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Proposta de índice de salubridade ambiental domiciliar para comunidades rurais: aspectos conceituais e metodológicos

Household environmental health index proposal for rural communities: conceptual and methodological aspects

RESUMO

O presente artigo apresenta a construção do índice de salubridade ambiental domiciliar focado no meio rural (ISA/DR) como instrumento para diagnóstico e avaliação das condições de saúde-ambiente em meio rural, assim como sua aplicação em comunidades ribeirinhas da Amazônia. A construção do ISA/DR foi realizada com base em três referenciais: a teoria do índice de salubridade ambiental urbana para áreas de ocupações espontâneas; os aspectos teóricos e conceituais da relação saneamento e saúde; e as informações resultantes de diagnósticos de saneamento e pesquisas socioeconômicas realizadas em comunidades ribeirinhas. Para quantificar os diferentes níveis de salubridade ambiental domiciliar rural, foi efetuada a aplicação do ISA/DR aos domicílios de oito comunidades localizadas em duas unidades de conservação de uso sustentável no estado do Amazonas, Brasil. Apesar das comunidades apresentarem características sociais, econômicas, culturais e ambientais relativamente semelhantes, o ISA/DR, como instrumento de representação de fenômenos da realidade vivenciada (salubridade ambiental domiciliar), teve sensibilidade suficiente para captar a variação da situação de salubridade dos domicílios entre as comunidades estudadas. Dessa forma, recomenda-se o ISA/DR como instrumento que permite apontar cenários que direcionariam as prioridades de investimentos e ações de políticas públicas voltadas à reversão da realidade de saúde e salubridade ambiental de domicílios do meio rural brasileiro.

Palavras-chave:
Amazônia; domicílio rural; índice; salubridade ambiental

ABSTRACT

This paper aims to present the construction of a household environmental health index focused on rural areas (ISA/DR) as a tool for diagnosis and assessment of the rural health-environment conditions, as well as its application for Amazon rural communities. The ISA/DR construction was conducted based on three benchmarks: the theory of environmental health index for spontaneous urban areas occupations; the theoretical and conceptual aspects of the relation between water supply, sanitation and health; and the information from sanitation and socioeconomic surveys in Amazon rural communities. To quantify the different levels of environmental health situation of rural household, we applied the ISA/DR to households in eight communities located in two protected areas for sustainable use in the state of Amazonas, Brazil. Although the communities present relatively homogeneous social, economic, cultural and environmental characteristics, the use of ISA/DR as a tool for representing the phenomena of the experienced reality (household environmental health) was sensitive enough to capture the variation in the environmental health status among households of the studied communities. Therefore, we conclude that ISA/DR could be used as a tool that could direct investment priorities and public policies actions that aim at reversing the reality of environmental health of Brazilian rural households.

Keywords:
Amazon; rural household; index; environmental health

INTRODUÇÃO

Indicador e índice

Indicadores e índices são utilizados como instrumentos de sensibilidade de algum fenômeno e seus conceitos estão amparados em características e propriedades semelhantes. Porém, suas definições e objetivos são distintos. De acordo com Sobral et al. (2011SOBRAL, A.; FREITAS, C.M.; PEDROSO, M.M.; GURGEL, H. (2011) Definições básicas: dados, indicadores e índices. In: BRASIL. Saúde ambiental: guia básico para construção de indicadores. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador . p. 25-52., p. 38), um indicador “procura indicar e evidenciar um fenômeno”. Índice pode ser definido como a integração de indicadores dentro de um parâmetro representado, geralmente, por um número adimensional. Segundo os mesmos autores, ele “tenta sinalizar por meio de um valor (medida-síntese) tanto uma relação de contiguidade com o representado, quanto a evolução de uma quantidade em relação a uma referência” (SOBRAL et al., 2011SOBRAL, A.; FREITAS, C.M.; PEDROSO, M.M.; GURGEL, H. (2011) Definições básicas: dados, indicadores e índices. In: BRASIL. Saúde ambiental: guia básico para construção de indicadores. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador . p. 25-52., p. 38). E como ele é resultado da integração de indicadores, grande parte dos atributos destes pode ser extrapolada para os índices e é possível usar ambos os termos dentro de um processo de pesquisa ou avaliação que necessite de instrumentos para representar a realidade.

Atributo importante da definição de indicadores e índices refere-se à forma de converter dados brutos em informações úteis para gestores e tomadores de decisão. Dessa forma, servirão, antes de tudo, como ferramenta de comparação que pode ser utilizada em escalas territoriais, populacionais ou temporais (CORVALÁN; BRIGGS; KJELLSTRÖM, 2000CORVALÁN, C.; BRIGGS, D.J.; KJELLSTRÖM, T. (2000) The need for information: environmental health indicators. In: CORVALÁN, C.; BRIGGS, D.; ZIELHUIS, G. (Orgs.). Decision-making in environmental health: from evidence to action. Londres: E & FN Spon WHO.). Nesse artigo, indicadores e índices foram utilizados para representar os elementos dentro de cada componente do modelo força motriz-pressão-situação-exposição-efeito-ações (FPSEEA). O modelo FPSEEA enquadra-se em uma proposta de organização de indicadores em uma cadeia causal, que busca explicar de maneira integrada como a condição de saúde está inter-relacionada com diferentes componentes causais ligados à temática saneamento e saúde. O modelo FPSEEA enfatiza que a condição de saúde não resulta apenas da exposição a um único fator de risco, mas está relacionada a componentes causais múltiplos.

Uma das possíveis limitações do indicador como revelador da realidade é a utilização de um único parâmetro que representa apenas uma dimensão dessa realidade. Como vantagem, reduz-se ao máximo a subjetividade inserida no indicador, pois o juízo de valor estará restrito ao parâmetro escolhido. No entanto, o parâmetro selecionado pode não ser o mais adequado para representar questões relevantes dessa realidade.

Nesse caso, a escolha do índex pode ser uma alternativa mais representativa, a qual sintetiza, em um único parâmetro, a reprodução da realidade pelo agrupamento de vários indicadores relevantes. Esse instrumento, ao viabilizar a integração de maior quantidade de aspectos/dimensões da realidade, amplia a chance de representar questões relevantes em abordagens nas quais as relações causais não são bem consolidadas e definidas. Porém, ao mesmo tempo em que o índice pode representar a realidade de forma ampliada, caracteriza-se por agregar mais subjetividade, pois cada indicador que o compõe carrega uma atribuição própria de juízo de valor.

A escolha pela utilização de indicadores ou índices vai depender do objetivo pretendido com seu emprego. Geralmente esses instrumentos podem ser utilizados em dois níveis: descritivo e normativo. No primeiro, isso é feito quando o objetivo é descrever o estado de um sistema (WALZ, 2000WALZ, R. (2000) Development of environmental indicator systems: experiences from Germany. Environmental Management, v. 25, p. 613-623. https://doi.org/10.1007/s002670010048
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), enquanto no segundo, refletem explicitamente juízos de valor ou critérios normativos, que dependem de padrões estabelecidos por normas e aspectos culturais (SOBRAL et al., 2011SOBRAL, A.; FREITAS, C.M.; PEDROSO, M.M.; GURGEL, H. (2011) Definições básicas: dados, indicadores e índices. In: BRASIL. Saúde ambiental: guia básico para construção de indicadores. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador . p. 25-52.). Nesse último caso, os indicadores ou índices funcionam como sensores para avaliar a saúde de um sistema (econômico, físico, biológico ou humano). Ambos os níveis podem ser utilizados para avaliar mudanças no ambiente (MCGEOCH, 1998MCGEOCH, M.A. (1998) The selection, testing and application of terrestrial insects as bioindicators. Biological Reviews, v. 73, p. 181-202. https://doi.org/10.1111/j.1469-185X.1997.tb00029.x
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) e em propostas de avaliação de políticas e programas (BURGER, 2006BURGER, J. (2006) Bioindicators: a review of their use in the environmental literature 1970-2005. Environmental Bioindicators, v. 1, p. 136-144. https://doi.org/10.1080/15555270600701540
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).

Utilização de indicadores de saúde, ambiente e saúde ambiental

Indicadores e índices vêm sendo utilizados frequentemente no campo da saúde, ambiente e saúde ambiental como instrumentos de sensibilidade de fenômenos relevantes.

A base histórica de dados de indicadores no campo da saúde é bem consolidada e destacam-se aqueles referentes à mortalidade e morbidade e suas diferentes causas. Na área ambiental, o histórico de uso de indicadores é mais recente. Seu emprego vem se estabelecendo a partir da década de 1970, quando começaram a surgir as primeiras preocupações vinculadas à “saúde” do ambiente. Em geral, os indicadores utilizados nessa área são instrumentos de sensibilidade das condições ambientais, como temperatura atmosférica e nível de precipitação.

Indicador de saúde ambiental é definido por Freitas et al. (2011FREITAS, C.M.; SOBRAL, A.; PEDROSO, M.M.; BARCELLOS, C.; GURGEL, H. (2011) Indicadores de Saúde Ambiental. In: Brasil. Saúde ambiental: guia básico para construção de indicadores. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. p. 73-86., p. 75) como

uma medida que sintetiza, em termos facilmente compreensíveis e relevantes, alguns aspectos da relação existente entre a saúde e o ambiente. Em outras palavras, trata-se de uma forma de expressar o conhecimento científico sobre a inter-relação da saúde com o ambiente, ao qual os gestores e tomadores de decisão podem recorrer quando pretendem basear suas ações em evidências.

Dias, Borja e Morales (2004DIAS, M.C.; BORJA, P.C.; MORAES, L.R.S. (2004) Índice de salubridade ambiental em áreas de ocupação espontâneas: um estudo em Salvador - Bahia. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 9, n. 1, p. 82-92.) exemplificam a construção de um índice de saúde ambiental, denominado índice de salubridade ambiental urbana para áreas de ocupações espontâneas (ISA/OE), desenvolvido e aplicado no contexto de áreas de ocupação espontânea em escala de comunidade em Salvador, Bahia, Brasil. A principal proposta desse índice é contribuir para a construção de instrumento de avaliação de políticas públicas voltadas à avaliação da salubridade ambiental e que possa ser utilizado pelo poder público e pela sociedade na tomada de decisão sobre políticas para essas áreas de saúde e ambiente.

Ainda no mesmo estudo, os autores afirmam que “a metodologia do ISA/OE está sujeita a aprimoramento com a continuidade de sua aplicação” (DIAS et al., 2004DIAS, M.C.; BORJA, P.C.; MORAES, L.R.S. (2004) Índice de salubridade ambiental em áreas de ocupação espontâneas: um estudo em Salvador - Bahia. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 9, n. 1, p. 82-92.). Além disso, asseguram que “novas investigações podem incorporar variáveis não consideradas nesse estudo e que tenham relação com a salubridade ambiental” (DIAS et al., 2004DIAS, M.C.; BORJA, P.C.; MORAES, L.R.S. (2004) Índice de salubridade ambiental em áreas de ocupação espontâneas: um estudo em Salvador - Bahia. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 9, n. 1, p. 82-92.).

Apesar da relevância do desenvolvimento de indicadores/índices de saúde ambiental, não foram encontrados outros estudos sobre a ampliação da aplicação da proposta desse índice e não houve incorporação dessa sugestão na avaliação de políticas públicas. No entanto, diante da importância e carência de informações na área, essa concepção deve ser retomada e desenvolvida em diferentes contextos e aplicações.

Saúde ambiental no meio rural

Dados oficiais indicam que, no Brasil, desde a década de 1970, vem ocorrendo um processo de esvaziamento do meio rural, com inversão demográfica entre o rural e o urbano. Em 2010, apenas 16% da população brasileira vivia no meio rural (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). (2010) Censo demográfico 2010. Disponível em: <Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=264529 >. Acesso em: 3 jul. 2013.
http://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes...
). Apesar da taxa reduzida, em termos absolutos, o povo campesino representa cerca de 30 milhões de habitantes. Esse contingente populacional pode ser mais expressivo, pois os dados oficiais podem não refletir adequadamente a realidade do rural brasileiro, uma vez que carregam problemas decorrentes da base conceitual que embasa a definição do urbano e do rural no país (DA VEIGA, 2003DA VEIGA, J.E. (2003) Cidades Imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. 2. ed. Campinas: Autores Associados. 304 p.).

Apesar da população rural ser representativa, são poucas as informações levantadas e os indicadores produzidos e disponibilizados sobre ela. A realidade das condições de salubridade ambiental de comunidades rurais brasileiras, considerando-se a variável “acesso a serviços de saneamento básico”, tem como principal fonte de informação a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1967, cuja abrangência completa do território nacional só foi alcançada em 2004, incluindo os meios urbano e rural (IBGE, 2012INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). (2012) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012. Rio de Janeiro: IBGE.).

No campo “saneamento básico”, a maioria das informações da PNAD se refere ao acesso a serviços públicos (serviço de abastecimento de água, coleta de resíduos sólidos, entre outros) e não foca nas condições de salubridade ambiental do domicílio, quando há necessidade da inter-relação entre indicadores ambientais e de saúde.

Considerando-se essa base de dados e fundamentos da área da saúde, verifica-se que as condições de saneamento e os indicadores de saúde da população rural são precários e reportam situação alarmante, apresentando taxas significativamente inferiores às da população urbana. Apenas 37% da população rural têm acesso ao serviço de abastecimento público de água, 78% contam com algum tipo de esgotamento sanitário e somente 23% são servidos pela coleta regular de resíduos sólidos (IBGE, 2012INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). (2012) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012. Rio de Janeiro: IBGE.).

Dentro da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), os indicadores de saúde (mortalidade e morbidade) são construídos majoritariamente com base nas notificações apresentadas por estruturas públicas do sistema de saúde, caracterizadas pelo grau mais complexo de serviços de saúde (hospitais, unidades de saúde), que estão geralmente situados no meio urbano do município. Com isso, os dados de saúde da população rural ou são diluídos nos atendimentos realizados nos centros urbanos, quando ocorre o deslocamento do paciente para o meio citadino, ou os casos não são notificados. Assim, a realidade de saúde no meio rural acaba sendo incorporada à realidade urbana, tornando-se desassistida de informações essenciais a serem utilizadas para a tomada de decisão e reversão do quadro crítico encontrado.

O Programa Saúde da Família (PSF) - que possibilita o registro de dados sobre as condições de moradia, situação familiar e de saúde, no âmbito do domicílio, os quais compõem o Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB) - é uma alternativa para se obter dados mais específicos sobre a realidade de saúde de populações rurais. No entanto, embora o PSF tenha sido implantado em 1994, não é universal, pois não cobre todas as localidades rurais do país. O SIAB ainda disponibiliza dados agregados por município, não especificando as informações provenientes da zona rural de cada município. Essa lógica de disponibilização de informação dificulta o acesso a dados específicos e a interpretação das distintas realidades existentes entre o urbano e o rural.

Apesar de não haver disponibilidade de dados específicos sobre o meio rural, alguns estudos indicam que as taxas de parasitoses intestinais apresentadas na área rural da região amazônica, relacionadas ao déficit de acesso ao saneamento, variam entre 53,4 e 76,0% (BERNARDES & GÜNTHER, 2010BERNARDES, C.; GUNTHER, W.M.R. (2010) Condições de saneamento × parasitoses intestinais em comunidade na Amazônia Brasileira: discussão sobre a faixa etária de amostragem. In: CONGRESSO INTERAMERICANO DE ENGENHARIA SANITÁRIA E AMBIENTAL, 32. Anais... Punta Cana: AIDIS.; RIOS et al., 2007RIOS, L.; CULOTO, S.A.; GIATTI, L.L.; CASTRO, M.; ROCHA, A.A.; TOLEDO, R.F; PELICIONI, M.C.F.; BARREIRA, L.P.; SANTOS, J.G. (2007) Prevalência de parasitos intestinais e aspectos socioambientais em comunidade indígena no Distrito de Iauaretê, Município de São Gabriel da Cachoeira (AM), Brasil. Saúde e Sociedade, v. 16, n. 2, p. 76-86. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902007000200008
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; SILVA, 2006SILVA, H.P. (2006) Sócio-ecologia da saúde e da doença: os efeitos da invisibilidade nas populações caboclas da Amazônia. In: ADAMS, C.; MURRIETA, R.; NEVES, W. (Orgs.) Sociedades Caboclas Amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annalume. p. 323-349.). Com base nos dados da PNAD, há um indicativo de que o meio rural está longe de atingir a equidade e a universalização de acesso ao saneamento básico (IBGE, 2012INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). (2012) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012. Rio de Janeiro: IBGE.).

Cairncross et al. (1996CAIRNCROSS, S.; BLUMENTHAL, U.; KOLSKY, P.; MORAES, L.; TAYEH, A. (1996) The public and domestic domains in the transmission of disease. Tropical Medicine and International Health, v. 1, p. 27-34.) apontam que, nas condições de saúde relacionadas ao saneamento básico, devem ser consideradas duas dimensões: a pública e a privada. A dimensão pública relaciona-se ao acesso aos serviços públicos, cuja finalidade é prover condições ambientais salubres a todos os usuários de modo indiscriminado, enquanto na dimensão domiciliar tornam-se muito importantes os aspectos individuais das habitações de um modo particular, como hábitos de higiene, formas de armazenamento de água para consumo humano no intradomicílio e disposição dos resíduos gerados. Ambas as dimensões são complementares quando o desfecho é a transmissão de doenças relacionadas à inadequação das condições de saneamento e devem ser consideradas, de preferência, de forma integrada na construção de indicadores de ambiente-saúde. Dessa forma, informações no âmbito domiciliar, referentes à situação de saúde da família e condições de moradia, tornam-se fundamentais e tão importantes quanto informações sobre as condições dos serviços de saneamento prestados e acessados.

Nesse contexto, este artigo tem por objetivo discutir o registro de informações sobre saúde ambiental, no âmbito domiciliar e no meio rural, e apresentar aspectos conceituais e metodológicos da construção de um índice de salubridade ambiental domiciliar focado no meio rural, passível de ser utilizado como instrumento para diagnóstico e avaliação das condições de saúde-ambiente em domicílios de comunidades ribeirinhas da Amazônia.

Com essa finalidade, o artigo foi estruturado contemplando os seguintes itens:

  • apresentação do método de construção do índice de salubridade ambiental domiciliar focado no ambiente rural (ISA/DR) a partir da realidade de comunidades ribeirinhas da Amazônia;

  • aplicação do ISA/DR em oito comunidades ribeirinhas da Amazônia, para avaliação de sua viabilidade;

  • discussão da aplicação do ISA/DR.

No segundo item são elencados os métodos de coleta de dados e aplicação do ISA/DR nas comunidades, enquanto no terceiro são apresentados os principais resultados e a discussão da aplicação do ISA/DR na realidade estudada.

METODOLOGIA

Método de construção do índice de salubridade ambiental domiciliar focado no meio rural

A construção do ISA/DR foi realizada com base em três referenciais:

  • a teoria do ISA/OE, elaborado por Dias, Borja e Morales (2004DIAS, M.C.; BORJA, P.C.; MORAES, L.R.S. (2004) Índice de salubridade ambiental em áreas de ocupação espontâneas: um estudo em Salvador - Bahia. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 9, n. 1, p. 82-92.);

  • aspectos teóricos e conceituais da relação saneamento e saúde;

  • informações resultantes de diagnósticos de saneamento e pesquisas socioeconômicas realizadas nas comunidades estudadas.

A partir da integração dos aspectos teóricos e da realidade local, foram construídos os componentes, as variáveis e os indicadores que compõem o ISA/DR. A escala de pontuação do ISA/DR em relação à salubridade ambiental (insalubre, baixa salubridade, média salubridade e salubre) foram mantidas nos mesmos padrões do ISA/OE.

Os dados referentes às condições ambientais e socioeconômicas dos domicílios foram integrados no cálculo do ISA/DR a partir de cinco índices parciais, cada qual composto por diversos indicadores e apresentados de forma detalhada na Tabela 1: abastecimento de água (Iaa), esgotamento sanitário (Ies), manejo de resíduos sólidos (Irs), condição de moradia (Icm) e aspectos socioeconômicos (Ise).

Tabela 1:
Ponderação dos índices parciais que integram o índice de salubridade ambiental domiciliar focado no ambiente rural e escala de salubridade, por faixa de pontuação.

O ISA/DR foi obtido por meio do cálculo da média aritmética ponderada dos valores dos índices parciais, de acordo com a Equação 1.

I S A / D R = ( I a a × 2 + I e s × 2 + I r s × 2 + I c m × 3 + I s e × 1 ) ÷ 10 (1)

A escolha dos pesos para ponderação de cada índice parcial e a escala de salubridade foram baseadas em revisão de literatura sobre estudos na área de indicadores ambientais e de saneamento e principalmente no trabalho desenvolvido por Dias, Borja e Morales (2004DIAS, M.C.; BORJA, P.C.; MORAES, L.R.S. (2004) Índice de salubridade ambiental em áreas de ocupação espontâneas: um estudo em Salvador - Bahia. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 9, n. 1, p. 82-92.) (Tabela 1). No caso em estudo, considera-se que os três primeiros índices parciais (Iaa, Ies e Irs) são equivalentes em importância para representar as condições de saneamento e, portanto, foi atribuído o mesmo valor na ponderação (valor 2).

O Icm foi considerado com peso 50% superior ao peso dos índices parciais utilizados para representar as condições de saneamento (ponderação 3). Porém, considerados em conjunto, os três índices parciais relacionados ao saneamento (Iaa, Ies e Irs) têm peso que é o dobro daquele atribuído às condições de moradia. Por outro lado, o Ise foi considerado menos expressivo do que os demais e recebeu peso menor (valor 1).

Na escala de salubridade, estabeleceram-se quatro faixas de situação de salubridade com variabilidade de zero a cem, sendo que o valor zero representa situação de insalubridade; e cem representa a situação de maior salubridade do domicílio (Tabela 1).

A escolha dos indicadores que compõem cada um dos índices parciais se deu em função de informações resultantes de diagnósticos de saneamento e pesquisas socioeconômicas realizadas nas comunidades estudadas.

Para cada indicador que compõe os índices parciais foram delimitadas possíveis categorias de resposta, de acordo com o contexto dentro do qual o ISA/DR foi construído. Cada categoria recebeu escore que representa o valor para o indicador a partir de sua variação preestabelecida. Os valores dos escores para os indicadores variam de zero a cem, respectivamente associados às condições de pior e melhor salubridade ambiental.

Cada índice parcial (Iaa, Ies) foi calculado a partir da média aritmética dos valores do conjunto de indicadores que compõem cada índice parcial. Vale ressaltar que a escolha do uso da média aritmética foi baseada em dois aspectos:

  • todos os indicadores empregados nessa média têm valor igual;

  • sua operação matemática é de fácil cálculo e interpretação.

Área de estudo

O estudo foi realizado em domicílios de oito comunidades localizadas em duas unidades de conservação de uso sustentável: Reserva Extrativista do Médio Juruá (RESEX) (5 comunidades) e Reserva de Desenvolvimento Sustentável - Uacari (RDS) (3 comunidades), localizadas no estado do Amazonas, Brasil.

A RESEX é administrada pelo órgão federal Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e tem área total próxima de 2.500 km2, com população de cerca de 1.750 pessoas, distribuída em 12 comunidades. A RDS é administrada pelo Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC), com área total de cerca de 6 mil km2 e população de 1.200 pessoas, distribuída em 14 comunidades e 20 localidades (agrupamentos populacionais com menos de 3 domicílios).

As duas unidades de conservação (UCs) estão situadas ao longo do Rio Juruá, na área do município de Carauari, estado do Amazonas; a RESEX na margem esquerda e a RDS na margem direita do rio (Figura 1).

Figura 1:
Localização geográfica da Reserva Extrativista do Médio Juruá e da Reserva de Desenvolvimento Sustentável, no município de Carauari, estado do Amazonas.

Entre as oito comunidades, cinco estão localizadas em ambiente de terra firme, que sofrem pouca influência do rio ao longo do ano, enquanto as outras três situam-se em ambiente de várzea, que sofrem inundação devido à variação do nível do rio. O acesso ao município mais próximo (Carauari) é realizado por meio de transportes fluviais diversos ao longo do Rio Juruá, incluindo canoas e chalanas, e o tempo gasto no trajeto varia entre 5 e 24 horas, dependendo da localização da comunidade.

As comunidades rurais estudadas utilizam diferentes fontes de água para consumo humano (rio, água de chuva e poço). As situações de esgotamento sanitário variam da utilização de fossas secas à defecação a céu aberto, localmente denominado de “pau da gata”.

Um dos aspectos de saúde a considerar é que, nesse último século, dados de estudos apontam que nenhuma mudança significativa foi observada nas altas taxas de prevalência de parasitoses intestinais (60 a 75%) para as populações vivendo nessa área. A taxa de parasitose intestinal de 75%, descrita para a região em 1910 (BATISTA, 1972BATISTA, D.C. (Org.). (1972) Sobre o saneamento da Amazônia. Manaus: Philippe Daou S. A.), é semelhante à observada por estudo recente (66%) (BERNARDES, 2013BERNARDES, C. (2013) Avaliação integrada de impacto à saúde decorrente de ações de saneamento, em comunidades de unidades de conservação de uso sustentável na Amazônia. 178 f. Tese (Doutorado em Ciência Ambiental) - Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo.), indicando que mudanças na morbidade dessas doenças foram pouco significativas ao longo de mais de um século.

Coleta de dados

Os dados que compõem os indicadores utilizados na construção do ISA/DR foram obtidos por meio da realização de entrevistas semiestruturadas sobre as condições socioeconômicas, de saneamento e de saúde dos moradores das comunidades estudadas.

Os domicílios entrevistados integraram também o plano de amostragem para avaliação da qualidade da água de consumo humano. Foram realizadas coletas de amostras de água e analisados os parâmetros bacteriológicos em dois pontos: fontes de abastecimento de água para consumo humano (rio, lago, poço e água de chuva) utilizadas pelos domicílios; e água armazenada e usada para consumo humano dentro de casa (potes de barro, litros, baldes).

A coleta das amostras foi realizada em saco plástico estéril descartável, contendo tiossulfato de sódio para inativar o cloro residual, que possivelmente poderia estar presente devido ao tratamento domiciliar com hipoclorito, recomendado pelos agentes comunitários de saúde (ACS). As amostras de água (fonte e água do domicílio) foram acondicionadas em caixas de isopor e analisadas horas depois da coleta, no mesmo dia. Coliformes totais e termotolerantes (Escherichia coli) foram utilizados como organismos indicadores de contaminação bacteriológica da água, baseado no método Colilert e Quanty-Tray. A determinação quantitativa do número mais provável por 100 mL (NMP/100 mL) de E. coli foi realizada por meio da leitura dos Quanty-Tray inoculados, após 24 horas de incubação a uma temperatura média de 35ºC.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O ISA/DR foi construído para ser utilizado como um índice do tipo estoque, ou seja, seu uso visa representar um fenômeno da realidade entre espaços geográficos distintos em um mesmo período específico de tempo. A proposta é que esse instrumento seja utilizado como uma fotografia do panorama geral da situação de salubridade ambiental domiciliar no meio rural, em um dado momento específico.

A obtenção dos dados relacionados aos indicadores que compõem o ISA/DR se deu somente nos domicílios que concordaram em participar da pesquisa e cujos moradores estavam presentes no dia da campanha de campo. Ao todo participaram 117 domicílios (89%) das 8 comunidades, uma vez que 15 (11%) se encontravam com os moradores ausentes durante o levantamento (Tabela 2).

Tabela 2:
Características demográficas das comunidades estudadas e dos domicílios que participaram do estudo.

A partir de aspectos teóricos e conceituais da relação saneamento e saúde e de informações resultantes de diagnósticos de saneamento e pesquisas socioeconômicas realizadas nas comunidades estudadas, foram definidos os indicadores relevantes para compor cada índice parcial do ISA/DR. O resultado desse processo está apresentado na Tabela 3.

Tabela 3:
Indicadores selecionados para os índices parciais e respectivas opções de resposta e escores.

O resultado do ISA/DR aplicado aos domicílios das oito comunidades rurais na Amazônia, a fim de levantar e caracterizar a situação de salubridade ambiental desses domicílios, pode ser visualizado na Figura 2.

Figura 2:
Situação de salubridade (índice de salubridade ambiental domiciliar focado no ambiente rural - ISA/DR) dos domicílios nas comunidades estudadas.

A situação de salubridade ambiental domiciliar é semelhante entre os domicílios das comunidades. Eles não apresentam grande variação nessa circunstância, sendo que 90% se encontram em estado de insalubridade ou baixa salubridade. Verifica-se que o ISA/DR foi sensível o suficiente para apontar diferenças da situação de salubridade ambiental domiciliar entre comunidades que vivem em realidades socioeconômicas relativamente homogêneas.

Verifica-se que uma das características que mais contribuem para a situação de insalubridade e baixa salubridade é a precariedade dos domicílios em relação à existência de instalação sanitária domiciliar, definida como infraestrutura localizada junto ao domicílio com chuveiro, pia e vaso sanitário. Esse tipo de infraestrutura básica viabiliza, em âmbito domiciliar, o acesso à água dentro da casa e também ao sabão para práticas de higiene. Além disso, é também proporcionada a coleta e o tratamento de esgotos entre outras atividades relacionadas com a saúde ambiental. O indicativo de relevância desse tipo de infraestrutura no resultado da situação de salubridade ambiental domiciliar decorre do fato que os domicílios que apresentaram melhor índice (salubridade média) possuem altos valores dos escores de indicadores utilizados para representar acesso à água dentro do domicílio e acesso à pia nesse local.

No processo de construção de um índice, no caso o ISA/DR, um dos pontos relevantes é a avaliação da pertinência dos indicadores que o integram, considerando aspectos teóricos e o contexto para o qual o índice está sendo desenvolvido. No caso, a escolha de cada indicador não foi realizada de forma aleatória, mas buscou contemplar ao máximo as diversas propriedades consideradas relevantes para que um índice ou indicador possa ser aceito como instrumento de referência ou representação de uma dada realidade. Entre elas, podem-se citar: relevância social, validade, confiabilidade, sensibilidade, especificidade, inteligibilidade de sua construção, comunicabilidade, periodicidade de atualização, factibilidade para obtenção, desagregabilidade e historicidade (JANNUZZI, 2004JANNUZZI, P.M. (2004) Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. Campinas: Alínea.).

Não cabe, no presente artigo, discorrer em detalhe como cada uma dessas propriedades foi considerada na definição de cada indicador que compõe o índice (Tabela 3). Porém, diante da relevância da questão, arrazoar-se-á sobre as propriedades consideradas para avaliar a pertinência dos indicadores que compõem o ISA/DR, com base no exemplo de um dos representados por “domicílio com pia”. Esse indicador foi utilizado para representar a variável relacionada à existência de pia no domicílio, cujas alternativas são “sim” e “não”.

Esse indicador tem relevância social, pois a presença de pia dentro do domicílio tem forte correlação com o acesso ao sabão para a execução de práticas de higiene, principalmente lavagem das mãos. A ausência de lavatório no ambiente domiciliar implica que, mesmo que haja sabão, é de difícil acesso aos moradores, principalmente para as crianças. Isso ocorre porque, na falta daquele, este é comumente mantido junto aos utensílios utilizados para lavagem de roupa ou louça e não fica disponível para todos os moradores do domicílio para a prática de hábitos de higiene.

A confiabilidade desse indicador é alta, pois o processo para obtenção do dado “ter ou não ter pia no domicílio”, como opção de resposta “sim” ou “não”, é simples e esse elemento é fácil de ser coletado, cuja coleta pode ser padronizada. Além disso, esse indicador abrange a total cobertura do que se espera representar, ou seja, presença de pia no domicílio.

Como mencionado anteriormente, esse indicador é sensível e especifico à questão da salubridade ambiental relacionada com hábitos de higiene, pois representa hábitos que afetam as condições de saúde, uma vez que está intimamente relacionado com o acesso ao sabão para higienização das mãos após uso do sanitário, fator que, em sua ausência, representa risco à saúde.

Em relação à inteligibilidade de sua construção e comunicabilidade, a escolha desse indicador contempla essas duas propriedades, uma vez que a metodologia para coleta do dado é transparente e de fácil compreensão tanto para quem coleta o dado quanto para a divulgação do mesmo.

Uma das propriedades consideradas relevantes para esse indicador, assim como para a maioria dos demais que compõem o ISA/DR, relaciona-se à obtenção rápida dos dados, por meio das entrevistas realizadas nos domicílios. Na prática, essa propriedade possibilita que os dados que alimentam os indicadores sejam coletados diretamente na fonte (domicílio) e viabiliza, em última instância, a historicidade de dados coletados.

Algumas das propriedades consideradas relevantes em um indicador não foram consideradas quando da seleção dos indicadores que compõem o índice. No entanto, de acordo com Jannuzzi (2004JANNUZZI, P.M. (2004) Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. Campinas: Alínea.), apesar da relevância de todas as propriedades, é quase impossível contemplar todas elas em um único indicador. Entretanto, como no processo de construção de um índice, diversos indicadores que apresentam variações dessas propriedades são utilizados, considera-se que no resultado final o ISA/DR é um instrumento que contempla todas as propriedades consideradas relevantes.

Em propostas de índices, uma questão importante é a geração de informações que permitam o acompanhamento da realidade de forma que sejam úteis para subsidiar a gestão e a tomada de decisão dentro do escopo para o qual o instrumento foi desenvolvido. Para isso, é preciso que o processo de coleta de dados para a construção de indicadores e de índices esteja embasado em instrumentos que melhor se prestem a essa função contínua, de forma que se tenha um histórico que permita o acompanhamento dinâmico da realidade.

Nesse processo, faz-se necessário considerar a precisão de conciliar a situação ideal de coleta de dados para composição dos índices com as possibilidades apresentadas pela realidade de sistemas que já realizam o levantamento de dados para o meio rural. Isso porque no processo de escolha de indicadores e índices não se pode perder a perspectiva de atributos de custo de obtenção de dados que compõem o indicador, temporalidade e representatividade espacial. No caso do presente estudo, grande parte dos indicadores que compõem os índices parciais do ISA/DR foi obtida por meio de dados primários, por meio de questionários aplicados à área de estudo em dado momento, o que não permite a obtenção de séries históricas de tais indicadores.

Dessa forma, assim como indicado por Paz, Almeida e Günther (2012PAZ, M.G.A.; ALMEIDA, M.F.; GÜNTHER, W.M.R. (2012) Prevalência de diarreia em crianças e condições de saneamento e moradia em áreas periurbanas de Guarulhos, SP. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 15, p. 188-197. http://dx.doi.org/10.1590/S1415-790X2012000100017
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), considera-se que o uso da estrutura já instituída do PSF poderia ser uma opção viável para o levantamento de grande parte dos indicadores que compõem o ISA/DR. Isso porque a atuação dos ACS é localizada e focada nos domicílios, representando uma forma de dar capilaridade às informações e de potencializar o emprego da coleta de dados já instituída rotineiramente no meio rural. Além disso, o fato da maioria dos indicadores que compõem o ISA/DR ser caracterizada pela facilidade e simplicidade do dado coletado facilita a incorporação do mesmo nas práticas realizadas pelos ACS no PSF, com o cuidado que a agregação dos indicadores levantados seja feita por área de atuação dos ACS, o que permite a desagregação de informações entre o meio rural e o urbano.

Dessa forma, o investimento de recursos públicos no PSF seria otimizado tanto para informações em saúde quanto para esclarecimentos em saúde ambiental. Essa coleta conjunta de dados, que inclusive possuem forte interface, pode contribuir para a compreensão da situação de salubridade do domicílio, considerando questões sociais, culturais e ambientais.

Uma das vantagens ao alocar o levantamento do ISA/DR no contexto da atuação dos ACS é que a coleta de dados sobre salubridade ambiental e saúde humana estaria sendo levantada com base em dados que podem ser correlacionados temporalmente. Assim, essas informações podem ser utilizadas para auxiliar programas de avaliação e definição de políticas públicas voltadas aos setores de saneamento, moradia e saúde de forma integrada. No entanto, é preciso estrutura que ampare a reformulação dos instrumentos de coleta de dados (questionários) e a capacitação dos ACS para a efetivação e viabilidade desse processo.

Dentre os indicadores utilizados para compor o ISA/DR, aquele que possivelmente torna-se de mais difícil obtenção por meio das ações efetuadas pelos ACS é a análise bacteriológica da água, tanto no domicílio quanto nos mananciais. Existem inclusive kits simplificados para análise, que podem auxiliar esse monitoramento. Por outro lado, só a existência do kit apropriado não resolve, é necessária sua disponibilização, ou seja, investimento governamental para sua compra e distribuição, além da capacitação dos ACS em seu uso, o que se torna determinante para a viabilidade de coleta dos dados necessários para alimentar os indicadores.

A discussão de como viabilizar o uso dessa proposta de ISA/DR dentro de sistemas de informações preexistentes é ampla e envolve questões de gestão e de políticas públicas que não são o foco principal deste artigo. No entanto, o que foi trazido para reflexão aqui visa contribuir com elementos para uma discussão mais ampla e direcionada sobre o tema.

No Brasil, as populações rurais possuem características heterogêneas, considerando-se a amplitude de contextos sociais, ambientais e culturais específicos que habitam o extenso território brasileiro. Dessa forma, existe uma limitação dessa proposta preconcebida do ISA/DR em termos de aplicação nacional. É importante que cada estudo que deseje utilizar o ISA/DR domiciliar como instrumento de sensibilidade sobre a salubridade ambiental do meio domiciliar avalie a pertinência de cada variável, indicador e as alternativas para representação desses e faça adaptações, considerando o contexto local e as condições de estudo ou aplicação desse instrumento.

Ademais, vale ressaltar que a temática de construção de índices é relevante, visto que Kligerman et al. (2007KLIGERMAN, D.C.; VILELA, H.; CARDOSO, T.A.O.; COHEN, S.C.; SOUSA, D.; ROVERE, E. (2007) Sistemas de indicadores de saúde e ambiente em instituições de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 1, p. 199-211. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232007000100023
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) apontam que no Brasil existe demanda para incorporar a temática de indicadores de saúde ambiental nos sistemas de informação sobre saúde e ambiente, mas que a existência de propostas dentro dessa temática é ainda incipiente.

CONCLUSÃO

Um dos desafios do campo da saúde ambiental é a definição de indicadores/índices que permitam nortear ações e amparar avaliações nesse campo do conhecimento e integrar questões de saúde e ambiente. Nesse sentido, este artigo, ao apresentar o processo de construção de um índice de salubridade ambiental domiciliar para o meio rural (ISA/DR), buscou contribuir com essa questão. O instrumento elaborado pode servir como ferramenta para orientação e planejamento de programas que visam reverter o quadro de precariedade de salubridade das populações que vivem nessa realidade. Isso pode ser conseguido por meio do acompanhamento desse índice em diferentes cenários, que refletem mudanças e permitem comparações espaciais e relacionadas às temáticas pertinentes a esse campo de conhecimento.

Apesar das comunidades apresentarem características sociais, econômicas, culturais e ambientais relativamente semelhantes, o ISA/DR, como instrumento de representação de fenômenos da realidade vivenciada (salubridade ambiental domiciliar), teve sensibilidade suficiente para captar a variação da situação de salubridade entre os domicílios das comunidades estudadas. Dessa forma, o ISA/DR poderia ser utilizado no âmbito de políticas públicas como um condicionante para solicitação e aplicação de recursos, ou seja, como instrumento que permite apontar cenários que direcionariam as prioridades de investimentos e ações de políticas públicas voltadas à reversão da realidade de saúde e salubridade ambiental de domicílios do meio rural brasileiro.

Nesse contexto, essa proposta de índice não pretende ser inédita, mas busca auxiliar o planejamento e a obtenção de cenários diagnósticos gerais em relação à salubridade ambiental domiciliar no meio rural, necessários para embasar e orientar a tomada de decisão de gestores públicos, no âmbito local. A partir do estabelecimento das evidências sobre a situação de salubridade dos domicílios, torna-se possível avaliar sua vulnerabilidade sanitária, fator de risco à saúde humana, e identificar possíveis impactos de ações empreendidas no sentido de promover melhoria nas condições de saneamento e moradia desses domicílios, com reflexos na saúde dos moradores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2014
  • Aceito
    18 Abr 2017
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