 2) segundo a observação realizada por RID (Figura 2).
Tabela 2. Classificação dos cistos, pela coloração de reação de imunofluorescência direta, quanto ao dano* ou não à parede do organismo após os processos.
Classe | Característica |
---|---|
A | Sem alteração de forma e fluorescência padrão (Figura 2A) |
B | Sem alteração de forma e com alteração de fluorescência (Figura 2B) |
C | Com alteração de forma e fluorescência padrão (Figura 3A) |
D | Com alteração na forma e com alteração de fluorescência (Figura 3B) |
*dano: medida usada para inferir a inativação dos cistos de G. duodenalis.

Figura 2. Cisto de G. duodenalis observado com reação de imunofluorescência direta (600x), classificações A (A), B (B), C (C) e D (D).
As lâminas para a observação por microscopia eletrônica de varredura (MEV) foram preparadas segundo o protocolo de Bozzola e Russell (1999).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Processo oxidativo avançado
A observação dos cistos de G. duodenalis remanescentes após o POA mostra que tal processo teve ação sobre a parede do cisto, nas três condições estudadas.
Observa-se que quando foram aplicadas a maior dose de UV e a maior concentração de peróxido de hidrogênio, obteve-se maior porcentagem de cistos danificados (46%) e maior porcentagem de dano C e D, com 35% dos cistos danificados.
Quando utilizadas a menor concentração do oxidante e a menor dose de UV, foi observada uma porcentagem de 45,3% de danos nos cistos remanescentes, semelhante à obtida com a alta concentração de peróxido de hidrogênio e dose de UV (Tabela 3).
Tabela 3. Danos (%) observados nos cistos de G. duodenalis após aplicação do processo oxidativo avançado.
Dano | Dose de UV 5.472 mW s cm-2 6x103 mg L-1H2O2 |
Dose de UV 2.736 mW s cm-2 6x103 mg L-1H2O2 |
Dose de UV 44 mW s cm-2 15 mg L-1H2O2 |
---|---|---|---|
A | 54 | 65 | 54,7 |
B | 11 | 23 | 41,5 |
C | 32 | 8 | 3,8 |
D | 3 | 4 | 0 |
UV: ultravioleta.
Pôde-se verificar, ainda, uma redução do número inicial de cistos inoculados na amostra (Tabela 4).
Tabela 4. Redução média (%) dos cistos de G. duodenalis após aplicação do processo oxidativo avançado.
Dose de UV 5.472 mW s cm-2 6x103 mg L-1H2O2 |
Dose de UV 2.736 mW s cm-2 6x103 mg L-1H2O2 |
Dose de UV 44 mW s cm-2 15 mg L-1H2O2 |
|
---|---|---|---|
Redução do número de cistos |
32,4 | 62,6 | 40,6 |
UV: ultravioleta.
Quando observado o número de cistos, verificou-se maior taxa de redução quando utilizada a dose de UV de 2.736 mW s cm-2. De uma maneira geral, a geração de radicais hidroxila foi mais eficiente nas condições experimentais de baixa concentração de oxidante e dose de UV, pois, nessa condição, ocorreu maior alteração na forma dos cistos e taxa de redução semelhante às demais condições.
A hipótese de que altas doses (de oxidante e UV) promoveriam maior ação sobre o protozoário não se confirmou. Sabe-se que a aplicação de peróxido de hidrogênio em alta concentração resulta em uma interferência negativa no processo, pois o oxidante "sequestra" os radicais hidroxila, gerando outro radical, o hidroperoxila (HO2 •), que possui um menor potencial de oxidação (DOMÈNECHE et al., 2001). A produção de espécies reativas de oxigênio é maior em valores de pH próximos ao neutro (HARGREAVES et al., 2007). Isso pode também explicar a baixa eficiência do processo, já que o pH do meio reacional nesses ensaios foi próximo a 4.
As imagens de MEV mostram que cistos não submetidos aos processos estavam íntegros (Figura 3A). Após a aplicação do POA, independentemente da dose utilizada, alterações na forma e na superfície foram observadas (Figura 3B), corroborando os resultados obtidos pela RID.
Processo químico: peroxidação
Utilizando a menor concentração de peróxido de hidrogênio com menor tempo de contato, obteve-se o maior número de cistos com alteração de fluorescência, quando comparada com as maiores concentrações e os maiores tempos de contato. A alta concentração promoveu um aumento para 25% de cistos com alteração de fluorescência, quando o tempo de contato foi de 60 minutos. Já a aplicação de 15 mg.L-1 de peróxido de hidrogênio (contato de 5,5 s) alterou cerca de 52% da fluorescência dos cistos de G. duodenalis, porém com pouca ação em alterar a forma dos cistos (classificações C e D) (Tabela 5). A redução do número de cistos foi observada em apenas duas das três condições experimentais avaliadas: com a alta e a baixa concentração do oxidante (Tabela 6).
Tabela 5. Danosobservados nos cistos de G. duodenalis após aplicação da peroxidação ().
Dano | 6x103 mg L-1 H2O2 60 minutos |
6x103 mg L-1 H2O2 30 minutos |
15 mg L-1 H2O2 5,5 segundos |
---|---|---|---|
A | 75 | 89 | 47,7 |
B | 25 | 7 | 51,8 |
C | 0 | 2 | 0,5 |
D | 0 | 2 | 0 |
Tabela 6. Redução média (%) dos cistos de G. duodenalis após aplicação da peroxidação.
6x103 mg L-1 H2O2 60 minutos |
6x103 mg L-1 H2O2 30 minutos |
15 mg L-1 H2O2 5,5 segundos |
|
---|---|---|---|
Redução do número de cistos | 37,2 | 0 | 30,8 |
A observação com MEV mostrou retrações de membrana e alterações na superfície nos organismos somente após o POA (Figura 3B). A peroxidação causou, em média, alteração de fluorescência ou forma em apenas 29,4% dos cistos submetidos a esse processo.
A parede dos cistos de G. duodenalis possui 43% de carboidratos, sendo formada basicamente de um complexo de carboidratos e peptídeos (ERLANDSEN et al., 1996). Segundo Ferreira e Matsubara (1997), o radical hidroxila pode reagir e inativar as proteínas que compõem as membranas celulares, oxidando seus grupos sulfidrilas (-SH) e as pontes de dissulfeto (-SS), provocando descaracterização e alteração das propriedades dessas membranas.
A destruição de um micro-organismo ocorre em função da oxidação da parede celular e, consequentemente, de seu rompimento. Essa ação leva ao extravasamento celular, a difusão do oxidante por toda a célula, atingindo e danificando enzimas que comprometem a síntese proteica (GUIMARÃES et al., 2004).
A peroxidação lipídica provoca alterações na estrutura da membrana, como redução da permeabilidade, ou mesmo outras mudanças que produzam deterioração na organização interna da membrana (LABAS et al., 2008). Isso explica as alterações de forma e/ou características de fluorescência que puderam ser observadas por MEV e RID, respectivamente, na parede cística de G. duodenalis, após os processos estudados.
Mesmo com a redução no número de organismos pelos processos, a taxa média de recuperação de tais estruturas, após POA e peroxidação, foi de cerca de 55 e 77%, respectivamente, permitindo um número consistente de organismos para observação de dano.
Comparando os resultados, o POA foi o processo que causou maior redução no número e dano à parede de cistos G. duodenalis, independentemente da concentração peróxido de hidrogênio e da dose de UV utilizada.
CONCLUSÕES
A peroxidação assistida por radiação UV foi o melhor processo para reduzir o número de organismos e alterar a sua fluorescência, independentemente da dose de UV e da concentração do oxidante utilizado.
Quando utilizada a menor dose de radiação UV e concentração do oxidante, foi observada uma maior porcentagem de organismos com alteração de fluorescência, indicando a possibilidade de sua aplicação prática.
Estes resultados sugerem o POA como possível agente de inativação de protozoários.