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Como avaliar a percepção de competência e aceitação social de crianças com paralisia cerebral?Estudo inicial para a determinação das propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy

How to measure children with cerebral palsy's perception of competence and social acceptance?Preliminary study to determinate the psychometric properties of the portuguese version of the Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy

Resumos

O principal objectivo deste estudo consistiu na determinação das propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy. Participaram neste estudo 108 crianças (60 rapazes e 48 raparigas) com paralisia cerebral, com idades entre os 4 e os 9 anos, distribuídas em hemiplegicas, diplégicas e tetraplégicas e com um QI igual ou superior a 70. A maioria (n=98) frequentava o ensino regular, enquanto apenas 10 frequentavam escolas especiais. O instrumento foi aplicado num segundo momento a 41 das crianças, com um intervalo máximo de duas semanas. Os resultados da correlação de Pearson relativamente aos dois momentos (entre 0.80 e 0.98) bem como o valor do alfa de Cronbach (entre 0.69 e 0.93) evidenciam uma boa fiabilidade da versão portuguesa. Também os valores das inter-correlações entre as quatro subescalas (r=0.60 ou superior) bem como os valores médios das respostas das crianças em função de diferentes características (idade, sexo, condição médica) para as diferentes subescalas apoiam a validade interna do instrumento. Em suma, os resultados do nosso estudo, na sua globalidade, parecem confirmar as propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, pelo que esta parece constituir-se como um instrumento fiável e válido para a avaliação do modo como as crianças portuguesas com Paralisia Cerebral se percebem no domínio cognitivo, físico e social.

educação especial; paralisia cerebral; autopercepções; psicometria


The main purpose of this study was to examine the psychometric properties of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy. The sample was made up of 108 children (60 boys and 48 girls) with cerebral palsy, aged between 4 and 9 years, who suffered hemiplegia, diplegia or quadriplegia and had an IQ of 70 or higher. Most of the children (n=98) attended regular schools (integrated in kindergarten or primary school); indeed, only 10 children attended special schools for children with special needs. A sub-sample of 41 children filled out the scale in two different moments, separated one to two weeks maximum. The results of Pearson correlations between the two administrations (ranging 0.80 to 0.98) and the Cronbach's alpha (ranging 0.69 to 0.93) showed good reliability of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale. Moreover, the inter-correlations between the four subscales (r=0.60 or higher) as well the mean scores associated by children with different characteristics (age, sex, medical condition) to the different subscales supported the internal validity of the instrument. Therefore, this study provides initial evidence about the psychometric properties of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale, which is why its use is recommended to assess the perceived competence and social acceptance of Portuguese children with cerebral palsy.

special education; cerebral palsy; self-perceptions; psychometrics


RELATO DE PESQUISA

Como avaliar a percepção de competência e aceitação social de crianças com paralisia cerebral? Estudo inicial para a determinação das propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy

How to measure children with cerebral palsy's perception of competence and social acceptance? Preliminary study to determinate the psychometric properties of the portuguese version of the Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy

Rui Manuel Nunes CorredeiraI; Nuno José Correia Alves Côrte-RealII; Cláudia Salomé Lima DiasIII; Maria Adília Sá Pinto Marques da SilvaIV; António Manuel Leal Ferreira Mendonça da FonsecaV

IMestre em Actividade Física Adaptada, Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, Gabinete de Actividade Física Adaptada - : rcorredeira@fade.up.pt

IIDoutor em Ciências do Desporto, Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, Gabinete de Psicologia do Desporto - ncortereal@fade.up.pt

IIIDoutora em Psicologia do Desporto, Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, Gabinete de Psicologia do Desporto - cdias@fade.up.pt

IVDoutora em Ciências do Desporto, Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, Gabinete de Actividade Física Adaptada - madilia@fade.up.pt

VDoutor em Ciências do Desporto, Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, Gabinete de Psicologia do Desporto - afonseca@fade.up.pt

RESUMO

O principal objectivo deste estudo consistiu na determinação das propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy. Participaram neste estudo 108 crianças (60 rapazes e 48 raparigas) com paralisia cerebral, com idades entre os 4 e os 9 anos, distribuídas em hemiplegicas, diplégicas e tetraplégicas e com um QI igual ou superior a 70. A maioria (n=98) frequentava o ensino regular, enquanto apenas 10 frequentavam escolas especiais. O instrumento foi aplicado num segundo momento a 41 das crianças, com um intervalo máximo de duas semanas. Os resultados da correlação de Pearson relativamente aos dois momentos (entre 0.80 e 0.98) bem como o valor do alfa de Cronbach (entre 0.69 e 0.93) evidenciam uma boa fiabilidade da versão portuguesa. Também os valores das inter-correlações entre as quatro subescalas (r=0.60 ou superior) bem como os valores médios das respostas das crianças em função de diferentes características (idade, sexo, condição médica) para as diferentes subescalas apoiam a validade interna do instrumento. Em suma, os resultados do nosso estudo, na sua globalidade, parecem confirmar as propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, pelo que esta parece constituir-se como um instrumento fiável e válido para a avaliação do modo como as crianças portuguesas com Paralisia Cerebral se percebem no domínio cognitivo, físico e social.

Palavras-chave: educação especial; paralisia cerebral; autopercepções; psicometria.

ABSTRACT

The main purpose of this study was to examine the psychometric properties of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy. The sample was made up of 108 children (60 boys and 48 girls) with cerebral palsy, aged between 4 and 9 years, who suffered hemiplegia, diplegia or quadriplegia and had an IQ of 70 or higher. Most of the children (n=98) attended regular schools (integrated in kindergarten or primary school); indeed, only 10 children attended special schools for children with special needs. A sub-sample of 41 children filled out the scale in two different moments, separated one to two weeks maximum. The results of Pearson correlations between the two administrations (ranging 0.80 to 0.98) and the Cronbach's alpha (ranging 0.69 to 0.93) showed good reliability of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale. Moreover, the inter-correlations between the four subscales (r=0.60 or higher) as well the mean scores associated by children with different characteristics (age, sex, medical condition) to the different subscales supported the internal validity of the instrument. Therefore, this study provides initial evidence about the psychometric properties of the Portuguese version of the Dutch Pictorial Scale, which is why its use is recommended to assess the perceived competence and social acceptance of Portuguese children with cerebral palsy.

Keywords: special education; cerebral palsy; self-perceptions; psychometrics.

1 INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos anos tem vindo a registar-se uma cada vez mais elevada preocupação com as questões relacionadas com a Actividade Física Adaptada, não só por parte das pessoas em geral como também pela comunidade científica. Todavia, para que o seu desenvolvimento e consolidação sejam incrementados no futuro é necessário que ocorra não só uma grande cooperação entre os profissionais, mas também uma melhoria no ensino e investigação neste domínio (VAN COPPENNOLE, 2006).

A questão, porém, é que a dificuldade de que se reveste a recolha de dados relativos a alguns grupos específicos de pessoas com necessidades especiais (e.g., crianças portadoras de multideficiência, perturbações emocionais, paralisia cerebral, entre outros), bem como a escassa existência de instrumentos adaptados a elas, podem representar um forte condicionamento à realização de investigação e intervenção nesta área do conhecimento. Daí que a construção, adaptação e validação de instrumentos específicos para populações com necessidades especiais assuma uma importância vital.

De entre as várias populações com necessidades especiais, é possível destacar a que sofre de paralisia cerebral. Esta deficiência, devido à sua etiologia neurológica, é frequentemente acompanhada por outras perturbações, nomeadamente ao nível sensorial, da capacidade de percepção e da fala, bem como por um atraso mental, problemas de comportamento e de desenvolvimento específico ou, ainda, epilepsia (BARABAS; TAFT, 1986; BOBATH, 1984; KUBAN; LEVINGTON, 1994).

Segundo Ingram (1984), esta desordem pode variar desde moderada, mesmo que em muitas circunstâncias a inabilidade possa não se perceber, até severa, implicando um cuidado total e o uso de cadeira de rodas. De referir, porém, que as diversas formas de paralisia cerebral não são progressivas, acreditando-se mesmo que, com uma intervenção adequada, possam vir a ser parcialmente compensadas.

De resto, segundo alguns autores (e.g., GOODWAY; RUDISILL, 1996; KLERK et al., 1997; RODRIGUES, 1998; VERMEEER et al. 1999), uma das razões porque se faz uma intervenção reabilitativa em crianças com paralisia cerebral tem a ver precisamente com a possibilidade de se poderem desenvolver compensações em relação a algumas das suas limitações, em particular no que se refere a aspectos do seu processo de desenvolvimento motor, as quais poderão eventualmente vir a reflectir-se nas suas autopercepções (RESENDE, 2006).

Leroy-Malherbe (1996) e Van Rossum e colaboradores (1994) defenderam que um critério de base para a eficácia da actividade física em geral, e da reabilitação motora em especial, é o que permite à criança estar apta a utilizar as suas capacidades (habilidades) na sua vida diária.

Todavia, a este propósito, importa destacar igualmente a importância assumida pelo modo como as crianças se percebem nos diferentes domínios, conforme tem vindo a ser destacado por Harter (1982) quando sublinha a importância que a percepção de competência do indivíduo parece assumir naquele processo.

Para a avaliação da percepção de competência de crianças com paralisia cerebral, diferentes investigadores em diferentes países (VERMEER; VEENHOF, 1997; SCHWARZ, 1998; SCHOLTES et al., 1999; ÈURDOVÁ et al., 2001) têm vindo a privilegiar o recurso à Dutch Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance in Children with Cerebral Palsy desenvolvida por Vermeer e Veenhof (1997) especificamente para crianças com paralisia cerebral com base na Pictorial Scale of Perceived Competence and Social Acceptance for Young Children, anteriormente elaborada por Harter e Pike (1984).

A Dutch Pictorial Scale centra-se em dois construtos gerais (i.e., a Competência Percebida e a Aceitação Social Percebida), que compreendem, cada um deles, outros dois (i.e., a Competência Percebida envolve a competência física e a competência cognitiva e a Aceitação Social Percebida envolve a aceitação pelos pais e a aceitação pelos pares). Para a sua avaliação, foram criados 40 itens, divididos por 4 subescalas (cada uma delas com 10 itens) correspondentes aos construtos anteriormente referidos.

Procurando respeitar a especificidade da população em causa, os autores da Dutch Pictorial Scale decidiram criar diferentes versões da subescala relativa à competência cognitiva, consoante o escalão etário (dos 4-6 anos ou 7-9 anos). Para além disso, porém, foram igualmente criadas versões específicas para crianças não ambulatórias e ambulatórias (surgindo, consoante os casos, a criança sentada em cadeira de rodas ou em pé, bem como para rapazes e raparigas (distinguindo-se, essencialmente, pelo desenho do penteado e cor do cabelo, para que as crianças se identificassem melhor com a figura representada.);

Com o objectivo de contribuir para a promoção da pesquisa nesta área do conhecimento em Portugal, Corredeira (2001), após ter revisto a literatura especializada e constatado que não existia qualquer instrumento fiável e válido para o efeito, decidiu proceder à tradução e adaptação transcultural da Dutch Pictorial Scale para a língua e cultura portuguesas.

Para tal, foi respeitada a sugestão metodológica de Vallerand (1989) relativamente aos critérios e regras a seguir para a validação transcultural de instrumentos psicológicos, designadamente no que se refere à necessidade de: i) preparação de uma versão preliminar; ii) avaliação e modificação da versão preliminar; e iii) avaliação da compreensibilidade dos aspectos semânticos das questões pelos membros da população alvo, por intermédio da realização de um pré-teste.

Porém, a determinação das propriedades psicométricas do instrumento resultante do processo anteriormente referido não foi ainda concretizada, razão pela qual se entendeu da necessidade e oportunidade da realização do presente estudo, cujo objectivo principal se constituiu precisamente como a análise das propriedades psicométricas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale.

2 METODOLOGIA

2.1 AMOSTRA

Para a selecção da amostra deste estudo, recorremos à análise das inscrições para atendimento em centros e núcleos regionais do norte de Portugal, onde, de acordo com a sua valência, são garantidos o seu processo de reabilitação e atendimento em consultas externas. De uma forma geral, a maioria destas crianças frequenta o ensino regular (incluindo-se aqui os jardins de infância e creches), sendo muito menos as que cumprem a escolaridade em escolas destinadas ao atendimento específico de crianças com necessidades especiais.

A amostra deste estudo foi constituída por 108 crianças (60 rapazes e 48 raparigas) com paralisia cerebral, que tinham idades compreendidas entre os 4 e os 9 anos de idade, distribuídas por dois escalões etários (ver Tabela 1). Todas as crianças tinham um quociente de inteligência igual ou superior a 70 – tendo sido definido este critério com base no referido por Vermeer et al. (1994) relativamente ao desenvolvimento e aplicação desta escala, designadamente no que se refere à sua inadequação a crianças com atraso cognitivo. Ainda assim, houve necessidade de excluir da amostra deste estudo quatro crianças (duas com 4 anos e outras duas com 5 anos) que, mesmo após termos procurado explicar de forma mais detalhada alguns dos itens, revelaram grandes dificuldades de interpretação, não compreendendo mesmo muitas das questões.

Na linha do anteriormente referido relativamente ao percurso escolar das crianças participantes neste estudo, importa sublinhar que apenas 10 delas estavam inscritas em escolas especiais, frequentando as restantes 98 o ensino regular. Em termos de diagnóstico funcional, conforme é igualmente possível verificar através da consulta do Tabela 1, 51 das crianças eram ambulatórias (i.e., deslocavam-se por meios próprios), sendo as restantes 57 não ambulatórias (i.e., deslocavam-se em cadeira de rodas). Quanto à idade, e considerando os escalões etários definidos (i.e., dos 4 aos 6 anos e dos 7 aos 9 anos), enquanto 30 das crianças integravam o escalão mais jovem as restantes 78 faziam parte do escalão etário mais elevado. Finalmente, em relação à classificação topográfica (i.e., ao seu grau de afectação motora), verificámos que o grupo com maior número de crianças foi constituído pelos tetraplégicos (n=61), seguindo-se os relativos aos diplégicos (n=25) e aos hemiplégicos (n=22).

2.2 INSTRUMENTO

A versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale utilizada no presente estudo foi a resultante do processo de tradução e adaptação transcultural realizado anteriormente por Corredeira (2001).

Em correspondência com a versão original, a que nos referimos na introdução deste trabalho, a versão portuguesa da

Dutch Pictorial Scale é constituída por 40 itens, igualmente distribuídos por 4 subescalas: competência cognitiva, competência física, aceitação pelos pais e aceitação pelos pares. Do mesmo modo, importará referir que Corredeira (2001), na linha do proposto e realizado pelos autores da versão original, desenvolveu versões específicas da versão portuguesa da

Dutch Pictorial Scale para crianças não-ambulatórias e ambulatórias (enquanto para as primeiras, as figuras representam crianças sentadas em cadeiras de rodas, para as segundas as figuras das crianças surgem em pé; ver

figuras 1a e

1b) e rapazes e raparigas (diferindo apenas no penteado das crianças representadas nas várias figuras, correspondentes aos diversos itens do instrumento (ver

Figuras 2a e

2b). Finalmente, de destacar que, uma vez mais em consonância com o registado para a versão original da

Dutch Pictorial Scale, a subescala da "competência cognitiva" da versão portuguesa é distinta consoante o escalão etário das crianças (4-6 anos e 7-9 anos) à qual é aplicada (dos 10 itens que a constituem, 8 são distintos; ver

Figuras 3a e

3b).







2.3 PROCEDIMENTOS DE RECOLHA DOS DADOS

Antes de se proceder à aplicação do instrumento, foi naturalmente solicitada autorização quer aos responsáveis pelas instituições frequentadas pelas crianças quer aos seus encarregados de educação. Nessa altura, foram não só prestados todos os esclarecimentos considerados necessários e/ ou requeridos, como solicitada, aos que concordaram em participar, a cedência de alguns dados anamnésicos referentes às crianças a estudar.

No que concerne especificamente à aplicação do instrumento, importará sublinhar que foi realizada individualmente e sempre pelo mesmo investigador, especialmente treinado para o efeito, o qual, respeitando as instruções definidas para a sua aplicação, procurou não induzir quaisquer respostas às crianças, tendo o processo durado, em média, entre 20 a 45 minutos por criança.

De acordo com o protocolo proposto pelos respectivos autores, a aplicação deste instrumento envolve, para cada item, a apresentação de duas figuras, cada qual com uma descrição oral. A criança selecciona inicialmente qual das crianças das figuras (duas por item) considera mais parecida consigo, indicando em seguida o grau de semelhança que entende existir com ela; mais especificamente, indica se se considera "muito parecida" (correspondendo ao círculo maior debaixo da figura) ou "pouco parecida" (correspondendo ao círculo menor debaixo da figura) com a criança da figura que seleccionou. Com base nas figuras indicadas, as respostas são transpostas para uma escala de 4 pontos (de 1=não muito competente/ socialmente aceite, até 4=muito competente/ socialmente aceite), com o valor relativo a cada uma das quatro subescalas a corresponder à média dos valores atribuídos para os 10 itens que a constituem.

Finalmente, de destacar que, com o objectivo de testar a sua consistência temporal, o instrumento foi aplicada duas vezes a 41 das crianças que participaram neste estudo, tendo decorrido sensivelmente uma semana entre as duas aplicações.

2.4 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ESTATÍSTICA DOS DADOS

Para determinar a fiabilidade da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, foi não só calculado o coeficiente de estabilidade das respostas, recorrendo para o efeito à técnica da correlação de Pearson, como a sua consistência interna, sendo calculados para o efeito os valores do alfa de Cronbach para os itens de cada uma das subescalas.

Para a análise da validade interna da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, foi inspeccionada a matriz de correlações existentes entre os valores atribuídos para as quatro subescalas.

Finalmente, foram ainda analisadas as diferenças entre os valores médios atribuídos pelos diferentes grupos de crianças, utilizando para tal o teste t de student (quando comparados valores de dois grupos; i.e., nos casos do sexo, idade e capacidade de locomoção) e a ANOVA (quando comparados valores de três grupos; i.e., no caso da classificação topográfica).

3 RESULTADOS

De referir, em primeiro lugar, que ao analisarmos as médias dos valores das respostas das crianças (ver Figura 2) verificámos que elas, de uma forma geral, foram superiores a 2 mas inferiores a 3 (na verdade, a única excepção verificou-se em relação à subescala da competência cognitiva para o escalão etário inferior). Ainda assim, da análise dos valores dos desvios-padrão resultou evidente a existência de uma certa amplitude das respostas dadas pelas diferentes crianças relativamente às várias dimensões, sugerindo assim a sua capacidade discriminativa.

Tal como referimos anteriormente, com o objectivo de determinar a estabilidade temporal da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, solicitámos a 41 das crianças para a preencherem em dois momentos distintos, separados por uma semana entre eles.

A análise dos valores das respostas das crianças dadas naqueles dois momentos (ver Figura 2) permitiu identificar a existência de uma significativa similaridade entre eles. De facto, em ambos os momentos, os valores mais elevados corresponderam às subescalas da aceitação pelos pares e pelos pais, seguindo-se os relativos à subescala de competência cognitiva, para o escalão etário dos 7 aos 9 anos, em contraste com o verificado relativamente aos valores referentes ao escalão etário dos 4 aos 6 anos, que, em ambos os casos, foram os mais reduzidos.

Também a análise das correlações entre os valores atribuídos pelas crianças às diferentes subescalas nos dois momentos de aplicação da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale (ver Tabela 3) apontou no mesmo sentido, ao revelar a existência de magnitudes muito elevadas para todos os casos.

Para avaliar a consistência interna dos itens de cada uma das subescalas da versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale, recorremos ao cálculo dos coeficientes de alfa de Cronbach, tendo constatado que todos eles foram bastante elevados, especialmente quando considerados os valores relativos à amostra total (ver Tabela 4).

Adicionalmente, a exemplo do realizado pelos autores da versão original, decidimos calcular igualmente a consistência interna das subescalas relativas à competência e à aceitação social – constituídas, respectivamente, pelo agrupamento das subescalas da competência física e cognitiva, e da aceitação dos pais e dos pares – bem como do instrumento na sua globalidade, tendo encontrado, uma vez mais, valores claramente acima do valor de 0.70, sugerido por Nunnally (1978) como valor mínimo a considerar para este efeito.

De recordar, a este respeito, que, segundo Nunnaly (1978), a consistência interna é uma função directa do número de itens do teste, sendo que quando o número de itens aumenta o mesmo acontece ao valor de alfa. Foi precisamente isto que sucedeu quando juntamos as duas subescalas de aceitação. Ou seja, ao considerarmos conjuntamente todos os itens relativos à aceitação pelos pares e pelos pais, o valor de alfa foi superior aos valores de alfa encontrados para os itens daquelas duas subescalas separadamente. No caso da competência percebida, embora não se tenha passado rigorosamente o mesmo, porquanto o valor de alfa correspondente à totalidade dos itens relativos à competência não ultrapassou o valor mais alto das duas subescalas referentes à competência quando consideradas separadamente, foi ainda assim igual a ele (i.e., foi igual ao valor calculado para os itens referentes à subescala da competência cognitiva).

Com o objectivo de examinar a validade do instrumento, decidiu-se analisar primeiramente as correlações existentes entre os valores relativos às várias subescalas, tendo-se verificado que, quer para a amostra total (n=108) quer para a sub amostra de crianças que efectuaram o reteste (n=41), todas elas foram todas positivas, com magnitudes moderadas ou mesmo elevadas.

Quanto às correlações entre os valores atribuídos às diferentes subescalas, verificou-se, em ambos os momentos, que as magnitudes das correlações entre subescalas conceptualmente mais próximas (i.e., competência cognitiva com competência física e aceitação pelos pais com aceitação pelos pares) foram superiores às magnitudes das correlações entre escalas conceptualmente mais distantes (i.e., competência cognitiva ou física com aceitação pelos pais ou pelos pares) (ver Tabelas 5 e 6).

Em relação à comparação das respostas das crianças em função do seu sexo (ver Tabela 7), embora a diferença entre os valores médios nunca tenha atingido significado estatístico, verificou-se que as raparigas indicaram valores superiores aos dos rapazes para todas as subescalas, com excepção da correspondente à competência física.

Quanto à análise das respostas em função da idade das crianças, foi evidente que o grupo das mais velhas (i.e., com idades entre os 7 e os 9 anos) apresentou valores médios mais elevados do que os apresentados pelas mais novas (i.e., com idades entre os 4 e os 6 anos), sendo a diferença entre eles estatisticamente significativa em quase todas as subescalas (a única excepção foi a relativa à subescala da aceitação pelos pares).

Ao analisarmos as respostas em função da capacidade de locomoção das crianças (i.e., ambulatórias vs não-ambulatórias), detectámos que o grupo das crianças não-ambulatórias indicou para todas as subescalas valores mais elevados, sendo a diferença estatisticamente significativa no caso da competência física e da aceitação pelos pais.

Finalmente, no que se refere à classificação topográfica, não se verificou nenhuma diferença estatisticamente significativa entre os valores médios atribuídos pelas crianças dos grupos considerados (i.e., tetraplégicas, diplégicas e hemiplégicas) em qualquer das subescalas, com os valores mais altos a não corresponderem sempre ao mesmo grupo. Ou seja, enquanto as hemiplégicas indicaram os valores mais elevados para as subescalas de competência física e de aceitação dos pais, as tetraplégicas indicaram o valor mais elevado para a subescala de competência cognitiva e as diplégicas para a aceitação pelos pares.

4 DISCUSSÃO

De uma forma geral, as crianças que participaram neste estudo indicaram valores acima do ponto médio da escala para todos os domínios, sugerindo portanto que avaliavam positivamente a sua competência, quer cognitiva ou física, quer de aceitação social. Embora estes resultados convirjam com os resultados de outros estudos anteriormente realizados noutros Países (ÈURDOVÁ et al., 2001; SCHOLTES et al., 1999; SCHWARZ, 1998; VERMEER; VEENHOF, 1997), há que reconhecer que a indicação de valores elevados por parte destas crianças poderá traduzir o seu desejo ou necessidade de se sentirem competentes e socialmente aceites, reflectindo assim alguma confusão entre os seus desejos ou necessidades e a realidade, tendência para a qual alertou a própria Susan Harter (1982). Nessa medida, entendemos importante sublinhar que, apesar de o desenho metodológico do nosso estudo não nos permitir assumir em definitivo que a eventualidade anteriormente referida não ocorreu, foi claramente enfatizado junto das crianças que não existiam respostas mais certas ou mais erradas do que as outras, porquanto o que importava é que elas dissessem exactamente o que pensavam.

Assume-se que quando uma dada questão se reporta a aspectos relativamente estáveis no tempo (como é o caso dos domínios considerados neste instrumento) e é suficientemente clara para os inquiridos, se deve registar uma estabilidade entre os valores indicados por eles relativamente a essa questão em dois momentos distintos no tempo, sendo esta estabilidade reflectida pela existência de uma correlação positiva, de magnitude elevada e estatisticamente significativa entre os referidos valores.

Os resultados por nós encontrados neste parâmetro apontaram exactamente nesse sentido. Na verdade, a análise aos coeficientes de estabilidade das respostas dadas pelas crianças nos dois momentos (ver Tabela 3) bem como à consistência interna dos itens de cada uma das subescalas (Tabela 4), forneceu evidência clara no sentido da assunção da fiabilidade do instrumento analisado, na linha aliás do reportado por outros autores que desenvolveram trabalhos relativamente semelhantes na Holanda (VERMEER; VEENHOF, 1997), Alemanha (SCHAWRZ, 1998) ou República Checa (ÈURDOVÁ et al., 2001).

Mais especificamente, no que concerne aos coeficientes de estabilidade, os valores da correlação de Pearson relativos às diferentes subescalas variaram, no nosso estudo, entre 0.81 e 0.98, valores inclusivamente superiores aos valores mais elevados referidos na literatura, correspondentes às versões holandesa e alemã (entre 0.75 e 0.86 e entre 0.79 e 0.83, respectivamente). Quanto à versão checa, os valores referidos pelos investigadores que examinaram a sua fiabilidade (entre 0.39 e 0.52), embora considerados como aceitáveis, não atingiram a expressão dos nossos, o que poderá eventualmente relacionar-se com o facto de que enquanto no nosso estudo as duas aplicações decorreram num intervalo máximo de uma semana, sempre num ambiente familiar à criança, as duas aplicações da escala checa foram efectuadas comum intervalo de tempo maior (duas semanas em geral, mas prolongando-se, nalguns casos, até 8 semanas), período durante o qual a maioria das crianças permaneceu fora do ambiente familiar habitual.

A comparação dos nossos dados com os reportados para a versão inglesa, por Vanessa Scholtes e colaboradores (1999; 2002), revelou igualmente a superioridade da versão portuguesa neste parâmetro, porquanto aqueles investigadores apenas quando agruparam os itens relativos à competência física e cognitiva numa subescala mais abrangente, designada de competência, obtiveram valores superiores ao valor critério sugerido por Nunnally (1978); no caso das subescalas relativas à aceitação social, não obstante a junção dos itens das duas subescalas (aceitação pelos pais e pelos pares) ter originado igualmente um incremento do valor de alfa, os valores de alfa já eram aceitáveis em ambos os casos.

Para a determinação da validade de um instrumento de avaliação psicológica é frequente os investigadores procederem a técnicas estatísticas mais sofisticadas, como sejam as análises factoriais exploratórias ou confirmatórias. Todavia, o recurso a estes procedimentos implica um número mínimo de elementos por variável (enquanto alguns especialistas sugerem que é aceitável realizar análises factoriais com um número mínimo de 5 elementos por variável, outros são mais exigentes reclamando pelo menos 10 a 15 sujeitos por variável). Nessa medida, a dimensão da amostra do nosso estudo, independentemente de ser claramente superior à dos outros estudos que procuraram igualmente avaliar as propriedades psicométricas de versões da Dutch Pictorial Scale adaptadas para outras realidades, não autoriza o recurso àquelas técnicas estatísticas.

Em alternativa, decidimos em primeiro lugar inspeccionar a matriz de correlações entre os valores das diferentes subescalas, procurando assim analisar da validade interna do instrumento. Esperávamos identificar a existência de correlações positivas entre as várias subescalas, porquanto todas elas se referem a domínios de competência, embora não com magnitudes muito elevadas, já que isso traduziria a falta de independência dos diferentes construtos.

O facto de terem sido identificadas correlações positivas, estatisticamente significativas, entre as diferentes escalas do instrumento indicia assim a validade do nosso instrumento, já que é inequívoca a sugestão, ao nível da literatura especializada, no sentido da existência de relações positivas entre os diferentes domínios de competência.

Adicionalmente, procurámos analisar os valores atribuídos pelas crianças a cada uma das subescalas, procurando, dessa forma, averiguar da sua validade externa. Ou seja, assumimos que caso os padrões de resposta dos nossos inquiridos fossem – como foram - relativamente semelhantes aos propostos na literatura e encontrados noutros estudos, tal facto poderia, em certa medida, sugerir a validade da versão portuguesa do instrumento em análise.

Da análise dos dados resultou a existência de uma certa amplitude e variabilidade entre os valores médios atribuídos pelas crianças para as diferentes subescalas, o que converge com o modelo teórico subjacente à construção da Self-Perception Profile for Children (HARTER, 1982), percursora da Dutch Pictorial Scale desenvolvido para crianças com paralisia cerebral (VERMEER; VEENHOF, 1997). Ou seja, de acordo com aquele modelo teórico, a criança não se sente igualmente competente em todos os domínios (HARTER, 1982), sendo capaz de fazer significativas distinções entre diferentes domínios (HARTER; PIKE, 1984).

A análise dos valores médios associados pela globalidade da amostra aos diferentes domínios considerados no instrumento, revelou igualmente que, de uma forma geral, as crianças participantes no nosso estudo se sentiam competentes e socialmente aceites, à semelhança do verificado noutros estudos (ÈURDOVÁ et al., 2001; SCHWARZ, 1998; SCHOLTES et al., 1999 e VERMEER e VEENHOF, 1997). Em todo o caso, pareceu ser evidente que elas se sentiam menos competentes nos domínios cognitivo e físico, comparativamente aos domínios da aceitação social.

A este dado poderão não ser alheias, por um lado, as limitações físicas dos inquiridos que, na maior parte dos casos, eram muito restritivas no que concerne a aspectos de índole motora e, como tal, condicionantes de uma autopercepção de competência física muito elevada. Por outro lado, é necessário ter em atenção que, se é verdade que o "ser alguém com deficiência" é por si só um handicap social, muitas vezes funcionando mesmo como estigma social, também não é menos verdade que, tal como referiram Harter (1982) e Marques (1991), estas circunstâncias são muitas vezes promotoras de uma superproteção por parte dos seus "outros significativos", facto que poderá, também neste caso, contribuir para explicar o aparecimento de valores mais elevados ao nível do domínio da aceitação social.

Ainda assim, importa referir que nalguns casos esta situação pode funcionar ao contrário, já que em muitas circunstâncias as crianças com paralisia cerebral poderão subestimar as suas competências como forma de autodefesa, tentando minimizar a rejeição dos "outros significativos" (VERMEER; VEENHOF, 1997). Por exemplo, Harter (1982) alertou para a possibilidade de, paralelamente às reais capacidades da criança com paralisia cerebral, o julgamento pelos "outros significativos" poder influenciar a competência percebida, designadamente nestes domínios, e nem sempre necessariamente no sentido mais positivo.

Apesar de partilharmos desta ideia de Susan Harter, aceitando inclusivamente que a situação por ela descrita possa ter contribuído para os valores por nós encontrados, importará ressalvar que os valores encontrados noutros estudos similares ao nosso (e.g., ÈURDOVÁ et al., 2001; SCHWARZ, 1998; SCHOLTES et al., 1999; VERMEER; VEENHOF, 1997) nem sempre foram idênticos, designadamente ao nível da competência cognitiva. Ainda que não tenhamos, neste momento, quaisquer dados que suportem essa possibilidade, será sempre de admitir que neste domínio as questões de natureza contextual e cultural possam fazer sentir-se.

Um estudo de Van der Steen e colaboradores (1987) destacou a elevada influência exercida pelos "outros significativos" no que concerne à informação utilizada pelas crianças para avaliarem a sua competência. Aqueles autores acrescentaram ainda, não só que a influência dos "outros significativos" varia de professor para professor, mas também que ela se exerce especialmente no domínio cognitivo, enquanto que os amigos dessas crianças influenciam mais o domínio motor.

Na linha do anteriormente realizado, procurámos igualmente analisar os valores médios atribuídos pelas crianças a cada uma das diferentes subescala em função de algumas das suas características, designadamente idade, sexo, capacidade de locomoção e classificação topográfica.

Relativamente à variável sexo, não foram identificadas quaisquer diferenças estatisticamente significativas, sendo os valores médios muito próximos. Estes resultados convergem com os de outros estudados descritos na literatura, os quais referem não terem encontrado diferenças a este nível (ÈURDOVÁ et al., 2001; SCHOLTES et al., 1999 e VERMEER et al., 1999).

No que diz respeito à idade, verificámos que as crianças mais velhas indicaram sistematicamente valores mais elevados em todos os domínios, verificando igualmente que a diferença entre os valores médios apenas não foi estatisticamente significativa no caso da aceitação pelos pares. Curiosamente, no estudo de Scholtes e colaboradores (1999), foram as crianças mais novas que indicaram os valores médios mais elevados, embora não tivessem sido registadas quaisquer diferenças estatisticamente significativas. Neste contexto, de referir ainda que um estudo de Hasbrook e Horn (1985) demonstrou que as crianças, de uma forma geral, à medida que a sua idade vai aumentando, tendem a modificar o modo como avaliam a sua competência, sugerindo que essa modificação decorre do facto de passarem a avaliá-la cada vez mais em função das suas próprias referências internas e não tanto em função dos feedbacks provenientes de terceiros.

Neste sentido, pensamos que mais estudos devem ser realizados, na tentativa de tentar perceber se as crianças como as deste estudo (ou seja, com necessidades especiais), à medida que vão crescendo, se percebem cada vez menos ou mais competentes e, nesse caso, a que se deve essa alteração, bem como o papel desempenhado pelos seus "outros significativos" nesse processo.

No que diz respeito à capacidade de locomoção, os resultados por nós encontrados evidenciaram que, ao contrário do esperávamos, as crianças ambulatórias indicaram para todas as subescalas, valores inferiores aos das crianças não-ambulatórias, registando-se diferenças estatisticamente significativas ao nível das subescalas de competência física e de aceitação dos pais. Relativamente à competência física, esta diferença parece-nos tanto mais surpreendente se atendermos às possibilidades (capacidades) motoras das crianças dos dois subgrupos (i.e. ambulatórios e não-ambulatórios). Ou seja, aceita-se sem dificuldade que, por exemplo, um tetraplégico percepcione maiores dificuldades no seu desempenho motor comparativamente a um indivíduo ambulatório (e.g. hemiplégico) e, nessa medida, indique valores para a sua competência física inferiores aos indicados por indivíduos com um menor grau de afectação motora, ou seja, com um grau de disponibilidade motora maior. De resto, esta diferença foi detectada igualmente nos estudos de Samúdio (2006), Èurdová e colaboradores (2001), Scholtes e colaboradores (1999), e ainda de Vermeer e colaboradores (1999), contrariando os nossos resultados.

Uma eventual explicação para estes resultados poderá residir no facto de as crianças mais afectadas em termos motores (i.e., as não-ambulatórias) terem efectuado uma percepção irrealista das suas efectivas possibilidades naquele domínio. Neste sentido, foi destacado nalguns estudos (e.g., CHAPMAN, 1988; GROLNICK; RYAN, 1990; KLEIN; EVANS, 1998; RESENDE, 2006) que aquele desfasamento pode assumir duas direcções distintas, isto é, enquanto algumas crianças parecem avaliar-se como muito pouco competentes comparativamente à sua competência motora real, outras tendem a inflacionar essa avaliação como forma de camuflarem a sua competência real perante os outros, tentando atenuar diferenças e, desta forma, sentirem-se mais aceites pelos outros.

Quanto às diferenças encontradas ao nível da subescala de aceitação dos pais, elas podem eventualmente decorrer da percepção das crianças com menor capacidade de locomoção de uma maior dificuldade por parte dos seus pais em lidar precisamente com os seus problemas de locomoção, o que os leva em muitas situações a tentar substituir o seu filho nas tarefas motoras, desempenhando-as por eles. No entanto, parece-nos que esta hipótese deverá ser considerada com cuidado, sendo porventura merecedora da realização de outros estudos, no sentido da sua verificação.

Finalmente, quando examinadas as respostas das crianças em função do seu grau de afectação motora (i.e., classificação topográfica), foram igualmente identificadas diferenças nos valores médios correspondentes a cada subescala, embora sem significado estatístico. Seria de esperar que, de uma maneira geral, os indivíduos com um maior grau de afectação motora, usufruindo portanto de menos oportunidades de movimentação e, naturalmente, de vivências de sucesso, se percebessem igualmente como menos competentes nesse domínio.

De facto, normalmente, os indivíduos com um grau de afectação maior, na maior parte dos casos, têm menos possibilidades de exercitar e melhorar as suas habilidades motoras, condicionando assim a possibilidade de construírem uma percepção de competência motora elevada. De resto, mesmo quando lhes é dada essa possibilidade, as dificuldades pelas quais passam são enormes, levando a que as experiências sejam, em muitos casos, mal sucedidas, muito por causa de um trabalho de base carenciado e mal planeado, já que existe uma enorme falta de recursos, não só materiais como também técnicos e humanos (HÉSSEGE, 1996).

GoodWay e Rudisill (1996), bem como Weingand e Broadhurst (1998), parecem vir de encontro ao nosso raciocínio, quando referem que a competência percebida é um modelo multidimensional que aparece em contextos de realização, como sejam os do domínio físico, nos quais as experiências de sucesso e de fracasso exercem uma influência determinante. Assim, quando as experiências são positivas e permitem a obtenção de sucesso, os indivíduos desenvolvem elevada competência percebida. Quando, pelo contrário, as experiências são negativas e provocam o insucesso, geram baixa competência percebida (DUNN, 2000; DUNN; WATKINSON, 1994; ROSE; LARKIN; BERGER, 1998).

Os resultados do estudo desenvolvido por Èurdová (2001) convergem precisamente com o anteriormente exposto, ao revelarem a existência de diferenças significativas entre diplégicos e tetraplégicos ao nível da competência cognitiva e entre diplégicos e hemiplégicos ao nível da competência física. Do mesmo modo, também Schwarz e colaboradores (1998) verificaram que os diplégicos por eles interrogados indicaram sempre os valores mais baixos para todas as subescalas.

Todavia, tal como referimos anteriormente, no nosso estudo a magnitude das diferenças entre crianças com diferente grau de afectação motora não atingiu significado estatístico, na linha aliás do igualmente verificado por Scholtes e colaboradores (1999). Nessa medida, consideramos pois ser este um ponto a tomar em atenção em futuros estudos neste domínio.

5 CONCLUSÕES

Em suma, os resultados do nosso estudo, na sua globalidade, forneceram suporte para a noção de que a versão portuguesa da Dutch Pictorial Scale é um instrumento fiável e válido para a avaliação do modo como as crianças portuguesas com Paralisia Cerebral se percebem no domínio cognitivo, físico e social.

Nessa medida, assumindo que o desenvolvimento de sentimentos de competência se constitui como um elemento de grande valor motivacional para a persistência na aquisição de novas capacidades por parte de crianças com Paralisia Cerebral, constituindo-se assim como importante perceber o modo como estas crianças se percebem em diferentes domínios, este instrumento poderá servir como uma ferramenta útil para os interessados em investigar e/ ou intervir junto desta população, seja em contextos educativos, terapêuticos ou sociais.

Ainda assim, o facto de não ter sido possível recorrer a técnicas estatísticas mais sofisticadas, designadamente as relacionadas com os procedimentos de análise da estrutura da covariância das respostas, sugere a necessidade de se continuar a desenvolver esforços no sentido da completa determinação das suas propriedades psicométricas.

Recebido em 20/07/2007

Aprovado em 29/10/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2007
  • Aceito
    29 Out 2007
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