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As Formas de Comunicação e de Inclusão da Criança Kaiowá Surda na Família e na Escola: um Estudo Etnográfico1 1 O desenvolvimento da pesquisa teve financiamento e bolsa de pesquisa do Programa de Apoio à Educação Especial (PROESP/CAPES).

Ways of Communication and Inclusion of the Kaiowá Deaf Children in Family and School: an Ethnographic Study

Resumos

atualmente a etnografia está consolidada como método de pesquisa no campo das ciências sociais, contudo ganha gradativamente mais espaço no cenário educacional. Este estudo configurou-se pelo delineamento do objeto a partir do viver dentro, na tentativa de compreender a experiência cultural dos povos indígenas surdos Guarani-Kaiowá. Assim, tem como objetivo geral investigar as formas de comunicação e de inclusão da criança surda no contexto familiar e escolar das comunidades indígenas das Aldeias Bororó e Jaguapiru, em Dourados, MS. Os objetivos específicos foram: a) compreender como a criança indígena surda se relaciona e se comunica com a família e a escola; b) identificar as facilidades e as dificuldades encontradas na forma de comunicação e na inclusão; e c) descrever as ações e as estratégias utilizadas pela família e pela escola para a comunicação e a efetivação da inclusão da criança nesses sistemas. As análises têm bases conceituais dos estudos culturais, dos estudos surdos e das premissas do desenvolvimento humano ecológico, pautadas na interdependência entre as culturas familiares e os diferentes contextos de socialização, fatores estes determinantes para o desenvolvimento humano. Os resultados do estudo permitiram: conhecer um sistema incipiente de comunicação utilizado pelos familiares da criança; identificar os irmãos como mediadores da comunicação na família e na escola; e reconhecer, nas falas dos professores, o papel do intérprete de Libras como estratégia pedagógica e comunicativa para a inclusão da criança indígena surda. Por fim, a pesquisa etnográfica permitiu uma investigação a partir dos olhares de dentro, apontando indícios para o estabelecimento de um diálogo intercultural.

Educação Especial; Surdez; Educação Indígena; Culturas; Língua de Sinais


Currently, ethnographies are recognized as serious research methods in the field of social sciences, though they are still gaining recognition in the educational scene. This study is based on the delimitation of the object from an inside perspective, aiming to understand the cultural experience of the Guarani-Kaiowá deaf people. The general goal is to investigate the communication and inclusion process of deaf children in family and school contexts of the indigenous communities of Bororó and Jaguapiru Villages, in Dourados/Mato Grosso do Sul. The specific goals were: a) to comprehend how indigenous deaf children relate to and communicate with their family and in school; b) to identify what is comfortable and what is difficult for them regarding communication and inclusion; and c) to describe actions and strategies used by the family and by the school to achieve communication and effective inclusion of children in these systems. The analyses are conceptually based on cultural studies, deaf studies and assumptions of ecological human development, guided by the interdependence between family cultures and different contexts of socialization - determining factors for human development. The results of the study allowed us to: identify an emerging system of communication used by family and child; to identify siblings as mediators of communication in the family and at school; and to recognize, in the speech of teachers, the role of the sign language interpreter as a pedagogical and communicative strategy for the inclusion of indigenous deaf children. Finally, ethnographic research enabled us to investigate this situation with an insider view, highlighting the establishment of intercultural dialogue.

Special Education; Deafness; Indigenous Education; Cultures; Sign Language


1 Introdução

As linguagens, as produções de significados, os diálogos e os discursos ganham centralidade nas análises dos Estudos Culturais. São, portanto, formas produzidas na cultura, nas convenções e nas interações sociais e nos conhecimentos partilhados por diferentes grupos Neste estudo, optamos pela etnografia como modo de diálogo, de negociação e de trocas interculturais como alternativas para não apenas registrar novas maneiras de comunicação, mas também de observar e marcar os diferentes olhares, contextos e produções socioculturais acerca da surdez na cultura Guarani-Kaiowá.

Por esse caminho investigativo, foi possível tornar visíveis os olhares de dentro e os saberes-fazer (CARIA, 2003BRUNO, M. M. G; COELHO, L. L. A constituição do sujeito surdo na cultura Guarani-Kaiowá: os processos próprios de interação e comunicação na família e a escola. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 35., 2012, Porto de Galinhas. 2012. Disponível em: <http://35reuniao.anped.org.br/images/stories/trabalhos/GT15%20Trabalhos/GT15-2510_int.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2013.
http://35reuniao.anped.org.br/images/sto...
), de modo a identificar as formas de comunicação e de inclusão da criança surda a partir dos contextos familiar, educacional e cultural nas Aldeias Bororó e Jaguapiru, em Dourados, MS.

A etnografia na pesquisa educacional gradativamente começa a ganhar destaque nas análises de culturas distintas. Para tanto, mergulhamos no estudo da cultura Guarani-Kaiowá, da educação tradicional indígena e da escolarização recente e na vida cotidiana dos grupos, das famílias e da escola.

Nesta pesquisa ação, os procedimentos e os instrumentos para coleta e análise de dados envolveram: registro no diário de campo; imagens fotográficas da comunicação entre as crianças e seus familiares; entrevistas semiestruturadas; e conversas informais com os professores indígenas e os familiares das crianças indígenas surdas. As imagens fotográficas dos sinais/senhas4 4 A senha constitui uma comunicação momentânea entre a criança surda e os ouvintes, designada como sinais caseiros (SANTANA et al., 2008). foram descritas e traduzidas para a escrita de sinais5 5 A escrita de sinais é a grafia dos sinais da Língua de Sinais. De acordo com Stumpf (2005, p. 268), "[...] como instrumento simbólico, a escrita de sinais pode ser o suporte cognitivo fundamental que está faltando aos surdos para tornar sua educação um processo racional e efetivo". Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/5429>. Acesso em: 17 fev. 2013. , tendo em vista a análise dos indícios de comunicação em língua de sinais.

Além dos Estudos Culturais, os Estudos Surdos e as premissas do desenvolvimento humano ecológico de Bronfenbrenner (1996)BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. 2.ed. Brasília, DF: MEC/SECAD, 2005., pautadas na interdependência entre os diferentes contextos de socialização e das culturas familiares, fatores determinantes para o desenvolvimento humano, foram ferramentas conceituais valiosas para o subsídio das análises dos dados, constituindo uma nova maneira de inscrever distintas formas de comunicação e de linguagem.

No contexto das aldeias indígenas em questão, marcado por contradições e por posturas ambivalentes de pais, de professores e da gestão escolar, emerge a necessidade de constantes negociações e de trocas de saberes entre todos os envolvidos, tendo em vista possibilitar condições favoráveis à aprendizagem das crianças indígenas surdas e ao desenvolvimento das potencialidades linguísticas, cognitivas e socioculturais.

Assim, propomo-nos, neste artigo, apresentar o percurso investigativo da pesquisa etnográfica e as significações construídas e mediadas por diferentes linguagens e formas de comunicação, de modo a suscitar reflexões acerca de saberes e de fazeres tanto no campo da Educação Especial quanto da Educação Escolar Indígena.

2 Método

A pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, teve como ponto de partida a pesquisa bibliográfica, a fim de se obter um contato direto com os materiais disponíveis, como livros, teses, periódicos, apoio eletrônico, entres outros, em relação ao tema abordado. Para as autoras Marconi e Lakatos (2010, p. 57), esse tipo de pesquisa tem como finalidade "[...] colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto, inclusive conferências seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas quer gravadas". Ela nos possibilitou a elaboração do estado do conhecimento sobre a temática, proporcionando novos questionamentos e direcionamentos para a orientação ao longo deste artigo.

Em relação à pesquisa documental, foram realizados levantamentos e leituras de documentos oficiais nos diferentes níveis de poder, como: o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, 2005); um livreto explicativo sobre os direitos das pessoas com deficiência, elaborado por acadêmicos das etnias Guarani e Kaiowá que cursam a licenciatura indígena Teko Arandu, oferecida pela UFGD (CURSO DE LICENCIATURA INDÍGENA TEKO ARANDU, 2009CHACON, M. C. M. A deficiência intelectual e auditiva no olhar dos irmãos não deficientes. In: FUJISAWA, D. S. et al. (Org.). Familia e educação especial. Londrina: ABPEE,2009. v.7. p.73-83. (Série Estudos Multidisciplinares da Educação Especial).); e as diretrizes estaduais e nacionais sobre a educação escolar indígena e a educação especial.

Acerca da pesquisa etnográfica, Caria (2003) nos ensina que a etnografia possibilita a compreensão do objeto, a partir do viver dentro, numa vivência materializada no registro em diário de campo, a partir da observação participante.

O dentro e fora é fonte de conhecimento acrescido por que provoca uma tensão e uma ambiguidade na relação social de investigação que provoca o investigador a reflectir sobre o inesperado. O investigador é um actor social que é reconhecido como componente nos saberes-pensar de fora, mas, ao mesmo tempo mostra ser incompetente nos saberes-fazer de dentro (CARIA, 2003, p.13).

Localizamo-nos como pesquisadoras de fora, uma docente e orientadora de um programa de pós-graduação e a outra, uma professora-intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) que vivenciou a comunicação de pessoas surdas em uma escola indígena entre 2006-2013. Nesse sentido, Caria (2003) nos alerta sobre as tensões existentes e que a interculturalidade pode ocasionar a reflexão sobre a cidadania e o desenvolvimento de uma ciência da ciência em contextos sociais diferenciados. Ainda nesse sentido, Geertz (2008)FERREIRA, M. Os estranhos "saberes" da perplexidade numa etnografia com crianças em Jardim de Infância. In: CARIA, T. H. (Org.). Experiência Etnográfica em Ciências Sociais. Porto: Afrontamento, 2003. p.150-166. nos chama a atenção sobre a tarefa do pesquisador frente à outra cultura:

Nossa dupla tarefa é descobrir as estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos, o dito no discurso social, e construir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano. Em etnografia, o dever da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo - isto é, sobre o papel da cultura na vida humana (GEERTZ, 2008, p.19).

Para isso, indicamos os ambientes frequentados pela família indígena com sua criança surda como os locus da pesquisa, entre eles: as casas de três famílias indígenas que contam com crianças surdas sob suas responsabilidades, residentes nas Aldeias Bororó e Jaguapiru; uma escola municipal que atende aos alunos indígenas surdos, pertencente à Missão Caiuá; e duas escolas municipais indígenas localizadas na Aldeia Bororó, no município de Dourados, MS. A descrição desses ambientes foi possibilitada pelas anotações no diário de campo (instrumento utilizado em todas as etapas da pesquisa), por meio da observação partici pante e pelo memorial da convivência de uma das pesquisadoras nos ambientes estudados, a Etnografia Retrospectiva, segundo o professor José Manuel Filipe.6 6 Professor português visitante que conduziu a discussão no GEPEI (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Inclusiva sobre Etnografia em Pesquisa Educacional) da UFGD (28 set. 2011).

Por meio da observação participante, a pesquisador teve a oportunidade de integrar-se ao grupo pesquisado, a fim de obter informações. Entretanto, esse tipo de observação apresenta dificuldades quanto à manutenção da objetividade, por aproximar observador e observado. Já as conversas informais, possibilitaram a captação das informações desejadas sobre os mais variados assuntos. Assim, a entrevista menos estruturada e mais flexível "[...] pode permitir o aprofundamento de pontos levantados por outras técnicas de coleta [...]" (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 34). O que não pôde ser visualizado ou registrado foi coletado por meio de entrevistas.

Segundo Manzini (2003)LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986., as entrevistas semiestruturadas devem contemplar um planejamento prévio, a fim de abranger os objetivos delineados na pesquisa.

Dentre as questões que se referem ao planejamento da coleta de informações, estão presentes a necessidade de planejamento de questões que atinjam os objetivos pretendidos, a adequação da sequência de perguntas, a elaboração de roteiros, a necessidade de adequação de roteiros por meio de juízes, a realização de projeto piloto para, dentre outros aspectos, adequar o roteiro e a linguagem (MANZINI, 2003, p.11).

Ao seguir os direcionamentos do autor antes de ir a campo, criamos dois roteiros de entrevistas: um que contemplava as questões pertinentes ao ambiente familiar e outro que investigava os interesses inerentes ao processo de in/exclusão na escola. Os roteiros passaram pela apreciação dos integrantes do GEPEI (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Inclusiva), o que nos possibilitou a análise, a correção e a adequação de ambos.

Por fim, os roteiros passaram pelo parecer de uma professora indígena que colaborou com a pesquisa como intérprete da Língua Guarani, para sua adequação à linguagem e à comunicação com as famílias.

Os roteiros para as entrevistas semiestruturadas compreenderam: o primeiro, os conhecimentos pertinentes aos familiares (pai, mães e irmãos) e o segundo foi específico para o corpo docente envolvido com o processo de inclusão das crianças indígenas surdas no ambiente escolar (educadores indígenas e professora indígena bilíngue/Libras).

Os roteiros contemplaram alguns objetivos previamente elaborados:

  1. Compreender como ocorre a comunicação de crianças surdas na família e na escola;

  2. Identificar as facilidades e as dificuldades no processo de comunicação e de interação;

  3. Apreender as estratégias de comunicação e de ações para a efetivação da inclusão educacional/escolarização;

  4. Analisar a formação dos professores indígenas para a escolarização dos alunos surdos.

Pudemos, então, realizar as entrevistas, a partir dos roteiros destinados aos pais/responsáveis das crianças surdas e aos professores que trabalham ou já trabalharam com as crianças selecionadas.

Por se tratar de uma pesquisa com crianças, seguimos as orientações de Ferreira (2003)FERNANDES, L. Um diário de campo nos territórios psicotrópicos: as facetas da escrita etnográfica. In: CARIA, T. H. (Org.). Experiência Etnográfica em Ciências Sociais. Porto: Afrontamento, 2003. p.23-40. sobre como desenvolver uma pesquisa etnográfica com elas. Para isso, a autora recomenda dar visibilidade às crianças como atores sociais, envolvidas na construção e na determinação de suas próprias vidas nos contextos sociais.

Para observar o lugar da criança surda na família e na escola, adotamos a postura de adultos- investigadores diante das crianças-investigadas, os quais "[...] estão no cerne do trabalho de renegociação de papéis e estatutos da sua sucessiva reconfiguração, [tornando] a pesquisa etnográfica um processo de reflexividade dual sempre inacabado" (FERREIRA, 2003, p.165). Essas atitudes reflexivas possibilitaram-nos dar maior visibilidade à presença das crianças indígenas surdas nos espaços familiar e escolar.

Os dados obtidos pelos procedimentos relatados foram sistematicamente registrados em diário de campo, em fotos e com gravação em áudio. Optamos por não realizar filmagens, pois os equipamentos tecnológicos provocam estranheza às crianças e aos familiares indígenas, inibindo a espontaneidade dos sujeitos da pesquisa.

O registro em diário de campo foi utilizado durante todas as entrevistas e após elas, com o intuito de anotar as impressões ao longo dos diálogos e questionamentos, acrescentando-lhes detalhes que não foram percebidos. No diário de campo, também foram incluídas as transcrições das entrevistas, de modo a assinalar as falas e as impressões do dia.

O registro ordena os sentimentos e as cognições produzidas no contato com o objeto de estudo. "O diário ordena, através do fio narrativo, a dispersão de acontecimentos do dia-a-dia" (FERNANDES, 2003ELIAS, N. Sobre os seres humanos e suas emoções: um ensaio sob a perspectiva da sociologia dos processos. In: GEBARA, A.; WOUTERS, C. (Org.). O controle das emoções. João Pessoa: UFPB, 2009. p.19-46., p.26). Fernandes menciona ainda o processo de autocontrole, para não interferir no registro observacional, referindo-se às anotações como "documentos privados" e não publicados pelo pesquisador.

Optamos, também, pelo registro fotográfico, o que contribui para visualizar as ações e as expressões reveladas pelos olhares de dentro. A imagem fotográfica fundamenta-se nos estudos antropológicos de Andrade (2002)ANDRADE, R. Fotografia e Antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002., segundo os quais a visibilidade da análise iconográfica passa a fazer parte das investigações culturais. Deve-se acrescentar que as "[...] imagens contextualizadas podem trazer para a ciência descobertas inesperadas" (ANDRADE, 2002, p.120).

Essa antropóloga salienta que a imagem fotográfica é feita a partir da observação da realidade que está contida em uma determinada cultura, sendo carregada de significados e de fragmentos que propiciam o relato revelador, complementando que "[...] a imagem comunga com o texto para nos fazer melhor compreender e elaborar uma análise desses significados" (ANDRADE, 2002, p.52).

Adotamos, pois, a visão etnográfica de Andrade (2002, p.121) sobre a arte de fotografar, sendo necessário saber lidar com o próprio corpo e com as emoções desprendidas: "[...] precisa olhar-se, olhares fora-dentro, dentro-fora". No entanto, as fotos não serão expostas neste artigo, uma vez que elegemos a escrita de sinais para apresentar os sinais/senhas utilizados na comunicação das crianças indígenas surdas com seus familiares.

Por isso, as imagens fotográficas foram substituídas pela grafia dos sinais/senhas (conhecida como escrita de sinais ou SignWriting), a fim de preservar a identidade dos participantes da pesquisa e evidenciar apenas os sinais/senhas selecionados, tendo como critério os sinais/senhas utilizados nos espaços de aprendizagem (casa e escola).

Eis um exemplo da operação seletiva que fizemos:

Figura 1
- Imagem fotográfica do sinal/senha e, ao lado, a grafia do sinal/senha.

Figura 2
- Conforme o pai de três crianças com suspeita de surdez, esta é a senha para FOME. [Tradução da Figura 2: mão direita com os dedos afastados, palma voltada para a região abdominal (plano vertical/ parede), tocando-a duas vezes. Esse sinal configura a vontade de comer]. Fonte:

Figura 3
- Conforme o pai de três crianças com suspeita de surdez, a senha para PROIBIÇÃO. [Tradução da Figura 3: movimento lateral da cabeça, com expressão facial de desaprovação (sobrancelhas para baixo). Mão direita à frente do corpo, palma para frente (plano vertical/parede) e o dedo indicador em extensão. Movimentos laterais com o dedo indicador. Ainda com a mão direita, agora com a configuração de dedo polegar e indicador unidos, com movimentos rápidos de batidas entre polegar e indicador. A senha representa a punição pelo descumprimento a uma ordem ou orientação do pai].

Figura 4
- Conforme a irmã de uma criança surda, o sinal para BANHO DE RIO. [Tradução da Figura 4: ombros projetados para frente. As mãos no plano vertical/parede, com os polegares afastados. Elas se movem simultaneamente, aproximando-se ao ombro esquerdo e, em seguida, ao ombro direito].

Figura 5
- Conforme a irmã de uma criança surda, o sinal para comprar BATATINHA CHIPS. [Tradução da Figura 5: mão esquerda aberta (plano horizontal/chão), palma para cima e com os dedos afastados. Mão direita com o dedo polegar e o dedo indicador unidos, em formato circular. Tocar duas vezes a palma da mão esquerda].

Figura 6
- Conforme a irmã de uma criança surda, o sinal para ESCOLA. [Tradução da Figura 6: mão esquerda (plano horizontal/chão), com a palma para cima e com o polegar afastado. Mão direita com o dedo polegar e o dedo indicador unidos, em formato circular. Esfregar com movimento sinuoso em direção aos dedos da mão esquerda].

Figura 7
- Conforme a irmã de uma criança surda, o sinal da brincadeira chamada BICHO. [Tradução da Figura 7: mão direita (plano horizontal/chão), com os dedos afastados e a palma para baixo. Tocar a cabeça].

A grafia do sinal/senha foi realizada conforme o programa SW-Edit(editor de textos da língua de sinais), que permite a grafia dos parâmetros fonológicos que constituem o sinal, sendo os principais: Locação (L), Movimento (M) e Configuração de Mão (CM) (QUADROS; KARNOPP, 2004MANZINI, E. J. Considerações sobre a transcrição de entrevistas. In: MARQUEZINI, M. C.; MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M (Org.). Técnicas de Pesquisa: planejamento e execução de pesquisas. Amostragens e técnicas de pesquisa. Elaboração, análise e interpretação de dados. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2010.). Pontuamos que a grafia é registrada a partir do ponto de vista expressivo, isto é, de quem faz o sinal. O registro da língua de sinais a partir do SignWritingpossibilita o registro direto dos parâmetros fonológicos da língua de modalidade gesto-visual, sendo possível a preservação das características tridimensionais das línguas de sinais.

Após a realização das grafias dos sinais/senhas, houve uma avaliação especializada de uma juíza experiente (bacharela em Letras/Libras), que analisou os registros aqui apresentados.

Descrever o lócus da pesquisa e a ativa participação das crianças nesses espaços possibilitou-nos a visualização dos interstícios sociais que ocasionam a negociação entre culturas distintas. Para tanto, apoiamo-nos ainda na investigação ecológica, proposta por Bronfenbrenner (1996), para a compreensão das relações do micro e do mesossistema que se desenvolveu com o respeito à cultura do grupo étnico estudado, pela participação ativa dos membros familiares e escolares e da criança indígena surda. Assim, as relações, as formas de comunicação e de interação e as atividades desenvolvidas nos contextos naturais foram essenciais para a compreensão da cultura familiar e escolar.

O diálogo entre os dados empíricos e a fundamentação teórica dos contextos naturais de Bronfenbrenner e os Estudos Culturais contribuíram para o tratamento e a análise dos dados. Para a análise e triangulação dos dados, utilizamos

[...] a técnica da triangulação tem por objetivo básico abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em estudo. Parte de princípios que sustentam que é impossível conceber a existência isolada de um fenômeno social, sem raízes históricas, sem significados culturais e sem vinculações estreitas e essenciais com uma macrorrealidade social (TRIVIÑOS, 1987, p.138).

A triangulação foi feita a partir da análise das fotos, das transcrições das entrevistas e dos registros no diário de campo, para então possibilitar a discussão e o tratamento dos dados obtidos. Por evidenciar as formas de comunicação e de inclusão da criança indígena surda na família e na escola, Bronfenbrenner (1996) nos ajudou a compreender as interconexões possíveis entre a casa e a escola. Para esse tipo de análise, o autor propõe quatro tipos de participação, a saber: a participação multiambiente; a ligação indireta; as comunicações interambiente (mensagens informativas entre as pessoas de um ambiente para o outro); e, por último, o conhecimento interambiente (informações ou experiências num ambiente sobre o outro). Sigamos, pois, para as discussões.

3 Resultados e discussões

Os resultados da investigação sobre as formas de comunicação usadas nos espaços familiar e escolar frequentados pelas crianças indígenas surdas, dado o propósito de nossa pesquisa etnográfica, evidenciaram as necessidades comunicativas e alguns sinais/senhas utilizados pelos familiares para interagir com seus entes surdos. Os sentimentos em relação à criança indígena surda são revelados a partir das manifestações dos familiares e dos professores indígenas.

Os dados das entrevistas realizadas com os professores indígenas, tendo como aporte teórico Goudsblom (2009)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008., revelam que eles também podem sentir vergonha por não saber trabalhar com os alunos surdos. Eles afirmam que a presença do profissional intérprete de Libras supre a falta de diálogo entre o professor e o aluno surdo. Entretanto, um professor indígena da etnia Kaiowá argumenta sobre a necessidade de aprender a Libras para se aproximar do aluno surdo.

Então, eu senti certa dificuldade, primeiro porque o professor, ele tem que entender primeiro, tem que estudar essa Língua de Sinais, para poder dominar aí como um intérprete, ou seja, um professor que entende, para o intérprete é comum isso aí. Eu acho que tem que ser assim, adaptar para o mundo dele também. Eu acho que avalia bem mais assim, a gente entende quais foram os objetivos da aula. Eu acho que o professor tem que entender para elaborar material e entender também a Língua de Sinais, saber conversar também para ter entendimento melhor. Eu acho que todo professor tem que entender, ter prática tanto da Libras quanto do Braile também. O Braile para o cego (Ex-professor de criança surda).

Nas falas e durante as observações de campo, pôde-se perceber que a comunicação é baseada por senhas/sinais, ou seja, criam-se estratégias comunicativas para suprir a necessidade momentânea, seja de uma ordem, seja de um pedido.

Santana et al. (2008)QUADROS, R. M.; KARNOPP, L. B. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. apresentam duas denominações para esse sistema comunicativo: simbolismo esotérico e sinais domésticos, ambos pautados em descrições de objeto ou de situação. Observamos que a comunicação é marcada pela subjetividade de apontamentos e descrições que revelam apenas necessidades momentâneas de comunicação entre a criança surda e os ouvintes.

A família, "[...] em uma certa perspectiva, trata-se de uma pequena cultura dentro de uma outra mais ampla, sobre a qual age e à qual reage" (BUSCAGLIA, 2010, p.80). Ao identificar essas famílias indígenas da etnia Kaiowá com seus filhos surdos, apresentamos os diálogos selecionados e que nos dão alguns indícios sobre as concepções da surdez, quanto aos sentimentos e ao relacionamento familiar, e o olhar sobre as possibilidades de crianças e de jovens surdos na cultura Guarani-Kaiowá. Os relatos revelam:

É difícil 'falar' coisa que não é para fazer [...]

[...] Não desdenho, é filha! [...]

Quero ver [...] casada. [...] (Mãe de criança surda).

Eles [...] deficiente da fala [...]

As pessoas reparam [...]

Fico muito triste mesmo [...]

Preocupado, se está bem ou não [...] se vai voltar com a pele inteira [...].

É duro, mas eu trato eles. Eu fico muito triste, porque ninguém dá de graça pra criar, adotar eles. Ninguém dá de graça, a gente tem que ter um filho, para ajudar na roça, quanto mais um guri assim. A menina pra ajudar em casa a mãe. Já na escola já ajuda, porque a criança fala, né. Agora eles não (Pai de três crianças com suspeita de surdez).

Segundo Elias (2009CURSO DE LICENCIATURA INDÍGENA TEKO ARANDU. Direito das pessoas com deficiências nas aldeias indígenas da região da Grande Dourados. Dourados: FAED/UFGD, 2009., p. 39), "Pode-se dizer que o componente sentimental assim como o componente somático preparam para ação, mas o comportamento em si tem uma função de sobrevivência óbvia, apropriada para uma situação específica". E num sentido mais amplo, nesses casos, por uma reação de medo. Essa reação foi mencionada pelas famílias, que relataram que os sinais utilizados são criados a partir das necessidades imediatas de comunicação, revelando suas frustrações caso necessitem de auxílio e o filho surdo não consiga buscar ajuda em uma situação de doença, por exemplo.

Outro sentimento percebido foi a vergonha que, de acordo com Goudsblom (2009, p. 47) pautado nos estudos elisianos, revela que "[...] ao demonstrar vergonha, as pessoas, voluntaria ou involuntariamente, através de gestos chamam a atenção sobre si mesmas, indicando que algo acontece com elas. Para explicar esta contradição, a vergonha é tomada como um sinal de uma dor social. Ao analisar as manifestações corporais de todos os pais indígenas entrevistados, eles revelaram esse sentimento, não em relação direta aos filhos surdos, mas pautados nas relações sociais de uma comunidade tradicionalmente oral.

A compreensão sobre o sentimento de vergonha pautada na dor social exige o entendimento acerca desse tipo de dor, que apresenta um sentido duplo: "[...] é infligida socialmente pelas pessoas que envergonham (como punição), e demonstrado socialmente pela pessoa que é envergonhada (como expiação)" (GOUDSBLOM, 2009, p.56). O autor menciona, como aspecto da vergonha, o sentimento de culpa, mostrando que, no ponto de vista sociológico, "[...] os fatores que causam a vergonha são gradualmente colocados sob o controle de instituições mais centralizadas [...]" (GOUDSBLOM, 2009, p.59). Ele alega que essas instituições, como a família, impõem ao sujeito uma parcela da vergonha convertida em culpa, a fim de puni-lo.

Nesse caso, a vergonha da família indígena consiste em fazer parte de uma sociedade na qual ter um filho com deficiência (com ou sem estereótipo) significa ser excluído do convívio social, tendo em vista as representações ligadas ao pecado e ao castigo (BRUNO; COELHO, 2012BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.).

Para compreender os sujeitos da pesquisa a partir de suas próprias visões de dentro, torna-se importante focar os processos de hibridismo, de negociação cultural e de diferença cultural, como sendo "[...] processo (s) da enunciação da cultura como conhecível, legítimo, adequado (s) à construção de sistemas de identificação cultural" (BHABHA, 2010BHABHA, H. K. O Local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p.63). Nesse contexto, a surdez e o processo de relação e de interação com as pessoas surdas, na cultura indígena, remetem às ponderações de Skliar (2003SILVA, A. B. P. Surdez, inteligência e afetividade. In: SILVA, I. R.; KAUCHAKJE, S.; GESUELI, Z. M. (Org.). Cidadania, surdez e linguagem: desafios e realidades. São Paulo: Plexus, 2003. p.89-97., p.41): "[...] a alteridade começa a faltar e que é imperiosamente necessário produzir o outro como diferença à falta de poder viver a alteridade como destino". Ou seja, trata-se de um campo no qual se articulam tensões e negociações e há indicativos para que essas negociações se materializem, tanto no ambiente familiar como no ambiente escolar, com o empoderamento dos atores sociais nesses espaços evidenciados.

3.1 A interação e os indícios de comunicação na família indígena e na escola

Compreender o processo comunicativo e interativo entre a criança surda e a comunidade indígena constituiu o ponto inicial de nossa pesquisa, pois sua continuidade influencia e interfere diretamente no processo de pertencimento da criança indígena surda na família e na escola. Assim, procedemos ao estudo dos aspectos comunicativos presentes nessas relações, pois, de acordo com Silva (2003)SANTANA, A. P. et al. O estatuto simbólico dos gestos no contexto da surdez. Psicologia em Estudo, Maringá, v.13, n.2, p.297-306, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n2/a12v13n2.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2012.
http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n2/a12v13...
, "[...] tendo uma linguagem interiorizada, o surdo poderá manifestar seus pensamentos, desejos, sentimentos e se comportar como qualquer pessoa. [...] Enfim, a única diferença do surdo seria fazer parte de uma minoria linguística" (SILVA, 2003, p.94). A autora afirma que o surdo expõe suas percepções ao ter um espaço para se relacionar com o outro, como também nos esclarece sobre "[...] a qualidade dessa interação família/criança surda influencia a formação da auto-imagem do surdo" (SILVA, 2003, p.94).

Sobre essa afirmação, o pai de três crianças com suspeita de surdez revela:

Eles conversam na senha. Eles se entendem. Ela também entende.

Eu não converso muito com eles, não.

Porque eu não tenho tempo, saio pra lá e pra cá. Eu saio de casa assim, para ajudar eles. E a dificuldades deles é só isso mesmo.

Aí ele usa senha.

Conversam normalmente, igual um irmão ou irmã, toda criança consegue. Mas agora, eu que sou pai, eu não consigo, porque não fui eu que ensinei. Eles sozinho que fazem. Eu nunca converso com as pessoas deficientes assim, da fala assim, mudo (Pai da etnia Kaiowá).

Assim, conhecer, analisar e interpretar o processo de inclusão da criança indígena surda na família e na escola permite a visualização de sinais icônicos (representação imagética) e de indicativos utilizados no ambiente familiar, para suprir a necessidade momentânea de comunicação entre a criança surda e os ouvintes.

Santana et al. (2008, p.299) retratam que o gesto é um

[...] mecanismo alternativo, como mediação para a fala, mostrando a sua inter-relação com a linguagem e seu estatuto simbólico. É por essa interdependência das funções simbólicas que o gesto parece servir como intermediário para a aquisição tanto da linguagem oral quanto da língua de sinais.

As autoras afirmam que os gestos fazem parte dos processos simbólicos iniciais da criança surda e da criança ouvinte.

Compreender esses sinais domésticos desenvolvidos no ambiente familiar sugere o auxílio nas formas de interação, comunicação e inclusão na família, de modo que a compreensão possa ser articulada no espaço escolar.

O registro dos sinais pertencentes à comunicação entre as crianças e suas famílias foi apresentado em escrita de sinais, para ilustrar alguns sinais/senhas utilizados na interação comunicativa na família.

Quando a pesquisadora questionou o pai das crianças com suspeita de surdez sobre como ele designa uma ordem ou um pedido às crianças surdas, ele imediatamente fez o sinal de não (indicador com movimentos laterais de punho). Ele relata que mostra para as crianças aquilo que não se pode fazer e complementa com o sinal que indica a punição pela desobediência. Observamos que as famílias indígenas desconhecem a Libras e utilizam gestos e descrições de ação e de objetos para estabelecerem o mínimo de comunicação com suas crianças surdas.

Na sequência, a irmã ouvinte de uma criança surda usa tanto os sinais do ambiente familiar quanto aos sinais pertencentes a Libras. Em tempo: a Libras é ensinada e compartilhada no espaço escolar, por ser a língua de mediação. Quando questionada sobre quem lhe ensinara tais sinais, ela respondeu que sabia mesmo: "Eu que sabe!" (Irmã de criança surda).

A irmã ouvinte é muito tímida e demonstra conforto linguístico apenas na língua Guarani e no uso dos sinais. Quando questionada sobre o que faz junto à sua irmã surda quando tem dinheiro, ela responde em sinais que vai comprar batatinha chips ou qualquer outro salgadinho industrializado.

Notamos que o mesmo sinal utilizado para informar a criança surda sobre a ida à escola também configura a brincadeira de escolinha. A irmã ouvinte complementa, ao falar em brincar de escolinha, fazendo uma menção ao nome do professor indígena (etnia Kaiowá) que teve a experiência junto à criança surda. O sinal está associado à ação de escrever.

Outra brincadeira é a chamada Bicho, conforme a grafia do sinal abaixo:

A irmã ouvinte diz que essa brincadeira é a mais solicitada por todos os seus irmãos. A brincadeira consiste em pegar e fugir para não ser pego; seria a brincadeira pega-pega que conhecemos na cultura ocidental. A irmã acrescenta que o "Bicho" é a mais legal, sendo a que a criança surda mais gosta de brincar, pois as crianças imitam seus professores e apresentam as mesmas atitudes que vivenciam no ambiente escolar.

O relacionamento entre irmãos sem deficiência e com deficiência, no caso registrado pela irmã ouvinte, possibilitou o entendimento acerca do olhar da irmã sobre a surdez. Compartilhamos da pesquisa de Chacon (2009)CARIA, T. H. Introdução: a construção etnográfica do conhecimento em Ciências Sociais: reflexividade e fronteiras. In: CARIA, T. H. (Org.). Experiência Etnográfica em Ciências Sociais. Porto: Afrontamento, 2003. p.9-20., a partir das respostas de formulários acerca do olhar do irmão não deficiente com relação à deficiência mental e auditiva. O autor ainda alude à escassez de pesquisas sobre o relacionamento de pais e irmãos com filhos/irmãos com deficiência.

Em seus resultados e considerações finais, Chacon (2009) menciona que a convivência entre irmãos marca a vida inteira, pois eles não se escolhem e, nas palavras do autor, os irmãos se encontram. A relação entre irmãos é marcada pela ansiedade, pela oportunidade reduzida de sociabilidade e pelas tensões que permeiam o relacionamento entre pais e filho não deficiente. O autor considera que os dados obtidos em sua pesquisa apontam não somente para efeitos negativos, mas também efeitos positivos, acrescentando que: "[...] os irmãos de deficientes precisam de informações corretas, bem como de apoio terapêutico para elaborar sentimentos de medo, raiva, vergonha que possam ter em função de sua condição" (CHACON, 2009, p.82). Os resultados revelaram que os irmãos desenvolvem "[...] maior tolerância e maior compreensão, capacidade de cooperação e resistência à frustração [...] Cabe salientar, também, a necessidade que estes irmãos têm de ser eles mesmos sem o estigma de cortesia" (CHACON, 2009, p.82).

Revela-se nas senhas, conforme o pai das crianças com suspeita de surdez e a irmã ouvinte de uma criança surda, que a comunicação entre pai e filhos surdos e entre irmãs ouvinte e surda é pautada em sinais que representam, em sua maioria, a forma ou a ação do que se quer dizer conforme as pesquisas de Quadros (1997) acerca da aquisição da linguagem e da Educação de Surdos. A autora compartilha das concepções de Chomsky sobre a Gramática Universal e aponta:

Se há um dispositivo de aquisição da linguagem - LAD - comum a todos os seres humanos que precisa ser acionado mediante a experiência linguística positiva, visível à criança, então a criança surda brasileira deve ter acesso à LIBRAS o quanto antes para acionar de forma natural esse dispositivo (QUADROS, 1997, p.27).

Quadros (1997) e Goldfeld (2002)GOUDSBLOM, J. A Vergonha: uma dor social. In: GEBARA, A.; WOUTERS, C. (Org.). O controle das emoções. João Pessoa: UFPB, 2009. p.47-60. complementam que uma língua oral nunca será adquirida de forma natural e espontânea pela criança surda. Assim, pode-se esclarecer que a espontaneidade está pautada nos sinais icônicos que transparecem a representatividade de forma ou de ação. Contudo, quando a criança surda não é exposta à língua gesto-visual, ela utilizará de recursos como apontamentos e esses sinais manuais para estabelecer uma comunicação imediatista, num grau superficial dos assuntos selecionados.

Para Bronfenbrenner (1996), a validade ecológica consiste em elaborar um mapa do sistema: forças, barreiras, necessidades, apoios e desafios nas variáveis comunicativas de nível intrapessoal, interpessoal e grupal. São de grande importância ainda as variáveis situacionais, nas quais os objetos, os espaços e os tempos são rearranjados.

Nesse sentido, observamos que tanto o pai quanto a irmã que interagem com crianças indígenas surdas não conseguem estabelecer conversas mais produtivas, com detalhes, nem mesmo tratar de assuntos abstratos. Por isso se marca a necessidade de reconhecimento do simbolismo esotérico criado e desenvolvido no ambiente familiar e social, para que essa compreensão seja articulada no espaço escolar.

4 Considerações finais

Buscamos, nos entrelugares, conhecer o lugar da criança surda e compreender de que forma ela se comunica e se relaciona no contexto familiar e escolar, a partir das indagações sobre como contemplar as necessidades específicas inerentes à condição da surdez sem negligenciar as diferenças e a tradição cultural desse povo. Além das indagações acerca da oralidade indígena e a participação da perspectiva do surdo que não utiliza a língua oral para se comunicar, faz-se necessário interrogar: como o surdo indígena pode ser ouvido e fazer-se visível dentro do seu meio?

O caminho investigativo e o arcabouço teórico adotados contribuíram para situar o lócus que ocupam as crianças indígenas surdas nos contextos familiar e escolar, permitindo-nos observar como os participantes do micro e do mesossistema lidam com o fenômeno inusitado da deficiência, em termos de posturas, de acolhimento, de negação, de colaboração ou de contestação diante da diferença da surdez nas comunidades estudadas.

O lócus ocupado pela criança indígena surda na cultura Guarani-Kaiowá ainda é de invisibilidade, perpassado pelas representações sociais da impossibilidade da fala, da aquisição de conhecimento e da assimilação da cultura tradicional. Em relação à socialização, observamos a interação e a comunicação com os irmãos, participação nas brincadeiras, nos eventos e em outras atividades desenvolvidas no contexto familiar. As famílias relataram que a comunicação é baseada em sinais/senhas criados a partir das necessidades imediatas de comunicação, revelando suas frustrações, como, por exemplo, numa situação de doença caso necessitem de auxílio e o filho surdo não consiga buscar ajuda.

Os resultados indicam que as práticas de comunicação vêm se estabelecendo de modo incipiente. Dessa forma, os gestos, as senhas e os poucos sinais da Libras aprendidos na escolarização/inclusão de surdos na escola não favorecem a formação das identidades surdas e indígenas. Para tanto, há necessidade de ampliação das formas de interação e de comunicação para o desenvolvimento linguístico, a aquisição de conhecimentos e a participação sociocultural nos contextos familiar, escolar e comunitário.

Os relatos dos professores indígenas afirmaram que a presença do profissional intérprete de Libras supre a falta de diálogo entre o professor indígena e o aluno surdo. Porém, registraram-se os argumentos de um professor Kaiowá sobre a necessidade de o professor do ensino regular também aprender a Libras para se aproximar do aluno surdo.

De forma geral, observamos que a pesquisa etnográfica propiciou o registro dos olhares de dentro quanto à comunicação e à inclusão das crianças indígenas surdas no contexto familiar e escolar. Assim, como a compreensão do saber-fazer de dentro sobre a interface da Educação Especial na Educação Escolar Indígena.

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  • TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais. A pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
  • 1
    O desenvolvimento da pesquisa teve financiamento e bolsa de pesquisa do Programa de Apoio à Educação Especial (PROESP/CAPES).
  • 4
    A senha constitui uma comunicação momentânea entre a criança surda e os ouvintes, designada como sinais caseiros (SANTANA et al., 2008).
  • 5
    A escrita de sinais é a grafia dos sinais da Língua de Sinais. De acordo com Stumpf (2005, p. 268), "[...] como instrumento simbólico, a escrita de sinais pode ser o suporte cognitivo fundamental que está faltando aos surdos para tornar sua educação um processo racional e efetivo". Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/5429>. Acesso em: 17 fev. 2013.
  • 6
    Professor português visitante que conduziu a discussão no GEPEI (Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Inclusiva sobre Etnografia em Pesquisa Educacional) da UFGD (28 set. 2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2014
  • Revisado
    05 Mar 2015
  • Aceito
    06 Mar 2015
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