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O impacto do instrumento econômico Bolsa Reciclagem orientado aos catadores de materiais recicláveis sobre o mercado da reciclagem do vidro no estado de Minas Gerais

The impact of the economic instrument Recycling Exchange intended for waste pickers on the glass recycling market in the state of Minas Gerais

RESUMO

Este estudo fornece uma análise dos resultados obtidos após a implementação do Pagamento por Serviço Ambiental Urbano (PSAU), instituído no estado de Minas Gerais, denominado Bolsa Reciclagem, sobre o mercado da reciclagem do vidro operado pelos catadores de materiais recicláveis que atuam em Minas Gerais. A análise teve como objetivo avaliar os efeitos desse instrumento sobre o aumento da quantidade de resíduos reintroduzidos na cadeia produtiva e sobre a inserção social dos catadores de materiais recicláveis. As análises empregadas permitiram concluir que o Bolsa Reciclagem atendeu aos objetivos fundamentais de um PSAU, estando comprovado um duplo benefício social e econômico relacionado à inserção social de catadores de materiais recicláveis na execução da política pública de gestão de resíduos sólidos, por induzir um aumento na comercialização do vidro com baixo valor de mercado. Verificou-se ainda que o instrumento Bolsa Reciclagem atuou como um importante lastro para os momentos de elevada flutuação dos preços de mercado, assegurando a prestação desse serviço ambiental e as externalidades positivas associadas à reciclagem do vidro.

Palavras-chave:
instrumentos econômicos aplicados à reciclagem de resíduos; pagamento por serviço ambiental urbano; resíduos sólidos; reciclagem de vidro; catadores de materiais recicláveis; Bolsa Reciclagem

ABSTRACT

This study presents an analysis of the results of the implementation of a Payment for Urban Environmental Services (Pagamento por Serviço Ambiental Urbano – PSAU), in the state of Minas Gerais, Brazil, called ‘Recycling Exchange’ on the glass recycling Market operated by recycled waste pickers in Minas Gerais. The aim was to evaluate the effects of this instrument on the amount of waste reintroduced in the production chain and the social inclusion of waste pickers. It was established that the ‘Recycling Exchange’ met the fundamental objectives of a PSAU: the double social and economic benefit of the social inclusion of waste pickers in the execution of the public policy for solid waste management, by inducing an increase in the sale of glass that has a low market value and continuity of the activity of selling recyclables in times of high fluctuation in prices. The instrument ensured the provision of this environmental service and the positive externalities associated with glass recycling.

Keywords:
economic instruments for waste recycling; payment for urban environmental services; solid wastes; glass recycling; waste pickers; Bolsa Reciclagem

INTRODUÇÃO

O vidro, apesar de ser um material 100% reciclável, ainda enfrenta fortes barreiras para o avanço em suas taxas de reciclagem no Brasil. Os dados das taxas de reciclagem das embalagens de vidro ainda são pouco conhecidos e pouco divulgados pelo setor. Os últimos dados disponibilizados pela Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro) reportam o ano base de 2007, quando foi informado o valor de 49% de reciclagem desse material, entretanto não se sabe se esse percentual se refere exclusivamente à reciclagem de embalagens de vidro, ou se incorpora valores de reciclagem de outras categorias de uso.

As indústrias fabricantes de vidro no Brasil informam o potencial de expansão do percentual de uso do caco de vidro como insumo em seus processos produtivos, que pode chegar a 60% de substituição dos insumos, em termos de massa. O uso de 60% em massa de caco de vidro como insumo pode reduzir até 25% do consumo de energia, 70% de areia em massa, e 50% do uso de barrilha (carbonato de sódio) em massa. O uso da barrilha, apesar de representar apenas 20% da massa dos insumos, equivale a cerca de 60% dos custos das matérias-primas (excluído o custo com a energia) (CNQ, 2015CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO RAMO QUÍMICO (CNQ). Panorama do setor de vidro. Brasil: CNQ, 2015. 28 p. Disponível em: http://cnq.org.br/system/uploads/publication/b2a03b701c902f59b717ce1e7395502e/file/panorama-vidros.pdf. Acesso em: ago. 2021.
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; ABIVIDRO, 2021ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE VIDRO (ABIVIDRO). Porque o vidro é a melhor opção para reciclar. Brasil: ABIVIDRO, 2021. 27 p. Disponível em: https://abividro.org.br/wp-content/uploads/2021/08/E-book_Porque-o-vidro-e-a-melhor-opcao-para-reciclar-1.pdf. Acesso em: ago. 2021.
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). Segundo a Confederação Nacional do Ramo Químico (CNQ, 2015), para cada 10% de caco de vidro na mistura, economiza-se 3 ou 4% da energia necessária para a fusão nos fornos industriais, além de reduzir em 10% a utilização de água.

A diminuição do consumo energético pode ser considerada como principal fator econômico em termos de redução de custos, por meio da substituição da matéria-prima virgem por matéria-prima secundária (caco de vidro), uma vez que a fabricação do vidro é intensiva em consumo de energia, sendo esta fornecida no Brasil, geralmente, mediante gás natural. Os gastos com gás natural e energia elétrica, somados, correspondem a aproximadamente 25% do custo final de produção, podendo chegar a 35%, de acordo com as informações dos representantes do setor (CNQ, 2015CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO RAMO QUÍMICO (CNQ). Panorama do setor de vidro. Brasil: CNQ, 2015. 28 p. Disponível em: http://cnq.org.br/system/uploads/publication/b2a03b701c902f59b717ce1e7395502e/file/panorama-vidros.pdf. Acesso em: ago. 2021.
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). Portanto, o uso do caco de vidro como matéria-prima secundária, além de reduzir a pressão sobre fontes de matéria-prima natural, resulta ainda em relevante redução na emissão de gases de efeito estufa (GEE).

Apesar dos benefícios agregados ao desempenho ambiental e econômico do processo produtivo, a reciclagem do vidro encontra como principais barreiras o baixo custo de produção da matéria-prima natural e o baixo valor de mercado do vidro como resíduo para os catadores de materiais recicláveis, que são os principais agentes atuantes no recolhimento do vidro proveniente das embalagens pós-consumo no Brasil.

Ao comparar a taxa de reciclagem de vidro no Brasil, para o ano de 2007, de 49% (ABIVIDRO, 2021ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE VIDRO (ABIVIDRO). Porque o vidro é a melhor opção para reciclar. Brasil: ABIVIDRO, 2021. 27 p. Disponível em: https://abividro.org.br/wp-content/uploads/2021/08/E-book_Porque-o-vidro-e-a-melhor-opcao-para-reciclar-1.pdf. Acesso em: ago. 2021.
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), com os valores médios registrados pelos 27 países integrantes da União Europeia, apresentados na Figura 1, percebe-se que o país ainda registra valores bem abaixo da média praticada pela União Europeia em 2007, que foi de 65%. Já nos Estados Unidos, segundo dados da Agência de Proteção Ambiental (USEPA, 2020UNITED STATES ENVIRONMENTAL PROTECTION AGENCY (USEPA). Advancing sustainable materials management: 2018 tables and figures - assessing trends in materials generation and management in the United States. Washington, D.C.: USEPA, 2020. 84 p. Disponível em: https://www.epa.gov/facts-and-figures-about-materials-waste-and-recycling/advancing-sustainable-materials-management . Acesso em: ago. 2021.
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), em 2018, 33,1% das embalagens de vidro foram recicladas. Comparativamente ao cenário americano, verifica-se que o Brasil se encontra em posição melhor que os Estados Unidos, considerando os dados disponibilizados pela Abividro, caso estes se refiram de fato à taxa de reciclagem do vidro associado às embalagens.

Figura 1
Evolução das taxas de reciclagem de resíduos de embalagens na Europa: valores médios para União Europeia (27 países) (a partir de 2020).

Sobre a composição dos materiais recicláveis coletados seletivamente, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2019SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES SOBRE SANEAMENTO (SNIS). Diagnóstico do manejo de resíduos sólidos urbanos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Regional, Secretaria Nacional de Saneamento, 2019. 246 p. Disponível em: http://www.snis.gov.br/diagnosticos. Acesso em: fev. 2021.
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) indicam que o vidro aparece em terceiro lugar, correspondendo a 11,4% da massa total. Em primeiro lugar, tem-se o papel/papelão, que é responsável por 37,7%, seguido do plástico, com 24,3%. Os metais equivaleram a 12,1% em massa, e o restante, 14,5%, foi atribuído a outros materiais. Embora os percentuais variem em relação aos dados do SNIS, os dados do Anuário da Reciclagem referentes ao ano de 2019, publicados por Oliveira et al. (2020)OLIVEIRA, C. M.; MANETTI, D.; MERENDINO, E.; MANETTI, F. P. G.; LOPES, F. M.; VILLABRUNA, G. G.; REZENDE, G. M.; PEREIRA, K. C.; ABUSSAFY, R. Anuário da Reciclagem 2020. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.pragma.eco.br/biblioteca-pragma. Acesso em: set. 2021.
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, indicaram uma composição similar no tocante à massa total recuperada pelas organizações de catadores, no ano de 2019, cujos valores foram: papel/papelão: 54% do total; plásticos: 21%; metais: 10%; e vidros: 15%.

Pagamento por serviço ambiental urbano voltado à gestão de resíduos sólidos

Os instrumentos econômicos relacionados à gestão de resíduos sólidos podem ser categorizados conforme o objetivo a que se destinam: foco na prevenção (não geração e redução); e estímulo à reutilização e reciclagem, como pontuam Magrini, D’Addato e Bonoli (2020)MAGRINI, C.; D’ADDATO, F.; BONOLI, A. Municipal solid waste prevention: A review of market-based instruments in six European Union countries. Waste Management & Research, v. 38, n. 1, supl. p. 3-22, 2020. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0734242X19894622. Acesso em: maio 2021. https://doi.org/10.1177%2F0734242X19894622
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. Sayago, Oliveira e Serôa da Motta (1998)SAYAGO, D. E.; OLIVEIRA, J. M. D.; SERÔA DA MOTTA, R. Resíduos sólidos: instrumentos econômicos ambientais. Brasília: SEPURB/MPO, 1998. 148 p. (Série Modernização do Setor de Saneamento, v. 15.) Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/saneamento-ambiental/biblioteca/resolveuid/6f85fbde2d382d811f56a46bff7a4bae. Acesso em: ago. 2021.
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destacam a importância dos instrumentos econômicos orientados aàreciclagem, uma vez que essa prática evita tanto os custos ambientais intratemporais, relacionados à poluição, decorrentes da disposição de resíduos sólidos urbanos (RSU), quanto de custos intertemporais, associados ao uso/esgotamento de recursos naturais exauríveis. Além disso, quanto maior o custo da matéria-prima virgem em relação ao custo de sua substituição por resíduos, maiores serão o estímulo econômico para a sua recuperação e as possibilidades de absorver tais custos, como ocorre para a comercialização de alumínio e aço (SAYAGO; OLIVEIRA; SERÔA DA MOTTA, 1998SAYAGO, D. E.; OLIVEIRA, J. M. D.; SERÔA DA MOTTA, R. Resíduos sólidos: instrumentos econômicos ambientais. Brasília: SEPURB/MPO, 1998. 148 p. (Série Modernização do Setor de Saneamento, v. 15.) Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/saneamento-ambiental/biblioteca/resolveuid/6f85fbde2d382d811f56a46bff7a4bae. Acesso em: ago. 2021.
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), e não para o vidro.

Nesse cenário, o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) passa a ser uma opção para a correção dessas falhas de mercado, com base na valoração de serviços ambientais prestados pela própria natureza, ou realizados pelos seres humanos para preservação ou melhoria de um ecossistema (WUNDER, 2005WUNDER, S. Payments for environmental services: some nuts and bolts. Bogor Barat: Cifor, 2005. (Cifor Occasional Paper, n. 42.) Disponível em: http://www.cifor.cgiar.org/publications/pdf_files/OccPapers/OP-42.pdf. Acesso em: maio 2021.
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). Os serviços ambientais urbanos prestados pelos catadores, particularmente, geram efeitos ambientais positivos no ambiente urbano e do ponto de vista social (SAYAGO; OLIVEIRA; SERÔA DA MOTTA, 1998SAYAGO, D. E.; OLIVEIRA, J. M. D.; SERÔA DA MOTTA, R. Resíduos sólidos: instrumentos econômicos ambientais. Brasília: SEPURB/MPO, 1998. 148 p. (Série Modernização do Setor de Saneamento, v. 15.) Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/saneamento-ambiental/biblioteca/resolveuid/6f85fbde2d382d811f56a46bff7a4bae. Acesso em: ago. 2021.
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). Como efeitos positivos, podem-se destacar: geração de renda para uma parcela da população que se encontra em situação de vulnerabilidade social; redução da pressão sobre recursos naturais utilizados como matéria-prima; e diminuição dos impactos ambientais negativos (poluição do solo, das águas, do ar, atração de vetores de doenças infectocontagiosas) associados à disposição inadequada de resíduos, uma vez que em Minas Gerais mais de 400 municípios ainda dispõem seus resíduos em lixões ou aterros inadequados (FEAM, 2019FUNDAÇÃO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE (FEAM). Panorama síntese: resíduos sólidos urbanos em Minas Gerais, ano base 2019. Minas Gerais: FEAM, 2019. 54 p. Disponível em: http://www.meioambiente.mg.gov.br/saneamento/residuos-solidos-urbanos-e-drenagem-de-aguas-pluviais. Acesso em: ago. 2021.
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). Mesmo os resíduos que são destinados para aterros sanitários representam passivos ambientais futuros, uma vez que eles necessitarão de medidas de controle ambiental após seu encerramento por décadas, representando custos muitas vezes não contabilizados no presente, além de se apresentarem como áreas de restrição de uso e ocupação do solo por um longo período de tempo.

Apenas alguns autores, como Revi e Dube (1999)REVI, A.; DUBE, M. Indicators for urban environmental services in Lucknow: process and methods. Environment and Urbanization, v. 11, n. 2, p. 227-245, 1999. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/095624789901100218. Acesso em: set. 2020. https://doi.org/10.1177%2F095624789901100218
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, Massoud, El-Fadel e Abdel Malak (2003)MASSOUD, M. A.; EL-FADEL, M.; ABDEL MALAK, A. Assessment of public vs private MSW management: a case study. Journal of Environmental Management, v. 69, n. 1, p. 15-24, 2003. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S030147970300104X. Acesso em: dez. 2020. https://doi.org/10.1016/S0301-4797(03)00104-X
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e Oosterver (2009)OOSTERVER, P. Urban environmental services and the state in East Africa: between neo-development and network governance approaches. Geoforum, v. 40, n. 6, p. 1061-1068, 2009. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0016718509001134. Acesso em: set. 2020. https://doi.org/10.1016/j.geoforum.2009.08.009
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, citam Pagamento por Serviço Ambiental Urbano (PSAU) com foco nos RSU. Um PSAU focado na gestão de RSU em que se escolhe remunerar o serviço prestado por catadores de materiais recicláveis reconhece o papel ambiental desses catadores como agentes ecológicos na redução das externalidades negativas urbanas associadas aos resíduos sólidos (IPEA, 2010INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Relatório de Pesquisa: Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2010. 62 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8858. Acesso em: ago. 2019.
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).

O incentivo Bolsa Reciclagem instituído no estado de Minas Gerais

O Bolsa Reciclagem é um PSAU instituído no estado de Minas Gerais calculado trimestralmente de forma proporcional à quantidade e ao tipo de resíduo comercializado. O auxílio, sob a forma pecuniária, é repassado às organizações de catadores de materiais recicláveis, tendo como fatos geradores a segregação, o enfardamento e a comercialização dos seguintes materiais recicláveis: papel/papelão, plásticos, metais e vidros. A lei que instituiu o Bolsa Reciclagem definiu que, dos valores transferidos às organizações de catadores de materiais recicláveis, no mínimo 90% devem ser obrigatoriamente repassados aos catadores, permitida a utilização do restante em atividades gerenciais, como: custeio de despesas administrativas; investimento em infraestrutura e equipamentos; capacitação de pessoal; formação de estoque; divulgação e comunicação. Segundo Ribeiro e Reis (2019)RIBEIRO, J. C. J.; REIS, A. M. Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos – PSAU: elaboração e implementação do bolsa reciclagem em Minas Gerais. In: RIBEIRO, J. C. J. (org.). Gestão e gerenciamento de resíduos sólidos: um panorama em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 197-216., o modelo teórico de PSAU escolhido para o instrumento Bolsa Reciclagem foi o de acréscimos compensatórios graduados, seguindo a categorização sugerida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2010INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Relatório de Pesquisa: Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2010. 62 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8858. Acesso em: ago. 2019.
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), que permite considerar não apenas o quantitativo de resíduos coletados, mas incentivar qualitativamente a coleta de tipos de resíduo com menor preferência entre os catadores, seja por sua dificuldade operacional, seja pelo baixo valor de mercado.

Este trabalho traz uma análise dos resultados obtidos após a implementação do PSAU instituído em Minas Gerais, denominado Bolsa Reciclagem, com o objetivo de avaliar os efeitos desse instrumento sobre o aumento da quantidade de vidro reintroduzido na cadeia produtiva e em relação à inserção social dos catadores de materiais recicláveis nessa cadeia.

METODOLOGIA

No presente estudo o instrumento econômico Bolsa Reciclagem foi analisado sob diferentes aspectos: aumento da quantidade de vidro reintroduzido na cadeia produtiva; incentivo à coleta do vidro por parte dos catadores de materiais recicláveis visando à reciclagem; e inserção social dos catadores de materiais recicláveis. Foram utilizados dados secundários referentes à comercialização do vidro, disponibilizados pela Fundação Estadual do Meio Ambiente e pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, compreendidos entre o terceiro trimestre de 2012 ao terceiro trimestre de 2018.

O banco de dados disponibilizado continha as seguintes informações: organizações de catadores que participaram do cálculo do incentivo; município e região de origem; número de catadores cadastrados na organização; quantidade em toneladas e o valor em reais de vidro comprovadamente comercializado; e o valor de repasse referente a esse material para cada organização de catadores. Com base nos dados fornecidos, foram calculados os demais, classificando-os por trimestre de apuração e por regional, para cada organização de catadores: o valor de mercado do vidro por tonelada; o valor do repasse do instrumento por tonelada; e a proporção do repasse em relação ao valor comercializado do vidro. Registra-se que os dados disponibilizados para os dois primeiros trimestres não continham informações sobre o valor em reais acerca dos materiais comercializados.

Para se analisar a quantidade de vidros reintroduzidos na cadeia produtiva e o incentivo à coleta do vidro por parte dos catadores visando à reciclagem, foram aplicados testes estatísticos. A análise descritiva está disponível com a pesquisadora, não tendo sido apresentada no presente artigo por limitação de espaço. Para verificar se os dados utilizados na amostra seguiam ou não a distribuição normal, foi aplicado o teste de normalidade Shapiro-Wilk ao nível de significância de 5% (SHAPIRO; WILK, 1965SHAPIRO, S. S.; WILK, M. B. An analysis of variance test for normality. Biometrika, v. 52, n. 3-4, p. 591-611, 1965. https://doi.org/10.2307/2333709
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). O teste de normalidade foi aplicado tanto para as amostras contendo todos os dados observados ao longo da série histórica quanto para as variáveis por grupo, para verificar a normalidade nos dados trimestrais e aqueles distribuídos por regiões do estado. Atestou-se a não normalidade dos dados. Para esses parâmetros, com o intuito de identificar a existência de diferenças significativas entre as medianas dos grupos analisados, foi aplicado o teste de classificação de Kruskal-Wallis (1952)KRUSKAL, W. H.; WALLIS, W. A. Use of ranks in one-criterion variance analysis. Journal of the American Statistical Association, v. 47, n. 260, p. 583-621, 1952. https://doi.org/10.2307/2280779
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. O teste de Kruskal-Wallis não assume que os dados seguem uma distribuição normal, sendo uma generalização do teste de classificação de Wilcoxon, aplicado para comparação de duas ou mais amostras, muito utilizado nas áreas biomédicas e ciências ambientais (GUO; ZHONG; ZHANG, 2013GUO, S.; ZHONG, S.; ZHANG, A. Privacy-preserving Kruskal–Wallis test. Computer Methods and Programs in Biomedicine, v. 112, n. 1, p. 135-145, 2013. https://doi.org/10.1016/j.cmpb.2013.05.023
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). Consideraram-se para o teste de hipóteses:

  • H0: não há diferença significativa entre as medianas dos grupos analisados, para o nível de significância de 5% (p > 0,05);

  • H1: as medianas, dos grupos analisados, diferem significativamente entre si, para o nível de significância de 5% (p < 0,05).

Para as variáveis valor por tonelada e proporção percentual do repasse do instrumento Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado, quando os testes supracitados apontaram para a existência de diferença significativa entre os grupos analisados, considerando o nível de significância de 5%, aplicou-se o teste de comparação múltipla de Dunn (SIEGEL; CASTELLAN, 1988SIEGEL, S.; CASTELLAN, N. J. Nonparametric statistics for the behavioral sciences. 2. ed. Nova York: McGraw-Hill, 1988.), utilizando a ferramenta Multiple comparisons of mean ranks for all groups, por meio do software Statistica 10, que permite a comparação simultânea entre todos os resultados obtidos e a verificação de quais grupos apresentaram valores diferenciados. Por fim, com base nos resultados obtidos, foram sugeridos aprimoramentos do instrumento econômico com o objetivo de ampliar os benefícios existentes.

Destaca-se que as estatísticas descritivas da base de dados e os resultados do teste de comparações múltiplas de Dunn se encontram disponíveis com os pesquisadores, não tendo sido apresentados neste trabalho por limitação de espaço.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados analisados compreendem o período entre o terceiro trimestre de 2012 e o terceiro trimestre de 2018, abrangendo 137 organizações entre cooperativas e associações, situadas em 116 municípios, que envolveram 2.084 catadores de materiais recicláveis ao longo da série analisada, com média de 1.020 catadores por trimestre. Ao longo desse período, 221.335 toneladas de materiais recicláveis foram reintroduzidas na cadeia produtiva ao valor de R$ 90.715.927,96. Nesse valor não estão computados os valores em reais comercializados nos dois primeiros trimestres de apuração, terceiro e quarto trimestre de 2012, pela indisponibilidade da informação. Desse total, 19.969 toneladas correspondiam ao vidro.

A análise da evolução temporal da quantidade total e por tipo de resíduo comercializado, no âmbito do instrumento Bolsa Reciclagem, está sumarizada na Figura 2, tendo sido verificada certa sazonalidade, porém sem padrão definido.

Figura 2
Evolução trimestral da quantidade, em toneladas, de material reciclável comercializado no período analisado.

A evolução da participação de cada tipo de material, ilustrada pela Figura 3, mostrou comportamento distinto entre os materiais. O papel registrou a maior participação no total de recicláveis comercializados, seguido pelo plástico, com retração da participação do papel na composição da quantidade total comercializada ao longo dos anos, que cedeu espaço para uma evolução da participação do vidro. O vidro, por sua vez, registrou importante crescimento ao longo dos anos.

Figura 3
Participação percentual de cada material na quantidade total de resíduos comercializados para os dados agregados de 2013 a 2017.

Análise detalhada da quantidade comercializada de vidro

A análise dos dados indica grande variação na quantidade de vidro comercializado em cada trimestre entre as organizações de catadores de materiais recicláveis e também ao longo da série temporal. Foram observadas organizações de catadores que comercializaram de 7 kg até 245 toneladas em um mesmo trimestre, entretanto as variações das medianas da quantidade de vidro (Figura 4) entre os trimestres não foram suficientes para serem consideradas significativas pelo teste de Kruskal-Wallis, evidenciando que não houve crescimento tido como significativo para o período analisado. Apesar disso, ao se analisar a quantidade anual de vidro comercializado, observa-se acentuado aumento entre os anos de 2013 e 2017, quando o valor saltou de 1.761 para 6.173 toneladas. O aumento da quantidade de vidro comercializado ao longo dos anos resultou em três trimestres (quarto trimestre de 2017, segundo trimestre de 2018 e terceiro trimestre de 2018) em que a quantidade de vidro comercializado superou a de plástico.

Figura 4
Gráfico de boxplot e resultado do teste de Kruskal-Wallis (p) para a variável quantidade total de vidro comercializado, em tonelada, por trimestre.

A análise regionalizada da quantidade comercializada de vidro indica haver diferença significativa entre as medianas das regionais analisadas, pelo teste de Kruskal-Wallis, para o nível de significância de 5%, conforme ilustram os gráficos de boxplot, nas Figuras 4 e 5.

Figura 5
Gráfico de boxplot e resultado do teste de Kruskal-Wallis (p) para a variável quantidade total de vidro comercializado por regional, com valores extremos e outliers.

Importante destacar, entretanto, que a análise regionalizada para as variáveis objeto deste estudo devem ser realizadas com cautela, uma vez que a participação das regionais no Bolsa Reciclagem apresenta grande disparidade. Três regionais (Central, Sul de Minas e Centro-Oeste) concentram 73% do número de organizações participantes do Bolsa Reciclagem para o período analisado, enquanto as regionais Sul/Sudoeste, Oeste e Jequitinhonha-Mucuri apresentam poucas organizações de catadores participantes do repasse do Bolsa Reciclagem, totalizando apenas 31 organizações, o que representa apenas 2% do número total de organizações cadastradas, indicando a necessidade de se fortalecerem a formalização e inclusão dos catadores que atuam nessas regionais no instrumento Bolsa Reciclagem.

Análise do valor comercializado por tonelada de vidro

A análise temporal do valor comercializado por tonelada de vidro permite verificar que não foi identificada diferença significativa entre as medianas dos trimestres, pelo teste de Kruskal-Wallis, para o nível de significância de 5% (Figura 6), demonstrando não ter havido grande variação no valor comercializado ao longo da série analisada. Apesar de não ter sido registrada variação significativa ao longo da série analisada, percebe-se, por meio da análise do gráfico de boxplot (Figura 6), grande variação dos valores comercializados entre as organizações de catadores em cada um dos trimestres analisados. Essa oscilação variou de R$ 10 a R$ 2.156 o valor da tonelada do vidro comercializado.

Figura 6
Gráfico de boxplot e resultado do teste de Kruskal-Wallis (p) para a variável valor comercializado por tonelada de vidro, por trimestre.

A análise regionalizada do valor de mercado do vidro também indicou diferença significativa para as medianas dos valores comercializados por tonelada, entre as organizações de catadores de materiais recicláveis, conforme se pode verificar na leitura da Figura 7, considerando os resultados do teste de Kruskal-Wallis conjugados aos gráficos de boxplot. De acordo com o teste de comparações múltiplas de Dunn conjugado à análise do gráfico de boxplot, as regionais Alto Paranaíba e Zona da Mata possuem medianas inferiores às das regiões Sul de Minas, Central, Centro-Oeste, Norte e Rio Doce. Observou-se acentuada dispersão nos valores comercializados da tonelada de vidro nas regiões Zona da Mata e Jequitinhonha-Mucuri em relação aos das demais regiões do estado.

Figura 7
Gráfico de boxplot e resultado do teste de Kruskal-Wallis (p) para a variável valor comercializado por tonelada de vidro por regional.

Proporção do repasse do Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro

Ao analisar a variável proporção do repasse do instrumento Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro, verifica-se que o repasse do Bolsa Reciclagem representou de 335,4 (mediana) a 812,1% (média) como medidas de tendência central, o que evidencia a importância do repasse para a comercialização do vidro.

Averiguando-se a variação temporal dessa mesma variável, proporção percentual do repasse do instrumento Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro, observa-se interessante comportamento ao longo do período analisado, com variação entre os trimestres considerada como significativa pelo teste de Kruskal-Wallis, para o nível de significância de 5% (p < 0,05), (Figura 8). A leitura das Figuras 8 e 9 permitem verificar clara redução da proporção que o repasse do Bolsa Reciclagem representou em relação ao valor comercializado ao longo da série temporal. Os primeiros trimestres foram marcados por um elevado valor do repasse no que tange ao valor comercializado por tonelada de vidro, que foi gradativamente reduzindo ao longo do período investigado. Mesmo no período final, em que o repasse proporcional ao valor comercializado se reduziu, vê-se que o repasse do Bolsa Reciclagem ainda é muito relevante em relação à comercialização do vidro em termos de receitas. No último trimestre analisado, terceiro trimestre de 2018, quando foram registrados os menores valores para essa variável, a mediana foi de 173%, Q1 de 143% e Q3 de 208%, valores ainda muito acima dos encontrados para os demais materiais analisados.

Figura 8
Proporção do repasse do Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro por trimestre
Figura 9
Valor comercializado do vidro por trimestre versus valor do repasse do Bolsa Reciclagem.

De acordo com o teste de comparações múltiplas de Dunn conjugado à análise do gráfico de boxplot (Figura 8), verifica-se que, para os trimestres 1/2018, 2/2018 e 3/2018, o repasse do Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro foi significativamente menor que o do início da série analisada até o trimestre 4/2015 e também inferior ao do 2/2016. O trimestre 1/2016 e o 4/2017 também apresentaram medianas inferior aos cinco primeiros trimestres da série, além de terem sido inferiores ao trimestre 4/2014 e ao trimestre 1/2015. O trimestre 1/2016 parece ter sido um trimestre atípico para o período analisado.

Essa redução constatada na proporção do repasse do Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado deve ser analisada com critério. Uma vez que não foi observada grande variação no valor em reais da tonelada de vidro comercializado ao longo dos trimestres e considerando que ao longo desse mesmo período se viu um incremento relevante no número de organizações de catadores de materiais recicláveis que passaram a comercializar o vidro, pode-se inferir que a diminuição na proporção do repasse em relação ao valor comercializado pode ser atribuída mais a esse último fator do que por um aumento no valor de mercado do vidro ao longo do tempo. Como mais organizações de catadores passaram a comercializar esse material e tendo em vista que o montante do repasse trimestral do Bolsa Reciclagem se manteve praticamente constante ao longo da série temporal analisada, seria esperada redução no valor de repasse entre as organizações cadastradas,

A análise regionalizada da variável proporção percentual do repasse do instrumento Bolsa Reciclagem em relação ao valor total comercializado do vidro permite verificar que há diferença significativa entre as regionais para as medianas dos valores obtidos, segundo o teste de Kruskal-Wallis, para o nível de significância de 5% (p < 0,05), cujos resultados estão apresentados na Figura 10. De acordo com o teste de comparações múltiplas de Dunn conjugado à análise do gráfico de boxplot, verifica-se que o impacto do repasse do Bolsa Reciclagem no que tange ao valor comercializado do vidro é mais relevante para as organizações de catadores de materiais recicláveis situadas na regional Oeste, que se apresentou como significativamente superior que as regionais Sul de Minas, Central, Centro-Oeste e Triângulo. Faz-se necessária investigação dedicada à melhor compreensão sobre o desempenho distinto dos valores obtidos para as organizações de catadores situadas na regional Oeste de Minas.

Figura 10
Proporção do repasse do Bolsa Reciclagem em relação ao valor comercializado do vidro, por regional, com outliers.

Inserção social de catadores

Ao longo do período analisado, foram cadastradas 138 organizações de catadores de materiais recicláveis, com aumento gradativo ao longo dos anos, entretanto o aumento no número de organizações que efetivamente participaram do rateio para recebimento do incentivo financeiro não foi tão expressivo, iniciando-se o período com 59 organizações e finalizando-se em 89. Tal fato pode ser explicado pela dificuldade encontrada por algumas organizações para comprovação e atualização da documentação de regularidade fiscal nos órgãos competentes. A exigência de comprovação dessa documentação resulta no adimplemento das organizações perante as instituições fiscais, sendo um aspecto positivo para a formalização de tais organizações, entretanto essa regularidade fiscal implica recolhimento de tributos por parte das organizações, o que tem sido um desafio para algumas delas.

Importante notar o comportamento distinto entre o número de organizações de catadores de materiais recicláveis que comercializaram o vidro (Figura 11).

Figura 11
Número de organizações de catadores de materiais recicláveis cadastradas que receberam repasse do Bolsa Reciclagem por tipo de material.

No primeiro trimestre de apuração dos dados, foram apenas 13 organizações de catadores que comercializaram o vidro, e no trimestre 2/2018 foram 51 organizações, finalizando-se o período analisado com 43 organizações de catadores que comercializavam o material. Percebe-se, portanto, um forte indicativo de influência do instrumento Bolsa Reciclagem no aumento da comercialização do vidro, uma vez que o valor de mercado se manteve praticamente inalterado ao longo do período. Esse aumento poderia estar atrelado à ampliação da rede logística de captação desse material no estado de Minas Gerais. Entretanto, em uma análise preliminar, não se observou, no período analisado, aumento no número de empresas, ou a adoção por parte daquelas que já atuavam no mercado de uma estratégia de captação ativa desses materiais ao longo do período analisado, o que reforça a percepção de ter havido forte influência do instrumento Bolsa Reciclagem pela ampliação do número de organizações de catadores de materiais recicláveis nesse segmento.

Ao se comparar o número de organizações que comercializaram papel, plástico e metal, não se viu aumento tão relevante como foi possível se constatar para o vidro (Figura 11). Percebe-se, então, que, apesar dos avanços, ainda há espaço para ampliar o número de organizações de catadores que já comercializam papel e plástico a passar a comercializar também vidro.

CONCLUSÕES

A análise dos dados indica aumento da quantidade total de resíduos comercializados no período examinado, com aumento da participação do vidro na composição da quantidade de material comercializado para os dados anuais agregados. Foi observada grande dispersão dos dados relativos à quantidade de material comercializado entre as organizações de catadores de materiais recicláveis, indicando que o instrumento Bolsa Reciclagem consegue abranger organizações de catadores dos mais diversos portes, evidenciando certa facilidade de acesso ao instrumento por parte das organizações.

O presente estudo indicou que, apesar de não ter havido diferença significativa entre as medianas das quantidades de vidro comercializado por organização de catadores de materiais recicláveis, entre os trimestres, ao se analisar o somatório anual das quantidades comercializadas, verificou-se acentuado aumento no período, entretanto o valor de mercado do vidro não registrou aumento significativo no período. Houve aumento do número de organizações de catadores que passaram a comercializar o vidro. Percebe-se, portanto, um forte indicativo de influência do instrumento Bolsa Reciclagem no aumento da comercialização do vidro, uma vez que o valor de mercado se manteve praticamente inalterado ao longo do período, o que pode indicar que esse pode não ter sido o aspecto indutor para o aumento do número de organizações de catadores que passaram a comercializar o material. Apesar desse aumento, vê-se que ainda há espaço para ampliar o número de organizações de catadores que já comercializam papel/papelão e plástico a passar a comercializar também o vidro. Pelos motivos expostos, há um indicativo de que o Bolsa Reciclagem possa ter influenciado no aumento da comercialização do vidro no período analisado.

Dessa forma, pode-se afirmar que o instrumento Bolsa Reciclagem atendeu aos objetivos fundamentais de um programa de PSAU. Comprovou-se um duplo benefício social e econômico relacionado à inserção social de catadores de materiais recicláveis na execução da política pública de gestão de resíduos sólidos e por induzir (no caso do vidro), garantir e estabilizar a continuidade da atividade de comercialização de recicláveis nos momentos de elevada flutuação dos preços, assegurando a prestação desse serviço ambiental e as externalidades positivas associadas à reciclagem ao fomentar que os recursos que foram extraídos do ambiente natural possam permanecer por um prazo maior na cadeia produtiva, elevando o grau de valor desses materiais.

Percebeu-se claramente que no início da série dos dados analisados, o valor da remuneração pelo Bolsa Reciclagem pela tonelada de vidro comercializado ficou muito acima do valor de mercado desse material, que por si só não consegue refletir os benefícios ambientais e sociais da reciclagem do vidro. Ao longo do período, o valor desse repasse diminuiu, por causa do ingresso de mais organizações de catadores que passaram a comercializar o vidro, porém sem ter sido observado aumento do valor de mercado desse material. Está confirmada a importância de se agregar mais receitas assessórias à comercialização do vidro com o objetivo de ampliar a reciclagem desse material, que possui baixo valor de mercado, corrigindo-se a falha de mercado existente.

Pôde-se notar que essa maneira de implementação do instrumento conjuga a realidade brasileira com a necessidade de se avançar nas políticas públicas que favorecem a cadeia da reciclagem em detrimento a outras formas de destinação de resíduos, como a incineração e disposição em aterros sanitários. Conforme destacou Ipea (2010)INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Relatório de Pesquisa: Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2010. 62 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8858. Acesso em: ago. 2019.
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, esse instrumento de PSAU reconhece o papel ambiental dos catadores como agentes ecológicos na redução das externalidades negativas urbanas associadas aos resíduos.

Tendo em vista que a regulamentação do Bolsa Reciclagem impõe que 90% dos recursos repassados às organizações de catadores de materiais recicláveis sejam distribuídos entre os cooperados, percebe-se que o instrumento não possibilita o investimento na própria cooperativa (ou associação). Faz-se, portanto, necessário o aprimoramento visando ao investimento na própria cooperativa (ou associação), o que poderia ser feito na forma de criação de um fundo direcionado ao investimento na infraestrutura das organizações; em seu capital de giro, com o objetivo de elevar a capacidade de processamento dos materiais; a capitalização; e a profissionalização das organizações, como sugeriu o Ipea (2010)INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Relatório de Pesquisa: Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2010. 62 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8858. Acesso em: ago. 2019.
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. Esses investimentos deveriam ser estabelecidos de forma diferenciada por porte e produtividade da organização, utilizando-se como proxy da eficiência física de uma cooperativa a relação peso da produção total / número de catadores da organização, seguindo a proposta de Ipea (2010)INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Relatório de Pesquisa: Pesquisa sobre Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos para gestão de resíduos sólidos. Brasília: Ipea, 2010. 62 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8858. Acesso em: ago. 2019.
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, tendo em vista a grande dispersão da produtividade em torno dos valores médios, que reflete em valores de comercialização pela tonelada dos materiais igualmente dispersos e desiguais. Considerando que o Bolsa Reciclagem já possui oito anos de série histórica de operação, tais valores poderiam ser obtidos pelo próprio histórico do instrumento, adequando-se mais à realidade das organizações de catadores de Minas Gerais. Assim se evitaria que uma política de investimentos fosse direcionada àqueles que já são mais produtivos, conseguindo alcançar aquelas organizações mais desiguais em termos de produtividade.

Por fim, recomenda-se um aprimoramento no modo de arranjo dos recursos para custear o instrumento. Levando-se em conta os pressupostos de um PSAU baseados nos princípios do poluidor/pagador, que no caso em tela está sendo tratado como toda a sociedade, e diante das obrigações impostas aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, implicados na responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos comercializados em embalagens de plástico, papel/papelão, metais e vidro, nos termos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sugere-se que seja avaliada a possibilidade de expandir o custeio do instrumento por meio da alocação de recursos financeiros por esses agentes.

Nesse cenário, os recursos provenientes dos atores responsáveis pela implementação da logística reversa de embalagens em geral no Brasil poderiam ser direcionados tanto para o investimento em infraestrutura, capitalização e profissionalização das organizações de catadores quanto para a prestação dos serviços de recolhimento e comercialização desses materiais.

  • Financiamento: nenhum.
  • Reg. ABES: 2021058

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2021
  • Aceito
    03 Jan 2022
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