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Estigma e currículo oculto

Stigma and hidden curriculum

Resumos

O objetivo deste artigo - um ensaio teórico - é realizar uma discussão sobre estigma e suas formas de manifestação no currículo da escola, tomando por base a noção de currículo oculto. Esta discussão será realizada tendo como pano de fundo os processos de escolarização de alunos com deficiência. Os processos de estigmatização no âmbito da vida social são muitos e têm múltiplas manifestações. O estigma depende diretamente da existência de alguma forma de julgamento que cria categorias de sujeitos considerados socialmente "desacreditáveis". Isto pode repercutir de forma avassaladora no processo de constituição de identidades e na forma como instituições, como a escola, lida com os processos de ensino e aprendizagem para alunos que historicamente são estigmatizados, tais como os que apresentam deficiências. As situações de estigmatização e discriminação evidenciadas na escola são construções sociais e se personificam no contexto do currículo. Consubstanciadas no denominado corpus formal de conhecimento escolar (conteúdos curriculares), nas ações cotidianas da escola (currículo em ação) e no denominado currículo oculto. Os desdobramentos ideológicos e a legitimação são sedimentados em aspectos explícitos e implícitos do currículo e situam-se em sua materialidade e no domínio do simbólico. Nestes dois âmbitos as questões da educação das pessoas com deficiência podem ser observadas, em situações que evidenciam a presença de estigmas e preconceito sob a aparente inclusão escolar. Em plena efervescência da chamada Educação Inclusiva investigações na confluência entre currículo e estigma podem ser oportunas na busca pela construção de currículos mais atentos a diversidade humana.

Currículo; Estigma; Educação Especial; ANPEd


The purpose of this article - a theoretical essay - is to conduct a discussion about stigma and its manifestations in the school curriculum, based on the notion of Hidden Curriculum. This discussion will be held using as background the processes of schooling for students with disabilities. The processes of stigmatization in the context of social life are many and have multiple manifestations. The stigma is directly dependent on the existence of some form of judgment that creates categories of subjects considered socially "discredited". This can affect so overpowering in the process of identity formation and how institutions such as schools deals with the processes of teaching and learning for students who have historically been stigmatized, such as students with disabilities. The stigmatization and discrimination situations are social constructions and are embodied in the context of the curriculum; embodied on the so-called formal corpus of school knowledge (curricular content), in the everyday actions of the school (curriculum in action) and the denominated Hidden curriculum. The legitimacy and ideological developments are settled down on inexplicit and implicit aspects of the curriculum and are located in its materiality and the symbolic domain. In these two areas the issues of education for people with disabilities can be observed in situations that reveal the stigma and prejudice in the apparently inclusion school. In the excitement of "Inclusive Education", researches in the confluence between the curriculum and the stigma may be appropriate in the pursuit of a curriculum construction toward human diversity.

Curriculum; Stigma; Special Educacion; National Association of Post-Graduation and Research


Rita de Cássia Barbosa Paiva MagalhãesI; Erasmo Miessa RuizII

IDocente do Departamento de Fundamentos e Prática da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenou o GT 15 no biênio 2010-2011 - ritafora@hotmail.com

IIDocente do Centro de Ciências da Saúde, lotado no Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Psicólogo (FFCLRP-USP), Mestre em Educação (UFSCar), Doutor em Educação (UFC) - erasmohumaniza@gmail.com

RESUMO

O objetivo deste artigo - um ensaio teórico - é realizar uma discussão sobre estigma e suas formas de manifestação no currículo da escola, tomando por base a noção de currículo oculto. Esta discussão será realizada tendo como pano de fundo os processos de escolarização de alunos com deficiência. Os processos de estigmatização no âmbito da vida social são muitos e têm múltiplas manifestações. O estigma depende diretamente da existência de alguma forma de julgamento que cria categorias de sujeitos considerados socialmente "desacreditáveis". Isto pode repercutir de forma avassaladora no processo de constituição de identidades e na forma como instituições, como a escola, lida com os processos de ensino e aprendizagem para alunos que historicamente são estigmatizados, tais como os que apresentam deficiências. As situações de estigmatização e discriminação evidenciadas na escola são construções sociais e se personificam no contexto do currículo. Consubstanciadas no denominado corpus formal de conhecimento escolar (conteúdos curriculares), nas ações cotidianas da escola (currículo em ação) e no denominado currículo oculto. Os desdobramentos ideológicos e a legitimação são sedimentados em aspectos explícitos e implícitos do currículo e situam-se em sua materialidade e no domínio do simbólico. Nestes dois âmbitos as questões da educação das pessoas com deficiência podem ser observadas, em situações que evidenciam a presença de estigmas e preconceito sob a aparente inclusão escolar. Em plena efervescência da chamada Educação Inclusiva investigações na confluência entre currículo e estigma podem ser oportunas na busca pela construção de currículos mais atentos a diversidade humana.

Palavras-chave: Currículo. Estigma. Educação Especial. ANPEd.

ABSTRACT

The purpose of this article - a theoretical essay - is to conduct a discussion about stigma and its manifestations in the school curriculum, based on the notion of Hidden Curriculum. This discussion will be held using as background the processes of schooling for students with disabilities. The processes of stigmatization in the context of social life are many and have multiple manifestations. The stigma is directly dependent on the existence of some form of judgment that creates categories of subjects considered socially "discredited". This can affect so overpowering in the process of identity formation and how institutions such as schools deals with the processes of teaching and learning for students who have historically been stigmatized, such as students with disabilities. The stigmatization and discrimination situations are social constructions and are embodied in the context of the curriculum; embodied on the so-called formal corpus of school knowledge (curricular content), in the everyday actions of the school (curriculum in action) and the denominated Hidden curriculum. The legitimacy and ideological developments are settled down on inexplicit and implicit aspects of the curriculum and are located in its materiality and the symbolic domain. In these two areas the issues of education for people with disabilities can be observed in situations that reveal the stigma and prejudice in the apparently inclusion school. In the excitement of "Inclusive Education", researches in the confluence between the curriculum and the stigma may be appropriate in the pursuit of a curriculum construction toward human diversity.

Keywords: Curriculum. Stigma. Special Educacion. National Association of Post-Graduation and Research.

COLUMBINE É AQUI ...

A problemática é antiga, mas se reapresenta sempre. Durante muito tempo pensou-se que a morte massiva de estudantes na escola de Columbine era um fenômeno tipicamente estadunidense com presença em países europeus. Contudo, em abril de 2011, o Brasil teve o gosto amargo de perceber que "Columbine" é aqui. Um jovem de 23 anos chamado Wellington Menezes de Oliveira entrou armado em uma escola pública carioca no bairro de Realengo e matou 13 adolescentes, em sua maioria garotas. Ao ser perseguido por um policial ainda dentro da escola, cometeu suicídio.

Dias depois, outro fenômeno tipicamente dos EUA repetiu-se. Vídeos com o jovem foram colocados na mídia mostrando motivações e planejamento da chacina. O assassino justifica seu gesto, relacionando-o a abusos físico e psicológico por ele sofridos, quando estudante da mesma escola onde cometeu seus crimes.

Inúmeras interpretações sobre o fato foram produzidas. Muitas páginas escritas tentando traçar o perfil psicopatológico do assassino. Outras tantas com severas críticas à ausência de uma política de segurança pública nas escolas e/ou ressaltando a complexa mistura de concepções religiosas no discurso do assassino, além de seu (pseudo) envolvimento com seitas e a suspeita inicial de ser mais um "terrorista islâmico". Mas, pouco se discute uma possível e evidente conexão. O assassino parece ter uma fonte de determinação estrutural, qual seja, deriva grande parte de suas motivações não apenas de aspectos de um funcionamento mental tido como doentio e perverso, mas também, de questões e processos que são sociohistóricos.

Existe o claro componente das violências sofridas na escola que poderiam tipificar inclusive o que foi qualificado de mente doentia e perversa em Wellington. Pode existir algo de perverso na forma como crianças e adolescentes constituem suas vinculações sociais nos espaços escolares, notadamente com colegas estigmatizados na escola.

Em tese, numa concepção idealizada, a escola é o espaço no qual os indivíduos aprendem comportamentos relevantes para viverem em sociedade e têm acesso ao conhecimento construído socialmente pela humanidade. Observando-se o real, na escola poderemos assimilar também uma ampla gama de preconceitos e estereótipos. Muitas vezes, este espaço particular chancela estigmas que permanecem de forma indelével por toda a vida e pode institucionalizar práticas de violência simbólica. Com efeito, a escola tem também se revelado terreno onde a crise social embrenha-se produzindo conflitos, dores, sofrimento e morte. No caso em apreço, Wellington parece ter sido um "bode expiatório" de seus companheiros de escola quando estudante. No entanto, sai de sua rotina sacrificial para simbolicamente transformar-se em algoz de seus pseudovitimadores.

Ao rebelar-se contra a sistemática rotulação sofrida no passado, Wellington deixa de ser uma vítima para se transformar em profeta, que realiza a própria profecia ao materializar de forma dramática aquilo que os estigmas preconizavam sobre ele. Estamos discutindo a tragédia do Realengo porque Wellington deixa de ser invisível, protagonizando uma tragédia pessoal e social de nossos tempos.

A história de Wellington constitui uma particularidade de formas refinadas de controle social e diz respeito ao modo como a escola se coloca diante de alunos que tendem a sofrer retaliações de seus pares e à maneira como profissionais atuantes na escola se comportam frente a crianças que vivenciam alguma forma de discriminação.

Dentre as pessoas submetidas à discriminação, possivelmente aquelas com deficiências convivem com as mais variadas situações que vão de episódios cômicos até as formas de discriminação mais contundentes, com requintes de crueldade.

Williams (2003), por exemplo, baseada em pesquisas internacionais adverte sobre a ampliação da probabilidade de ocorrerem situações violência das mais variadas origens na chamada população com deficiência.

Observamos, pois, que a chamada (in)visibilidade social da pessoa com deficiência, na verdade, evidencia uma maior vulnerabilidade deste grupo com relação a situações de exploração, abuso e negligência. Esta vulnerabilidade é perpassada por modos preconceituosos de lidar com estas pessoas, resultando em sérios processos de estigmatização, os quais podem ser mais ou menos explícitos no cotidiano.

Estas análises nos instigaram a refletir sobre a educação inclusiva de alunos com deficiência na escola brasileira. Supomos ser esta uma discussão do campo curricular, na medida em que envolve a escolha de conteúdos e de formas de organização do acesso dos alunos à educação formal.

Para Sacristán (1998), o currículo modela-se dentro de um sistema escolar e dirige-se para determinados professores e alunos, servindo-se de determinados meios. Ganha existência real no contexto da escola. Assim,

A teorização sobre o currículo deve ocupar-se necessariamente das condições de realização do mesmo, da reflexão sobre a ação educativa nas instituições escolares, em função da complexidade que se deriva do desenvolvimento e realização do mesmo (p. 16).

No contexto de uma análise sobre estigmas e preconceitos na escola, um olhar sobre o currículo demanda investigar os mecanismos de controle social e de produção/reprodução da hegemonia presentes na escola, consubstanciados no denominado corpus formal de conhecimento escolar (conteúdos curriculares), nas ações cotidianas da escola (currículo em ação) e no denominado currículo oculto. Os desdobramentos ideológicos e a legitimação são sedimentados em aspectos explícitos e implícitos do currículo e situam-se em sua materialidade e no domínio do simbólico.

A partir das décadas de 1960 e 1970, as pesquisas sobre o fracasso escolar de crianças oriundas de camadas menos favorecidas ou de minorias étnicas, os estudos sobre o papel da escola na reprodução ideológica e sobre o capital cultural exigido por uma escola elitista apontam que a escola e, consequentemente, o currículo, encontram-se atrelados a questões como poder e ideologia. Inegavelmente, tais investigações tentavam superar o cunho psicologizante e instrumental dos estudos sobre currículo, realizados anteriormente.

Este ensaio se insere nesta tradição que busca proceder à crítica de abordagens de currículo pautadas na busca por métodos mais eficientes, aspecto peculiar à abordagem técnico-instrumental. Apple (1982) realiza profícua análise da maneira como, sob aparente neutralidade, o currículo constitui instrumento de controle social. Sua análise destaca como, em economias industrializadas, formas utilitário-racionalistas de raciocínio e ação tendem a substituir sistemas simbólicos de ação. Assim, em geral, a forma instrumental de se pensar a educação e, por consequência o currículo, mostra a tecnificação da vida.

Na Educação Especial, podem ser notados os rebatimentos desta perspectiva tecnificada, herdada da tradição médica e da psicométrica em propostas curriculares com tentativas de um excessivo controle do comportamento (MAGALHÃES, 2005).

No contexto do currículo escolar, ocorrem e desdobram-se situações em que o estigma é reiterado e isto promove uma espécie de "aprendizado", por parte da criança com deficiência, de que sua condição o diminui perante os outros.

Com base nestas provocações iniciais, neste artigo - ensaio teórico - pretendemos realizar uma discussão sobre estigma e suas formas de manifestação no currículo da escola, tomando por base especialmente a noção de currículo oculto. Esta discussão toma como pano de fundo os processos de escolarização de alunos com deficiência.

Inicialmente, discutimos os processos de estigmatização no contexto da vida social; em um segundo momento analisamos situações de estigmatização identificadas no âmbito do currículo, notadamente, na perspectiva do Currículo Oculto. Em seguida, apresentamos nossas considerações finais e alguns questionamentos para suscitar o debate.

DEFICIÊNCIA, SOCIEDADE E PROCESSOS DE ESTIGMATIZAÇÃO

A escola não cria os processos de estigmatização em sentido estrito. Contudo, alguns estigmas são francamente escolares. Isto nos faz lembrar a história de um aluno de determinada APAE: todos os dias, antes de entrar na escola, ele vestia a camisa da farda e, antes de sair, trocava de camisa. Ele sabia que a camisa da APAE constituía demarcador de sua condição. Esta situação retrata as sutis formas de estigmatização presentes no meio social que deságuam na escola.

Para Goffmann (1999), a sociedade cria categorizações para classificar pessoas e o total de atributos considerados comuns para o conjunto de membros de cada uma das categorias. Assim, as categorias podem ser divididas, por exemplo, entre homens e mulheres, nível de renda, etnias, grupos religiosos, torcedores de diferentes times de futebol. Os espaços institucionais não são indiferentes a estes e outros tantos grupos. Podem assimilá-los ou justapor a estes outros grupos formais.

Os ambientes sociais estabelecem, então, categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontrados. Isto facilita nosso relacionamento com pessoas estranhas visto que podemos identificar nelas um conjunto de atributos que tornam sua inserção social inteligível. Assim, o conjunto de informações disponíveis sobre um indivíduo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que o indivíduo esperará deles e vice-versa. Desta forma, quando estamos em um quartel do exército dificilmente encontramos um artista de circo. Ali, esperamos encontrar militares e um conjunto de atributos passíveis de serem identificados em cada patente. Da mesma forma, temos expectativas do que encontraremos nas escolas: alunos, professores e outros funcionários públicos. Estas pessoas criaram expectativas sobre que alunos poderão encontrar naqueles espaços. Isto é inevitável (GOFFMAN, 1988;1999).

De acordo, ainda, com Goffman (1988), atreladas às expectativas e papeis, existem "marcas" que acompanham os indivíduos: os muito obesos ou muito magros, aqueles que têm nariz muito grande, indivíduos tidos como portadores de condutas "desviantes", aqueles que são adeptos de uma seita religiosa "exótica", as pessoas com deficiências de toda ordem e um leque de pessoas "inadequadas" que precisam ser decodificadas, esquadrinhadas, definidas, explicadas.

A compreensão de "inadequado" ou de "inadequação" varia entre as sociedades e as culturas. Becker e Arnold (1986) reportando-se à base cultural do processo de estigmatização citam, como exemplo, a incidência entre os Navajos - tribo indígena norte-americana - de doenças congênitas nos quadris, as quais afetavam a locomoção. Um grupo de profissionais de saúde elaborou um programa para melhoria das condições de vida de Navajos afetados pelo problema. A tribo rejeitou a oferta porque não compreendia a condição como estigmatizante ou limitante.

Para Silveira (2007, p. 4), na abordagem goffmaniana de estigma:

[...] não se trata de distinguir um grupo de indivíduos estigmatizados de um outro de indivíduos normais, mas de um processo social para o qual se concorrem ambos os papéis. Desta maneira, eles alcançam ao indivíduo em alguma fase de sua vida posto que a abordagem sociológica do estigma não trata de envolver diretamente a um indivíduo, mas de definir um tipo de interação social que acaba por atingir a qualquer um.

Assim, em dada sociedade, quando adentramos os espaços e encontramos os indivíduos construímos uma expectativa em relação a estes, ou seja, aquilo designado por Goffman (1988) "expectativas normativas". Por exemplo, ao longo da vida, caso tenhamos convivido mais com professores de comportamento austero, vestidos de forma sóbria, cujo relacionamento em sala de aula com seus estudantes pode ser considerado como "fechado", com concepção de educação centralizada e rígida, podemos ter tendência de esperar que todos os professores tenham estas características.

Quando encontramos um professor com comportamento diferente, podemos não reconhecer nele a "postura" ou papel de professor. Em sentido inverso, professores austeros podem exigir determinados comportamentos dos alunos como silêncio absoluto em sala de aula, supersocialização e adaptação cega às regras impostas dentro e fora da sala de aula. Aqueles que se contrapõem, podem receber pechas derivadas de um discurso moralista ou clínico: "preguiçosos", "indolentes", "indisciplinados", "hiperativos", "disléxicos", "disgráficos", etc.

De forma geral ignoramos esta "tendência" em exigir de determinadas pessoas padrões de comportamento cristalizados, de exigir que assumam papeis segundo nossos "modelos" construídos socialmente. Entretanto, esta questão está sempre presente na vida social, fazendo-se sentir unicamente quando encontramos indivíduos ou grupos que atuam de modo diferente daquele esperado. Quando existe um indivíduo com quem nos relacionamos, através das "possíveis" evidências, podemos categorizá-lo de acordo com atributo(s) que o tornam diferente de outros da mesma categoria. Portanto, alguém pode ser tido como menos desejável ou "desacreditável", nos termos goffmanianos. Tal característica revela-se um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito social sobre o status do individuo é muito grande (GOFFMAN, 1988).

Assim, o termo estigma é usado por Goffman (1988, p. 13) "[...] em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos". Esta característica depreciativa não pode ser qualificada fora de seu contexto. Quando alguém anda na rua falando sozinho sobre a decadência dos costumes e sobre o fato do homem estar afastado de Deus, pode a qualquer momento ser estigmatizado, ser tido como louco, internado num manicômio. Em uma cidade do interior do país, com forte marca de cultura religiosa, podem supor tratar-se de um profeta.

Para Goffman (1988, p. 14), existem três tipos de estigma: as deformidades físicas (deficiências em geral), aqueles relativos ao caráter individual - incluindo os percebidos como algo relacionado à vontade fraca do indivíduo (vícios) e os de origem tribal, raça e religião. Em situações de estigmatização: "[...] um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que se pode impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus".

Conforme Magalhães (2005), na escola, ter estigma de "aluno especial" pode levar um aluno ao descrédito no âmbito das atividades escolares. Com efeito, tem-se a identidade manipulada, no sentido goffmaniano. Ora, as pessoas tendem a tratar o estigmatizado como se houvesse dúvidas sobre sua normalidade ou ainda como absurdamente anormal. Assim, "[...] onde quer que ele vá o seu comportamento confirmará, falsamente, para as outras pessoas o fato de que eles estão em companhia de quem eles na verdade esperam" (GOFFMAN, 1988, p. 52). No caso do estigma imputado a alunos ditos "especiais", no âmbito escolar, quaisquer de seus comportamentos são julgados a partir do estigma, enquanto que, fora da escola, estes podem ser considerados pessoas comuns.

O estigma diz respeito, ainda, ao modo depreciativo de avaliar as diferenças ou características da pessoa. Muitas vezes, as avaliações depreciativas são mais difíceis para a pessoa com deficiência do que as possíveis dificuldades provenientes de seu estado, porque influenciam sobremaneira as atitudes e ações direcionadas a esta pessoa. O aprendizado do estigma representa parte integrante da construção da identidade do estigmatizado.

Quando discutimos estigma, adentramos no espaço dos relativismos perpassados pela linha da história humana, pela posição ocupada nos sistemas culturais e por nossos comportamentos e ações quando vivenciamos nossas identidades. Aqui, reside o caráter mais perverso do estigma: de modo implícito ou explicito, ele faz de seu possuidor um ser humano "incompleto", ou mesmo um "não humano". Essa descaracterização do papel de "ser homem" configura-se como elemento psicossocial que sempre justificou a vitimização do estigmatizado por agressores de toda ordem, os quais, muitas vezes, podem chegar à extinção física, pura e simples da pessoa estigmatizada.

Na Segunda Guerra Mundial, o massacre dos judeus, deficientes e homossexuais, fundamentado em ideais eugenistas, propagados pelo mundo, evidenciou aspectos perversos da estigmatização de determinados grupos sociais. Até o final da década de 1970, países como Suécia, Dinamarca, Suiça, Bélgica e Finlândia, tidos como ciosos da democracia e das liberdades individuais, continuavam promovendo a esterilização de pessoas com deficiência, com bases em programas de saúde pública (BYDLOWSKI, 1997).

Consideramos que toda ação humana tem um caráter significativo. Ao agir, os sujeitos precisam teorizar, explicar suas ações. Assim, uma ação pode ser "humana" ou "desumana" em função de um complexo e contraditório conjunto de concepções de mundo, o qual serve de escopo para julgamentos, com caráter prescritivo/valorativo ou não. Isso acontece em todos os espaços da vida social.

Mas, o que define o humano? O que o configura como categoria histórica? Por que ao olharmos hoje o costume dos antigos romanos de irem às suas arenas e se divertirem com a violência sangrenta os rotulamos como "bárbaros" e "desumanos"? Por que naquele momento histórico os romanos percebiam sua própria conduta como refinada e encontravam gozo estético na violência explícita? Com efeito, em cada momento histórico, o que é humano constitui-se de elementos que parecem pertinentes a sua contemporaneidade.

Importante sinalizar: historicamente, alguns indivíduos e grupos foram alijados da sua condição de humanidade. Na maioria das vezes, isso ocorre como uma justificativa moral e política dos grupos que exercem o domínio sobre outros. Em distintos momentos da história, apenas determinados grupos são considerados; os demais cumprem um papel "menor"; ora são designados instrumentos falantes (como acontecia com os escravos na Grécia antiga), ora seres sem alma (como os índios no início da colonização), ora humanos com características animalizadas (como o negro africano escravizado nas Américas), como nos alerta Gould (1991).

Outra expressão deste processo foi discutida por Fanon (1979), motivado pela vivência da guerra de independência da Argélia, foca sua discussão no cotidiano da relação colonizador-colonizado. O colonizador, para negar o caráter humano do colonizado, tende a utilizar uma linguagem "zoológica" transformando-o numa quinta-essência do mal. A sociedade do colonizado é descrita não só como uma sociedade sem valores, mas um mundo onde os valores jamais habitaram. Em essência, ele é um elemento destruidor de toda a ordem moral e civilizada, depositário de forças diabólicas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas e instintivas.

A explicação ideológica aparece então não apenas no sentido de entender a relação de dominação-opressão, enclausurando-a no cárcere da lógica tortuosa, porém "coerente" com a realidade imediatamente apreensível. Algo que parece unir as especulações dos gregos antigos aos franceses na Argélia dos anos 1950 é justamente a negação de aspectos da humanidade no dominado e, por decorrência, a possibilidade que o dominado tenha expressões singulares, seja capaz, portanto, de constituir-se como indivíduo.

A pessoa com deficiência, por sua vez, sempre ficou à mercê do julgamento moral. Enquanto seres humanos faltavam-lhes "atributos" físicos e/ou mentais. Por vezes, essa "falta" foi julgada como desígnio de Deus, outras vezes como forma de expiação de culpas e pecados.

Com o advento da Modernidade as deficiências tornaram-se campo da investigação científica para, gradativamente, se transformarem em um problema médico. Todavia, ainda existe uma lacuna importante. Investigar as causas da surdez ou da cegueira não resolve o problema da inserção social, da forma como aqueles tidos como "normais" significavam e tratavam os demais.

Além disso, é rigorosamente imprevisível como o saber construído sobre as etiologias e fatores constitucionais do que se chama de "doença", "síndrome", "transtorno" ou "sequela" são apropriados por indivíduos e grupos em campos fenomênicos de significação. Conhecer os fatores que levam uma criança a ter Síndrome de Down pode ajudar a construir práticas inclusivas ou, então, a revivificar concepções de mundo atávicas que afirmavam a "índole", a "moral", a "saúde" e a "doença" a partir das determinações sanguíneas. Desta forma, o que se qualifica de "conhecimento" compõe a complexidade de como se configuram as disputas de sentido.

A questão está na forma como historicamente são construídas relações sociais nas quais as pessoas dotadas dessas deficiências são "penalizadas". Hoje, ao nascer com distrofia muscular, uma criança não corre risco imediato de vida. O mesmo não pode ser dito de uma criança nascida em Esparta, na idade antiga, quando a mesma era arremessada do alto de um penhasco. Atualmente, não arremessamos um deficiente fisco para a morte. Entretanto, tragicamente, podemos conduzir-lhe a uma morte social, quando sistematicamente o afastamos da convivência social, seja pelo preconceito, seja pelas barreiras arquitetônicas, atitudinais ou pedagógicas (GLAT, 1998; AMARAL, 1995)

Esta "morte social" decorre do fato da presença da pessoa com deficiência constituir para muitos um "estorvo". Sean Penn, festejado ator estadunidense, estrelou um filme chamado "Uma Lição de amor" (I AM SAM, 2001). O tom lacrimoso e dramático dos filmes sobre deficiência é mantido, entretanto Penn interpreta muito bem um rapaz com deficiência intelectual.

Em entrevista, Penn (2001) esclareceu ter usado em cena roupas emprestadas por adultos com deficiência com os quais havia convivido durante o "laboratório" de composição do personagem. Ele perguntou aos colegas com deficiência com os quais vivenciou esta experiência porque sempre usavam roupas em tom bege, marrom. Informaram prontamente que, em geral, seu comportamento já é considerado estranho. Assim, preferiam usar roupas em tons discretos para aumentarem as chances de passar despercebidos, evitando aumentar ainda mais as possibilidades de serem discriminados.

A partir destas considerações e análises, discutiremos as relações entre currículo oculto e estigma.

CURRÍCULO OCULTO E ESTIGMAS: DESAFIOS PARA PENSAR A INCLUSÃO ESCOLAR DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Em linhas gerais podemos traçar dois grandes objetivos da escola, como instituição. De um lado, trata-se de uma instituição cuja pretensão é ensinar as novas gerações o conhecimento socialmente construído e acumulado pela humanidade. Por outro lado, a este objetivo, sempre explícito, soma-se outro: a função da escola como espaço ideológico, onde há reprodução social e cultural.

Estes dois "objetivos" constituem uma trama chamada currículo, na qual, historicamente, existe a imposição de padrões, normas, conceitos. Muitas vezes, o conteúdo formal aprendido se embrenha na teia de normas disciplinares. Neste sentido, há uma relação entre conhecimento, formas de transmissão e controle social. Assim, na escola aqueles que não se adaptam aos métodos, rebaixados pelos critérios de avaliação cognitiva e/ou comportamental, correm o risco de ser, por excelência, objeto da ação dos preconceitos e estigmas. É o caso de alunos com alguma deficiência.

Para Apple (1982; 1989), a escola vem operando em prol da homogeneização. Assim, no cotidiano, a análise do funcionamento das escolas deve ser seguida por um exame da forma de distribuição de conhecimento. Em geral, nas escolas, esta distribuição tem sido feita desigualmente: dependendo de sua classe social, o aluno pode ter acesso a modalidades de conhecimento e a níveis de aprofundamento distintos, malgrado o discurso dominante sobre a democratização do ensino e a existência de diretrizes e normatizações pelo Estado. Ademais, podemos afirmar que o entendimento acerca do acesso ao conhecimento escolar por alunos com diferenças, notadamente aqueles com deficiência das mais variadas ordens, passou por significativas mudanças, compreendendo desde o paradigma da institucionalização até as variadas compreensões sobre o que se denomina educação inclusiva para pessoas com deficiência. A explicação dos motivos da "ausência" de determinados conhecimentos no currículo pode indicar onde se localizam determinados grupos na sociedade. Isso leva à análise da questão do poder na construção do currículo.

Apple (1982) propõe, ainda, outro fulcro de análise do currículo: as denominadas regularidades da vida escolar, porque nelas se pode observar como opera o controle social e funciona a ideologia no cotidiano. Esta análise compreende três aspectos: 1) como as regularidades diárias básicas contribuem para o aprendizado pelos estudantes das ideologias hegemônicas; 2) como as formas específicas de conhecimento curricular refletem, no passado e no presente, essas configurações ideológicas de interesses dominantes em dada sociedade; e 3) como tais ideologias refletem nas perspectivas fundamentais dos educadores para ordenar, guiar e conferir significado à sua própria atividade.

A análise desses aspectos pode esclarecer como, nas práticas cotidianas na escola, se constitui o controle social e como o currículo pode ser considerado instrumento desse processo de controle. Por exemplo, o modelo técnico-instrumental de currículo, sob a aparente preocupação, com as formas de elaborar propostas curriculares, na realidade, tem no currículo um instrumento por excelência do controle social.

Na escola, o controle social se manifesta de forma implícita ou explícita sendo exercido não somente nas regras e rotinas para manter a ordem e ensinar a criança a adaptar-se aos imperativos da ordem social hegemônica. As escolas controlam pessoas e significados. Investido de princípios constitutivos, códigos e perpassado por elementos das práticas do senso comum subjacentes a nossa vida e marcado pela divisão e manipulação econômicas diretas, o currículo materializa formas de controle social (APPLE, 1982)

Neste sentido, questionamos: Que tipo de conhecimento existe nos currículos sobre a deficiência no contexto da história da humanidade? Como transcorre o acesso das pessoas com deficiência ao conhecimento curricular (métodos, técnicas, avaliações de ensino)? Tais questionamentos nos remetem a perspectiva de Apple (1999, p. 42) ao postular:

[...] a decisão de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura de outros grupos mal vêem a luz do dia, revela algo extremamente importante acerca de quem detém o poder na sociedade.

O silêncio sobre as peculiaridades das pessoas com deficiência pode levar à desconsideração de suas possibilidades. Ora, as perspectivas sobre seu desenvolvimento e aprendizagem, a despeito das políticas educacionais pautadas na defesa da Inclusão escolar, ainda estão pautadas em estereótipos e preconceitos.

Obviamente, tais perspectivas não ficam no domínio do explícito ou fazem parte de propostas curriculares da escola. Trata-se de um fenômeno a ser analisado no âmbito do chamado Currículo Oculto.

Jackson (1996), em seu livro Life in Classrooms, publicado originalmente em 1968, destaca-se como o primeiro a lançar o conceito de currículo oculto, indicando que normas e valores, implícita e efetivamente, transmitidos pelas escolas, geralmente, não são mencionados nos planejamentos elaborados (com fins e objetivos) pelos professores. (APPLE, 1982, GIROUX, 1986; SANTOMÉ, 1995)

Este pesquisador postula ser a escola um lugar com características peculiares:

a) ensina hábitos de forma subliminar, por intermédio dos modos de organização da prática pedagógica, a qual fixa rotinas, disciplina. Entre recompensas e punições, alunos aprendem o que é valorado positivamente.

b) nas salas de aula, é possível existir constante vigilância de comportamentos, ou seja, há uma espécie de disciplinamento caracterizado pelo respeito à rotina, horários, horas de trabalho e lazer. A forma como a escola organiza-se ensina aos alunos a manter a ordem e a ter clareza do que o professor espera de cada um;

c) a escola constitui espaço de ambivalências e propõe tarefas nas quais nem sempre existe correspondência entre 'desejos pessoais' e 'objetivos institucionais'. Ou seja, há agrados e desagrados na realização das tarefas por parte do aluno, mas este aprende que não pode optar por sempre fazer o que deseja. Forjam-se, assim, estilos de comportamento úteis no contexto da posterior inserção da criança na vida adulta, notadamente, no ingresso no mercado de trabalho;

d) o sistema de avaliação da escola cria categorias de alunos. A avaliação não está associada somente a provas, notas, testes, aprovações e diplomas. Toda uma rede de "elogios" e "censuras" é tecida por professores e outros profissionais da escola; assim, são construídos juízos de valor, os quais separam os "bons" dos "maus" alunos. Deste modo, as crianças aprendem que possivelmente circulam comentários sobre elas na escola; talvez, crianças, pais e mestres não percebam como elas se comportam a partir destes comentários.

O currículo oculto, portanto, pode se se associar a construção das identidades, de forma mais precisa e ágil do que os discursos democratizantes presentes em documentos oficiais.

Para Giroux (1986), o currículo oculto devia estar ocupado fundamentalmente em responder à questão "o que torna a sociedade possível?", considerando que o ato educativo exerce importante papel na manutenção do status quo. A escola ensina às crianças não somente conteúdos, mas habilidades, normas, valores que permitem adaptação à disciplina e à hierarquia, típicas do mundo do trabalho. Na escola, ideologia e conflito são negligenciados, em detrimento do consenso e da adaptação social. Assim, o currículo não pode ser considerado apenas como um condutor da socialização no interior das escolas, mas, também como responsável pelo controle social, operando no sentido de oferecer escolarização diferenciada para os diversos tipos de alunos.

Ao discutir a condição de alunos que, por algum motivo, distanciam-se dos padrões esperados de aprendizagem, algumas pesquisas datadas da segunda metade do século XX - hoje clássicas - mostraram a jornada de exclusão escolar destes alunos. Rosenthal e Jacobson (1981), criadores da expressão "profecia autorealizante" (self-fulfilling prophecy), evidenciaram que o professor pode desenvolver certas expectativas sobre os alunos, operacionalizadas dentro da sala de aula, de tal maneira a produzir o idealizado inicialmente pelo professor. As origens das expectativas dos professores são atribuídas a variáveis, como classe social, aparência física, resultados de testes, sexo, raça, padrões de linguagem. Assim, o desempenho acadêmico não pode ser encarado como uma questão de habilidade natural do aluno.

Rist (1977), com a denominada "teoria da rotulação", explicitou como se constituem rótulos na sala de aula, isto é, como professores reagem diante de alunos de classes sociais diferentes. Em escola da comunidade negra de St. Louis, o autor observou que, depois de oito dias de jardim de infância, a professora organizou os lugares da sala, de acordo com a presumível capacidade acadêmica. Tal organização consubstanciou uma divisão baseada na origem social dos alunos. Constatou, também, a diferenciação na atenção dada aos alunos: elogio, controle e autonomia na sala de aula. Em observação das mesmas crianças, no primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental, concluiu que os padrões iniciados no jardim foram perpetuados nos anos posteriores: uma avaliação subjetiva assumiu dimensões objetivas à medida que as crianças progrediam nos anos escolares.

Schneider (1985), no famoso estudo sobre a problemática da construção do desvio na escola, relata que, no Rio de Janeiro, em 1974, alunos rotulados como deficientes intelectuais apresentavam um progresso acadêmico avaliado como lento desde o início da escolarização. Mas, o rótulo "lento" era construído nas interações estabelecidas na sala de aula: os alunos eram categorizados como "maturos" e "imaturos". A partir dessa categorização, estabelecia-se um processo de diferenciação social (estigmatização) que induzia ao descrédito com relação à capacidade de aprendizagem e desenvolvimento de determinados alunos.

As pesquisas supracitadas foram desenvolvidas na década de 1970. Não podemos chamá-las de curriculares em sentido estrito, mas seus procedimentos e análises mostram o currículo oculto e seu lusco-fusco entre o interdito e o explícito. Determinados padrões de comportamento, noções de trabalho e lazer, norma e desvio passam lenta e gradualmente, a se tornar naturais e são incorporadas pelos alunos.

Isto nos encaminha para a discussão em torno dos processos de estigmatização que tendem a colocar a pessoa com deficiência em desvantagem durante sua escolarização. Mesmo em estudos nos quais o foco não são os processos de estigmatização, estes afloram.

Cardoso (2011) pesquisando as políticas de educação inclusiva do município com maior índice de Desenvolvimento da educação (IDEB) no estado do Ceará destaca: para a secretaria municipal de educação os testes destes estudantes são "levados em consideração", contabilizados. Mas, outro mecanismo de gestão criado pela mesma secretaria trata estes alunos como "crianças da margem". No caso, escolas que alcançam índices de alfabetização entre 90% a 95% são premiadas. Existe, pois, uma margem de 10% que inclui não só alunos com deficiência, mas todos os que, por algum motivo, não se saem bem nos testes. Neste município criou-se uma zona para inserir as "crianças da margem", aqueles alunos que não alcançam o bom desempenho nos referidos testes.

Bernardo (2010), em estudo com teor etnográfico, descreve a condição de determinado aluno com baixo desempenho, comportamentos repetitivos e escassa interação em sala de aula. Neste caso, o aluno foi mantido à margem da escola, mesmo estando matriculado e frequentando as aulas. Durante quatro anos, em sua sala de aula, o garoto se sentava de costas para todos e este era considerado um comportamento "natural".

Silva (2010, p. 96), por sua vez, descrevendo a prática de professoras graduadas em Pedagogia, atuando em salas de aula regular, com alunos com deficiência de uma escola pública do sul do Ceará, ressalta que a professora:

[...] planeja convencionalmente sua aula e se esforça em distribuir seu tempo e atenção a todos os alunos, principalmente com aqueles com deficiências. Ela tenta fazê-los cumprir com os rituais da aula, mantendo o que poderíamos chamar de simulação de acompanhamento de atividades. Desse modo cria a falsa impressão de que o aluno ao copiar da lousa, ouvir ou simplesmente olhar em silêncio está aprendendo o conteúdo apresentado aos demais.

A aprendizagem não ocorria e os dois alunos com deficiência da sala de aula investigada sempre copiavam o que estava exposto na lousa em blocos ininterruptos de letras e palavras sem espaço ou sequência lógica. A professora, por sua vez, não analisava os cadernos para buscar formas de intervenção.

A intenção não é generalizar determinadas evidências, apenas mostrar que a escolarização destes alunos parece ainda gerar situações de "exclusão" escolar reforçadoras de estigmas. Neste sentido, a visão estereotipada de que alunos com deficiência têm "dificuldades para aprender" pode ser mantida. Não porque tais alunos não possam, de fato, aprender, mas porque o currículo de forma subliminar finda por não criar condições objetivas que possibilitem a aprendizagem. Com isto, não estamos descuidando de pensar nas peculiaridades estruturais da escola pública brasileira que condicionam as práticas pedagógicas dos professores.

Não estamos a discutir um "jogo de culpas", mas uma intrincada trama reificando estereótipos, preconceitos e adensando o processo de estigmatização. Uma trama que "naturaliza" o que é produto das relações sociais e envolve relações de poder.

As estratégias imersas na dramaticidade concreta de uma sala de aula tendem a mostrar o currículo como um script a ser interpretado. Neste palco, professores imbuídos pelos discursos de suas competências tentam incutir saberes e diretivas sobre o homem e o mundo. A própria estrutura formal do currículo-script é o resultado, direto e/ou indireto, de embates políticos e sociais, uma espécie de cristalização das contendas passadas, das visões utópicas dos grupos sociais dirigentes sobre si mesmos e sobre os grupos subalternos; esta pode, contraditoriamente, expressar conquistas de grupos sociais emergentes, fissuras no bloco hegemônico, mudanças significativas no jogo político, naquele instante mágico em que as reformas ensaiam em se transformar em revolução social; ou, a reação concede os anéis para não perder os dedos.

Na maioria das vezes, os agentes diretamente envolvidos perdem a consciência deste processo, transformado em uma linguagem obscura e ao mesmo tempo palpável que intenta, nas suas estratégias discursivas, explicitar a aplicabilidade sólida e imediata do conteúdo difundido na escola. Cada conjunto de representações possui um desafio cognitivo e prático, qual seja, de apresentar-se como conhecimento legítimo, como instrumento mental capaz de explicar a realidade significando-a e, a partir desta significação, encontrar respaldo empírico para substanciar suas explicações. Em cada admoestação, em cada "singela" exposição em sala de aula, nas formas como conteúdos contestatórios do saber oficial são reprimidos e/ou filtrados, encontramos as reverberações de uma luta trágica, algumas vezes construtora da liberdade, outras tantas reprodutora e legitimadora das relações de opressão e dominação.

Magalhães (2005) mostra em pesquisa empírica algo ilustrativo deste currículo-script. Em determinada escola pública, durante uma aula, os alunos estão estudando de forma coletiva um texto chamado "Estado, Municípios e Eleições". A professora resolve explicar o conteúdo do texto. Como o tema do mês eram eleições, a mesma tentou explicar a seu modo por que votar em políticos confiáveis: pediu que prestassem atenção nas promessas para poderem "cobrar" dos políticos. Afirmou que o presidente e o governador eram funcionários públicos como ela. De repente, pediu que olhassem a gravura do livro e vissem a rua organizada e limpa. Perguntava por quê? E ela mesma responde: "porque as pessoas são organizadas e limpas". E dizia: "olhem esta sala está um chiqueiro... cheia de papel no chão". Em outra ocasião, na mesma sala de aula, quando estava sendo construída a maquete de uma cidade com casas, carros e edifícios, determinado aluno perguntou "Mas tia, cadê a favela desta cidade?". Instigante pergunta perdeu-se no silêncio da sala sem comentário ou resposta. Portanto, o currículo oculto tem campo de ação em materiais didáticos, propostas curriculares, práticas pedagógicas de professores, nas formas de avaliação, organização e desenvolvimento da prática no contexto da escola. E, também, nos silêncios e ausências.

A inclusão de alunos com deficiência na escola regular ocorre em um território chamado currículo e diz respeito a aspectos explícitos e implícitos do que se deseja ensinar as gerações mais jovens. Sem dúvida, o currículo não se encerra na proposta pedagógica em si, mas associa-se, outrossim, à forma como os professores(as) compreendem e lidam com a deficiência e com as diferenças de seus alunos.

Para Magalhães (2011), na escola inclusiva, ensinar as crianças com deficiência pode ser encarado como um desafio institucional e profissional na construção de respostas educativas diversificadas.

E diríamos constituir desafio premente conceber um currículo no qual haja espaço para a resistência, para diferenças, contradições e para formas de adaptação construídas por pelos profissionais da escola e por estudantes, em particular, para aqueles com deficiência, na sua vivência com o estigma no espaço escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos nossas reflexões recordando a história ocorrida em uma escola carioca com a perspectiva de não "naturalizar" a tragédia. Ou seja, as motivações para o crime não apresentam apenas aspectos de um funcionamento mental tido como doentio e perverso, mas associam-se a questões e processos culturais e históricos. As situações de discriminação vivenciadas por Wellington na escola nos levaram a refletir que os processos de estigmatização podem, ainda, ser alvo de interesse de investigações a serem desenvolvidas no âmbito da educação.

A noção de estigma, amplamente difundida nas pesquisas relativas à educação de pessoas com deficiência supera uma perspectiva de vitimização destas pessoas e levou-nos a refletir sobre como na rede de relações entre atributos, julgamento social e deficiência evidencia-se o caráter social e cultural dos processos de estigmatização.

No contexto escolar, advogamos que o currículo tende a operar em prol da homogeneização. Na escola o conhecimento é distribuído desigualmente para alunos de diferentes classes sociais e, por que não afirmar, alunos com diferenças das mais variadas ordens. A ausência de alguns conhecimentos e as formas de transmissão do conteúdo curricular pode indicar onde se localizam determinados grupos na sociedade.

O currículo ensina mais do que o conhecimento socialmente acumulado pela humanidade e julgado legítimo de ser ensinado às gerações mais jovens; a escola, com seu currículo (oculto), de forma não declarada, ensina modus operandi e modus vivendi às gerações mais jovens porque seleciona, classifica, rotula, disciplina e distribui desigualmente o saber.

Atentar para o lugar dos estudantes com deficiência neste contexto mostra que processos de estigmatização podem ser perpetuar, a despeito dos discursos democratizantes e do apelo ético peculiar a educação inclusiva. Assim, a palavra "estigma" - da forma como é compreendida na sociologia goffmaniana - ainda demanda um esforço investigativo no contexto da educação especial brasileira, em sua proposta de inclusão educacional.

Recebido em: 18/08/2011

Aceito em: 30/08/2011

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    Stigma and hidden curriculum
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      18 Ago 2011
    • Aceito
      30 Ago 2011
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