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Reforma psiquiátrica: um grande desafio

Psychiatric reform: a great challenge

Resumos

O presente artigo procura fazer uma reflexão a partir do olhar de um profissional que vive o movimento de transformação da compreensão e do atendimento ao indivíduo portador de transtorno mental. Inicialmente apresentamos os fundamentos da clínica psiquiátrica sob a visão clássica de Foucault e sua contestação a partir dos pressupostos éticos da nova ordem social. A psiquiatria que aprisiona em nome de uma terapêutica precisa dar lugar a uma Nova Clínica, na qual o "louco" é um "homem", com toda sua subjetividade. Descrevemos, ainda que brevemente, os processos da reforma psiquiátrica em vários países, com seus acertos, equívocos e estratégias. Concluímos expressando nosso pensamento de que uma mudança efetiva não acontece por meio de textos programáticos, mas quando sustentada, sobretudo, em pressupostos éticos que possam funcionar como determinantes últimos de todo o processo terapêutico.

reforma psiquiátrica; saúde mental; psiquiatria


This work is a reflection starting from the view of the professional who lives the movement of transformation regarding the understanding and attendance to the mentally disturbed individual. Initially, the foundations of the psychiatric clinic under the classic vision of Foucault and its contestation are presented, starting from the ethical presuppositions of the new social order. The psychiatry that traps individuals on behalf of a therapeutic, needs to give place to a new clinic where the "lunatic" is a "man" with all his subjectivity. Although shortly, the processes of the psychiatric reform in several countries, with its successes, misunderstandings and strategies, are described and evaluated. It is concluded expressing the thoughts that an effective change does not happen by means of programmatic texts, but when sustained, above all, in ethical presuppositions that can work as decisive of the entire therapeutic process.

psychiatric reformation; mental health; psychiatry


ARTIGOS

Reforma psiquiátrica: um grande desafio

Psychiatric reform: a great challenge

Ernei de Souza

Médico Psiquiatra

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Princesa Isabel, 395 zona 04, 87013.350 Maringá - Paraná Tel. (044) 225.1261 E-mail: erneisouza@uol.com.br

RESUMO

O presente artigo procura fazer uma reflexão a partir do olhar de um profissional que vive o movimento de transformação da compreensão e do atendimento ao indivíduo portador de transtorno mental. Inicialmente apresentamos os fundamentos da clínica psiquiátrica sob a visão clássica de Foucault e sua contestação a partir dos pressupostos éticos da nova ordem social. A psiquiatria que aprisiona em nome de uma terapêutica precisa dar lugar a uma Nova Clínica, na qual o "louco" é um "homem", com toda sua subjetividade. Descrevemos, ainda que brevemente, os processos da reforma psiquiátrica em vários países, com seus acertos, equívocos e estratégias. Concluímos expressando nosso pensamento de que uma mudança efetiva não acontece por meio de textos programáticos, mas quando sustentada, sobretudo, em pressupostos éticos que possam funcionar como determinantes últimos de todo o processo terapêutico.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica, saúde mental, psiquiatria.

ABSTRACT

This work is a reflection starting from the view of the professional who lives the movement of transformation regarding the understanding and attendance to the mentally disturbed individual. Initially, the foundations of the psychiatric clinic under the classic vision of Foucault and its contestation are presented, starting from the ethical presuppositions of the new social order. The psychiatry that traps individuals on behalf of a therapeutic, needs to give place to a new clinic where the "lunatic" is a "man" with all his subjectivity. Although shortly, the processes of the psychiatric reform in several countries, with its successes, misunderstandings and strategies, are described and evaluated. It is concluded expressing the thoughts that an effective change does not happen by means of programmatic texts, but when sustained, above all, in ethical presuppositions that can work as decisive of the entire therapeutic process.

Key words: psychiatric reformation, mental health, psychiatry.

O DIREITO DE CONVIVER

Na segunda-feira, 17 de maio de 1999, o Coral Cênico de Saúde Mental Cidadãos Cantantes se apresentou no Centro Cultural São Paulo, ao lado de atrações como o Madrigal En Canto, da Universidade Livre de Música, e o compositor Itamar Assumpção. O recital fez parte do evento que comemorou dez anos de luta contra os manicômios no Brasil, na semana anterior, na cidade de São Paulo. Os aplausos de 400 espectadores emocionaram fortemente os integrantes do coral, não só pelo sucesso, mas também pela delícia de se sentirem acolhidos - experiência pouco usual em suas vidas. Loucos costumam ser trancafiados à distância ou são, no mínimo, cuidadosamente evitados. Dentro de um mês, outro grupo de brasileiros olhados com receio vai viver seu grande momento - 67 atletas embarcam no dia 21 de junho de 1999 para os Estados Unidos para representar o Brasil nos Jogos Mundiais de Verão de 1999, nas cidades de Durham, Chapel Hill e Cary, na Carolina do Norte. Os jogos fazem parte das Olimpíadas Especiais, criadas há 30 anos para melhorar a qualidade de vida de deficientes mentais.

Iniciativas assim impulsionam uma causa que tem atraído cada vez mais adeptos, a inclusão social de indivíduos marginalizados por diferem da maioria. Elas difundem a idéia de que as diferenças não justificam supressão de direitos, e evidenciam que somos, afinal, mais semelhantes do que pensamos: "Há um louco dentro de cada um de nós e nas pessoas mais sadias eles burlam os controles e criam coisas maravilhosas", lembra o psiquiatra e psicanalista Nelson Carrozzo (Goes, 1999).

A clínica: seus fundamentos

A reforma psiquiátrica brasileira parte de uma crítica contundente ao princípio de exclusão e isolamento social do paciente psiquiátrico, ancorado no modelo clínico que funda suas ações terapêuticas no reconhecimento de manifestações sintomáticas como índice exclusivo de disfunções biológicas, acabando por fazer equivaler doença e doentes e, por conseguinte, desconsiderando ou destituindo qualquer sentido ou manifestação de subjetividade na fala do paciente. Para analisarmos a questão imposta pela reforma psiquiátrica brasileira que, em linhas gerais, pretendeu a reversão do modelo nosocomial e a instauração de uma nova clínica, faremos inicialmente algumas observações sobre a constituição da clínica psiquiátrica.

O que nos interessa ressaltar, por ora, é que na análise de Foucault o nascimento da Psiquiatria, à época de Pinel, fundada pelo olhar clínico sobre a loucura, é correlato à exclusão social do louco, que, reduzido à condição de objeto de estudos e intervenções, tem seu corpo confinado no espaço asilar e sua voz silenciada pelo saber psiquiátrico, que passa então a se revestir de autoridade para, em seu nome, falar. Em contrapartida, autores como Gladys Swain e Paul Bercherie reconhecem em Pinel o fundador da clínica psiquiátrica; conduzindo suas análises por vias distintas, ambos acentuam que a institucionalização da loucura revela uma outra face: a possibilidade da emergência de um saber, a partir do individual, que se confunde com formas de assistência. Tomando então as bases que definem a clínica psiquiátrica segundo esses dois autores, finalmente analisaremos uma proposta de esboço de um novo paradigma clínico, que norteia experiências institucionais em curso na atual realidade brasileira.

Resumidamente, na análise de Gladys Swain (1996), Pinel teve o mérito de reconhecer no alienado um resto de razão; sendo o "sujeito da loucura" a ela irredutível, torna-se possível conceber-se um trabalho terapêutico. Portanto, a origem do saber clínico psiquiátrico é indissociado de uma perspectiva terapêutica, e esse aspecto é o que deteremos de sua análise (Swain, apud Serpa, 1996).

De Bercherie (1980) destacaremos a importância que atribui a Pinel por instituir o método clínico para a investigação dos fenômenos relacionados à loucura, o que possibilitou a construção do saber psiquiátrico. Até a época de Pinel, a loucura era apreendida por doutrinas ou sistemas explicativos. Confundindo a observação dos fenômenos, não se extraía a essência última da realidade, mas neles era possível se basear para alcançar um saber sempre aproximativo, porém válido. Esse princípio sintetiza a influência do grupo dos ideólogos ao qual Pinel era ligado e que exercia influência marcante no pensamento do século XVIII, na França. Os fenômenos, matéria-prima da percepção, deveriam ser agrupados e classificados em função de suas analogias e diferenças. As categorias extraídas da experiência receberiam, enfim, o nome que lhes dava vida na ciência. Seguindo esse princípio, a partir da observação empírica, a clínica deveria converter-se progressivamente numa leitura, num texto escrito na "língua bem feita" (Bercherie, 1980: 33), tal qual postulava Condillac. Um saber que se edifica em torno da exploração sistemática de um campo e da ordenação dos fenômenos que o constituem, permanecendo a orientação empírica como pré-condição necessária à pesquisa. Essa postura assinala a desconfiança de Pinel em relação aos sistemas explicativos correntes à sua época, especialmente em relação às teorias que explicavam a loucura por uma lesão material do cérebro, ou a tendência de se criar generalizações a partir de alguns casos isolados. Não que Pinel discordasse da relação entre o que passa a ser definido como doença mental e a função que aí desempenha o sistema nervoso central. Mas, o que interessa no momento assinalar é a distância metodológica, introduzida por Pinel, entre a observação e a explicação, constituindo a clínica um "método consciente e sistemático" (Bercherie, 1980, p. 23).

A clínica psiquiátrica vai se desenvolver apoiando-se em outros métodos, vindo a anatomia patológica assumir uma primazia, especialmente na segunda metade do século XIX, enquanto à época de Pinel ela desempenhava apenas um papel secundário. No entanto, mesmo Bichat, que menos de dez anos após Pinel postularia o princípio básico do método anátomo-clínico, extraiu da organização da clínica as bases necessárias para a formulação de seu método. Em última instância, a tradição clínica inaugurada por Pinel no campo psiquiátrico conservou seus valores de referência para outros psiquiatras e pesquisadores, seja para dar-lhe continuidade, seja para tentar ultrapassá-la ou subvertê-la.

O que chamamos aqui de tradição clínica está relacionado ao que Bercherie afirma sobre ela, ou seja, que "a clínica, em seu conjunto, é efeito da interação dos métodos de pesquisa, das hipóteses e do saber acumulado, de um lado, com encontro imprevisível dos fatos e o surgimento de novos meios técnicos e conceituais, de outro" (Bercherie, 1980, p. 23). Além disso, a clínica não se confunde com a semiologia e sim a engloba, na medida em que não se limita a caracterizar com exatidão os sinais de um paciente, mas visa, em última instância, examinar o paciente com vistas ao diagnóstico. Não se reduz e não se confunde com a psicopatologia, mas mantém com ela relações estreitas e interdependentes, "na medida em que vai se conjugando um certo número de singularidades do paciente com o que é trazido pelo discurso universal da patologia. A clínica vai do singular para o universal enquanto o discurso da patologia recorre sempre ao universal" (Bercherie, 1980, p. 17).

Em síntese, a clínica se caracteriza por se apoiar na observação da sintomatologia do paciente com vistas ao estabelecimento do diagnóstico, que, por conseqüência, visa determinar um prognóstico. Afirma Lanterie-Laura, em sua apresentação do texto de Paul Bercherie, "Os fundamentos da clínica, que a clínica demonstra que o homem não se situa, a priori, no conhecimento do seu objeto, pondo em evidência dois aspectos: por um lado, que nenhum a priori é suficiente, embora a orientação clínica nunca seja ingênua e pressuponha sempre o saber e as habilidades clínicas" (Bercherie, 1980, p. 19). Por outro lado, tal posição pode sugerir uma certa crença de neutralidade científica e objetividade na descoberta do objeto de conhecimento.

O que se herdou dessa tradição clínica, que acabou finalmente por referenciar modelos institucionais, é a redução da relação médico-paciente a uma rotina de examinar o paciente para enquadrá-lo numa categoria ou classificação já estabelecida, desconsiderando aspectos psicossociais. Voltada para o diagnóstico, a intervenção se limita às queixas sintomáticas e à prescrição de medicamentos para eliminação de sintomas. A cura sintomática constitui o cerne do tratamento. É justamente essa tradição que algumas experiências, como a psicoterapia institucional, a psiquiatria democrática e as experiências institucionais recentes no Brasil buscam romper.

Psiquiatria e liberdade

Os pressupostos éticos que sustentam a vida social e cultural da segunda metade do século XX são claramente outros. Hoje, entendemos que os valores não nos são dados gratuitamente, mas necessariamente tomados, conquistados: no plano moral, não podemos a priori decidir sobre o que se deve fazer; o que vivemos é um constante processo de criação e invenção. Foi isso o que nos ensinou o existencialismo francês: o homem está condenado a ser livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo aquilo que fizer, escreveu Sartre (1973, p. 23); assim, importava a ele ressaltar a "ligação entre o caráter absoluto do compromisso livre pelo qual o homem se realiza, realizando um tipo de humanidade (...), e a relatividade do conjunto cultural que pode resultar de semelhante escolha."

Parece-nos ser a liberdade o valor moral por excelência que subjaz e faz concluir as formulações de diferentes escolas e movimentos psiquiátricos e/ou de saúde mental. Senão vejamos:

a) Para o organodinamismo da escola francesa de Henri Ey, a Psiquiatria, ao postular uma diferença entre o normal e o patológico, em um homem considerado no plano de sua humanidade, e não apenas no campo de sua vitalidade, não pode tomar a "norma" absolutamente como uma média, uma mediocridade ou um conformismo mecânico, devendo substituí-la pela idéia de normativo, ou normatividade. A normatividade de um homem é diferente da norma estatística, assim como as noções de desvio ou conformidade diferem das formas de existência capazes de assegurar a autonomia (a liberdade) de cada um: para Ey, "a avaliação da normatividade do indivíduo é, propriamente falando, a estimação de sua liberdade". Em suas afirmações, o psiquiatra francês segue as teses de Canguilhem, para quem a patologia é uma limitação da liberdade do homem, que torna-se anormal não por uma ausência de normas, mas sim "por uma incapacidade de ser normativo; para ele, o doente é doente por só poder admitir uma norma".

b) A posição da Psiquiatria Democrática italiana fica bem exemplificada pela analogia que Basaglia nos indicou entre uma fábula oriental sobre a liberdade - que relata a história de um homem convertido em escravo de uma serpente que, alojada em seu estômago, passou a ditar-lhe suas vontades: tendo um dia se livrado da serpente, o homem ter-se-ia dado conta de que não sabia o que fazer com sua liberdade - e a condição institucional do doente mental. Todavia, ele escreveu, a respeito, que nosso encontro com os pacientes de nossas instituições psiquiátricas nos remete sempre ao fato de que, "em nossa sociedade, somos todos escravos da serpente: assim sendo, se não tentarmos destruí-la ou vomitá-la, chegará o momento em que nunca mais poderemos recuperar o conteúdo humano de nossa vida, isto é, nossa faculdade de desejar, querer e atuar com autonomia".

c) O conceito de "transtorno mental" adotado pela Psiquiatria americana, e assimilado pela Organização Mundial de Saúde em sua CID-10, ao procurar contornar o anacronismo reducionista do dualismo mente/corpo, também acentua a importância da avaliação do grau de limitação da liberdade dos indivíduos no estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico. Como explica o DSM-IV, nem um comportamento desviante, nem os conflitos entre uma pessoa e a sociedade podem ser considerados como um transtorno mental, senão quando houver uma evidência clínica de que sejam sintomas de uma disfunção nesse indivíduo que, seja qual for a sua causa, estaria associada com sofrimento, incapacitação ou perda importante da liberdade.

d) Da mesma forma, esta temática da liberdade da pessoa humana vê-se renovada nas atuais preocupações em se colocar em relevo as interrelações entre a Psiquiatria - ou mesmo a Medicina, como um todo, ou as demais áreas de atenção ou cuidado à saúde dos indivíduos - e os direitos do homem e do cidadão, ou em discutir a ética de internações e tratamentos involuntários ou ainda a interdição do doente mental. Descrevendo brevemente o, por ele denominado, processo histórico da liberação humana, cuja codificação atual foi fixada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948, Campailla se apóia em López Ibor e Henri Ey em sua discussão sobre as doenças mentais - enquanto uma "patologia da liberdade" (Ey) ou um outro modo de estar-no-mundo no qual o homem se encontra patologicamente afetado na experiência de sua liberdade (Ibor) -, ao afirmar que o "homem-enfermo psiquicamente não é um homem como os demais", uma vez limitado em sua liberdade existencial, tipicamente humana, para logo em seguida concluir, utilizando-se de uma expressão de Ortega y Gasset (In: Campailla, p. 463) : "O homem que perde seus direitos corre o risco de não ser homem. O homem tem irrenunciáveis direitos à vida e à morte e não deve suportar atentados à sua dignidade, à sua integridade física e à liberdade. Temos que nos esforçar", enquanto técnicos, administradores e agentes políticos de saúde mental, poderíamos explicitar, "para que ele (o homem) conserve estes direitos também quando a enfermidade o põe em condição de 'não ser homem' ".

UMA BREVE DISCUSSÃO

Do ponto de vista da razão prática, manifestamos nossa concordância com Costa (1989, p. 12) quando ele se posiciona contra o relativismo teórico, ao mesmo tempo em que aponta para o peso fundamental que o "humanamente útil", segundo expressão de Rorty por ele referida, em nossas escolhas práticas, isto é, morais. Um tratamento exclusivamente farmacológico, voltado para a remissão dos sintomas, ainda que não dê conta do problema do tratamento dos transtornos mentais em toda sua amplitude, não pode ser ingenuamente desqualificado como necessariamente aquém de uma abordagem complexa, multiprofissional, que, no entanto, freqüentemente reproduz em outros espaços a dinâmica infantilizadora - embotadora da autonomia e da liberdade pessoal de seus assistidos - das estruturas asilares.

Nosso compromisso com a "cura", ou com a liberdade de nossos pacientes, não se esgota na simples utilização de teorias bem articuladas ou de técnicas modernas e tidas como eficazes. Conforme já enfatizava Basaglia (1973, p. 70), há quase trinta anos, não é a instituição, "enquanto organização estabelecida e definida segundo novos esquemas, distintos dos da psiquiatria de asilo, que garantirá o caráter terapêutico de nossa ação, mas sim o tipo de relação" que se fará instaurar no interior das novas organizações assistenciais. Vale ressaltar que a cristalização das identidades profissionais - com todos seus "pré-conceitos", no sentido bacharelardiano - com freqüência obstrui o trabalho terapêutico, uma vez que o confronto desses olhares diversos costuma resultar em antagonismos estéreis e em disputas epistêmico/políticas pelo saber/poder, além de contribuir para a fragmentação do sujeito-objeto de suas intervenções.

Historicamente, temos assistido, em nosso país, a um sempre renovado e retomado processo de mudanças no rumo da assistência aos portadores de transtornos mentais: mudam-se as instituições - ou, ao menos, mudam-se seus nomes -; mudam-se as propostas técnicas; no entanto, cabe-nos questionar se a assistência efetivamente prestada tem-se transformado concretamente na direção dos valores éticos de nossa contemporaneidade. Se Míson já nos ensinava a indagar as palavras a partir das coisas, e não as coisas a partir das palavras, há algum tempo enfatizávamos: quanto mais aumenta a distância entre a linguagem e a realidade, tão maior é a necessidade que se sente de se confiar nas palavras, e em sua ambigüidade constitutiva. Parece-nos ter sido por questionar essa distância entre o discurso e a prática que Basaglia afirmou:

não é verdade que o psiquiatra tenha duas posturas, uma como cidadão do Estado e outra como psiquiatra. Há uma somente: como homem. E como homem eu quero mudar a vida que levo, e para isso tenho que mudar essa organização social, não com revolução. Mas apenas exercendo minha profissão de psiquiatra (1973, p. 37).

O esboço de uma nova clínica

Uma nova clínica, ou clínica ampliada, tem, no seu desenvolvimento, a influência de áreas de conhecimento que passaram, nos últimos anos, a dialogar com a saúde mental: História, Filosofia, Psicanálise, Antropologia e Sociologia. Acentua a importância da troca de experiências e a contribuição de outros projetos, como o Sistema de Setúbal, o Sistema de Trieste e a Clínica de Borde (esta criada na França sob a perspectiva da Psicoterapia Institucional e colocada no referencial teórico da Psicanálise). Incorpora contribuições desses projetos, especialmente no que se refere à ruptura da homogeneização e do enclausuramento no tratamento de pacientes psiquiátricos; a importância de se trabalhar com populações geo-demograficamente definidas; e o caráter processual do tratamento, revertendo a própria concepção de tratamento numa nova perspectiva, que visaria atender às especificidades dos sujeitos assistidos. Desse modo, substitui a cura pelo cuidado e inclui, então, a gestão da vida cotidiana dos assistidos como parte do tratamento. Esta posição denota uma forma particular de conceber a doença mental, ou seja, acreditar que ela se refere ao sujeito e não a um agente externo ou a uma disfunção que poderiam ser, respectivamente, extirpados ou corrigidos, restabelecendo uma certa "normalidade".

Tomemos como ponto de partida aspectos relevantes levantados por Jairo Goldberg. Este autor afirma uma clínica que se opõe ao telos nosológico.

O diagnóstico adquire importância diversa, ou seja, se constitui como operador do processo terapêutico. O diagnóstico se constrói ao longo do tratamento, como um fio condutor que tateia pelos meandros e acidentes do discurso do paciente no processo terapêutico (Goldberg, 1994, p. 59).

Os sintomas deixam de ter a função de identificar a doença, passando a ser problematizada e interrogado o seu sentido na história do paciente. Mais do que índice da essência de uma doença, o sintoma inclui o sujeito. Uma orientação que pretenda romper com a equação doença=doente confere um estatuto positivo à fala do paciente, que passa a ser acolhida como expressão de sua condição existencial.

Prossegue o autor: "a clínica, afirmada nesses termos, admite a tipificação das manifestações da doença unicamente como estratégia para alcançar plenamente a especificidade dos casos" (Goldberg, 1994, p. 59).

Não se trata de se recusar o saber acumulado da clínica, mas reside aí o enfrentamento entre a universalidade do saber científico e a singularidade de cada quadro.

Digamos que esse saber, em si mesmo, produz uma evidência: o ingresso da instância da clínica na relação médico-paciente, como um tempo dilatado que permite a construção de quadros de referência, onde simultaneamente o paciente identifica sua história e o médico suas ferramentas de trabalho (Goldberg, 1994, p.57).

Ressalta que tal especificidade nem sempre é atingida, o que impõe uma posição de interrogação permanente. Nestes termos, só aí podemos sustentar uma clínica, "com sua vocação eminentemente operativa (ao mesmo tempo ética) que poderá estabelecer limites, prescrever empreitadas terapêuticas diferenciadas" (Goldberg, 1994, p. 59).

Tal perspectiva não se satisfaz em enquadrar o paciente numa classificação. Interroga o potencial de uma classificação, ou seja: "Em que extensão uma classificação por si só pode contribuir para operar mudanças na vida dos sujeitos assistidos?" Essa renúncia em atribuir um absoluto às classificações em sua função de mera rotulação se associa também a um distanciamento quanto à procura da verdadeira essência da doença ou à obstinada busca por uma verdadeira etiologia. Tal distanciamento, em nenhum momento equivale ao desconhecimento da especificidade da psicose; mas a matéria-prima com a qual o terapeuta irá se defrontar e problematizar é a fala dos psicóticos e tudo que ela comporta, englobando conflitos psíquicos até problemas relativos a lazer, moradia e trabalho. O reconhecimento da função da linguagem na constituição do sujeito social poderíamos dizer; o reconhecimento de que o sujeito sofre, padece dos efeitos da linguagem engloba questões referentes à cidadania, sem, no entanto, reduzir seu campo de ação a tal categoria.

Ter como substância primordial dessa relação uma atenção interpretativa à fala do paciente, visto que ela é um rico repositório, expressivo de seus desejos, suas condições existenciais, suas relações com as pessoas, com a família, com o mundo (Goldberg, 1994, p. 54).

Assim como parte-se de uma crítica aos modelos institucionais que visam o ajuste da medicação à expressividade do sintoma, questiona-se a utilização de técnicas psicológicas ou psicoterápicas que operam por meio da palavra visando adequar o paciente às figuras do sintoma (Goldberg, 1994, p. 25).

Tal projeto conjuga num mesmo espaço o tratamento e a reabilitação, e busca uma atuação mais globalizada frente às questões da saúde (Goldberg, 1994, p. 22).

Sustentar a vocação operativa da clínica passa a ser o compromisso de produzir modificações no quadro clínico do paciente. Sustentar uma prática que ative trocas simbólicas é realçar a valorização da linguagem, dado o reconhecimento de sua importância em sua articulação com o sujeito.

Em suma, é esse o esboço apresentado, e é importante ressaltar o termo esboço, na medida em que não se coloca como modelo ou projeto concluído e sim acentua-se seu caráter processual, que se define pela oposição ao telos nosológico, pela opção pela especificidade do caso a caso, pela defesa de uma vocação operativa, isto é, aberta a transformações, e pela dimensão ética. Inclui-se na relação terapeuta-paciente a responsabilidade de cada termo deste binômio, pois, do contrário, incorre-se em uma relação tutelar.

A novidade reside, antes de tudo, numa disposição de operar mudanças, não se apoiando em esquemas pré-estabelecidos. Há uma tensão constante entre o saber universal e a especificidade de cada caso a ser manejado. O que vale para um caso pode não valer para um outro. É importante o tratamento desigual, evitando-se a padronização. O reconhecimento da diferença possibilita a emergência do novo, da invenção de soluções diferenciadas. Para se atingir soluções diferenciadas, lança-se mão de diferentes recursos, desde que revestidos de finalidade terapêutica.

Aqui encontramos pontos importantes a considerar: a mudança qualitativa no manejo das equipes multiprofissionais e no manejo de distintas abordagens teóricas. Quanto ao funcionamento das equipes, busca-se uma alteração, no sentido de questionar uma hierarquização de seus integrantes. Tradicionalmente, e mesmo no início das experiências de reversão do modelo hegemônico médico, os integrantes faziam uma certa figuração de defesa de especificidades, mas acabavam por se homogeneizar aparentemente, para se opor ao poder médico, em torno do qual acabavam por se organizar e atuar como coadjuvantes. A busca do reconhecimento de especificidades procura ser problematizada em tudo o que comporta de contradições, e um aspecto fundamental reside na renúncia da pretensão de padronização ou elaboração de uma síntese das diferentes práticas discursivas. Constitui-se uma perspectiva mais promissora deslocar-se o acento do problema da identidade profissional para o dilema a ser enfrentado: cuidar dos pacientes. É preciso mobilizar recursos e definir acordo quanto às concepções de tratamento, dando-lhes sentido terapêutico. O sentido terapêutico emerge a partir do seu potencial de mobilizar trocas, implicar cada sujeito na construção do seu cotidiano.

A reforma psiquiátrica brasileira

Na década de 90, a Assistência Psiquiátrica Pública no Brasil tem sido marcada por uma política de redução dos leitos hospitalares localizados nos hospitais psiquiátricos tradicionais e pela implantação concomitante de recursos terapêuticos substitutivos ao aparelho manicomial. A partir de 1992, com a realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, a Reforma Psiquiátrica Brasileira inicia uma nova e promissora fase. Tendo em vista claramente o objetivo de reverter o modelo hospitalocêntrico, baseado na exclusão social, o caminho de substituição do hospital psiquiátrico passa a ser trilhado com ênfase e entusiasmo, sendo assumido, enquanto política nacional, pelo próprio Ministério da Saúde. Apoiando-se num vigoroso movimento social, que reunia gestores, técnicos, familiares, usuários, parlamentares e organizações profissionais, a Reforma Psiquiátrica ganhou o apoio da opinião pública e fez avançar a consciência da inadequação do modelo manicomial, até então vigente, como a forma de abordagem dos transtornos mentais. Como resultado, os leitos psiquiátricos cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS) foram reduzidos de 85.000, em 1991 (75% contratados em hospitais privados) para cerca de 68.000 (cerca de 80% privados e 20% públicos) em abril de 1996 (MS/COSAM, 1996). Os anos que se seguiram foram um tempo de multiplicação dos serviços substitutivos, tais como os NAPS, CAPS, Hospitais-Dia; dos debates sobre o projeto de lei Paulo Delgado e das leis Estaduais; da ampliação do controle público, por meio das vistorias e denúncias, das reais condições de funcionamento dos instituições hospitalares, dos processos do seu recredenciamento, da formulação de exigências aos mesmos, de forma a torná-los ao menos toleráveis, até a sua erradicação enquanto centro de uma política assistencial psiquiátrica.

O processo brasileiro sofre importante influência da Reforma Psiquiátrica implantada na Itália desde a década de 1970. Entretanto, a política de redução de leitos psiquiátricos, a alocação de pacientes cronicamente institucionalizados em programas comunitários e o desenvolvimento de equipamentos da atenção em saúde mental que possam substituir a internação psiquiátrica tradicional são componentes centrais das políticas de saúde mental de diversos países, como Inglaterra, Espanha, Canadá e Holanda, assim como de alguns Estados dos EUA.

A estratégia de desinstitucionalização coloca em questão dois importantes dilemas: a substituição da internação psiquiátrica pelos programas comunitários é tecnicamente mais efetiva? Os gastos necessários para implementação das estruturas assistenciais e de apoio social que possam substituir o manicômio são economicamente viáveis? Os insucessos relativos de alguns processos, como o dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970, são exemplares, no sentido da cautela que o manejo da questão exige.

Tomando em consideração a importância da progressiva implantação de novas modalidades assistenciais e do processo de "desospitalização saneadora" (Vasconcelos, 1996, p. 8), responsável pelo descredenciamento de leitos nos hospitais psiquiátricos em piores condições assistenciais, parece ter sido colocado um momento de inflexão no processo da reforma psiquiátrica no país.

Experiências internacionais exitosas têm indicado que a manutenção em convívio comunitário de pacientes gravemente comprometidos mentalmente - seja os de longa permanência institucional, seja os "novos candidatos" à cronicidade - só é bem sucedida com a adoção de programas que incluam, além de recursos da área assistencial - como centros de atenção diária, sistemas de atendimento às crises e recursos humanos qualificados -, mecanismos de suporte que sirvam de continente efetivo para a convivência em sociedade, como afirmam Thornicroft & Bebbington (1989, p. 744): ... "o sucesso dos serviços baseados na comunidade está crucialmente relacionado com a natureza e a disponibilidade da acomodação (tradução do autor). Outros países adotam diversos tipos de moradias para pacientes cronicamente enfermos, as quais, de acordo com as gradações do cuidado, podem ser mais ou menos "protegidas" (Idem, p. 744).

No Brasil, apesar de a abrangência do cuidado ter sido ampliada com a implantação de estruturas intermediárias entre a internação e o ambulatório, o conjunto de instrumentos disponíveis ainda é insuficiente e beneficia essencialmente a clientela que tem possibilidade de algum suporte social, seja familiar, seja por recursos próprios, tais como aposentadorias/benefícios, ou mesmo pacientes com melhor capacidade de adaptação social em face das peculiaridades de sua condição psíquica. É excludente, no entanto, para grande parcela de pacientes já institucionalizados ou em vias de assim se tornar, sendo ainda incompatível com um projeto de ressocialização em larga escala ou com um sistema de saúde que substitua integralmente o manicômio. Em outras palavras, um processo massivo de manutenção dos gravemente enfermos no convívio comunitário não pode estar calcado essencialmente no suporte social proporcionado por familiares ou pela possibilidade de inserção desses pacientes no mercado de trabalho.

Talbott, em 1979, comentava em relação à atenção aos pacientes crônica e severamente comprometidos:

... precisamos ter acesso às necessidades dos pacientes crônicos e desenhar ou revisar nossos serviços para alcançá-las. Isto significa, primeiro e principalmente, que devemos compreender não estarmos falando meramente de necessidades psicoterapêuticas, mas sobre medicação, resistência ao tratamento, necessidades médicas, moradia, renda, reabilitação, serviços sociais... (Talbott, 1979, p. 623).

Na reforma psiquiátrica italiana foram criados subsídios governamentais para pacientes e familiares com o objetivo de serem auferidos quando ocorria alta com retorno à família (Mosher, 1982). Em Trieste, um terço dos pacientes vinculados aos centros de saúde mental recebia alguma forma de benefício e 20% eram totalmente dependentes deles (Mauri, 1985).

Os programas residenciais são usuais na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na Inglaterra, 80% dos pacientes de longa permanência que receberam alta dos hospitais de Friern e Claybury foram alocados em residências protegidas (Lewis & Trieman, 1995) e nos EUA existiam, em 1991, 16.000 locações residenciais que serviam a 59.000 pessoas, em uma ampla gama de programas residenciais (Randolph e cols., 1991).

Evidências nos Estados Unidos e no Reino Unido revelam que a tendência em relação a estes programas é que se tornem permanentes, com mínima mobilidade na direção da vida independente. "A maioria dos pacientes crônicos são afetados negativamente por mudanças freqüentes nos locais de residência. Mais que isso, os pacientes que foram alocados em lares altamente protegidos raramente evoluem para "settings" menos restritivos" (Idem, p. 259).

Talvez seja possível considerar nesta discussão a caracterização de um welfare state das pessoas com graves distúrbios psíquicos, com a explicitação de um conjunto de necessidades fundamentais que implicariam a definição de responsabilidades sociais. A abrangência das políticas sociais de enfrentamento dessas demandas transcende o campo de intervenção em saúde, englobando aspectos relacionados com o conceito de seguridade social em sentido amplo, o que automaticamente envolveria a participação de outras agências governamentais na questão.

Considerando-se a baixa magnitude dos gastos em saúde no Brasil e o movimento de minimização da atuação do Estado em relação aos compromissos sociais em voga na sociedade brasileira, pode-se considerar que a situação dos cidadãos com comprometimento mental mais grave inscreve-se no movimento de disputa instaurado na sociedade sobre a feição que deve adquirir a estrutura política e econômica do país.

Uma iniciativa do Ministério da Saúde, o Programa de Apoio à Desospitalização (PAD), poderá ser um primeiro passo na direção de uma política de suporte social dos cronicamente enfermos. O programa visa propiciar apoio econômico para auxiliar na reinserção social da parcela da população de longa permanência que perdeu seus vínculos sociais ou cuja família dispõe de escassos recursos financeiros para dar suporte social à desospitalização (MS/COSAM, 1995a). Toma-se em consideração a dificuldade de esses ex-pacientes disputarem um mercado de trabalho competitivo e com alta taxa de desemprego, seja pelos efeitos deletérios da institucionalização prolongada, seja pelas próprias singularidades de sua condição psíquica.

A formulação do PAD propõe uma inversão do direcionamento financeiro do sistema. O montante que financia uma internação (70%, na proposta original) deve ser dividido entre o paciente egresso da internação (ou seu representante legal) e a instância governamental municipal, que fica responsável pela promoção do cuidado extra-hospitalar necessário. O paciente residiria com a família de origem, com uma família substituta ou em outras situações especiais, como lares abrigados (MS/COSAM, 1995b).

O PAD foi aprovado no Plenário do Conselho Nacional de Saúde em seis de julho de 1995 (Resolução 159), mas até 1999 não havia sido implementado pelo Ministério da Saúde.

No dia 10 de novembro de 1999 foi aprovada a Lei nº 9.867 (Projeto do Deputado Paulo Delgado), que dispõe sobre a criação e o funcionamento das Cooperativas Sociais que têm a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado de trabalho, promovendo a integração social dos cidadãos. Consideram-se pessoas em desvantagem, para efeitos desta lei, os deficientes físicos e sensoriais, os deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, egressos de hospitais psiquiátricos e os dependentes químicos. As Cooperativas Sociais, organizarão seu trabalho, especialmente no que diz respeito a instalações, horários das jornadas, de maneira a levar em conta e minimizar as dificuldades gerais e individuais das pessoas em desvantagens que nelas trabalhem, e desenvolverão e executarão programas especiais de treinamento com o objetivo de aumentar-lhes a produtividade e a independência econômica e social.

No ano de 2000, mais um passo importante para a Reforma Psiquiátrica foi dado pelo Ministério da Saúde. Foi publicada, no Diário Oficial da União, no dia 11 de fevereiro de 2000, portaria que cria os Serviços Residênciais Terapêuticos em Saúde Mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para atendimento ao portador de transtornos mentais. Pela Portaria 106, que ainda não está sendo operacionalizada, o Ministério pretende, gradativamente, substituir a internação nos hospitais psiquiátricos por moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, vindos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares, e que viabilizem sua inserção social. De acordo com o Ministério da Saúde, inicialmente cerca de cinco mil pacientes serão beneficiados com a medida.

Como conclusão, pode-se assinalar que os programas comunitários necessitam de intensa atividade de pesquisa, planejamento prévio, implantação progressiva, flexibilidade gerencial, financiamento compatível e adaptação às características das clientelas-alvo, inclusive no que diz respeito às disparidades sociais e culturais de cada região. Além disso, faz-se necessária a adoção de políticas de cuidado abrangente, as quais considerem, ao lado da implementação de modalidades terapêuticas necessárias à substituição do hospital, as particularidades da clientela com comprometimento psíquico mais grave, no que tange ao conjunto de suas demandas sociais.

CONCLUSÃO

Todos os processos de avaliação da eficácia das técnicas, da eficiência das administrações e da efetividade das políticas de saúde mental devem submeter-se a certos pressupostos éticos para, em consonância com os valores de nossa cultura ocidental contemporânea, afirmar que seria a liberdade o valor a ser colocado como esse referencial primeiro e maior. Vale ainda dizer que a liberdade quer-se em concreto, e não apenas em abstrato. "Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende na nossa", já dizia Sartre (1973, p. 25).

O código Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1991 - e referendado e adotado pelo Conselho Federal de Medicina em junho de 1994 -, parece apoiar-se em parâmetros morais desta natureza, ainda que estes pressupostos não estejam claramente explícitos. Se o primeiro parágrafo do princípio número 1 (um) afirma que todas as pessoas têm direito à melhor assistência disponível à saúde mental, que deverá ser parte do sistema de cuidados de saúde e sociais, como julgar o que vem a ser a "melhor assistência disponível?" A resposta, segundo entendemos, encontra-se no terceiro e no quarto parágrafos do princípio de número 9 (nove) do mesmo código, onde se faz referência aos padrões éticos que devem nortear as práticas de assistência à saúde mental e se postula que o tratamento de cada usuário deverá estar direcionado no sentido de preservar e aumentar sua autonomia pessoal.

Enfim, acreditamos serem a liberdade e a autonomia pessoal os fundamentos éticos que, uma vez explicitados, poderão contribuir para uma prática assistencial capaz de processar uma efetiva mudança em relação aos padrões tradicionais de assistência psiquiátrica, uma mudança que consiga ir além de seus textos programáticos.

Recebido em 10/04/00

Revisado em 23/05/00

Aceito em 27/05/00

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2000

    Histórico

    • Aceito
      27 Maio 2000
    • Revisado
      23 Maio 2000
    • Recebido
      10 Abr 2000
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