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A influência das idéias higienistas no desenvolvimento da psicologia no Brasil

Influence of hygienist ideas in the development of the psychology in Brazil

Resumos

Este artigo originou-se das atividades desenvolvidas em projeto de iniciação científica que, por sua vez, foi parte integrante das atividades de um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá que tem se dedicado a compreender historicamente os movimentos eugenista e higienista ocorridos nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, e suas influências em várias especialidades científicas. Em nosso trabalho circunstanciamos a participação da Psicologia no interior do movimento higienista através do levantamento dos principais e mais freqüentes temas abordados nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (ABHM), publicados pela Liga Brasileira de Hygiene Mental (LBHM).

Higienismo; eugenismo; Psicologia


This article originated from activities developed in a project of scientific initiation which was part of the activities of a researchers group from the Universidade Estadual de Maringá. These researchers have dedicated themselves to understand historically the eugenist and hygienist movements occurred in the first decades of the 20th century, in Brazil, and its influences in several scientific specialties. In the present study it was circumstantiated the participation of the psychology inside the hygienist movement through the survey of the main and more frequent themes approached in Brazilian Archives of Mental Hygiene (ABHM), published by the Brazilian League of Mental Hygiene (LBHM).

Hygienism; eugenism; psychology


ARTIGOS

A influência das idéias higienistas no desenvolvimento da Psicologia no Brasil1 1 Este trabalho originou-se do projeto de iniciação científica, financiado pelo CNPq, denominado Higienismo e Eugenia no Brasil: categorização de conteúdos da Psicologia a partir de fontes primárias, desenvolvido em 1999/98.

Influence of hygienist ideas in the development of the Psychology in Brazil

Adriano Rodrigues MansaneraI; Lúcia Cecília da SilvaII

IAluno quintanista do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, bolsista do CNPq

IIOrientadora; Mestre em Educação, Professora do Departamento de Psicologia e Coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Universidade Estadual de Maringá Departamento de Psicologia Avenida Colombo, 5790, 87020-900 Maringá, Paraná E-mail: joseluiz@wnet.com.br

RESUMO

Este artigo originou-se das atividades desenvolvidas em projeto de iniciação científica que, por sua vez, foi parte integrante das atividades de um grupo de pesquisadores2 2 Trata-se do GEPHE – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Higienismo e o Eugenismo, coordenado pela Profa. Dra. Maria Lúcia Boarini. da Universidade Estadual de Maringá que tem se dedicado a compreender historicamente os movimentos eugenista e higienista ocorridos nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, e suas influências em várias especialidades científicas. Em nosso trabalho circunstanciamos a participação da Psicologia no interior do movimento higienista através do levantamento dos principais e mais freqüentes temas abordados nos Archivos Brasileiros de Hygiene Mental (ABHM), publicados pela Liga Brasileira de Hygiene Mental (LBHM).

Palavras-chave: Higienismo, eugenismo, Psicologia.

ABSTRACT

This article originated from activities developed in a project of scientific initiation which was part of the activities of a researchers group from the Universidade Estadual de Maringá. These researchers have dedicated themselves to understand historically the eugenist and hygienist movements occurred in the first decades of the 20th century, in Brazil, and its influences in several scientific specialties. In the present study it was circumstantiated the participation of the psychology inside the hygienist movement through the survey of the main and more frequent themes approached in Brazilian Archives of Mental Hygiene (ABHM), published by the Brazilian League of Mental Hygiene (LBHM).

Key words: Hygienism, eugenism, psychology.

INTRODUÇÃO

O mundo estava vivendo, desde o final do século XIX, um grande desenvolvimento das ciências naturais e das ciências exatas, que permitia, através das descobertas e das inovações no campo da Biologia, da Botânica, da Física, da Química, da Geologia, etc., a criação de um clima de euforia e de boas expectativas em relação ao futuro da humanidade. Essa época foi marcada por um extraordinário progresso tecnológico, com repercussão imediata no campo econômico. Foi a era do aço e da eletricidade, que se inaugurou junto com o início do aproveitamento do petróleo como fonte de energia. Inovações como o avião, o submarino, o cinema, o automóvel, bem como as rotativas e o linotipo, que tornaram a indústria do jornal e do livro capaz de produções mais baratas e de atingir um público cada vez maior, sucederam-se uma após outra. Tudo isso foi reflexo do avanço científico marcado pelo advento das teorias quântica, atômica, da relatividade, da radioatividade, além do progresso alcançado em outros setores mais diretamente voltados à aplicação, como é o caso das ondas hertzianas, das vitaminas, do bacilo de Koch, das vacinas de Pasteur, etc. (Rodrigues, 1984).

Em meio ao desenvolvimento das ciências, o discurso e a preocupação higienistas se tornaram portões de acesso que a Psicologia científica e a Psiquiatria encontraram para fazer sua história no Brasil (Pessoti, 1988). Até meados do século XIX, não havia assistência médica aos doentes mentais, que, quando não alojados em prisões por vagabundagem ou perturbação da ordem pública, eram enclausurados em celas especiais das Santas Casas de Misericória (Costa, 1989). Se, de um lado, havia o desenvolvimento e a euforia, por outro, esse mesmo desenvolvimento fomentava a

... deterioração das condições de vida da população trabalhadora, de higiene e saneamento das cidades, proliferação de cortiços e favelas, focos de desordem e reservatórios de vetores de doenças infecciosas, aglomeração de maltrapilhos nas ruas à espera de trabalho, surtos epidêmicos que dizimavam a população de recém-chegados, tão necessários à economia paulista e desejáveis, de qualquer modo, para 'depurar as veias da mestiçagem primitiva', como afirmava Ruy Barbosa, novos e graves problemas para os quais, na área da saúde mental, a psiquiatria das freiras, os asilos provisórios despovoados de médicos eram soluções de amadores (Resende, 1987, p. 42).3 3 O primeiro hospital psiquiátrico no país foi o Hospício D. Pedro II, inaugurado em 1852. Sob a direção de religiosos da Santa Casa de Misericórdia, só veio a ser administrado por um médico-psiquiatra, Teixeira Brandão, em 1886, ano em que também se iniciou o ensino regular de Psiquiatria aos médicos generalistas. Em 1890, o Hospício foi denominado Hospital Nacional dos Alienados, passando a ser tutelado do Estado. Somente em 1903 é que foi promulgada, no governo de Rodrigues Alves, a primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados (Costa, 1989).

No Brasil dessa época, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a incipiente industrialização, a nova feição das cidades, o aumento do comércio internacional, as correntes imigratórias e, principalmente, a presença de contingentes populacionais "livres" concentrados no espaço urbano deram nova complexidade à estrutura social do país. Aos dirigentes republicanos interessavam o desenvolvimento de um projeto de controle higiênico dos portos, a proteção da sanidade da força de trabalho e o encaminhamento de uma política demográfico-sanitária que contemplasse a questão racial. Abriu-se campo para a proliferação de tecnologias e para o trabalho de especialistas que investigavam sobre a saúde dos imigrantes, a situação sanitária dos portos, o dia-a-dia das cidades, a higiene infantil, os hábitos e costumes populares, a eugenia ou "ideal de branqueamento" do povo brasileiro, o trabalho fabril, o mundo do crime, etc. O discurso médico-higiênico acompanhou o início do processo de transformação política e econômica da sociedade brasileira em uma economia urbano-comercial e expressou o pensamento de uma parte da elite dominante que queria modernizar o país.

A HIGIENE MENTAL E A EUGENIA

A higiene, de maneira geral, entendia que a desorganização social e o mau funcionamento da sociedade eram as causas das doenças, cabendo à Medicina refletir e atuar sobre seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais, visando neutralizar todo perigo possível. Tornou-se "ciência social", integrando a Estatística, a Geografia, a Demografia, a Topografia; tornou-se instrumento de planejamento urbano: as grandes transformações na cidade foram, desde então, justificadas como questão de saúde; tornou-se analista das instituições; transformou o hospital em "máquina de curar"; criou o hospício como enclausuramento disciplinar do doente mental; inaugurou o espaço da hegemonia da clínica, condenando formas alternativas de cura; ofereceu um modelo de transformação à prisão e de formação à escola. Iniciou, enfim, a trabalhosa conquista profissional, técnica, exclusiva do poder da cura e do controle sobre a doença, rotulando as eventuais resistências e os saberes alternativos de cegueira política, ignorância do povo, má-fé dos charlatães (Costa, s/d, p. 10-11).

Descortinando novos enfoques no trabalho com os doentes mentais e estendendo trabalhos preventivos aos indivíduos considerados normais mas com propensões a algum desvio ou vício, vemos, desde o início do século, o higienismo como um movimento que duvidava do tratamento dispensado, até então, aos doentes mentais. O atendimento asilar ao doente mental estava sendo questionado na Europa e nos Estados Unidos. Combatiam-se os hospícios superlotados, os internamentos intermináveis, os tratamentos infrutíferos. Buscavam-se alternativas para a Medicina Mental, pois o cotidiano mostrava que a sociedade progredia rapidamente mas trazia consigo a loucura e a degeneração.

No I Congresso Médico Paulista de 1916, o psiquiatra Ernani Lopes assim se pronunciou:

Quem lance um olhar sobre o desenvolvimento da pshychiatria nos últimos tempos reconhecerá que essa sciencia já não ocupa em exclusivo com o tratamento dos alienados durante a sua internação. Cada vez mais se verifica a necessidade que há da intervenção do psychiatra em numerosos casos de vida social. Si nos dedicassemos a fazer o estudo da mentalidade dos individuos socialmente desclassificados, encontrariamos as mais das vezes as causas de não exito em perturbações bem caracterizadas do dominio psychico.

Na Alemanha, sobrettudo, encontramos demonstrações diversas de que scientistas e homens administradores já compreenderam o alcance desse sério problema. Assim, é qui em várias sociedades de beneficiência e de assistência às classes pobres, discute-se com frequencia, sob o ponto de vista psychiatrico, varias questões que outrora eram vistas apenas sob um criterio estritamente moralistico (1925, p. 155-156).

O aspecto preventivo foi valorizado. Tratava de a Medicina Mental não atuar somente na demanda com distúrbios mais sérios, destinados ao internamento. Era caso de aplicar os conhecimentos científicos na prevenção das perturbações, atuando junto a populações nas quais a prevenção poderia trazer lucro, não só individual mas também coletivo.

Em 1923, no I Congresso Brasileiro de Higiene, os principais articuladores do movimento da higiene social tomaram para si a tarefa de proteger higienicamente a coletividade, em nome da ordem, e contra a anarquia do liberalismo, dos ideais igualitários, da promiscuidade e decadência urbanas. Considerou sua atribuição a criação dos hábitos sadios, o combate às "taras sociais" e a realização das grandes aspirações sanitárias do Estado: a robustez do indivíduo e a virtude da raça. Segundo a concepção higienista, não era possível fazer uma grande nação com uma raça inferior, eivada pela mestiçagem, como eram os brasileiros. Nesta questão, o higienismo se fundamentava na Eugenia.

Eugenia foi o termo "inventado" por Francis Galton (1822-1911), fisiologista inglês, para designar a ciência que trata dos fatores capazes de aprimorar as qualidades hereditárias da raça humana. Afirmava ele que os seres humanos, assim como os animais, poderiam ser melhorados através da seleção artificial. Em seus estudos, Galton procurou demonstrar que a genialidade individual ocorria com excessiva freqüência em famílias de eminentes intelectuais. Um dos objetivos de Galton era encorajar o nascimento de indivíduos mais eminentes ou capazes, e desencorajar o nascimento dos incapazes.

(...) Ele acreditava que, se homens e mulheres de talento considerável fossem selecionados e acasalados por sucessivas gerações, seria produzida uma raça de pessoas altamente dotadas. Propunha Galton que se desenvolvessem testes de inteligência a ser usados na escolha dos homens e mulheres mais brilhantes para o acasalamento seletivo, recomendando que quem alcançasse os níveis mais altos nos testes devia receber incentivos financeiros para se casar e ter filhos (Schultz; Schultz, 1992, p.133).

A preocupação com o cuidado eugênico a que deveria, segundo se julgava, ser submetida a raça brasileira foi introduzida no Brasil por historiadores, sociólogos, antropólogos e literatos (Costa, 1989).

Após Galton, muitos intelectuais europeus e norte-americanos procuraram explorar cientificamente os efeitos físicos e culturais produzidos pela miscigenação das raças humanas. Conforme salienta Costa (id., ibid.), essas pesquisas originaram trabalhos sociológicos e etnológicos, alguns dos quais com conteúdos expressamente racistas. Esse movimento eugênico repercutiu junto aos intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século XX, fazendo-os se preocupar com a constituição étnica da população nacional. Essa preocupação apresentava cunho ideológico, pois o regime republicano enfrentava uma crise que a Eugenia, de certa forma, ajudava resolver.

O regime republicano atravessava, nas duas primeiras décadas do século XX, um período de convulsões. A Abolição da Escravatura; a imigração européia; a migração dos camponeses e antigos escravos para as cidades; enfim, os efeitos econômicos da industrialização nascente agravavam as tensões sociais e colocavam em questão o próprio regime, cuja legitimidade a elite de dirigentes procurava justificar por todos os meios. (...)

(...)O Brasil estava sacudido por revoltas sociais e crises econômicas, não por questões históricas ou políticas, mas - segundo eles- por causa do clima tropical e da constituição étnica do povo. O brasileiro não tinha podido promover o desenvolvimento harmônico do país porque o calor e a mistura com raças inferiores tinham-no tornado preguiçoso, ocioso, indisciplinado e pouco inteligente. Infelizmente, nada podia ser feito contra o clima. Em contrapartida, o problema racial ainda podia ser resolvido (Costa, 1989, p. 82).

A Eugenia tornou-se, então, uma avalista científica que nortearia toda uma série de esforços de verdadeiros patriotas que queriam o desenvolvimento do país e o fortalecimento da democracia.4 4 Um estudo aprofundado sobre esse tema pode ser encontrado em Mai (1999), que analisou os Boletim de Eugenia publicados entre 1929 e 1931.

A fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo, em 1918, foi um marco na adoção do ideal do melhoramento da raça pelos médicos. A fundação da instituição foi iniciativa de Renato Kehl e reunia a maioria da elite médica da cidade de São Paulo. Tinha 140 membros e seu presidente era Arnaldo Vieira de Carvalho, diretor da Faculdade de Medicina (Reis, 1994, p. 41). Embora a Sociedade Eugênica tenha tido vida curta, seus ideais permaneceram mobilizando muitos médicos, principalmente os psiquiatras, que viam na Eugenia a possibilidade de colaborarem com medidas de combate ao considerado grave problema da composição racial brasileira. Os psiquiatras, vendo os degenerados proliferarem pelo país, criam, em 1919, um Centro Eugenético na Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, a associação mais antiga e importante da Medicina Mental no Brasil.

O eugenismo influenciou decisivamente os rumos tomados pelas práticas de higiene e educação sanitária até meados dos anos 40. Para os higienistas sociais, interessava a possibilidade, apontada pelo eugenismo, de utilização de todos os conhecimentos no sentido de melhorar física, mental e racialmente as futuras gerações brasileiras. Acreditavam que a solução para as misérias da sociedade estava no domínio da seleção natural e, mais ainda, acreditavam que as causas das misérias sociais estavam no fato de o homem não tomar sob suas rédeas o controle científico daquilo que é feito pela natureza. Concebiam, como Kehl (1932), que havia excesso de gente no planeta e esse excesso era constituído por gente de baixa categoria física, psíquica e intelectual, que comia e não produzia, e que, sem trabalhar, agitava-se nocivamente, perturbando o equilíbrio social. Entendiam ser isso conseqüência da civilização, que permitiu a anulação dos preceitos básicos que garantiam a vitória dos melhores, impedindo o acúmulo de incapazes e de nocivos à coletividade.

A PSICOLOGIA E AS PRÁTICAS HIGIENISTAS NO COTIDIANO DOS BRASILEIROS

Uma das mais representativas criações do corpo profissional higiênico em torno da ideologia eugênica foi a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). Fundada por Gustavo Riedel em 1923, no Rio de Janeiro, teve como objetivo a elaboração de programas de higiene mental baseados na noção de prevenção eugênica. Afirmavam seus idealizadores que

quem quer que acompanhe, de perto, o grande movimento da hygiene mental no mundo, haverá de notar que os ingentes esforços dos neuro-hygienistas se vão orientando não somente no sentido da conservação da saúde psychica, mas tambem e sobretudo, no sentido da extincção das eivas hereditarias, de modo que a mentalidade das novas gerações possa, cada vez mais se aproximar do padrão psychologico ideal (Caldas, 1932, p. 29).

Segundo seus estatutos (ABHM, 1925), a Liga foi reconhecida com os seguintes fins:

a) prevenção das doenças nervosas e mentais pela observância dos princípios da higiene geral e, em especial, do sistema nervoso;

b) proteção e amparo no meio social aos egressos dos manicômios e aos deficientes mentais passíveis de internação;

c) melhoria progressiva nos meios de assistir e tratar os doentes nervosos e mentais em asilos públicos, particulares ou fora deles;

d) realização de um programa de higiene mental e de eugenética no domínio das atividades individuais, escolares, profissionais e sociais.

No Segundo Congresso Brasileiro de Higiene, em 1924, a higiene mental, da qual muito se esperava, foi abordada como um dos temas oficiais:

eu creio firmemente haveremos de ser conduzidos a esse ideal magnífico pela mão da higiene e da eugenia (...). Veja-se que quadro elegeu a hygiene mental -, da qual é a eugenia um capítulo – prenúncio e divisa no amplo domínio de suas possibilidades (Lopes, 1930a, p. 93).

Para Jurandir Freire Costa (1979, 1989), a prevenção eugênica destinava-se a formar um indivíduo brasileiro mentalmente sadio. Mas esse brasileiro deveria ser branco, racista, xenófobo, puritano, chauvinista e antiliberal. Os psiquiatras acreditavam que o Brasil se degradava moral e socialmente por causa dos vícios, da ociosidade e da miscigenação racial do povo brasileiro. Assim, o alcoolismo tornou-se causa da pobreza e decadência moral, porque era mais encontrado nas camadas pobres da sociedade. A sífilis tornou-se atributo genético dos negros, por ser mais generalizada entre eles. A miscigenação racial tornou-se a causa da desorganização política e social, porque a população brasileira era miscigenada.

As preocupações do movimento higienista com a questão sanitária da raça tiveram tanta repercussão que levaram a Constituição de 1934, art. 138, conforme Senado Federal, 1986, p. 174-175, a incumbir União, estados e municípios de:

a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços sociais, cuja orientação procurarão coordenar;

b) estimular a educação eugênica;

c) amparar a maternidade e a infância;

d) socorrer as famílias de prole numerosa;

e) proteger a juventude contra toda exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual;

f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a natalidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação de doenças transmissíveis;

g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais.

Se preceitos higienistas e eugenistas estiveram presentes na Lei Magna, a prática social estava, então, impregnada por essas idéias, que adentravam todas as esferas da vida cotidiana, tais como a educação, o trabalho e a família.

A escola, como local de ensino também da higiene, deveria estar orientada para a defesa social contra as patologias, a pobreza e o vício, que se alastravam pelo país. Os higienistas pretendiam ter na escola alunos amáveis, conscientes do seu dever, para uma comunhão social equilibrada.

Era difundida a idéia de que o sistema educacional deveria aplicar os conhecimentos da Psicologia no tocante à mensuração e à verificação da capacidade mental do aluno, para que este pudesse ser mais bem atendido e melhorasse o seu rendimento escolar. Diante disso, os laboratórios de Psicologia eram muito úteis à educação, assim como os laboratórios médicos o eram para o clínico.

A importância da escola e da educação para a higienização social era tida como fundamental, pois elas não estariam mais somente a serviço da transmissão dos conhecimentos e da cultura. Os higienistas se questionavam se valiam os esforços dispendidos na alfabetização de uma grande massa de débeis mentais e desiquilibrados. Julgavam que o progresso e a riqueza de uma nação dependia, também, do equilíbrio mental do seu povo.

Os educadores, eram, desta forma, iniciados na ciência da Psicologia. "Escolas de Aperfeiçoamento" ofereciam cursos de Psicologia para aperfeiçoamento de professoras primárias nos quais se obtinham noções de Psicologia Experimental e de Psicologia da Criança, e faziam pesquisas de campo com os alunos das escolas primárias para conhecerem as condições psíquicas das classes dentro de uma escola. Terminando o curso, recebiam a denominação de "pedagogo-especialista".

Os higienistas queriam mostrar o quanto a escola poderia contribuir para a profilaxia da higiene mental, começando a preparar os professores para um novo sistema educacional que estabelecia a Psicologia como base de ação. Os processos pedagógicos não serviam mais só para transmitir informações, mas tinham, também, o propósito de formar pessoas que vivessem bem socialmente. Na escola se deveriam formar homens, orientando-os para uma profissão adequada, sem vícios e sem patologias mentais, para que pudessem viver em equilíbrio psíquico no meio social.

O aluno era o objeto por excelência da higiene mental, sendo que na fase pré-escolar seria mais fácil os professores passarem hábitos sadios a eles. Além disso, a escola era considerada um lugar onde se encontra todo tipo de anormalidade, como os "alunos-problemas", os "alunos com dificuldade de aprendizagem", os "alunos lerdinhos". Na fase pré-escolar o aluno estava formando sua personalidade, e qualquer desvio nessa fase o tornaria um adulto inabilitado socialmente.

Cabia ao educador ter noção de que a educação não era mais só um processo de transmitir conhecimento ao aluno. Educar era formar cidadãos sadios para o país, já que um indivíduo integrado pela educação racional nas suas correlações vitaes com o meio, torna-se um ser social capaz (...) contribuinte ao patrimonio da raça humana" (Braga, 1931, p. 15-16).

Nessa época, o sistema de ensino, buscando a "escola nova", acolheu iniciativas favoráveis à utilização de testes mentais nas escolas. O teste mais relevante naquele momento era o de Binet-Terman, que media o nível de inteligência intelectual do aluno. Os testes eram importantes para criar uma escala de nível mental que auxiliaria na seleção dos alunos de diversas idades, servindo para a formação de classes homogêneas do ponto de vista intelectual, pois não seria possível submeter ao mesmo plano de aula alunos de capacidade mental diversa.

Os conhecimentos da nova ciência psicológica também eram requisitados para as escolas profissionalizantes. Um bom exemplo disso foi a solicitação de que as escolas militares incluíssem em seu programa noções elementares de Psicologia. Numa reunião da seção de higiene mental da LBHM, realizada em 1929 , Ernani Lopes citou o trabalho "Psychiatria e a Guerra", de Juliano Moreira, no qual sugeria que fossem feitos nas escolas militares cursos elementares de psychologia, com o objetivo de orientar as qualidades didacticas dos futuros officiaes, na educação do soldado (Lopes, 1930 b, p. 106).

Os higienistas, preocupados com o alcoolismo, fizeram com que as campanhas antialcoólicas também chegassem às escolas5 5 Uma exposição mais detalhada sobre esse assunto pode ser encontrada em Maestri (2000). . Em 1930, o mesmo Ernani Lopes, então presidente da LBHM, enviou um ofício ao subdiretor técnico da Instrução Pública solicitando que apreciasse e, se possível, colocasse em prática um plano de educação antialcoólica nas escolas municipais. Afirmava o solicitante que um dos propósitos da higiene mental era conseguir o "abstencionismo" total, principalmente dos professores, que serviriam de exemplo para seus alunos. Apesar das críticas de alguns à proposta de começar a "educação antialcoólica" em idade escolar, considerava o presidente da LBHM que se deveria, sim, começar uma ação em nível inconsciente de repulsa ao álcool. Para isso haveria a necessidade da colaboração de professores, que, além de se manterem abstêmios, deveriam assinar o "Livro dos abstêmios" da LBHM. Tal exemplo deveria ser adotado na escola, onde deveria haver um pequeno livro dos "alumnos abstêmios", assinado pelo diretor, pelo médico-escolar e pelo aluno que se comprometesse a ficar um ano sem tomar bebidas alcoólicas.

Existia na LBHM a seção de educação e trabalho profissional, que estudava assuntos referentes à orientação profissional. Começou-se a perceber, através dos estudos sobre os efeitos do álcool, que a bebida prejudicava a saúde e a capacidade de trabalhar do operário. Em profissões que exigiam cuidados maiores com a segurança, como as de motorista, maquinista ferroviário, piloto de avião, o profissional alcoolizado era uma ameaça para sua própria vida e para as demais pessoas. Concebiam os higienistas que

os progressos da legislação social vão exigindo do operário hábil os costumes temperados, porque para contar-se com o trabalhador, para que ele não se mutile na machina que opera, tenha visão nitida, memoria viva, mãos firmes, trabalhe bem, em summa e não incorra em frequentes acidentes de trabalho, cumpre que seja sóbrio (Braga, 1930, p. 273-274).

Para isso acontecer, defendiam a utilização dos métodos psicológicos, avaliando a personalidade (normal e anormal) para uma boa orientação profissional, em que a saúde mental e a vocação do indivíduo eram preocupações maiores. Fausto Esposel, em conferência na LBHM, disse que o problema da orientação profissional era um assunto da higiene, não só da higiene social ou coletiva, mas também da higiene individual.

Esposel (1929) pedia que se imaginasse o tédio, o desgosto de quem exerce contra sua vontade alguma profissão, sem ter o mínimo de aptidão para exercê-la. O operário ficaria em estado depressivo, que poderia levá-lo ao mundo dos vícios, aos "venenos sociais", e sugeria que da vadiagem para o crime é tênue a passagem. Afirmava que

(...) a alegria no trabalho vale como um dos bons elementos, da prophlaxia das pertubações mentaes. (...) Pois certamente augmentará a produção nacional e crescerá a fortuna publica se cada cidadão trabalhar satisfeito, e exercendo o mister para o que tem aptidões naturais (Esposel, 1929, p. 109).

Diziam os higienistas que o alcoolismo tinha no proletariado sua maior vítima e isso era uma questão complexa e delicada, que poderia ser entendida como uma doença moral, cujo remédio estaria na educação, e uma doença social, cujo remédio estaria na ordem. Concebiam também que o alcoolismo interferia diretamente na produção econômica do país, já que este dependia de operários sóbrios para fazer a riqueza da nação.

O alcoolismo brasileiro, podemos affirmal-o em nome das estatisticas, é muito mais grave e impressionante na realidade do que na apparencia. É o alcoolismo das bebidas fortes e de baixo custo, é, pois, alcoolismo das classes pobres, tal como se nos afigurava "a priori". (...) Não é, pois, o alcoolismo dos abastados, cujas consequências só as victimas e os descendentes attinge; não é o dos remediados que com os seus malefícios se vêem a sós; é o alcoolismo do pobre, do trabalhador urbano e rural, mourejando na officina ou no campo, e cujo valor physico é indispensável á economia do paiz e cuja invalidez é um peso morto, que se pode auferir pelas victimas nos manicomios, nos hospitaes, nas penitenciarias e nos asylos, ou deambulando nas ruas, míseros derelictos humanos, fluctuando, inuteis, na torrente da vida (Lessa, 1925, p. 108-109).

Para Costa (1989) e Reis (1994), a condição socioeconômica da população pobre da sociedade era a determinante principal do alcoolismo. Os indivíduos dessa classe social, submetidos a condições precárias de vida, muitas vezes, para sobreviver, recorriam à marginalização, à vagabundagem, à prostituição e ao alcoolismo. Em vez de ver nas condições socioeconômicas um fator causal do alcoolismo, os higienistas o tomavam como causa de degeneração moral e social da sociedade. Assim, os programas de combate ao alcoolismo propostos pela Liga tinham mais o objetivo de regenerar a sociedade segundo um código moral.

A higiene mental também se dirigia à mulher, tomando-a como uma importante colaboradora na luta por uma sociedade melhor. Dela era cobrada uma atuação "patriótica". Era alvo de campanhas que pediam sua colaboração contra os males que se alastravam pelo país. Dela era exigida a obrigação de gerar e educar cidadãos robustos e inteligentes. Através de artigos e de propaganda na imprensa, e conferências tanto na LBHM como em entidades sociais, como a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e a União Universitária Feminina, os higienistas pretendiam conscientizar a "mulher brasileira" para que ela se empenhasse na "profilaxia social".

Consideravam a mulher uma peça central no combate aos males sociais, e ao alcoolismo em especial. Como o álcool conduzia às penitenciárias ou aos manicômios, ela jamais deveria querer isso para os seus.

A "mulher-mãe", com seu carinho e afetividade, iria educar os filhos contra as degenerações sociais; a "mulher-professora" complementaria a educação recebida em casa sobre os perigos dos vícios; a "mulher-noiva", pela sua paixão, conseguiria estancar o mau comportamento do noivo causado pelas más companhias; a "mulher-esposa", pelo seu amor e carinho, conseguiria muito do seu marido, evitando que o mesmo caísse no vício do álcool. A mulher, enfim, deveria ser uma aliada dos progressos higienistas e eugenistas, porque ela

tem sempre representado nos designos da humanidade um papel saliente, ella tem sido sempre vencedora nas lutas em que se tem empenhado. Vence pela tenacidade como vence pela astucia, vence por um olhar como vence por um beijo. (...) E no dia em que ella souber e comprhender o papel que lhe está reservado na prophylaxia do alcoolismo, certamente que não recusará a meiguice do seu conselho (Britto, 1930, p. 204-205).

A criança era outro alvo importante para o movimento higienista. Como afirmavam, a infância é a idade de ouro para a higiene mental. Na família, assim como na escola, a criança passa a ser o campo de ação mais promissor dos higienistas, que não se preocupavam mais somente com a saúde física, mas também com a saúde mental. Começavam a dispor de subsídios científicos para afirmar que a influência do meio familiar deixava características na personalidade do homem adulto, a partir de suas experiências infantis. Recomendavam um acompanhamento cuidadoso na fase da infância, por ser esse o momento da formação do psiquismo, o momento em que se estruturaria a personalidade. Essa fase era ideal para se instalarem hábitos sadios no psiquismo da criança, evitando-se, assim, o surgimento de personalidades desequilibradas.

Se a tarefa dos pais não tivesse êxito, pois muitos desvios da conduta humana ocorriam pela má-orientação da educação, e se os pais e, principalmente, as mães, não soubessem educar seus filhos, estes deveriam ser encaminhados à "Clínica de Euphrenia"6 6 "Euphrenia, (do grego, eu + phren phrenos), seria o estudo que tem por fim assegurar a bôa formação do psychismo.(...)Levando tão longe quanto possivel as investigações, neste terreno, chegar-se-á certamente, ao conhecimento mais ou menos perfeito das leis que regem a hereditariedade psychologica e, por outro lado, ficar-se-á sabendo quaes as neuroses e psychoses, quaes as constituições psychopathicas e psychologicas que possuem caracter dominante ou recessivo, e que se transmittem de accordo com as leis mendelianas" (Caldas, 1932, p. 31-32). , da LBHM, inaugurada em 1931,

(...) onde se procura assegurar a Hygidez neuro-pshica, isto é, o bom funcionamento, equilibrio e dominio perfeito do systema nervoso. (...) Não esperes, portanto, que o teu filho fique nervoso, ou attinja os raios da alienação mental; submette-o, quanto antes, a um exame especialisado, afim de que, amanhã, não te doa, nem de leve, a consciência (Caldas, 1932, p. 33).

A função da "Clínica de Euphrenia" era de acompanhar o desenvolvimento mental da criança de 2 a 6 anos, com a finalidade de diagnosticar deficiências ou superioridade mentais. Estava pronta para receber das escolas crianças com problemas. Os casos de anormalidade não seriam trabalhados pela clínica, e sim os casos de crianças com pequeno desvio de personalidade para ser corrigido. Pretendia-se prevenir nas crianças o aparecimento de distúrbios, ou, no caso do seu aparecimento, corrigi-los enquanto era tempo, evitando a disseminação de indivíduos onerosos à nação.

São crianças que, sendo bem amparadas no período crítico da sua infância, serão no futuro os elementos e os dynamos, que accionarão o progresso da patria, ao passo que, desamparadas ou inconprehendidas, poderão formar na fileira dos psychopathas e criminosos que constituem o peso morto da nação (Caldas, 1930, p.77).

A preocupação com a delinqüência e sua relação com a doença mental também estava presente entre os higienistas, que se ocupavam muito com os estudos sobre as causas dos crimes e, principalmente, com as características da personalidade do criminoso. Com os conhecimentos produzidos nessa época a esse respeito, acreditavam que poderiam prever a delinqüência no meio social, considerada um desajustamento social que incomodava toda a sociedade.

Entendiam que, se as causas do desajustamento social fossem extinguidas, os crimes, em grande parte, desapareceriam, e os criminosos, imediatamente encaminhados para o manicômio judiciário, poderiam receber tratamento. Utilizar a ciência era caminho certo para a prevenção e o tratamento da delinqüência:

A influencia das sciencias biologicas nos dominios da sciencia penal cada dia se faz sentir dominadora. Não se pode pensar em julgar e tratar os delinquentes tomando por base formulas abstratas inspiradas exclusivamente nos aspectos dos crimes por elles realizados (Carrilho, 1930b, p. 79).

Propunham exames e observação criteriosa da personalidade do delinqüente nas prisões, para que pudessem formular uma "terapêutica regeneradora". A pena deveria se inspirar nos princípios da higiene mental, perdendo seu caracter pejorativo de castigo. O tratamento deveria ser individualisado a cada caso concreto, de acordo com a mentalidade e a psycologia, tão curiosos e variantes, dos delinquentes (Carrilho, 1930a, p. 60).

Diziam que os estabelecimentos penais deveriam ser, para os psicologistas, psiquiatras e higienistas, em geral, um lugar de estudo dos aspectos individuais da delinqüência, para realizarem um programa de regeneração. Esta se tornaria possível através da terapia ocupacional, segundo os parâmetros de orientação profissional. Para a realização da terapêutica regeneradora haveria a necessidade da "individualização do trabalho", que se revelava pela "individualização da pena", em defesa do bem da sociedade.

Concebiam que as atitudes "anti-higiênicas" e "anti-sociais" decorriam, na sua maioria, da má-adaptação ao trabalho. Defendiam que o trabalho exercido pelos apenados na penitenciária não poderia ser um trabalho escravo; deveria ser remunerado, pois,

os seus salarios, o seu peculio, creando no seu espirito a esperança do conforto futuro, do mais facil reingresso no meio social e a consciencia do proprio valor, representam uma suggestão benefica de inestimaveis effeitos hygienicos (...). Os salarios estimulam a acção regeneradora, arraigando no espirito do condenado a noção de normalidade econômica (Carrilho, op. cit., p. 62).

Esse seria o aspecto capital da preocupação com a higiene mental do delinqüente. Outro aspecto do tratamento dizia respeito ao processo educativo dos delinqüentes, já que seria salutar que recebessem cursos de anti-alcoolismo e de educação sexual.

Heitor Carrilho, diretor do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro e membro da LBHM, em um dos seus artigos publicados nos Arquivos Brasileiros de Hygiene Mental, intitulado "Instruções, conselhos e advertências aos enfermeiros dos manicômios judiciários", informava a esses profissionais sobre as características psicológicas das pessoas retidas naqueles locais. Dizia que o trabalho deles pouco se diferenciava das atividades dos enfermeiros em hospitais psiquiátricos. O que ocorria de diferente era: evasões, agressões violentas, porte de armas improvisadas, motins, suicídios, homossexualismo e necessidade de vigilância constante.

Descrevia também, para conhecimento dos enfermeiros, os tipos de psicopatas encontrados nos manicômios judiciários, tais como: a) os amorais constitucionais, "loucos moraes"; b) os epilépticos sem ataques ou com poucos ataques, que durante suas crises mataram pais ou filhos; c) os débeis mentais e imbecis; d) os maníacos; e) os paranóides; f) os perversos sexuais; g) os alcoólicos crônicos; e h) os que simulavam ter distúrbios mentais (Carrilho, 1932).

Outro tema de interesse era a relação entre doença mental e raça. Xavier de Oliveira, médico do Hospital de Psicopatas, em seu artigo no ABHM intitulado "Da prophylaxia mental dos immigrantes", revela sua preocupação com o grande número de internamentos de imigrantes nos sanatórios do país. Com seu discurso nacionalista, assinalava a importância de uma nação ter homens sadios. Afirmava, nesse sentido, não entender como o governo

(...) permitte sejam incorporados ao seu maior partimônio – o homem – até os retalhos de raças, mais ou menos, degeneradas, como algumas da Ásia Oriental, além de outras quisa tão indesejaveis, como todas as do Oriente proximo (Ásia Menor), aquellas e estas, boas ou más, são doentes, inferiores ou superiores. Mas, todas, para a nossa formação eugenica, são comparaveis aos insanos incuraveis de outros povos, que também recebemos, tratamos em nossos hospitaes, sempre superlotados (Oliveira, 1932, p. 16-17).

Seus argumentos foram se solidificando e obtendo adesão, devido ao seu trabalho de 15 anos como assistente do prof. Henrique Roxo na clínica psiquátrica. Ele queria mostrar que deveria haver uma seleção mental dos imigrantes que entravam no Brasil. Fazia levantamentos estatísticos e demonstrava que de 1923 a 1928, no Hospital do Juqueri, 22% das pessoas internadas eram imigrantes, e a média geral dos outros hospitais psiquiátricos estava em torno de 20%. Oliveira alertava que, a persistirem esses dados, poderia ocorrer um problema eugênico no futuro do país, além de este estar destinando recursos a pessoas inúteis que vinham de outras nações.

Não havia uma preocupação de entender a causa desses índices. O próprio autor relata que, possivelmente, a causa da doença mental entre os imigrantes se devia à mudança de clima, de profissão, de alimentação, de costumes e hábitos. Assim, ganhava força a idéia de se selecionar, através de observações, testes e diagnóstico psicológico, os imigrantes que deveriam entrar no país, já que não se podia escapar do problema.

(...) o assunto não se limita apenas á sua face, por assim dizer, material, qual a de sustentarmos milhares de boccas inuteis que nos veem de outras nações. (...) É que, si temos a nossa repartição de Industria Pastoril, habilitada de technicos de reconhecida competencia pra selecionar os reproductores dos nossos rebanhos, que estamos sempre a importar, não temos, ainda, uma repartição para selecionar os estrangeiros que nos veem de todas as partes (Oliveira, 1932, p. 20-21).

Ou, em outras palavras, como aparece na seção de notícias do primeiro número dos Archivos Brasileiros de Higiene Mental:

(...)devemos fazer sem distinção de raça ou nacionalidade uma seleção individual o mais que possível rigorosa sob o ponto de vista mental, isto é, não devemos receber immigrantes que apresentem perturbação mental congenita ou adquirida: nenhum idiota, nenhum imbecil evidente, nenhum demente de qualquer espécie, nenhum epileptico, nenhum maniaco-depressivo, nenhum paraphrenico, nenhum paranoico, nenhum doente de qualquer outra psychose definida poderá saltar em nenhum porto nacional e se entrar pela fronteira terrestre deverá ser repatriado (ABHM, n. 1, 1925, p. 196-197).

Reivindicava-se que se impedisse a entrada de imigrantes, principalmente daqueles que não fossem brancos, e que, dentre estes últimos, somente se aceitassem aqueles que possuíssem características superiores da raça (Costa, 1989). A raça branca seria a única, sem exceção, que uma vez selecionada, convém à assimilação da nossa sub-raça, que innegavelmente evolui para o typo branco, ainda que impuro, o qual já lhe é predominante (Oliveira, 1932, p. 21).

Nas primeiras décadas do nosso século, a Psiquiatria brasileira atribuiu grande importância à incidência e à prevalência dos mais variados tipos de doença mental e à sua distribuição entre as etnias. Nesse período, as populações negra e mestiça eram muito mais acometidas pelas doenças mentais de origem tóxico-infecciosa, como o alcoolismo e a sífilis, do que a população branca. Entre os muitos "desajustados sociais" estavam o negro, os mestiços e os imigrantes, candidatos naturais ao crime e ao hospício.

Sobretudo os negros, eram tidos como candidatos naturais a uma vaga no hospício, posto que, segundo o discurso psiquiátrico, portadores de traços degenerativos próprios à sua condição racial. Como atesta o prontuário médico de uma negra interna no Juquery, em São Paulo, 'os estigmas de degeneração física que apresenta são comuns de sua raça: lábios grossos, nariz esborrachado, seios enormes, pés chatos (Reis, 1994, p. 151).

Os indivíduos orientais também eram discriminados e suas características raciais, assim como as dos negros, acabavam por se tornar, aos olhos dos psiquiatras, características de demência mental, conforme atestam palavras expressas em um diagnóstico a respeito de um amarelo da raça malaia:

Chama a attenção, de logo, a sua figura estranha e singular, de longos cabellos negros, lisos, corredios, com igual bigode typico, despontado e cahido, encimando falha barba por fazer, tudo contrastando com a pallidez cerea de suas mucosas visíveis, com os estigmas próprios da raça de que é um exemplar representativo á perfeição. Estigmas moraes que o enquadram na constituição eschizoide, sem nada lhe faltar para ser desta uma paradigma de comparação. (...) Notoriamente, um deficiente mental, sem que isto importe dizer que esteja em nível bem inferior aos de sua grey, era-o, todavia, em grau tão acentuado que não chegava a conhecer a nossa moeda (Oliveira, 1932, p. 16-17).

Expressava-se, assim, uma ideologia do branqueamento racial. Havia que se fazer os esforços possíveis para que a raça fosse se depurando, já que não era possível negar ou evitar a miscigenação do povo brasileiro. Se a imigração fosse maciçamente branca, o processo de branqueamento acabaria, mais cedo ou mais tarde, acontecendo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos vislumbrar que o movimento higienista esteve amplamente presente na vida dos brasileiros no início do século XX e que lidou com problemas com os quais estamos ainda nos debatendo, como por exemplo a discriminação racial, a exclusão e/ou inclusão dos deficientes e doentes mentais na sociedade, a delinqüência, a possibilidade ou não da prevenção em saúde mental. Observamos também que a Psicologia, assim como a Eugenia, tornou-se um dos fundamentos científicos do movimento higienista, e, marcadamente, a base científica da higiene mental. Por breve e superficial que seja a contextualização aqui apresentada, nota-se que a higiene mental e a Psicologia estiveram, no Brasil, a serviço de um projeto social que buscava, no entendimento das diferenças individuais, no desenvolvimento normal do indivíduo e no aprimoramento da raça, corolários para a edificação de uma sociedade ideal, moderna, civilizada e democrática.

É evidente a concepção de "raças superiores" e "raças inferiores", que tenta ser explicada cientificamente através dos estudos sobre a hereditariedade genética. Notável é o componente moralizante, ao se prescreverem normas de comportamentos consideradas mais adequadas às populações mais pobres, para que uma sociedade mais apurada e moderna se instaurasse no país.

Outro aspecto a ser observado diz respeito ao caráter preventivo da doença mental expresso pelo higienismo. Para prevenir a doença mental, a adoção da Eugenia foi tida como necessária, e uma ideologia racista foi erigida em nome dessa prevenção. Pela compreensão das leis da hereditariedade, acreditava-se na capacidade de se predizer e controlar comportamentos, sentimentos e desejos daqueles que maculavam com seus "desvios" o nobre projeto de melhoria social. Para finalizar, deixamos no ar a afirmação de Costa (1989) segundo a qual a experiência dos higienistas, ainda hoje, aponta para um fantasma que assombra e seduz.

Recebido em 15/04/00

Revisado em 27/05/00

Aceito em 30/05/00

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  • Endereço para correspondência:

    Universidade Estadual de Maringá
    Departamento de Psicologia
    Avenida Colombo, 5790, 87020-900
    Maringá, Paraná
    E-mail:
  • 1
    Este trabalho originou-se do projeto de iniciação científica, financiado pelo CNPq, denominado
    Higienismo e Eugenia no Brasil: categorização de conteúdos da Psicologia a partir de fontes primárias, desenvolvido em 1999/98.
  • 2
    Trata-se do GEPHE – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Higienismo e o Eugenismo, coordenado pela Profa. Dra. Maria Lúcia Boarini.
  • 3
    O primeiro hospital psiquiátrico no país foi o Hospício D. Pedro II, inaugurado em 1852. Sob a direção de religiosos da Santa Casa de Misericórdia, só veio a ser administrado por um médico-psiquiatra, Teixeira Brandão, em 1886, ano em que também se iniciou o ensino regular de Psiquiatria aos médicos generalistas. Em 1890, o Hospício foi denominado Hospital Nacional dos Alienados, passando a ser tutelado do Estado. Somente em 1903 é que foi promulgada, no governo de Rodrigues Alves, a primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados (Costa, 1989).
  • 4
    Um estudo aprofundado sobre esse tema pode ser encontrado em Mai (1999), que analisou os
    Boletim de Eugenia publicados entre 1929 e 1931.
  • 5
    Uma exposição mais detalhada sobre esse assunto pode ser encontrada em Maestri (2000).
  • 6
    "Euphrenia, (do grego, eu + phren phrenos), seria o estudo que tem por fim assegurar a bôa formação do psychismo.(...)Levando tão longe quanto possivel as investigações, neste terreno, chegar-se-á certamente, ao conhecimento mais ou menos perfeito das leis que regem a hereditariedade psychologica e, por outro lado, ficar-se-á sabendo quaes as neuroses e psychoses, quaes as constituições psychopathicas e psychologicas que possuem caracter dominante ou recessivo, e que se transmittem de accordo com as leis mendelianas" (Caldas, 1932, p. 31-32).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2000

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2000
    • Revisado
      27 Maio 2000
    • Recebido
      15 Abr 2000
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