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Autismo, Narrativas Maternas e Ativismo dos Anos 1970 a 20081

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo refletir sobre aspectos históricos relacionados ao autismo no Brasil ao longo das décadas de 1970 a 2008. Analisamos duas autobiografias elaboradas por mães cujos filhos receberam o diagnóstico de autismo entre os anos 1970 e 1980. Os escritos dessas mulheres foram produzidos em momentos distintos (uma em 1988 e outra em 2008) e são aqui compreendidos como fontes pertinentes para se produzir histórias que iluminam questões relativas ao ativismo materno no período em foco a partir da perspectiva feminina. Concluímos que os dois documentos analisados demonstram que a família, no caso do espectro autista, foi um sujeito fundamental no desenvolvimento de uma incipiente rede de proteção aos autistas, em um momento de transição democrática no país. Apesar da distância temporal das narrativas, é possível verificar elementos em comum entre elas, como as motivações para escrever sobre o assunto, o papel das associações de mães e pais de autistas e as dificuldades em encontrar serviços adequados para as necessidades de seus filhos. Também se encontram nelas diferenças, principalmente no olhar acerca do ativismo materno.

PALAVRAS-CHAVE:
Autismo; Maternidade; Ativismo

ABSTRACT:

This paper aims to reflect on historical aspects related to autism in Brazil from the 1970s to 2008. We analyzed two autobiographies written by mothers whose children were diagnosed with autism between the 1970s and the 1980s. The writings of these women were produced in distinct moments (one in 1988 and the other in 2008), and they are understood here as pertinent sources for producing stories that illuminate issues related to maternal activism in the period in focus from the female perspective. We concluded that the two analyzed documents demonstrate that the family, in the case of the autistic spectrum, was a fundamental subject in the development of an incipient protection network for autistic people, in a moment of democratic transition in the country. Despite the temporal distance of the narratives, it is possible to verify elements in common, such as the motivations to write about the subject, the role of associations of mothers and fathers of autistic people and the difficulties in finding adequate services for the needs of their children. Differences are also found, especially in terms of maternal activism.

KEYWORDS:
Autism; Motherhood; Activism

1 Introdução

A primeira descrição do autismo como uma entidade diagnóstica diferenciada ocorreu em 1943, por meio da publicação do artigo intitulado Autistic disturbances of affective contact3 3 Distúrbios autísticos do contato afetivo (Kanner, 1943, tradução nossa). , de autoria do psiquiatra infantil Leo Kanner (1943)Kanner, L. (1943). Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, 2, 217-250.. Neste estudo, o pesquisador apresentou resultados da análise de onze crianças que, conforme defendia Kanner, apresentavam características que, até então, não eram estudadas pela comunidade acadêmica, sendo elas: déficits na sociabilidade e na comunicação, além da presença de comportamentos repetitivos e interesses restritos (Joseph, Soorya, & Thurm, 2016Joseph, L., Soorya, L., & Thurm, A. (2016). Transtorno do espectro autista. São Paulo: Hogrefe.).

Os familiares, em especial as mães, foram sujeitos fundamentais na história do autismo, tanto para a construção deste como um objeto de estudo acadêmico - pois, desde Leo Kanner, os relatos familiares são usados pelos pesquisadores para construir, analisar e propor formas de intervenção/tratamento para o fenômeno - quanto para a sua transformação de “um transtorno que mal chegava a ser reconhecido, no diagnóstico mais falado e controverso de nosso tempo” (Donvan & Zucker, 2017Donvan, J., & Zucker, C. (2017). Outra sintonia: a história do autismo. São Paulo: Companhia das Letras., p. 13). Tal transformação ocorreu por meio do incentivo às pesquisas voltadas à temática e do ativismo e da luta política, visando construir e garantir direitos básicos e políticas públicas voltados aos autistas.

Há, no campo de estudos sobre o autismo no Brasil, uma lacuna acerca da história da mobilização política das famílias na efetivação da cidadania dos autistas no país (Leandro & Lopes, 2018Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
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) e do protagonismo das mães na construção desse processo4 4 Sobre os trabalhos que abordam a relação entre autismo e ativismo no Brasil, a partir de uma perspectiva histórica, destacamos: Cavalcante (2003), que aborda a história da criação da Associação de Amigos do Autista (AMA), primeira associação de mães e pais de autistas no Brasil; Leandro e Lopes (2018), que apresentam as reivindicações de familiares de autistas, por meio do envio de cartas ao Jornal do Brasil, na década de 1980; e Lopes (2019), que analisa a história do ativismo materno no Brasil. . Dessa feita, o artigo que segue se propõe a colaborar no preenchimento dessa lacuna, abordando a história do ativismo em autismo no Brasil ao longo dos anos 1970 até 2008, tendo como base a análise de duas autobiografias: Autismo: depoimentos e informações, escrita por Cleusa Barbosa Szabo, publicada pela editora Edicon em 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon.; e Um autista muito especial, elaborada por Deusina Lopes da Cruz, em 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., publicada pela editora Mediação. Tomamos tais escritos como fontes pertinentes para se produzir histórias a partir da perspectiva dos sujeitos que as vivenciaram, além de possibilitarem uma compreensão acerca da relação entre autismo e ativismo materno no período em foco. Adotamos uma perspectiva feminista - como referencial teórico-epistemológico -, pautando a análise a partir de autores como Silverman (2005)Silverman, C. (2005, outubro 28-30). From disorders of affect to mindblindness: framing the history of autism spectrum disorders. Autism and Representation, Cleveland, Ohio, Case Western Reserve Univ. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://case.edu/affil/sce/Texts_2005/Autism%20and%20Representation%20Silverman.htm
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, Darré (2013)Darré, S. (2013). Maternidad y tecnologías de género. Buenos Aires: Katz., Douglas (2014)Douglas, P. (2014). Autism’s “refrigerator mothers”: identity, power, and resistance. Comparative Program on Health and Society (CPHS), Munk School of Global Affairs, University of Toronto, Canada. Recuperado em 11 de abril de 20202 de https://munkschool.utoronto.ca/cphs/wp-content/uploads/2014/12/1605DouglasCPHS-final.pdf
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e Jack (2014)Jack, J. (2014). Autism and gender: from refrigerator mothers to computer geeks. Champaign: University of Illinois Press., bem como problematizando a construção histórica da imagem das mães de autistas na bibliografia clássica sobre o tema, o ativismo e o empoderamento dessas mulheres por meio da escrita autobiográfica.

2 A culpabilização e a resposta materna por meio do ativismo

Nas primeiras décadas de estudo do autismo - mais especificamente no período marcado entre os anos 1940 e 1960 -, as teorias de base psicanalítica predominaram5 5 Em linhas gerais, pode-se dividir essas teorias da seguinte maneira: teorias psicanalíticas, teorias psicológicas, teorias neurológicas e teorias sociais, cognitivas e neuropsicológicas (Castela, 2013; Joseph, Soorya, & Thurm, 2016). na explicação do fenômeno (Castela, 2013Castela, C. A. (2013). Representações sociais e atitudes face ao autismo. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Universidade do Algarve, Faro, Portugal. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/3538
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; Joseph, Soorya, & Thurm, 2016Joseph, L., Soorya, L., & Thurm, A. (2016). Transtorno do espectro autista. São Paulo: Hogrefe.). Salvo as singularidades expressas pelos autores, de maneira geral, o autismo era definido como uma perturbação afetiva, cujo agente desencadeador era o mau relacionamento mãe-filho (Castela, 2013Castela, C. A. (2013). Representações sociais e atitudes face ao autismo. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Universidade do Algarve, Faro, Portugal. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/3538
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). Tal forma de compreender o fenômeno colaborou para inserir as mães no centro do debate sobre o tema, caracterizando-as como “más”, “frias” e “pouco amorosas”, ou, simplesmente, como “mãe-geladeira” (Donvan & Zucker, 2017Donvan, J., & Zucker, C. (2017). Outra sintonia: a história do autismo. São Paulo: Companhia das Letras.; Grinker, 2010Grinker, R. R. (2010). Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larrousse do Brasil.; Lima, 2014Lima, R. C. (2014). A construção histórica do autismo (1943-1983). Ciências Humanas e Sociais em Revista, 36(1), 109-123.; Silverman & Brosco, 2007Silverman, C., & Brosco, J. P. (2007). Understanding autism: parents and pediatricians in historical perspective. Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine, 161(4), 392-398. DOI: https://doi.org/10.1001/archpedi.161.4.392
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).

O termo “mãe-geladeira” surgiu em 1949, tendo como inspiração um artigo de Leo Kanner em que ele dedicou maior ênfase nas relações familiares de seus pacientes - relações por ele compreendidas como pouco afetuosas - para explicar o surgimento do fenômeno. Ao se referir às crianças, Kanner disse que estas eram mantidas em uma “geladeira que não degela” (Lima, 2014Lima, R. C. (2014). A construção histórica do autismo (1943-1983). Ciências Humanas e Sociais em Revista, 36(1), 109-123., p. 111). Em outras palavras, eram pouco amadas.

Kanner levantou a hipótese de uma relação entre autismo e “culpa materna”, mas c oube a Bruno Bettelheim intensificar e propagar tal discussão (Donvan & Zucker, 2017Donvan, J., & Zucker, C. (2017). Outra sintonia: a história do autismo. São Paulo: Companhia das Letras.). Embora escrevesse sobre o assunto desde os anos 1950, foi com a publicação do livro The empty fortress - intitulado no Brasil de A fortaleza vazia -, em 1967, que Bettelheim obteve reconhecimento dentro e fora do espaço acadêmico, tendo o seu livro vendido mais de 15.000 cópias no final de 1969 (Pollak, 2003Pollack, R. (2003). Bruno Bettelheim ou la fabrication d´un mythe: une biographie. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, Le Seuil.).

A partir de três estudos de caso (Laurie, Marcia e Joy), o psicanalista defendeu a tese de que o autismo seria uma patologia de ordem emocional, em que a criança - por não se sentir amparada e acolhida por aqueles que com ela conviviam - optaria por habitar uma “fortaleza vazia” e entregar-se a um estado de não existência. Em suas palavras: “Ao longo deste livro mantenho minha convicção de que, em autismo infantil, o agente precipitador é o desejo de um dos pais de que o filho não existisse” (Bettelheim, 1987Bettelheim, B. (1987). A fortaleza vazia. São Paulo: Martins Fontes., p. 137).

Apesar de o psicanalista Bruno Bettelheim não ter sido o pioneiro (nem o único) a culpabilizar as mães, A fortaleza vazia catalisou vários pensamentos que estavam presentes desde a década de 1940: a preocupação com a psique infantil; a psicanálise como teoria capaz de explicar os fenômenos relacionados à mente e de ofertar conselhos sobre o cuidado com as crianças; e a associação entre transtornos e patologias de ordem mental com o exercício de uma “má” maternidade (Darré, 2013Darré, S. (2013). Maternidad y tecnologías de género. Buenos Aires: Katz.; Douglas, 2014Douglas, P. (2014). Autism’s “refrigerator mothers”: identity, power, and resistance. Comparative Program on Health and Society (CPHS), Munk School of Global Affairs, University of Toronto, Canada. Recuperado em 11 de abril de 20202 de https://munkschool.utoronto.ca/cphs/wp-content/uploads/2014/12/1605DouglasCPHS-final.pdf
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; Grinker, 2010Grinker, R. R. (2010). Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larrousse do Brasil.).

Ao longo da história do autismo, houve uma superexposição dos familiares, com destaque para as mães. Cada informação, resposta e comportamento era utilizado como argumento a favor da compreensão de que as relações familiares eram a causa do fenômeno. Apesar desta ofensiva que articulou o autismo, maternidade e culpa6 6 Roy Richard Grinker (2010) informa-nos que essa associação entre autismo, maternidade e culpa teve maior influência principalmente em países cuja influência da psicanálise é maior, como foi (e ainda é) o caso da França e da Argentina. , não tardou a resposta. Seja elaborando trabalhos acadêmicos ou contribuindo por meio do fornecimento de dados para pesquisa - ou mesmo o seu financiamento - e divulgação das terapias, cuja base era o saber empírico dos próprios familiares, mães e pais de autistas foram fundamentais para o questionamento das explicações psicogênicas sobre o autismo (Silverman & Brosco, 2007Silverman, C., & Brosco, J. P. (2007). Understanding autism: parents and pediatricians in historical perspective. Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine, 161(4), 392-398. DOI: https://doi.org/10.1001/archpedi.161.4.392
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). O principal exemplo dessa resposta familiar foi Bernard Rimland - psicólogo, pai de uma criança autista e que, por meio do livro intitulado Infantile autism: the syndrome and its implication for a neural theory of behavior (publicado em 1964), afirmou que a base do autismo era orgânica e não emocional (Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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).

A obra contou com o apoio de Leo Kanner e foi fundamental para a criação da National Society for Autistic Children (NSAC), uma vez que colaborou para unir pais de crianças diagnosticadas com autismo e, a partir dessa união, formar uma associação composta por familiares, profissionais, terapeutas e pesquisadores (Eyal & Hart, 2010Eyal, G., & Hart, B. (2010). How parents of autistic children became experts on their own children: notes towards a sociology of expertise. Berkeley Journal of Sociology, 54, 3-17.). Dessa forma, se no início o conhecimento de mães e pais de autistas era considerado com desconfiança, com a NSAC abriu-se caminho para a elevação do status familiar, reconhecendo-os como sujeitos com expertise.

Em termos de advocacy7 7 Advocacy são práticas elaboradas por e para grupos que não possuem espaço na arena política formal. São ações que abarcam uma dimensão comunicativa, técnico-competente e a ocupação de espaços políticos, midiáticos e sociais (Mafra, 2014). , e sua expressão por meio de autobiografia, vale destacarmos o livro de Clara Claiborne, The Siege, que foi publicado em 1967, mesmo ano do livro de Bruno Bettelheim. Na obra em questão, Claiborne relatava a experiência de ser mãe de Jéssica - uma menina diagnosticada com autismo -, sendo este um dos primeiros trabalhos elaborados nos Estados Unidos tendo como base exclusivamente o olhar materno sobre o fenômeno (Pollak, 2003Pollack, R. (2003). Bruno Bettelheim ou la fabrication d´un mythe: une biographie. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, Le Seuil.; Wing, 2010Wing, L. (2010, agosto 4). Clara Claiborne Park obituary. The Guardian. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2010/aug/04/clara-claiborne-park-obituary
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). Por meio do livro, Claiborne questionou publicamente a associação entre autismo e culpa materna, e “abriu caminho para uma forte tradição de pais ativistas que começaram a combater mitos e equívocos. Seu trabalho encorajou outros pais a rejeitarem tais teorias e a culpa a elas associada”8 8 “led the way for a strong tradition of parent campaigners and began to tackle myths and misconceptions. Her work encouraged other parents to reject such theories, and the associated blame and guilt” (Wing, 2010). (Wing, 2010Wing, L. (2010, agosto 4). Clara Claiborne Park obituary. The Guardian. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2010/aug/04/clara-claiborne-park-obituary
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, tradução nossa).

Mesmo sendo um importante marco histórico, uma vez que representa uma das primeiras tentativas de mães de autistas se expressarem - criticando as teorias da “mãe-geladeira” - sem a mediação de profissionais, na época de sua publicação, pouco destaque foi dado à obra, principalmente quando comparado à recepção do trabalho de Bruno Bettelheim (Pollack, 2003Pollack, R. (2003). Bruno Bettelheim ou la fabrication d´un mythe: une biographie. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, Le Seuil.).

No que diz respeito ao Brasil, vale salientarmos que, apesar de haver algumas publicações - principalmente na mídia impressa - sobre a temática desde a década de 1950 (Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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), o autismo como objeto de mobilização política surgiu na década de 1980, datando desse período o surgimento das primeiras associações de mães e de pais de autistas em defesa da causa (Cavalcante, 2003Cavalcante, F. G. (2003). Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.; Leandro & Lopes, 2018Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
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; Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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). Alguns exemplos são: a Associação de Amigos do Autista (AMA), criada em 8 de agosto de 1983, em São Paulo; a Associação de Pais de Autistas do Rio de Janeiro (APARJ), oficialmente fundada em 17 de julho de 1985; e a Associação Terapêutica e Educacional para Crianças Autistas (ASTECA), aberta por familiares de autistas no Distrito Federal, em 1986 (Cavalcante, 2003Cavalcante, F. G. (2003). Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.; Leandro & Lopes, 2018Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
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; Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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). Inspiradas em associações semelhantes de outros países, tais aparelhos tinham como propostas auxiliar os familiares, divulgar, compartilhar e produzir informações sobre o tema, além de cobrar ações efetivas do Estado.

É nesse momento que mães e pais de autistas - seja individualmente ou por meio das associações - usaram a mídia, principalmente a impressa, para publicizar suas experiências e percepções acerca do autismo e cobrar do Estado políticas públicas voltadas a esse público, sendo os principais elementos de suas reivindicações: a capacitação dos profissionais, principalmente os médicos, sobre o assunto - uma vez que eram raríssimos os que conheciam o tema; e a crítica à ausência de instituições capacitadas no atendimento das demandas desse público e ao preconceito vivenciado pelos autistas e por seus familiares (Leandro & Lopes, 2018Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
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; Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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).

3 As fontes da pesquisa e o caminho metodológico

Jack (2014)Jack, J. (2014). Autism and gender: from refrigerator mothers to computer geeks. Champaign: University of Illinois Press. observou que, desde os primeiros escritos produzidos por Leo Kanner até as atuais produções e falas sobre neurodiversidade, os discursos produzidos sobre o autismo privilegiam as vozes masculinas - de médicos ou de autistas homens, por exemplo -, o que torna a narrativa histórica sobre tal assunto generificada, essencialmente masculina, apagando e excluindo dela as experiências femininas.

Tendo em vista tais questões, utilizaremos as autobiografias como fonte de estudo por possibilitarem a observação do fenômeno pela óptica materna. Cabe lembrarmos que tais escritos têm a clara finalidade de fazer com que seu potencial leitor sinta pelo narrador/autor empatia pelas personagens e histórias narradas (Pereira, 2000Pereira, L. M. L. (2000). Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias. História Oral, 3, 117-127. ). Os discursos presentes nessas obras apresentam tanto questões de gênero como de memória. Se as autobiografias são escritos em que o próprio indivíduo decide o que narrar e como narrar sua trajetória de vida, o gênero se torna um importante marcador para a análise desses documentos, uma vez que influencia não apenas na experiência individual, mas também no olhar do leitor acerca dos fatos narrados. Assim, cabe destacarmos que as autobiografias não trazem exatamente “o que aconteceu”, mas sim a interpretação de quem vivenciou os acontecimentos.

No que diz respeito aos procedimentos metodológicos, a autora também destaca que um dos elementos que chama atenção dos pesquisadores para a análise dos textos autobiográficos está relacionado ao fato de estes possibilitarem uma compreensão da visão/expressão do sujeito. Entretanto, a análise de tais documentos precisa considerar tanto o contexto da produção do texto quanto o interlocutor imaginado para a leitura do escrito autobiográfico, uma vez que, ainda que centrados no sujeito, tais escritos possuem uma dimensão política e social que deve ser observada na análise de tais fontes.

Considerando as questões acima citadas, analisamos duas autobiografias elaboradas por mães de autistas em períodos distintos. A primeira é Autismo: depoimentos e informações, livro escrito por Cleusa Barbosa Szabo e publicado pela editora Edicon em 1988. Sua autora, na época em que escreveu, era mãe de Alexandre, um jovem autista cujo diagnóstico foi elaborado na década de 1970. O segundo trabalho aqui estudado é Um autista muito especial, escrito por Deusina Lopes da Cruz e publicado em 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação. pela editora Mediação. Deusina é mãe de Carlos Felipe, autista adulto, diagnosticado na década de 1980.

As autobiografias apresentadas foram selecionadas a partir dos seguintes critérios: são produções que abordam o tema do autismo em um período pouco estudado - das décadas de 1970 a 19909 9 Entre os trabalhos que abordam a história do autismo no Brasil, citamos: o artigo Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980, de autoria de Leandro e Lopes (2018); o livro Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família, elaborado por Cavalcante (2003); e a tese de Lopes (2019), intitulada Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). - e apresentam o ponto de vista das mulheres e os caminhos por elas trilhados na busca da garantia dos direitos dos seus filhos. As autoras viveram em estados que possuem uma importância histórica no ativismo familiar - Cleusa em São Paulo e Deusina em Brasília -, além de terem contato com associações de mães e pais de autistas surgidas na década de 1980 e que representam um importante papel na luta pelos direitos dos autistas no Brasil, a saber: a AMA e a ASTECA, respectivamente.

O primeiro livro analisado, Autismo: depoimentos e informações, ainda que aborde questões referentes à década de 1970, é um produto da década seguinte, 1980, marcada por mudanças políticas e sociais caracterizadas, principalmente, pela ascensão dos diversos movimentos sociais e pelo desejo de construção de um país democrático. Assim, a experiência de Cleusa Barbosa Szabo (1988)Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon. é publicada em um contexto em que diversos sujeitos, incluindo mães e pais de autistas, inseriam-se na esfera pública, iniciando o processo de politização da maternidade/paternidade no autismo.

Já a obra Um autista muito especial, ainda que tenha um olhar retrospectivo para as décadas de 1980 até o início dos anos 2000, foi elaborada em um contexto de mudanças de status da pessoa com deficiência no Brasil, tendo, no campo legal, alguns documentos importantes que asseguravam formalmente valores como a democracia, a liberdade e a dignidade no tratamento de tais grupos. Como exemplo, pensando no campo da Educação Especial, há os seguintes documentos: a Constituição da República Federativa do Brasil (1988); o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990); o Plano Decenal de Educação para todos (Ministério da Educação e do Desporto [MEC], 1993); e a Política Nacional de Educação Especial (MEC, 1994Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial (1994). Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC /SEESP.). No que diz respeito ao ativismo em autismo, as associações de mães e pais acumulavam experiências que auxiliavam, por sua vez, em uma reflexão sobre os avanços conquistados via ação coletiva e sobre as questões que mereciam (e ainda merecem) um olhar atento.

Tendo em vista a bibliografia adotada (Darré, 2013Darré, S. (2013). Maternidad y tecnologías de género. Buenos Aires: Katz.; Douglas, 2014Douglas, P. (2014). Autism’s “refrigerator mothers”: identity, power, and resistance. Comparative Program on Health and Society (CPHS), Munk School of Global Affairs, University of Toronto, Canada. Recuperado em 11 de abril de 20202 de https://munkschool.utoronto.ca/cphs/wp-content/uploads/2014/12/1605DouglasCPHS-final.pdf
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; Grinker, 2010Grinker, R. R. (2010). Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larrousse do Brasil.; Jack, 2014Jack, J. (2014). Autism and gender: from refrigerator mothers to computer geeks. Champaign: University of Illinois Press.; Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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) e o contexto da pesquisa, levantou-se como categorias de análise o autismo, a maternidade e o ativismo, para, a partir delas, problematizarmos as fontes e discutirmos questões referentes à percepção do diagnóstico do autismo, as demandas expressas por essas mães e o ativismo dessas mulheres na busca de seus direitos, sendo o próprio ato de escrever uma autobiografia um ato de dimensão política.

4 Das razões para escrever

Quando Cleusa publicou seu livro10 10 A primeira edição data de abril de 1987. A segunda, utilizada neste trabalho, foi publicada em 1988. , o autismo era considerado “um estado comparativamente raro” (Serrajordia & Silva, 1988Serrajordia, A. M., & Silva, M. F. (1988). Subsídios sobre o autismo. In C. B. Szabo (Ed.), Autismo: depoimentos e informações (2ª ed., pp.77-85). São Paulo: Edicon., p. 82). De acordo com os dados internacionais produzidos na época, 5 a cada 10.000 nascidos eram autistas (Gauderer, 1987Gauderer, E. C. (1987). Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais. São Paulo: Almed.). Atualmente, nos Estados Unidos, esse número é de 11,3 dentre 1.000 crianças (Joseph, Soorya, & Thurm, 2016Joseph, L., Soorya, L., & Thurm, A. (2016). Transtorno do espectro autista. São Paulo: Hogrefe.).

Raros eram os livros publicados no Brasil que discutiam a temática. Cleusa Barbosa Szabo (1988)Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon. cita duas obras com as quais teve contato: Autismo e psicose infantil, de autoria de Francis Tustin, traduzido para o português e publicado no Brasil em 1975Tustin, F. (1975). Autismo e psicose infantil. Rio de Janeiro: Imago.; e Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais, escrito por E. Christian Gauderer (1987)Gauderer, E. C. (1987). Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais. São Paulo: Almed. e publicado pela primeira vez em 198511 11 A edição utilizada neste artigo data de 1987. . Dessa forma, o autismo não era apenas uma “síndrome rara”, uma vez que também era caracterizado como um fenômeno desconhecido inclusive por parte dos especialistas em saúde infantil.

Tais questões podem ter influenciado na recepção de Autismo: depoimentos e informações, em que Cleusa Barbosa Szabo (1988)Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon. narra sua história como mãe de um autista diagnosticado em 1976. A primeira edição do livro, que contou com uma tiragem de 3.000 exemplares, foi um sucesso, o que possibilitou à autora discorrer sobre o tema em diversos lugares, tais como universidades, escolas, programas de televisão e de rádio e jornais.

No momento da terceira edição do livro, o periódico Jornal do Brasil publicou, no dia 1 de maio de 1989, uma pequena matéria intitulada “Mãe de autista vai publicar livro”. Na ocasião, o periódico destacou que,

[...] embora só tenha completado o primeiro grau, Cleusa poderá, através do seu relato, ajudar até mesmo pediatras que pouco sabem sobre o autismo. Ela não é especialista, mas procurou descrever com riqueza de detalhes os sintomas que, desde os primeiros dias de vida, Alexandre manifestou. (Nestlehner, 1989Nestlehner, W. (1989, maio 1). Mãe de autista vai publicar livro. Jornal do Brasil, 23(XCIX), p. 14. Recuperado em 11 de abril de 2020 de http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/189050?pesq=mãe%20de%20autista%20publicar%20livro
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, p. 14).

A autobiografia de Cleusa pode ser apresentada como uma das primeiras produções do gênero no campo do autismo no Brasil. Ao analisar-se a obra, é visível, por parte da autora, o reconhecimento do lugar social que ocupa e, ao mesmo tempo, a consciência da importância do seu ato de narrar-se. Em suas palavras: “não sou técnica para trazer um assunto como um profissional, mas como mãe quero levar a todos um testemunho de lutas e vitórias” (Szabo, 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon., p. 7).

Escrever, na perspectiva de Cleusa, significava, em primeiro lugar, “levar esperança” (Nestlehner, 1989; Szabo, 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon.) para familiares de autistas ou de crianças que apresentavam vivências semelhantes. Também era uma forma de compartilhar conhecimento, o que é perceptível a partir das listas que faz e disponibiliza, ao final da obra, referentes aos livros e aos artigos que leu sobre o assunto, assim como em relação às instituições - principalmente escolas - que atenderam ao seu filho.

Elaborar e publicar uma autobiografia sobre o autismo na década de 1980 significava muito mais do que um “desabafo”, era a possibilidade de inserir na esfera pública - ainda mais em um contexto de construção de uma sociedade democrática - a temática do autismo e suas demandas em saúde e educação. Assim, a escrita como ação de advocacy foi um importante instrumento, pois possibilitou a Cleusa Barbosa Szabo espaços para “advogar” não apenas em relação ao seu filho, mas para falar em nome de outras mães que passavam por situações semelhantes e não encontravam profissionais e instituições especializados em autismo e que, ao mesmo tempo, fossem acessíveis à população.

Deusina Lopes da Cruz, por sua vez, publicou seu relato em 2008, 20 anos após o livro de Cleusa. Essa distância temporal em relação à primeira autobiografia afetou tanto no conteúdo - observou-se uma ênfase maior nas associações e nas conquistas históricas por elas alcançadas - como nos próprios objetivos com relação ao que significava escrever sobre o autismo a partir do olhar de mãe.

Há em comum nas duas autobiografias o desejo de compreender/atribuir um sentido à trajetória pessoal, o reconhecimento de que se escreve a partir do lugar de mãe e o uso da escrita como um instrumento para agradecer àqueles que foram importantes em suas vidas e nas de seus filhos - familiares, médicos, professores, amigos, entre outros. Entretanto, embora nos dois casos a escrita possa ser compreendida como uma prática de advocacy, no livro de Deusina, a ação política é exercida com maior clareza e consciência. Isso é perceptível não apenas na introdução, quando se fala em “reclamarmos das situações de injustiça”, mas em todo o livro, quando se deixa explícita a responsabilidade do Estado em relação aos autistas e a como a ausência de determinadas políticas públicas afetaram não apenas a vida e o desenvolvimento de Felipe, seu filho, mas também a sua própria vida.

É importante destacarmos que, em Um autista muito especial, a reivindicação por assistência e cuidado amplia-se: não mais apenas para a pessoa autista, mas para todo o núcleo familiar, principalmente para sua cuidadora principal - geralmente a mãe. O relato de Deusina chama atenção para o debate atual, nas ciências políticas e sociais, sobre a relação entre gênero, deficiência e desigualdades, e como tal intersecção afeta o exercício pleno da cidadania. Biroli (2018)Biroli, F. (2018). Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo., por exemplo, destaca a pouca atenção dada pelos pesquisadores das áreas citadas à categoria cuidado, principalmente nos debates acerca da democracia e da cidadania. Na perspectiva da autora, essa marginalidade acarreta na invisibilidade das desigualdades de gênero - e aqui se insere também a categoria deficiência - perpetradas nas relações familiares e que são observadas principalmente na desigualdade em relação à responsabilização relativamente àqueles que necessitam de cuidados - crianças, idosos, pessoas doentes ou com deficiências que impossibilitam o exercício pleno da autonomia - e as consequências políticas dessa alocação desigual: falta de representatividade na esfera pública e ausência de visibilidade da precariedade de alguns serviços destinados à prestação de cuidados - principalmente nos campos da saúde e da educação.

Nas duas autobiografias, é possível observarmos os apontamentos realizados por Biroli (2018)Biroli, F. (2018). Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo.: quando o Estado se abstém de prestar serviços básicos destinados ao cuidado da população, violando inclusive direitos formalmente adquiridos, são as mulheres que acabam assumindo, geralmente sozinhas, tarefas que deveriam ser compartilhadas, seja nas micro relações com outros membros do núcleo familiar, seja no âmbito macro, com o Estado, por meio das políticas públicas.

A ausência de serviços gratuitos e de qualidade também foi uma questão presente nos dois livros. Cleusa e Deusina mencionam, por exemplo, as dificuldades financeiras para realizar consultas médicas e como em muitos casos a ajuda de terceiros foi fundamental para que tivessem acesso aos serviços necessários:

Quando liguei para a clínica e fiquei sabendo do preço da consulta decidi esperar até que meu marido recebesse o abono. Alguns dias depois uma grata surpresa. Aquela senhora me telefonou e me pediu para que viesse até a relojoaria com o Alexandre. [...] em seguida me deu um envelope contendo um cheque. “Este é o meu complemento do meu presente de Natal. Marque a consulta ´[...]”. (Szabo, 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon., p. 38).

Nesse relato, Cleusa narrou que só teve acesso à consulta devido à ajuda de uma dona de relojoaria que, ao observar Alexandre e ouvir sua história, resolveu ajudá-lo. Entretanto, a ausência de serviços especializados e gratuitos no período citado teria inviabilizado, ou postergado, o acesso ao serviço se não fosse a ação solidária de uma pessoa desconhecida. Deusina também relatou uma história que nos remete à ausência de serviços gratuitos e aos custos elevados no atendimento multiprofissional para os autistas. Quando Felipe tinha cerca de 14 anos (isso em 1995), começou a apresentar sinais de agravamento do seu quadro. Tendo em vista as suas dificuldades e necessidades, a mãe optou por um atendimento domiciliar que alterou a rotina e as despesas familiares:

Durante esse período, considerando a necessidade de apoio de um profissional cuidador durante o dia, à noite e nos finais de semana, e o desgaste próprio da função, foi necessário mudarmos de profissional várias vezes. A parte educacional desse atendimento educacional era pública, mas outros profissionais - o psicólogo, o fonoaudiólogo e o cuidador - eram particulares. A estas despesas outras se somavam: o aluguel da nova casa e o pagamento das auxiliares. Esta alternativa de atendimento era, portanto, muito onerosa financeiramente para mim. Mesmo assim, a mantivemos por mais ou menos cinco anos na esperança de que o Felipe melhorasse e pudéssemos voltar a viver como antes. (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 78).

Esses relatos remetem, mais uma vez, às reflexões realizadas por Biroli (2018)Biroli, F. (2018). Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo., ao observar que, quando o cuidado é terceirizado/mercantilizado, questões envolvendo classe e renda são indispensáveis para a análise, uma vez que definem o acesso aos serviços necessários, como também representam importantes marcadores sociais que nos ajudam na compreensão dos arranjos estabelecidos pelos sujeitos/indivíduos para que as mulheres exerçam o papel de cuidadoras.

No caso em questão, Cleusa não exercia - no momento que escreveu e publicou o seu livro - um trabalho formal e remunerado. Já Deusina atuou na Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) desde 1978 - transformada posteriormente na Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) - e, na década de 1990, foi convidada para coordenar a Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) no Ministério do Bem-Estar Social; assim, ela realizava uma dupla jornada de trabalho: a formal e a relativa ao cuidado dos dois filhos, um deles autista.

Os 20 anos que distanciam a publicação das duas autobiografias trazem distinções acerca do que significa para as autoras ser mãe de autista e, a partir dessa visão de si, elaborar um livro. Cleusa, ao escrever nos anos de 1980, um período em que nasciam as primeiras associações e o ativismo em prol dos autistas, o fez adjetivando-se como uma “mãe vitoriosa” por ter conseguido, apesar das dificuldades, conquistar avanços significativos no desenvolvimento do seu filho. Deusina, ao relatar-se em 2008, em um contexto em que as associações obtinham um status relacionado à luta política, escreveu politizando a identidade: era uma mãe que fez “parte de movimentos sociais que lutaram pelo direito à integração social dos autistas e pela oferta de serviços especializados destinados a ele” (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 11). Assim, embora ambas fossem ativistas na década de 1980, a apropriação dessa imagem é observável apenas em Deusina.

5 Associações

Nos dois livros, há um espaço dedicado às associações de familiares de autistas. Em Autismo: depoimentos e informações, observa-se a referência à AMA de São Paulo. Já em Um autista muito especial, a associação citada é a ASTECA, do Distrito Federal. Ainda que as associações estejam presentes nas duas obras, os significados delas nas trajetórias individuais são distintos.

Como citado anteriormente, Alexandre foi diagnosticado com autismo na década de 1970, momento anterior às primeiras associações. Assim, no processo de busca por conhecimento acerca do autismo e de melhoria no desenvolvimento do filho, Cleusa contou com o apoio de amigos, familiares, da comunidade evangélica na qual participava e de alguns profissionais (médicos e professores). Embora tivesse uma rede de apoio e de solidariedade, desconhecia outros casos semelhantes ao do seu filho. Segundo relatou: “Há 13 anos, ou seja, no ano de 1973 o autismo era pouco conhecido no Brasil. Por mais que procurasse me informar sobre outras crianças só tinha conhecimento do caso do meu filho” (Szabo, 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon., p. 56).

Alexandre nasceu em 27 de março de 1970. A primeira associação de mães e pais de autistas do Brasil, a AMA de São Paulo, foi fundada em 1 de agosto de 1983, o que demonstra uma trajetória solitária, sem o compartilhamento de experiências com outras mães que vivenciavam situações semelhantes. Ainda assim, Cleusa faz menção de reconhecimento à AMA e abre espaço para que a Associação - por meio de um artigo intitulado Subsídios sobre o autismo, assinado por Ana Maria Serrajordia e Marisa Furia Silva (1988)Serrajordia, A. M., & Silva, M. F. (1988). Subsídios sobre o autismo. In C. B. Szabo (Ed.), Autismo: depoimentos e informações (2ª ed., pp.77-85). São Paulo: Edicon. - pudesse falar do autismo e apresentar o trabalho realizado pela Associação, que, na época, contava com 5 anos de existência. Além disso, deixou ao final do livro o endereço da Associação, caso algum familiar de autista desejasse mais informações. A caminhada solitária pode ter auxiliado Cleusa a visualizar a importância do associativismo, não apenas para afastar o sentimento de ser a única mãe de uma criança diagnosticada com autismo, mas também na elaboração de uma rede de apoio e cuidado para o autista.

No livro de Deusina, as associações são apresentadas com maior ênfase e defendidas como um importante mecanismo de ajuda mútua, assim como de elaboração e de divulgação de conhecimento acerca do tema, sendo inclusive um importante elemento da composição de sua identidade como mãe e ativista na causa do autismo. O destaque especial vai para a ASTECA - Associação criada em 1986, em Brasília, por iniciativa de familiares e de profissionais ligados ao autismo -, da qual a autora fez parte.

Sobre o processo de inserção no ativismo via associação de familiares e a importância desses dispositivos, Deusina relatou o importante papel exercido pelo neuropediatra que atendeu a seu filho e que a aconselhou a entrar em contato com outros familiares de autistas que, na época, tinham interesse em criar uma associação. Foi aí que conheceu outras mães e pais com histórias semelhantes à sua e que juntos construíram a ASTECA. Ao falar da experiência, ela menciona:

Criar uma associação de pais foi um bom início. Ficou mais fácil identificar outros pais cujos filhos tinham comportamentos semelhantes àqueles apresentados pelo meu filho, bem como outros profissionais no Brasil e no exterior que tinham experiência na área. [...]. Nossa associação participou de várias iniciativas governamentais de discussão e adequação de políticas públicas de saúde, educação e assistência social e áreas correlatas, destinadas ao atendimento de autistas e de suas famílias a fim de garantir seus direitos sociais. (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 41).

Observa-se não só a influência/inspiração vinda das associações elaboradas em outros países - cita-se na obra a experiência da Espanha -, mas também a importância atribuída ao ativismo coletivo na década de 1980. Essa consciência da importância da luta coletiva levou, inclusive, conforme se observa nas duas fontes analisadas, à criação, em 1986, da Associação Brasileira de Autismo (ABRA), que representava uma tentativa de unificação das associações regionais que surgiam em todo o país naquele momento.

6 Do diagnóstico à ausência de serviços para adultos

O tema do diagnóstico aparece com grande ênfase nos relatos maternos, ressaltando-se as dificuldades encontradas pelas mães para obterem, nas décadas de 1970 e 1980, o diagnóstico de autismo em um contexto em que raros profissionais conheciam o assunto. Os poucos que conheciam, muitas vezes, compartilhavam as perspectivas que associavam autismo à má maternidade (Lopes, 2019Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
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), fazendo desse tema um assunto comum nas duas obras.

Cleusa iniciou sua autobiografia com uma citação retirada do livro Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais, de autoria de E. Christian Gauderer (1987)Gauderer, E. C. (1987). Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais. São Paulo: Almed. e elaborado pela National Society for Autistic Children, em 1978. Segue a citação completa:

Autismo é uma inadequacidade no desenvolvimento que se manifesta de maneira grave, durante toda a vida. É incapacitante, e aparece tipicamente nos três primeiros anos de vida. Acomete cerca de cinco entre cada dez mil nascidos e é quatro vezes mais comum entre meninos do que meninas.

É uma enfermidade encontrada em todo mundo e em famílias de toda configuração racial, étnica e social. Não se conseguiu provar nenhuma causa psicológica no meio ambiente dessas crianças que possa causar autismo (National Society for Autistic Children, 1978 como citado em Gauderer, 1987Gauderer, E. C. (1987). Autismo - década de 80: uma atualização para os que atuam na área - do especialista aos pais. São Paulo: Almed., p. 1).

Deusina, por sua vez, apresentou detalhadamente o tema, intercalando discussões históricas - apontando como o autismo foi apresentado por nomes como Kanner e Bettelheim - com sua experiência como mãe. Em um determinado momento, ela faz a seguinte descrição:

A única instituição pública de Brasília que atendia a crianças com atraso do desenvolvimento era o Centro de Orientação Médico Psicopedagógico (COMPP) da Fundação Hospitalar do Distrito Federal. A fila de espera era tão grande que fiz sua inscrição com três anos e ele só foi chamado para avaliação quando já tinha cinco. O resultado da tão esperada avaliação dizia que: o “Felipe não reconhecia e não interagia com a mãe, sofria de privação materna (privado da convivência com a mãe)”. Era a primeira vez que eu ouvia falar dessas coisas. Além de não saber o que ele tinha e como lidar com a situação, eu ainda seria a culpada pela doença do meu filho tão querido. Para o meu desespero e de muitas mães de autistas, teorias como esta foram amplamente defendidas pelos psicanalistas e encontradas em quase toda literatura sobre autismo durante muito tempo. (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 31).

Embora dediquem espaços diferentes para a questão, nas duas obras, há uma crítica aos profissionais que aceitaram as teorias que vinculavam autismo e uma suposta “má maternidade”.

Outro tema presente nas fontes aqui analisadas diz respeito à ausência de serviços e profissionais - principalmente das áreas da saúde e da educação - especializados em autismo e aos impactos que a ausência desses serviços causou no seu cotidiano. Cleusa mencionou em seu livro os vários momentos que Alexandre ficou sem estudar por não encontrar escolas que aceitassem sua matrícula e o quanto a permanência em casa gerava retrocessos, principalmente na questão da sociabilidade. Também relatou casos de agressões, incluindo físicas, que o filho sofreu em uma das instituições que frequentou:

Outro dia quando fui pagar a mensalidade na escola Alexandre começou a chorar assim que me viu. A inspetora interveio dizendo que quando o psicólogo falasse com ele Alexandre se acalmaria. Do lado de fora pude ainda ouvir seus gritos intensos e pensei que procedia assim devido a minha presença na escola. Quando chegou à tarde perguntei-lhe a razão do choro e ele disse que o “tio”, referindo-se ao psicólogo, havia batido com a régua em suas mãos porque ele havia chorado. (Szabo, 1988Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon., p. 36).

Esse trecho expressa a vulnerabilidade a qual crianças autistas estavam expostas ao longo das décadas de 1970 e 1980. Diante da negativa de muitos estabelecimentos em aceitar crianças com deficiência, muitas famílias viam-se à mercê de instituições que não apenas eram incapacitadas para prestar um serviço adequado às necessidades de seus filhos, mas que muitas vezes os submetiam a situações que podem ser definidas como sendo de maus-tratos.

Ao participar da ASTECA, Deusina teve a oportunidade de participar do projeto e da consolidação do primeiro atendimento educacional integrado destinado a autistas em escolas públicas do Brasil, realizado a partir de uma parceria entre a Associação - que se responsabilizou por orientar a comunidade escolar acerca do autismo - e a Fundação Educacional do Distrito Federal - responsável por encontrar uma escola adequada para receber o projeto-piloto. Felipe foi um dos primeiros alunos a participar desse processo de inclusão escolar que se iniciou oficialmente em 1987 na Escola classe 405 Sul no plano-piloto (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação.). Sobre a experiência, ela fez a seguinte descrição:

Registramos muitas vitórias, por exemplo, a do Felipe estudar de forma integrada com alunos não-autistas, mas também ficou claro o desafio de que uma proposta como esta só tem sucesso se a escola for preparada antecipadamente, se receber supervisão continuamente, que seja garantido ao aluno o apoio de outros profissionais, além da devida orientação familiar. (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 57).

Apesar da experiência positiva, ao iniciar o que se chamaria de Ensino Fundamental II, Felipe teve dificuldades de adaptação decorrentes das mudanças ocorridas nessa nova etapa do ensino e da falta de flexibilidade de alguns profissionais, resultando no que foi definido por sua mãe como um sentimento de fracasso.

Se Alexandre e Felipe tiveram, ao longo da infância, negados acessos básicos aos serviços de educação e saúde, esse quadro se acentuou na fase adulta. Cleusa escreveu em um contexto em que as discussões sobre o autismo se iniciavam no Brasil, tendo como foco principalmente as crianças e a dificuldade em diagnosticá-las devido à ausência de profissionais capacitados para tal. Em seu relato, observa-se que, quanto mais o tempo passava, mais dificuldades encontrava para matricular seu filho em instituições de ensino.

Deusina, ao escrever em 2008, também apontou a invisibilidade do autista adulto, principalmente aquele que não possui habilidade e condição para uma vida independente. A partir dos 14 anos de idade, Felipe teve um agravamento do seu quadro, mostrando sinais de outro transtorno mental para além do autismo. A situação intensificou-se em 2002, quando teve o que sua mãe denominou de “uma crise de intenso descontrole emocional” (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 79), necessitando de internação psiquiátrica.

Além das dificuldades relacionadas à vivência da internação, a família ainda teve de enfrentar a má qualidade dos serviços, uma vez que, ao visitar o rapaz um dia após sua internação, descobriram que ele não estava mais na instituição em que deu entrada e que esta não sabia dizer com precisão onde Felipe estava. De acordo com Deusina, somente três horas depois de serem informados que o jovem não estava no hospital, descobriram que “ele havia sido remanejado, indevidamente, para uma clínica na cidade-satélite de Planaltina/DF” (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 80). A clínica em questão oferecia atendimento via Sistema Único de Saúde (SUS) e também de forma particular, embora, na perspectiva da mãe, o atendimento e a estrutura ofertados aos pacientes atendidos pelo SUS não fossem adequados, o que inclusive fez com que o Ministério Público interditasse a ala pública do hospital.

Tal experiência, associada à atuação profissional, fez com que Deusina tivesse uma visão clara sobre como as políticas públicas voltadas para tal grupo deveriam ser delineadas:

[O autismo] apresenta demandas variadas por serviços que vão desde uma atenção básica de avaliação médica, uso de medicamentos, educação, orientação familiar até demandas mais específicas em vários níveis de complexidade como as internações psiquiátricas.

Quando necessitei desta alternativa de tratamento para meu filho, não encontrei serviços de qualidade, somente muita desinformação e preconceito, o que agravou ainda mais nosso problema [...]. (Cruz, 2008Cruz, D. L. (2008). Um autista muito especial. Porto Alegre: Mediação., p. 85).

Importante destacarmos que nem todos os autistas apresentam quadros psicóticos, assim como nem todos necessitam de intervenções que demandem uma internação. Entretanto, é importante refletirmos sobre a disponibilidade de serviços que abordem todas as necessidades expressas pelos autistas e por seus familiares.

Whitman (2015)Whitman, T. L. (2015). O desenvolvimento do autismo: social, cognitivo, linguístico, sensório-motor e perspectivas biológicas. São Paulo: M. Books do Brasil., ao descrever as responsabilidades dos legisladores em relação à temática do autismo, estabelece quatro pontos chave: 1) o foco na intervenção precoce; 2) o estabelecimento de centros locais especializados no atendimento aos autistas e a seus familiares; 3) a elaboração de pesquisas visando o delineamento de políticas públicas voltadas a esse público; e 4) o suporte a pesquisas básicas e aplicadas sobre a temática.

Nas duas fontes analisadas, foi observado que tais questões eram presentes, ainda que, na primeira - escrita por Cleusa -, não seja tão clara a cobrança para que o Estado assuma sua parte em relação aos cuidados. Tendo em vista o momento da publicação do livro, 1988, pode-se associar essa timidez ao próprio contexto em que se davam os primeiros passos para a construção de uma cidadania plena. Já em 2008, não apenas Deusina já tinha um acúmulo de experiência - como mãe, estudiosa e militante -, mas seu próprio ativismo no autismo lhe proporcionava uma experiência capaz de visualizar e definir melhor qual a responsabilidade de cada sujeito em relação ao autismo - família, professores, profissionais da saúde, Estado.

7 Considerações finais

Propomos, neste artigo, analisar o modo como mães de autistas perceberam-se e autorepresentaram-se no interior de uma determinada história do autismo. As narrativas sobre suas experiências ajudam-nos a entender as experiências e os sentimentos vivenciados por esses sujeitos, além dos caminhos seguidos - dentro de suas possibilidades - visando melhores condições de vida para os seus filhos.

As autobiografias, longe de serem simples desabafos maternos, representam a tentativa materna de assumir o protagonismo de suas trajetórias individuais e da construção do autismo como um fenômeno que merece a atenção dos profissionais da saúde e da educação, dos pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, da mídia e do Estado.

Apresentamos a escrita autobiográfica como prática de advocacy e de atuação política das mães, o que, por sua vez, auxiliou a desvelar o protagonismo feminino na luta por direitos. Abordamos o início das primeiras discussões sobre o fenômeno no Brasil - 1970, quando raros profissionais conheciam o autismo -, passando pelas décadas de 1980 - momento de ascensão das primeiras associações pró-autistas e de possibilidade de advocacy sobre o tema, o que inclui a escrita da autobiografia de Cleusa Barbosa Szabo (1988)Szabo, C. B. (1988). Autismo: depoimentos e informações. São Paulo: Edicon. -, 1990 e 2000, em que uma série de dispositivos legais - tais quais a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), por exemplo - garantiam o status de cidadão e de sujeito de direito para a pessoa autista.

Dessa forma, as mães escritoras apresentaram suas trajetórias de vida em momentos distintos: Cleusa em um cenário de democratização da política brasileira; Deusina em um contexto de estabilidade política e de avanços em discussões sobre a inclusão das pessoas com deficiência. Ainda que temporalmente distintas, podemos argumentar que tais mães visualizaram, na escrita autobiográfica, um mecanismo para exporem publicamente suas percepções acerca do fenômeno e criarem uma articulação entre autismo, advocacy e ativismo materno.

A reivindicação realizada por essas mulheres parte do reconhecimento de um lugar de fala bem específico, o da mãe de autista, sendo essa identificação um instrumento político capaz de gerar - naqueles que não possuem experiências no campo do autismo - o reconhecimento de que suas vozes merecem ser ouvidas e suas demandas atendidas.

Nos últimos anos, o Brasil vivenciou avanços significativos em torno da questão, sendo a principal delas a sanção da Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, também conhecida como Lei Berenice Piana. A referida lei representou um importante marco na história da cidadania da pessoa autista, por considerá-la, para fins legais, pessoa com deficiência, passando a adquirir os mesmos direitos legalmente assegurados a tal grupo. Sua sanção representou uma conquista fruto de uma longa caminhada iniciada na década de 1980 por mães e pais de autistas.

Cabe também lembrarmos a inserção do autismo no Censo Demográfico 2020, a ser realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda que o acesso ao diagnóstico - principalmente o precoce - não seja uma realidade para inúmeras famílias, pela primeira vez no Brasil existirá o acesso a algum dado sobre os autistas autodeclarados, o que por sua vez será fundamental para o delineamento de políticas públicas. Esses dados serão coletados devido à pressão política e coletiva de mães, pais e autistas que se mobilizaram para que o tema não fosse uma das questões retiradas do Censo realizado em 2020.

Tendo em vista a longa trajetória política das mães de autistas no Brasil, e as lacunas ainda existentes acerca da história dessas mulheres, destacamos a importância de estudos que abordem o protagonismo dessas mulheres e explorem a multiplicidade das experiências, uma vez que, ainda que todas possam ser consideradas “mães de autistas”, várias questões - tais quais étnico-racial, classe social, deficiência, região em que mora etc. - podem interferir significativamente na experiência dessas mulheres em relação à maternidade.

  • 3
    Distúrbios autísticos do contato afetivo (Kanner, 1943, tradução nossa).
  • 4
    Sobre os trabalhos que abordam a relação entre autismo e ativismo no Brasil, a partir de uma perspectiva histórica, destacamos: Cavalcante (2003)Cavalcante, F. G. (2003). Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ., que aborda a história da criação da Associação de Amigos do Autista (AMA), primeira associação de mães e pais de autistas no Brasil; Leandro e Lopes (2018)Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
    http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
    , que apresentam as reivindicações de familiares de autistas, por meio do envio de cartas ao Jornal do Brasil, na década de 1980; e Lopes (2019)Lopes, B. A. (2019). Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/2922
    https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefi...
    , que analisa a história do ativismo materno no Brasil.
  • 5
    Em linhas gerais, pode-se dividir essas teorias da seguinte maneira: teorias psicanalíticas, teorias psicológicas, teorias neurológicas e teorias sociais, cognitivas e neuropsicológicas (Castela, 2013Castela, C. A. (2013). Representações sociais e atitudes face ao autismo. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Universidade do Algarve, Faro, Portugal. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1/3538
    https://sapientia.ualg.pt/handle/10400.1...
    ; Joseph, Soorya, & Thurm, 2016Joseph, L., Soorya, L., & Thurm, A. (2016). Transtorno do espectro autista. São Paulo: Hogrefe.).
  • 6
    Roy Richard Grinker (2010)Grinker, R. R. (2010). Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larrousse do Brasil. informa-nos que essa associação entre autismo, maternidade e culpa teve maior influência principalmente em países cuja influência da psicanálise é maior, como foi (e ainda é) o caso da França e da Argentina.
  • 7
    Advocacy são práticas elaboradas por e para grupos que não possuem espaço na arena política formal. São ações que abarcam uma dimensão comunicativa, técnico-competente e a ocupação de espaços políticos, midiáticos e sociais (Mafra, 2014Mafra, R. L. M. (2014). Comunicação, ocupação, representação: três olhares sobre a noção de advocacy em contextos de deliberação pública. Compolítica, 4(1), 181-204. DOI: https://doi.org/10.21878/compolitica.2014.4.1.61
    https://doi.org/10.21878/compolitica.201...
    ).
  • 8
    led the way for a strong tradition of parent campaigners and began to tackle myths and misconceptions. Her work encouraged other parents to reject such theories, and the associated blame and guilt” (Wing, 2010Wing, L. (2010, agosto 4). Clara Claiborne Park obituary. The Guardian. Recuperado em 11 de abril de 2020 de https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2010/aug/04/clara-claiborne-park-obituary
    https://www.theguardian.com/lifeandstyle...
    ).
  • 9
    Entre os trabalhos que abordam a história do autismo no Brasil, citamos: o artigo Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980, de autoria de Leandro e Lopes (2018)Leandro, J. A., & Lopes, B. A. (2018). Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do Brasil na década de 1980. Interface, 22(64), 153-163. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0140
    http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016....
    ; o livro Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família, elaborado por Cavalcante (2003)Cavalcante, F. G. (2003). Pessoas muito especiais: a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família. Rio de Janeiro: FIOCRUZ.; e a tese de Lopes (2019)Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial (1994). Política Nacional de Educação Especial. Brasília: MEC /SEESP., intitulada Não existe mãe-geladeira: uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019).
  • 10
    A primeira edição data de abril de 1987. A segunda, utilizada neste trabalho, foi publicada em 1988.
  • 11
    A edição utilizada neste artigo data de 1987.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2019
  • Revisado
    17 Mar 2020
  • Aceito
    21 Abr 2020
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