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A constituição de processos dialógicos em um grupo de jovens com deficiência mental

The constitution of dialogic processes in a group of young people with mental deficiency

Resumos

o objetivo deste estudo foi analisar as interações dialógicas em um grupo terapêutico fonoaudiológico, formado por quatro jovens com deficiência mental. Com relação ao método, assumiu-se os princípios da pesquisa qualitativa de orientação sócio-histórica. O grupo foi atendido semanalmente por uma fonoaudióloga, durante o período de setembro a dezembro de 2002, em uma clínica-escola de fonoaudiologia, localizada em uma cidade do interior do Estado de São Paulo. A metodologia utilizada envolveu vídeo-gravação das sessões de fonoaudiologia realizadas com o grupo. Após as gravações, as fitas foram transcritas em ortografia regular. Os dados selecionados enfatizaram como unidade de análise a dinâmica dialógica estabelecida no grupo. Os resultados indicaram que os jovens com deficiência mental realizavam uma participação pouco efetiva durante as situações de diálogo, ocorrendo, portanto, uma atuação do terapeuta no sentido de disponibilizar para o grupo atividades significativas que possibilitassem o acontecimento da linguagem. Tal atuação foi caracterizada por estratégias variadas, tais como: incitar os sujeitos a realizarem perguntas uns para os outros, dar o modelo de possíveis questões, sugerir que os jovens fizessem comentários sobre o tema em pauta, entre outras. Neste estudo, a narratividade oral foi uma das atividades simbólicas que permitiu a ocorrência do diálogo. A partir das análises, foi possível concluir que o grupo terapêutico-fonoaudiológico configurou-se como um espaço propício a que processos dialógicos acontecessem. Neste sentido, destacou-se o papel fundamental da fonoaudióloga na orientação do diálogo dos jovens, para que estes se apropriassem das mais diversificadas estratégias.

deficiência mental; grupo; diálogo; desenvolvimento de linguagem


the aim of this study was to analyze dialogical interactions in a speech therapy group, consisting of four young people with mental deficiency. The methodology used was the socio-historical qualitative approach. The group was seen weekly by a speech therapist from September to December, 2002, at a speech therapy clinic/school situated in rural area of the State of São Paulo. The methodology applied involved video recording of the speech therapy sessions held with the group. After recording the sessions, the tapes were transcribed into regular orthography and the selected data, considered as the analysis unit, highlighting the dialogical dynamics established in the speech therapeutic group. The results revealed that the young people with mental deficiency have little effective participation in the dialogical situations. Therefore, the therapist has to intervene by providing the group with significant activities to promote the occurrence of language. To this end, this participation is characterized by various strategies used by the speech therapist, such as encouraging the subjects to ask each other questions, modeling possible questions, suggesting they should make comments about the topic under discussion, and others. In this study the production of oral narrative was one of the main symbolic activities that allowed for the occurrence of dialogue. Based on the analysis, it was possible to conclude that the speech therapy group is an appropriate environment for promoting dialogical processes. And here the essential role of the speech therapist stands out, as he/she needs to pay attention to the exchanges in order to guide the young peoples' dialogues by adopting various diversified strategies.

mental deficiency; group; dialogue; language development


RELATO DE PESQUISA

A constituição de processos dialógicos em um grupo de jovens com deficiência mental

The constitution of dialogic processes in a group of young people with mental deficiency

Ana Paula de FreitasI; Glenda Saccomano CastroII

IUniversidade Metodista de Piracicaba, Faculdade de Ciências da Saúde – Curso de Fonoaudiologia. E-mail: anafreitas@sigmanet.com.br

IIUniversidade Metodista de Piracicaba; Faculdade de Ciências da Saúde, Curso de Fonoaudiologia. PIBIC/CNPq (processo no. 11702). E-mail: glendasaccomano@hotmail.com

RESUMO

o objetivo deste estudo foi analisar as interações dialógicas em um grupo terapêutico fonoaudiológico, formado por quatro jovens com deficiência mental. Com relação ao método, assumiu-se os princípios da pesquisa qualitativa de orientação sócio-histórica. O grupo foi atendido semanalmente por uma fonoaudióloga, durante o período de setembro a dezembro de 2002, em uma clínica-escola de fonoaudiologia, localizada em uma cidade do interior do Estado de São Paulo. A metodologia utilizada envolveu vídeo-gravação das sessões de fonoaudiologia realizadas com o grupo. Após as gravações, as fitas foram transcritas em ortografia regular. Os dados selecionados enfatizaram como unidade de análise a dinâmica dialógica estabelecida no grupo. Os resultados indicaram que os jovens com deficiência mental realizavam uma participação pouco efetiva durante as situações de diálogo, ocorrendo, portanto, uma atuação do terapeuta no sentido de disponibilizar para o grupo atividades significativas que possibilitassem o acontecimento da linguagem. Tal atuação foi caracterizada por estratégias variadas, tais como: incitar os sujeitos a realizarem perguntas uns para os outros, dar o modelo de possíveis questões, sugerir que os jovens fizessem comentários sobre o tema em pauta, entre outras. Neste estudo, a narratividade oral foi uma das atividades simbólicas que permitiu a ocorrência do diálogo. A partir das análises, foi possível concluir que o grupo terapêutico-fonoaudiológico configurou-se como um espaço propício a que processos dialógicos acontecessem. Neste sentido, destacou-se o papel fundamental da fonoaudióloga na orientação do diálogo dos jovens, para que estes se apropriassem das mais diversificadas estratégias.

Palavras-chave: deficiência mental; grupo; diálogo; desenvolvimento de linguagem.

ABSTRACT

the aim of this study was to analyze dialogical interactions in a speech therapy group, consisting of four young people with mental deficiency. The methodology used was the socio-historical qualitative approach. The group was seen weekly by a speech therapist from September to December, 2002, at a speech therapy clinic/school situated in rural area of the State of São Paulo. The methodology applied involved video recording of the speech therapy sessions held with the group. After recording the sessions, the tapes were transcribed into regular orthography and the selected data, considered as the analysis unit, highlighting the dialogical dynamics established in the speech therapeutic group. The results revealed that the young people with mental deficiency have little effective participation in the dialogical situations. Therefore, the therapist has to intervene by providing the group with significant activities to promote the occurrence of language. To this end, this participation is characterized by various strategies used by the speech therapist, such as encouraging the subjects to ask each other questions, modeling possible questions, suggesting they should make comments about the topic under discussion, and others. In this study the production of oral narrative was one of the main symbolic activities that allowed for the occurrence of dialogue. Based on the analysis, it was possible to conclude that the speech therapy group is an appropriate environment for promoting dialogical processes. And here the essential role of the speech therapist stands out, as he/she needs to pay attention to the exchanges in order to guide the young peoples' dialogues by adopting various diversified strategies.

Keywords: mental deficiency; group; dialogue; language development.

1 INTRODUÇÃO

A perspectiva histórico-cultural prioriza os aspectos do desenvolvimento humano que ocorrem em atividades coletivas, conforme indica Vygotsky (1991, 2001). Neste sentido, a fonoaudiologia, tradicionalmente conhecida por seus trabalhos clínicos realizados individualmente (PENTEADO; SERVILHA, 2004), começa, também, a criar espaços para um fazer clínico, no qual se privilegie os atendimentos em grupo, como sugerem vários estudos (FREITAS, PANHOCA, LACERDA, 1999; PANHOCA, 2002; PANHOCA, CAMARGO, FREITAS, MONTEIRO, 2005). Tais estudos indicam que, no contexto terapêutico grupal, além do sujeito estar envolvido por ações mediadas, nas quais é veiculada grande diversidade de experiências e conhecimentos, são acionados e manifestos processos internos que revelam a complexidade do ser humano, na e pela linguagem. Os estudos citados revelam, portanto, que o grupo terapêutico-fonoaudiológico configura-se como um contexto importante tanto para o desenvolvimento da linguagem, quanto para a aquisição e o domínio de atitudes sócio-culturais disponibilizadas e partilhadas seus pelos diversos componentes.

No grupo terapêutico-fonoaudiológico, as atividades realizadas, inevitavelmente, exercitam as ''funções psicológicas superiores'' (observação, percepção, atenção, memória e linguagem), envolvendo paciente - paciente e paciente – terapeuta em relações e situações lingüísticas mediadas, ou seja, permeiam interações comunicativas, nas quais significados são adquiridos.

Ao se problematizar a questão do grupo terapêutico-fonoaudiológico, faz-se também necessário discutir as relações dialógicas nele estabelecidas. A dialogia é um dos conceitos fundantes da teoria de linguagem bakhtiniana. Segundo Novaes-Pinto (2004), sem o referido conceito, nenhum dos outros discutidos pela mesma teoria poderiam ser compreendidos.

Ao realizar uma revisão dos principais pontos do pensamento de Bakhtin, Souza (1994) demonstra que a concepção de linguagem defendida pelo autor se encontra na interação verbal, sendo o seu caráter dialógico uma realidade imprescindível.

Para Bakhtin (1995, 2003), toda enunciação deve ser vista como um diálogo que faz parte de um processo de comunicação, sem interrupção, sendo o papel do outro de extrema importância. Para o autor, uma das mais importantes formas de interação verbal é o diálogo. Vale ressaltar, que ele entende como diálogo qualquer forma de comunicação verbal, não apenas a comunicação oral face a face. Além disto, considera o diálogo, por sua precisão e simplicidade, a forma clássica de comunicação discursiva.

Bakhtin afirma que

a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar. (BAKHTIN, 1995, p.124)

Em sua teoria, o autor defende que a palavra sempre procede de alguém, assim como sempre se dirige a alguém. Para ele, um sujeito se define em relação ao outro, através da palavra. Explicita que "[...] a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor "(BAKHTIN, 1995, p. 113).

A noção de diálogo assumida por Bakhtin foi fundamental para as discussões deste estudo, cujo objetivo é analisar os processos dialógicos que ocorrem em um grupo terapêutico-fonoaudiológico de jovens com deficiência mental, bem como os diferentes modos de atuação do terapeuta durante esse processo. Poucos ainda são os estudos, na área fonoaudiológica, que abordam a questão do trabalho em grupo, mais voltado para o desenvolvimento de linguagem de sujeitos deficientes mentais. Neste sentido, Freitas (1996, 2002) analisou atividades que envolviam o reconto de histórias e de experiências vividas, de um grupo de adolescentes com Síndrome de Down, em uma situação educacional. A autora abordou a dinâmica dialógica que acontece durante a produção do texto narrativo. No que diz respeito à maneira pela qual a narrativa é composta, Freitas observou a ocorrência de relatos orientados, partilhados e autônomos. Qualificou como "orientados", os relatos construídos com o apoio do adulto, quando este incentiva a composição do texto, sem, entretanto, contribuir para a produção de trechos da narrativa. Nesse tipo de relato, com o intuito de obterem determinadas respostas, os adultos formulam perguntas e, assim, a narrativa vai sendo criada. Os "partilhados" foram caracterizados como relatos compostos, principalmente, pela participação dos outros integrantes do grupo, que complementam o que é dito por um indivíduo. E, por fim, a autora denominou de "autônomos", os relatos nos quais os sujeitos narram com total independência do interlocutor.

Cabe esclarecer que, neste estudo, a linguagem narrativa oral foi tomada como atividade privilegiada pela fonoaudióloga, durante o trabalho terapêutico realizado com o grupo de jovens com deficiência mental, uma vez que se considera a narrativa como esfera de atividade simbólica tipicamente humana. Deste modo, ela também é vista como mediadora de processos emergentes de desenvolvimento.

Um outro tópico que mereceu atenção, nesta pesquisa, diz respeito aos modos de atuação do terapeuta durante o atendimento do grupo terapêutico-fonoaudiológico. Para falar sobre isso, torna-se necessário problematizar o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (VYGOSTSKY, 1991, 2001), uma vez que tal noção enfatiza o papel do mediador na relação desenvolvimento/aprendizagem.

Vygotsky afirma existir dois níveis de desenvolvimento, o "real" e o "potencial". O 'real' diz respeito àquelas funções mentais da criança, as quais são entendidas como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados. O 'potencial' determina as funções mentais que as crianças apresentam em situações de atividade conjunta, sob orientação de um adulto, ou em colaboração com pares mais capazes. A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) é a distância entre estes dois níveis: o primeiro, o real, que é determinado por problemas que o indivíduo soluciona independentemente, sem ajuda; e o segundo, o potencial, que é determinado através da solução de problemas em atividades partilhadas. A ZDP caracteriza o desenvolvimento que ainda está por se consolidar. O desenvolvimento proximal supõe a participação do outro no processo de aprendizado e, também, corresponde ao espaço onde ocorrem os processos de elaboração compartilhada. Sendo assim, fica reiterada a tese de que o desenvolvimento psicológico depende das condições sociais em que é produzido.

Freitas (2001), a partir do acompanhamento de um caso clínico (um sujeito com singularidades de desenvolvimento lingüístico-cognitivo, em atendimento na clínica fonoaudiológica), realiza algumas críticas ao modo prescritivo que tem sido característico da noção de desenvolvimento proximal, principalmente no âmbito educacional. Segundo a autora, nem sempre os modos de assistência do adulto produzem ganhos nos modos de ação da criança. Além disso, constatar a ocorrência, ou não, de transformações nas capacidades, como reflexo de interação eficaz ou ineficaz, conduz a um raciocínio do tipo: se o sujeito aprendeu, é porque o outro atuou na ZDP; se não aprendeu, a atuação foi inócua (ou até mesmo, prejudicial). Os efeitos desse tipo de atuação, como possibilidade de criar, ou avançar na ZDP do sujeito, nem sempre ocorrem de maneira especular e temporalmente próximos. Algumas vezes, o resultado da interferência é visto de imediato; outras vezes, isto não ocorre. Desta maneira, julgar a qualidade dos modos de mediação, em momentos específicos do presente, não garante configurar o desenvolvimento de funções emergentes. Freitas indica, também, que a noção de ZDP – implicando que a criança faz com ajuda, o que fará autonomamente em um futuro – necessita ser pensada em termos de que o 'proximal' não corresponde a um tempo previsível, ou semelhante, para diferentes sujeitos. Em casos de desenvolvimento atípico, faz-se necessário considerar como acontece este processo para cada sujeito.

Assim pensando, o presente estudo, ao analisar as relações dialógicas ocorridas nas sessões terapêutico-fonoaudiológicas, realizadas com um grupo de jovens com deficiência mental, como já foi dito, buscou caracterizar os diferentes modos de atuação do terapeuta/interlocutor, durante o atendimento, com o intuito de compreender de que maneira as intervenções terapêuticas podem contribuir para o desenvolvimento da linguagem dos sujeitos.

2 METODOLOGIA

Os resultados apresentados, neste artigo, fazem parte de um Projeto de Pesquisa intitulado "Grupo Terapêutico-Fonoaudiológico: Constituindo um Saber", desenvolvido por docentes e discentes de um Curso de Fonoaudiologia, de uma universidade do interior do Estado de São Paulo. Tal projeto obteve parecer favorável emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da referida universidade (protocolo no. 01/02).

Os sujeitos do estudo são quatro jovens com deficiência mental, que estão em atendimento fonoaudiológico em grupo, desde setembro de 2002. São eles:

And.: 15 anos, sexo masculino. Apresenta deficiência mental, em decorrência da Síndrome de Down. Freqüenta uma instituição especializada em pessoas com necessidades educativas especiais. Ainda não está alfabetizado, mas tem noção de escrita. Com relação à linguagem, And. apresenta pouca iniciativa discursiva. Em geral, permanece com a cabeça abaixada, não olha para os interlocutores. Aparenta ser um jovem muito tímido e contido. Responde às perguntas a ele dirigidas, quase sempre com frases simples. Sua fala é, na maior parte das vezes, inteligível, embora apresente bastante disfluência.

Edi.: 19 anos, sexo feminino. Apresenta deficiência mental, em decorrência da Síndrome de Down. Freqüenta o 1º. ano do ensino médio de uma escola regular. É alfabetizada e não possui trocas, nem omissão de grafemas na escrita. Edi. é bem humorada, comunicativa e participativa, está sempre querendo conversar sobre os assuntos referentes a sua vida cotidiana e, nesses momentos, demonstra iniciativa discursiva. Edi. apresenta um bom vocabulário, porém seus relatos, muitas vezes, não refletem sua realidade, ou seja, são compostos pela imaginação. Apresenta boa oralidade.

Gi.: 23 anos, sexo masculino. Apresenta deficiência mental, em decorrência da Síndrome de Down. Atualmente, não freqüenta escola e, somente por um período curto de tempo, freqüentou uma instituição especializada em pessoas portadoras de necessidades especiais. Não é alfabetizado. Com relação à linguagem, Gi. usa preferencialmente gestos indicativos e representativos, durante a comunicação. Fala poucas palavras inteligíveis e dispersa-se com facilidade, durante a dinâmica dialógica. Ela quase nunca demonstra iniciativa discursiva. Quando o faz, introduz no diálogo situações vivenciadas, que são contadas repetidas vezes, por meio de gestos, muitas vezes não compreendidos pelos interlocutores.

Lu.: 24 anos, sexo feminino. Apresenta deficiência mental, associada à grande privação cultural. Freqüentou uma escola regular, por um curto período, aos 11 anos de idade e, em seguida, freqüentou, durante um ano, uma instituição especializada em pessoas com necessidades especiais. Não é alfabetizada. Com relação ao desenvolvimento da linguagem, Lu. possui uma fala inteligível. Algumas vezes, inicia turnos discursivos, mas, em geral, só participa dos diálogos quando é solicitada.

O estudo foi realizado na clínica-escola da universidade acima citada. A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro e dezembro de 2002. Todas as sessões foram filmadas. No período da coleta de dados, o grupo foi atendido pela fonoaudióloga pesquisadora, responsável pelo estudo. As atividades desenvolvidas, tais como: a leitura de textos ficcionais e relatos de experiências vividas, tinham como objetivo promover situações dialógicas entre os jovens. As transcrições das gravações das sessões fonoaudiológicas foram feitas seguindo a ortografia regular, conforme sugerem os estudos de Perroni (1996). A partir daí, alguns trechos foram recortados para serem analisados. Cabe esclarecer, que a unidade de análise foi a dinâmica dialógica; assim, a seleção de dados privilegiou as situações nas quais apareciam momentos em que os sujeitos relatavam experiências vividas, participavam da narrativa de uma história, bem como aquelas nas quais era possível verificar a atuação da terapeuta.

Esta pesquisa assumiu os princípios teórico-metodológicos de orientação sócio-histórica. Desta forma, foram tomadas como pressupostos para a análise dos dados, tanto as premissas da análise microgenética (GÓES, 2000), que buscam ver detalhes de episódios interativos, como as idéias de Vygotsky (1991) sobre análise processual.

3 RESULTADOS

Os resultados estão apresentados sob a forma de episódios. Nos episódios I e II, a fonoaudióloga está realizando uma atividade que envolve a narrativa de histórias, da qual emerge o diálogo entre os sujeitos. Nos episódios III e IV, a situação envolve as experiências vivenciadas pelos sujeitos.

EPISÓDIO I

Situação: no dia 03 de setembro de 2002, participaram, além da fonoaudióloga, os jovens And., Lu. e Edi. Destaca-se um recorte desta sessão, na qual a terapeuta propõe ao grupo a leitura de um livro de história, chamado ''Filó e Marieta''.1 1 FURNARI, E. Filó e Marieta. São Paulo: Editora Paulinas, 2000. Este é um livro que contém apenas ilustrações. Assim sendo, a história precisa ser narrada a partir destas ilustrações.

T 1 Fono: O que será que vai acontecer, na hora que a Filó der o presente pra Marieta? Quem tem uma idéia?

T 2 Lu: Ela vai ficar contente!

T 3 Fono: Ela vai ficar contente?

T 4 Lu: É!

T 5 Fono: Eu acho que quando a gente ganha presente, a gente fica contente mesmo, né? O que você acha que vai acontecer, And.? A Lu. acha que ela vai ficar contente, e você?

T 6 And: Também.

T 7 Fono: Também acha que ela vai ficar contente? E você, Edi.?

T 8 Edi: Eu concordo com a Lu., também.

T 9 Fono: Você concorda com eles?

T 10 Edi: Hãhã.

T 11 Fono: Então vamos ver? O que você achou?

T 12 Lu: Olha! Não precisa!

T 1 3 Fono: Ela falou isso? O que ela falou? Jóia! Não precisava!

T 14 Fono: Quando a gente ganha um presente, a gente fala isso?

T 15 Lu: Eu falo.

T 16 Fono: É? Ai! Nossa, não precisava! A gente fala: obrigada! Não é? E aí ela pegou o presente...e o que aconteceu, And.?

T 17 And: É... deu um beijo nela!

Neste episódio, como não há uma narrativa pronta, o grupo precisa "discutir" sobre o desencadear da história. Observa-se que a terapeuta, ao fazer uma pergunta referente à ilustração, possibilita que a jovem Lu., no turno 2, expresse sua opinião a respeito de um sentimento que as pessoas podem ter ao ganhar algo. A partir daí, a fonoaudióloga convida os demais participantes do grupo para expressarem suas opiniões sobre o assunto. No turno 12, Lu. demonstra seu conhecimento sobre relações sociais ao dizer: ''Olha, não precisa!''. Nota-se, dessa forma, que Lu. atribui à personagem uma fala que é utilizada em situações nas quais se ganha algo de alguém. A jovem, portanto, está trazendo para o grupo algo que adquiriu fora dali, em suas experiências cotidianas, no convívio com o grupo social ao qual pertence.

A terapeuta, ao perceber esta relação feita por Lu., perguntou a ela sobre a forma como as pessoas normalmente agradecem ao ganharem um presente (turno 14). Lu. responde que é isto mesmo que ela diz - 'Olha, não precisa!' - quando ganha algo.

Deste modo, neste episódio, pode ser constatado que a fonoaudióloga, ao levar para a sessão um livro sem texto, possibilita a ocorrência de uma situação dialógica entre os jovens. Vale lembrar, que os sujeitos do estudo, com exceção de Edi., apresentam pouca iniciativa discursiva, ou seja, não se colocam como sujeitos que têm algo a dizer. Assim, o livro surge como um instrumento mediador, que favorece o aparecimento de um tema para ser discutido. Observa-se que a terapeuta, ao convidá-los a emitirem suas idéias, permite que eles assumam seus lugares de interlocutores. Além disso, ao propor tal atividade, e ao convidar os sujeitos a comentarem sobre a história, a terapeuta está exercendo seu papel de mediadora, enquanto possibilita que estes realizem, com ajuda, aquilo que ainda não conseguem autonomamente. Neste sentido, cabe resgatar aqui o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, problematizado por Vygotsky (1991, 2001).

O fato de o livro utilizado ser composto somente por ilustrações permitiu uma maior flexibilidade da "leitura" feita pelos sujeitos. A atitude da fonoaudióloga aponta para a exploração de um tipo de leitura que pode ser realizada com qualquer texto, pois, entre outras coisas, facilita ao leitor a relação entre fatos do livro com situações concretas vividas por ele, assim como a sua reflexão sobre os acontecimentos e a emissão de suas opiniões. Dessa forma, a partir desse material, é possível criar uma situação dialógica entre os sujeitos.

EPISÓDIO II3

Situação: no dia 15 de outubro de 2002, estavam presentes na sessão os sujeitos And., Edi., Lu. e Gi., além da fonoaudióloga. Foi destacado um diálogo ocorrido a partir da leitura, realizada pela terapeuta, de um livro de história, chamado "A casa sonolenta''.2 2 WOOD, A. A Casa Sonolenta. São Paulo: Editora Ática, 2002

T 1 Fono: "Nessa cama tinha uma avó...uma avó roncando, numa cama aconchegante, numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo''. (A fono vira-se para And.)

T 2 Fono: Essa mulher aqui, And., é uma avó, e ela quando dorme, ronca. Quem aqui ronca, quando dorme?

T 3 And.: Não.

T 4 Fono: O que é roncar? Quem sabe o que é roncar? Quem sabe imitar uma pessoa roncando?

T 5 Edi.: Meu pai.

T 6 Fono: Seu pai ronca?

T 7 Edi.: Meu Deus do céu!

T 8 Fono: Como é que é? Como seu pai faz, quando ele dorme?

T 9 Edi.: Ele fala.

T 10 Fono: Ele ronca também?

T 11 Edi.: Não, ele parece que ele tá mastigando alguma coisa.

T 12 Edi.: Minha mãe cutuca ele, ele acorda.

(A fono olha para Lu.)

T 13 Fono: E seu pai ronca, Lu.?

T 14 Lu.: Não sei!

T 15 Fono: E sua mãe?

T 16 Lu.: Não sei...

T 17 Fono: Nunca ouviu?

T 18 Lu.: Eu não!

T 19 Fono: Como é que é uma pessoa quando ronca? Como ela faz?

T 20 Lu.: Não sei.

T 21 Fono: Não?

(A fono olha para Gi.)

T 22 Fono: Como é, Gi., como uma pessoa faz quando ronca?

(Gi., que estava olhando para o chão, levanta a cabeça e olha para a terapeuta)

T 23 Fono: Você sabe como é que faz uma pessoa quando ronca?

T 24 Gi.: (Segmento ininteligível).

T 25 Fono: Se você estiver dormindo, sentir que tá roncando, como é que faz?

T 26 Gi.: (coloca uma das mãos sobre a orelha, inclina a cabeça para o lado e emite sons).

T 27 Fono: Ó, lá! Ele sabe, tá vendo! Muito bem! (A fono volta-se para And.)

T 28 Fono: E você, And., ronca?

T 29 And.: Não.

T 30 Fono: Sua mãe ronca?

T 31 And.: (meneio positivo).

Este episódio se inicia com a fonoaudióloga lendo a história "A Casa Sonolenta". O objetivo maior da terapeuta não é a leitura do texto, mas se valer dele para criar situações de diálogo entre os sujeitos. Desse modo, a partir do turno 2, ela propõe ao grupo uma discussão sobre o hábito de roncar. No turno 4, a fonoaudióloga questiona o grupo sobre o conceito "roncar". Edi. relata à terapeuta (turnos 5 a 12), o que é para ela ''roncar'', com base em sua própria experiência, enquanto Lu. diz não saber se o seu pai ''ronca'', como o de Edi.; justamente porque não teve a oportunidade de presenciar alguém realizando esse ruído ao dormir. No turno 22, a fonoaudióloga pergunta ao Gi., se ele sabe como uma pessoa ronca. Observa-se que o sujeito não estava, aparentemente, participando da dinâmica dialógica, pois ele olhava para baixo, quando a fonoaudióloga o interpela. Quando Gi. olha para a terapeuta, esta repete a pergunta. Gi. responde algo ininteligível, pois o mesmo comunica-se preferencialmente por gestos indicativos e representativos. A fonoaudióloga não desiste do diálogo e refaz sua questão de outra forma. No turno 26, Gi. realiza um gesto representativo para responder ao questionamento da fonoaudióloga que, no turno 27, demonstra ter interpretado os gestos realizados por ele, ao constatar que ele realmente sabe o que é roncar.

Observa-se, neste episódio, que a fonoaudióloga é quem convida o grupo a dialogar. Ela propõe o tema e realiza questionamentos, para que os sujeitos possam relatar suas experiências. A dinâmica dialógica não ocorreu espontaneamente. Constatou-se que os jovens respondem às perguntas realizadas pela fonoaudióloga, mas não acrescentam outras, nem realizam comentários com o intuito de dar continuidade à conversação.

Assim como no episódio I, aqui também é observado que os sujeitos quase não ocupam os espaços dialógicos, assumindo um papel de "interlocutores responsivos" (BAKHTIN, 2003), e que, para participarem da dinâmica dialógica, necessitam da intervenção da terapeuta.

O estudo de Freitas (2001), que problematiza a noção de Zona de Desenvolvimento Proximal, sobretudo em sujeitos com alguma dificuldade de desenvolvimento, aponta para o fato de que, nesses casos, a idéia de "proximal" não corresponde a um futuro próximo, ou a um tempo previsível. Segundo a autora, quando se trata de sujeitos com desenvolvimento atípico, é preciso levar em consideração o modo de funcionamento de cada sujeito. Vale lembrar, que as sessões terapêutico-fonoaudiológicas, analisadas neste estudo, foram realizadas semanalmente, e os dois episódios, descritos acima, ocorreram em um intervalo de mais de um mês. Ainda assim, os sujeitos mostram dependência, em ambos as situações, da ajuda da terapeuta para participarem da dinâmica dialógica.

EPISÓDIO III

Situação: no dia 29 de outubro de 2002, estavam presentes na sessão os sujeitos And., Gi., Lu. e a fonoaudióloga. Eles estavam conversando sobre animais domésticos.

(A Fono olha para todos)

T 1 Fono: E cachorro? Quem tem cachorro?

T 2 Lu.: Eu tenho, mas lá fora...

T 3 Gi.: A tê, a tê! (estende a mão paralela à mesa)

T 4 Fono: Você tem um grande, Gi.?

(A terapeuta vira-se para And.)

T 5 Fono: Você tem cachorro?

T 6 And.: (balança a cabeça positivamente)

T 7 Fono: Tem também? (A terapeuta olha para Lu.)

T 8 Fono: Pergunta pra ele o nome do cachorro dele.

T 9 Lu.: Qual o nome dele?

T 10 And.: O Bibo e o Tobi.

T 11 Fono: O Bibo e o ...?

T 12 And.: Tobi.

T 13 Fono: Tobi? E eles são grandes ou pequenos?

T 14 And.: É, é...os dois grande.

T 15 Fono: Os dois são grandes? Que legal! (A terapeuta vira-se para Gi.)

T 16 Fono: Como é seu cachorro? É grande?

T 17 Gi.: Au, au, au (meneio negativo com o dedo indicador)

T 18 Fono: É não? Não...And., tire a mão da boca! (A terapeuta olha para todos)

T 19 Fono: Gente, vamos combinar uma coisa aqui? Uma regra aqui pra esse grupo ó...quando a gente tiver aqui papeando, como disse a Lu., pode ficar com a mão na boca? Vai poder ficar com a mão na boca?

T 20 Lu.: Não...

T 21 And.: (meneio negativo com a cabeça)

T 22 Fono: Não vai poder ficar com a mão na boca, heim?! Vai poder ficar olhando pro pé?

T 23Lu.: (meneio negativo com a cabeça)

T 24 Fono: Não vai poder ficar olhando pro pé! Combinado?

T 25And.: (meneio negativo com a cabeça) (A terapeuta vira-se para Lu.)

T 26 Fono: E você, tem cachorro também, Lu.?

T 27 Lu.: (balança a cabeça positivamente)

T 28 Fono.: E como se chama o seu cachorro?

T 29 Lu.: Messias.

T 30 Fono: Messias? Que nome diferente, gente. O cachorro dela chama Messias!

T 31 Lu.: Ele não sai pra rua.

T 32 Fono: Ele não sai pra rua?

T 33 Lu.: (meneio negativo com a cabeça)

T 34 Fono: Você não deixa?

T 35 Lu.: (meneio negativo com a cabeça)

T 36 Fono: E ele é bravo?

T 37 Lu.: Ele late, mas não faz nada.

Neste episódio, observa-se, que a partir de uma pergunta realizada pela terapeuta (turno 1), tem início uma situação dialógica. No turno 2, Lu. começa a responder ao questionamento da fonoaudióloga. Contudo, ela é interrompida por Gi., que diz alguma coisa e, ao mesmo tempo, realiza um gesto com as mãos, com a intenção de dizer algo.

A terapeuta, no turno 4, volta-se para Gi. e procura dar um sentido à sua fala, fazendo-lhe uma pergunta. Mas não espera a resposta, repetindo, no turno seguinte, a pergunta realizada no turno 1, só que para o sujeito And.. No turno 8, a fonoaudióloga sugere que Lu. faça uma pergunta para And., dando-lhe o "tema". Desse modo, com o auxílio da terapeuta, o diálogo entre os jovens acontece. Observa-se que, no turno 18, a fonoaudióloga interrompe sua fala para chamar a atenção de And., pelo fato de ele estar com a mão na boca. Em seguida, ela propõe, ao grupo, a criação de regras – ao falar não pode ficar com a mão na boca, não pode ficar olhando para o chão etc. Assim, a terapeuta está combinando com os sujeitos que eles tenham atitudes esperadas numa situação dialógica.

EPISÓDIO IV

Situação: no dia 26 de novembro de 2002, participaram da sessão os jovens And., Edi. e Lu., além da fonoaudióloga. Foi destacado um diálogo, no qual a terapeuta conversa sobre a rotina de vida de cada um.

T 1 Fono: Vamos perguntar pra Lu., quem vai perguntar o que ela faz?

(Edi. olha para Lu.)

T 2 Edi.: Vai, fala, Lu.

T 3 Fono: Mas pergunta, fala não, como é que pergunta?

T 4 Edi.: De manhã, o que é que você faz?

T 5 Lu.: Lavo meu rosto, escovo meu dente, tomo leite, pão e café.

T 6 Edi.: E depois?

T 7 Lu.: Depois vô assisti...

T 8 Edi.: Televisão?

T 9 Lu.: É. Depois eu limpo minha casa, só isso. (A fono vira-se para And.)

T 10 Fono: Por que você não pergunta pra ela, o que ela assiste na televisão? Pergunta pra ela. (And. olha para frente, para parede)

T 11 And.: O que assiste na...é...televisão?

T 12 Fono: Mas olha pra ela, ó. (A terapeuta segura o rosto de And.)

T 13 And.: É...o que você assiste, é na T.V.?

T 14 Lu.: É, assisto desenho.

Neste episódio, a fonoaudióloga continua com seu objetivo de propiciar que a dinâmica dialógica ocorra no grupo e, para isso, sugere que os participantes relatem sobre suas rotinas. Os relatos observados podem ser classificados como orientado e partilhado (FREITAS, 1996, 2002). No relato orientado, um interlocutor realiza perguntas e comentários com o objetivo de orientar o narrar. Nota-se a participação da fonoaudióloga atuando como mediadora/orientadora.

A fonoaudióloga convida os sujeitos a serem, eles também, orientadores do narrar (turnos 1, 3 e 10), atribuindo não só a ela, mas também aos jovens, o papel de interlocutor. Desse modo, ela incentiva a ocorrência do diálogo entre os sujeitos. Nota-se que, dos turnos 4 a 9, Edi. conversa com Lu. sobre as atividades matinais desta. Tal fato foi possível a partir da sugestão da terapeuta (turnos 1 e 3). Edi., nos turnos 4 e 6, assume o papel de orientadora do narrar. Já no turno 8, a jovem Lu. completa o que Edi. relatava no turno anterior (relato partilhado).

Nesse episódio, a possibilidade dos jovens relatarem hábitos sobre sua rotina pôde facilitar a ocorrência do diálogo. Aqui, assim como em episódios anteriores, a fonoaudióloga sugere que o grupo converse, além de incentivar os sujeitos a manterem uma postura adequada, como, por exemplo, olhar para o interlocutor durante o diálogo. No turno 11, And. realiza uma pergunta para Lu., mas olha para a parede. A terapeuta solicita que ele mude sua postura, como se observa no turno 12.

4 DISCUSSÃO

O objetivo deste estudo foi analisar as interações dialógicas estabelecidas durante as sessões terapêutico-fonoaudiológicas realizadas com um grupo de jovens com deficiência mental, bem como buscar caracterizar os diferentes modos de atuação do terapeuta/interlocutor, durante esse atendimento, com o intuito de compreender de que maneira as intervenções terapêuticas podem contribuir para o desenvolvimento da linguagem dos sujeitos.

Por meio dos episódios apresentados e analisados, foi possível constatar que os sujeitos com deficiência mental necessitam do apoio da terapeuta para participarem dos diálogos. Este, por sua vez, utiliza-se de vários recursos para possibilitar que as situações dialógicas ocorram no grupo terapêutico-fonoaudiológico.

Nos dois primeiros episódios, a estratégia terapêutica utilizada pela fonoaudióloga, para criar um contexto de diálogo, foi o recurso da narrativa de história. Seu objetivo não era o narrar em si, mas, sim, colocar os sujeitos em uma posição de interlocutores, convidando-os a emitirem suas opiniões sobre o desenrolar da história, bem como, a relacionarem os fatos da história com suas experiências vividas.

Ao retomar o conceito vygotskyano de Zona de Desenvolvimento Proximal, problematizado por Freitas (2001), pode-se afirmar, que a terapeuta está atuando na zona de desenvolvimento potencial dos sujeitos, quando ela, através da narrativa de uma história, propicia que o diálogo ocorra. Observa-se que a fonoaudióloga realiza perguntas sobre as histórias, assim como, sugere que estes teçam comentários e façam se questionem uns aos outros.

Nos dois últimos episódios, os assuntos em pauta dizem respeito às experiências vividas pelos sujeitos (sobre animais de estimação, sobre rotina diária). Os temas abordados relacionam-se ao contexto de cada jovem e, por isso, são também considerados facilitadores para que as relações dialógicas se estabeleçam, uma vez que os sujeitos apresentam dificuldade em dialogar. Dessa maneira, a terapeuta atua na ZDP, ao propor que um faça perguntas ao outro, como também ao combinar com o grupo as regras básicas do diálogo, como, por exemplo, olhar para o interlocutor e, ao falar, não colocar a mão na boca.

As análises indicam que a fonoaudióloga tem o papel de propor e mediar as situações dialógicas no grupo de jovens com deficiência mental. Os dados deste estudo explicitam que, sem o papel mediador da terapeuta, o diálogo não ocorre entre os jovens com deficiência mental durante a sessão terapêutico-fonoaudiológica.

Outro ponto que pode ser destacado, refere-se ao desenvolvimento de linguagem dos jovens com deficiência mental. Os dados analisados correspondem a um determinado período de tempo (setembro a dezembro de 2002). Neste espaço, foi possível verificar que os sujeitos do estudo, durante a dinâmica dialógica, utilizaram preferencialmente a linguagem oral, mas também recorreram ao uso de gestos. De uma forma, ou de outra, necessitaram da mediação do terapeuta e, através desta, na maioria das vezes, foi possível perceber a ocorrência do diálogo no grupo.

Contudo, a cada episódio, fez-se necessário que a terapeuta atuasse novamente com sugestões, perguntas e comentários para que a dinâmica dialógica ocorresse. Neste sentido, cabe retornar à idéia de desenvolvimento, problematizada por Vygotsky:

Acreditamos que o desenvolvimento da criança é um processo dialético complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funções, metamorfose ou transformação qualitativa de uma forma em outra, embricamento de fatores internos e externos, e processos adaptativos que superam os impedimentos que a criança encontra. (VYGOTSKY, 1991, p. 83)

Verificamos que o autor está apontando para uma caracterização do desenvolvimento como sendo não linear e por apresentar pontos de viragem, como, também, por não ser visto como resultado de acúmulo gradual de mudanças isoladas. Durante os quatro meses em que o grupo de jovens foi observado, foi possível constatar momentos em que os sujeitos participaram do diálogo com relativa autonomia, assim como, situações em que a dinâmica dialógica só ocorreu mediante a orientação da terapeuta. Tal fato retrata que os jovens com deficiência mental têm possibilidades efetivas de linguagem e que podem participar da dinâmica dialógica, contudo, ao se compreender o desenvolvimento como processo, no qual a participação do outro é fundamental, não se torna pertinente buscar características, nas situações dialógicas, que apontem se o desenvolvimento de linguagem ocorreu, ou não, durante os atendimentos fonoaudiológicos em grupo.

5 CONCLUSÃO

Este estudo assume os princípios teóricos de orientação sócio-histórica, como aqueles que consideram a linguagem ocupando o papel central de signo social; ou seja, por meio dela é que os sujeitos podem internalizar conhecimentos produzidos nas relações sociais. Neste trabalho, evidencia-se que, por meio da linguagem, terapeuta e sujeitos participaram da dinâmica dialógica e conceitos foram discutidos, além de experiências terem sido partilhadas.

A análise permitiu constatar que o grupo configura-se como uma possibilidade de atuação fonoaudiológica que, mais do que suprir a demanda de atendimentos, permite a troca de experiências e negociações, que podem favorecer a ocorrência do diálogo entre jovens com deficiência mental.

Ocorreram situações em que a fonoaudióloga, ao se apropriar de diferentes instrumentos simbólicos (as narrativas, a partir dos livros de histórias, e os relatos sobre as experiências de vida dos sujeitos), assumiu seu papel ativo na constituição dialógica dos jovens. Além disso, constatou-se a importância da atenção dada pela terapeuta às possibilidades de linguagem do grupo, e não às suas dificuldades, o que é fundamental para a construção da linguagem.

Para finalizar, vale ressaltar um ponto de discussão que deverá ser tema de pesquisas futuras. Um dos problemas enfrentados por jovens com deficiência mental parece ser o do pouco convívio social com outros jovens (com, ou sem, deficiência). A vida da maioria deles é restrita ao ambiente familiar e à instituição que eles (às vezes) freqüentam. Tal fato pode justificar a baixa iniciativa para atividades dialógicas.

Portanto, este estudo torna-se relevante, na medida em que mostra a importância do papel do terapeuta, como aquele que pode trazer para o grupo temas atuais e de interesse dos participantes, dando possibilidade para que, a partir de assuntos diversificados, a conversa seja desencadeada no grupo. Além disso, a mediação do terapeuta, quando este realiza comentários e perguntas, faz com que a narratividade oral se desenvolva, além de permitir que os integrantes do grupo, ainda que apresentem características peculiares de linguagem, possam se manifestar e se colocar enquanto sujeitos sociais.

Recebido em 02/12/2005

Reformulado em 11/04/2006

Aprovado em 17/04/2006

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Aceito
      11 Abr 2006
    • Revisado
      11 Abr 2006
    • Recebido
      02 Dez 2005
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