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Dizer, escutar, escrever: redes de tradução impressas na arte de cartografar

Speaking, listening and writing: translation webs printed in the art of cartography

Resumos

Este trabalho surge da indagação sobre um novo modo de pesquisar nas ciências humanas com base no paradigma ético-estético e político, com vistas a confrontar o saber instituído pela modernidade. Interrogações a respeito do modo cartesiano de produção de conhecimento remetem a uma diversidade de “propostas” teóricas que implicam o pesquisador desde um lugar de escuta e demanda das falas, tomando-as como efeito do que se produz no pedido pela palavra. Se o contar e o escutar constituem redes de tradução em busca da criação de sentidos, também o registrar e escrever do contado podem vir a ser problematizados da mesma forma, ou seja, como matéria a se constituir no próprio ato de sua invenção. É nessa perspectiva que se reconhece a emergência da arte da cartografia como um modo de análise do social e de suas narrações.

metodologia; discurso; cartografia


The present work was originated from the probing into a new way of researching in the field of the humanities, based on an ethical, esthetic and political paradigm that aims at collating the knowledge constituted by modernity. Inquiries related to the Cartesian approach to the production of knowledge point to a variety of theoretical proposals that call the researcher from his/her place of demanding and listening to the speech to a position of assuming that they can rather be the consequences of what is implied when suggesting the speech. If telling and listening constitute translation webs in the search of creation of meanings, the registering and writing of what has been told might also be similarly questioned, i. e., as a matter to be instituted by the very act of its creation. It is from this perspective that the emergence of the art of Cartography can be recognized as a tool in analyzing society and its narratives.

methodology; discourse; cartography


ARTIGOS

Dizer, escutar, escrever: redes de tradução impressas na arte de cartografar

Speaking, listening and writing: translation webs printed in the art of cartography

Denise MairesseI ; Tania Mara Galli FonsecaII

IPsicóloga Clínica e Institucional, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS

IIPsicóloga, Doutora em Educação, Professora Titular de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da UFRGS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência rua Vitor Hugo, 384 CEP 90630-070, Porto Alegre – RS E-mail d.m@bol.com.br

RESUMO

Este trabalho surge da indagação sobre um novo modo de pesquisar nas ciências humanas com base no paradigma ético-estético e político, com vistas a confrontar o saber instituído pela modernidade. Interrogações a respeito do modo cartesiano de produção de conhecimento remetem a uma diversidade de “propostas” teóricas que implicam o pesquisador desde um lugar de escuta e demanda das falas, tomando-as como efeito do que se produz no pedido pela palavra. Se o contar e o escutar constituem redes de tradução em busca da criação de sentidos, também o registrar e escrever do contado podem vir a ser problematizados da mesma forma, ou seja, como matéria a se constituir no próprio ato de sua invenção. É nessa perspectiva que se reconhece a emergência da arte da cartografia como um modo de análise do social e de suas narrações.

Palavras-chave: metodologia, discurso, cartografia.

ABSTRACT

The present work was originated from the probing into a new way of researching in the field of the humanities, based on an ethical, esthetic and political paradigm that aims at collating the knowledge constituted by modernity. Inquiries related to the Cartesian approach to the production of knowledge point to a variety of theoretical proposals that call the researcher from his/her place of demanding and listening to the speech to a position of assuming that they can rather be the consequences of what is implied when suggesting the speech. If telling and listening constitute translation webs in the search of creation of meanings, the registering and writing of what has been told might also be similarly questioned, i. e., as a matter to be instituted by the very act of its creation. It is from this perspective that the emergence of the art of Cartography can be recognized as a tool in analyzing society and its narratives.

Key words: methodology, discourse, cartography.

INTRODUÇÃO

Este trabalho surge da interrogação sobre um novo modo de pesquisa nas ciências humanas o qual busca uma metodologia que compreenda um olhar desde o paradigma ético-estético e político que vem a confrontar o saber instituído pela modernidade de uma lógica cartesiana na qual o objeto de estudo está dissociado do sujeito que o investiga. Na pesquisa em Psicologia, por exemplo, trata-se, em geral, de interrogar o outro para análise e confirmação de hipóteses. Neste sentido, em muitos casos — e são os que interessa a este artigo discutir — são contadas histórias sobre a vida dos sujeitos e daqueles que compõem seu universo. Estas histórias só podem ser contadas a partir dos dias atuais, o que implica uma análise daquilo que é relatado e interrogado desde uma perspectiva sociotemporal.

Mas que histórias se trata de escutar? O que significa contar uma história? Que fala é esta que atravessa o discurso dos sujeitos? A quem se dirige esta fala? Que tipo de discurso se constitui nestas falas? Todas estas interrogações remetem o pesquisador a uma diversidade de “propostas” teóricas no domínio deste território que o implicam desde um lugar de escuta e demanda destas falas, constituindo um campo de forças e de luta entre vetores oscilantes entre o que se deseja escutar e o que se pede para falar, desde que se tome a fala, também, entre outras concepções, como resposta a uma solicitação, um efeito entre a oferta e a demanda produzida no pedido pela palavra.

Assim sendo, este tema demanda a análise do que está implícito no pedido do contar, na vontade de saber (Foucault, 1996, p.16) do pesquisador, e do tipo de escuta que ele faz das histórias, isto é, de que forma se interroga e qual o acolhimento que dá para o dizer sobre as histórias narradas. A vontade de saber implica, pois, uma vontade de verdade. Segundo Foucault,

... por volta do século XVI e do século XVII (na Inglaterra sobretudo) apareceu uma vontade de saber que, antecipando-se a seus conteúdos atuais, desenhava planos de objetos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que impunha ao sujeito cognocente (...) certa posição, certo olhar e certa função (...); uma vontade de saber que prescrevia (...) o nível técnico do qual deveriam investir-se os conhecimentos para serem verificáveis e úteis (1996, p.16-18)

A vontade de verdade se realiza onde o saber atua sobre os outros discursos, no modo, por exemplo, como é aplicado,

na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também — em suma, no discurso verdadeiro (op. cit, 1996, p. 18).

Neste sentido, a pesquisa histórica tem sido influenciada pela tradição científica que exigia a objetividade das ciências exatas para ela vir a ser considerada ciência. Prevalecia, em seu método, a busca da verdade através de comprovação por documentos que registrassem indicativos para que se legitimassem os fatos. A teoria positivista exerceu uma forte influência sobre tal modo de produção científica e, ainda que se esforçasse, garantia muito pouco a respeito do estatuto de ciência. Desde Descartes (Arendt, 1997), os sentidos humanos têm sido questionados enquanto ferramentas de investigação, o que tem contribuído para acrescentar fortes argumentos que visam eliminar a parcialidade do historiador. Reconstituem-se os fatos a partir de um complexo conjunto de testemunhos e interpretações críticas sobre textos e documentos. O fato, pois, está na realidade do historiador que o transporta para o documento, isto é, o fato é uma construção do historiador (Ariès, 1981).

Para Arendt (1997, p.89) a história, na época moderna, “não mais se compôs dos feitos e sofrimentos dos homens e não mais contou a estória de eventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem...” Contudo, mesmo tal concepção continua a buscar na origem da história uma verdade primeira que determina toda a ação a posteriori em uma relação causa e efeito, correspondendo a uma perspectiva evolucionista que concebe o progresso e o declínio na ordem do Cronos, do tempo sucessivo e linear.

A verdade é produzida pelo poder e produz poder. É o saber, enquanto verdade científica ou determinada pelo “comentário” (Foucault, 1996, p. 21), por narrativas que se contam e se repetem enquanto fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos, como os religiosos, por exemplo. Procedimentos de controle reconhecidos por dispositivos sociais jurídicos regem o funcionamento das instituições específicas de aprendizagem e de transmissão destes saberes que determinam os procedimentos e práticas possíveis para se distinguir o falso do verdadeiro. O discurso do verdadeiro emerge de um processo de construção e produção de necessidades de cada sociedade. Cada grupo, cada nação acolhe e faz funcionar determinados tipos de discurso como verdadeiros ou falsos. Estes são produzidos e regulamentados a partir de necessidades políticas e econômicas, que exercem múltiplas coerções sobre eles e sancionam suas formas de atuação e legalização de práticas e condutas específicas destinadas à universalização de valores e homogeneização das classes.

O historiador, enquanto cientista da história e intelectual responsável pela produção do conhecimento científico, ocupa neste sentido uma posição política na economia da verdade, na produção “das regras, segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuem ao verdadeiro efeitos específicos de poder...” (Foucault, 1996, p.13). É do lugar que ele ocupa no contexto de alguém que produz e é produzido a partir dos mesmos dispositivos que regulamentam as regras de funcionamento dos aparelhos sociais, como universidade, mídia, exército, etc. que ele – historiador - vai ser problematizado em torno do estatuto de verdade e do papel que desempenha na formação desta conjuntura social de expressão e legitimização de saber-poder.

Faz-se importante distinguir a verdade de um discurso da vontade de verdade. Assim esclarece Foucault (1996, p. 20):

...o discurso verdadeiro (...) não pode reconhecer a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la.

Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade (...) insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que (...) em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade...

Neste sentido a vontade de verdade atravessa o discurso verdadeiro, porém não é o discurso.

A vontade de verdade está ainda fundamentada na busca de uma resposta para a mais antiga interrogação do homem, a qual é objeto da filosofia e funda todas as religiões: de onde viemos e para onde vamos. O estudo da genealogia de Foucault se opõe, não à pesquisa histórica em si, mas ao tipo de dobramento que se realiza sobre esta pesquisa na busca das origens, de uma verdade primeira enquanto essência da coisa. É, em torno da luta contra a necessidade de uma explicação, de uma resposta que funcione como reguladora de identidade, como dispositivo unificador do eu, garantindo seu estatuto de pureza, anterior a tudo que existe e é externo a si, que Foucault (1979), a partir de Nietzsche, reivindica uma outra forma de pesquisa. “O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem — é a discórdia das coisas, é o disparate” (op. cit., 1979, p. 18), o múltiplo, o estrangeiro que habita o ser. Na busca de uma unidade e um saber que reconheça o seu lugar, o que se encontra é, pelo contrário, a infinitude, o diferente, o que se quer negar e destruir a partir da produção de um lugar de verdade, composto não pelo erro, mas pela ilusão: “gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes da mão do criador...” (op. cit., 1979, p. 18).

Assim, o ato de contar de uma história pode remeter o sujeito que fala à busca de um sentido, de uma compreensão, principalmente quando se é ingenuamente indagado sobre este lugar de origem, quando o ouvinte tenta encontrar nesta fala sobre a história uma procedência que também justifique a sua herança transmitida.

É nesta via que o pesquisador, ouvinte e futuro escritor de histórias, pode se encontrar na posição de bloqueador de sentidos, o pesquisador depara-se aí com o equívoco, da perpetuação dos capitais, da prisão muda do modelo identitário e do seu lugar de agente desta reprodução do social.

A possibilidade de escuta e acolhimento de outras histórias através das mesmas palavras que vinham se pronunciando na busca de uma verdade homogeneizante, impõe a circulação do sujeito por diferentes dispositivos e circuitos de produção de subjetividades tramadas por entre outras verdades e certezas, pondo em questão aquelas através das quais pretensamente este sujeito vinha se constituindo. Possibilita-se que a fala saia do lugar de representação, de comunicação intersubjetiva, para ocupar um lugar de criação, como um “dispositivo acontecimental” (Figueiredo, 1994, p.151). Neste sentido, a própria lógica da identidade se torna passível de desconstrução diante da pluralidade de formas rizomáticas e conexões plugáveis encontradas enquanto canais de subjetivação. Como efeito destas miscigenações, novos sujeitos constituem novos grupos e subgrupos. Entre outras “verdades”, estes se organizam, muitos instituindo ainda modelos identitários. As intensidades resultantes da afetação produzida por este processo de produção de diferenças definem as novas modalidades em reconhecimento. O limite que distingue a heterogênese como devir de diferença ou modelo de identidade é dado pelo modo de o sujeito se apropriar de sua alteridade.

Contar uma história pode vir a ser um movimento de desdobramento, deixando vir o “de dentro” para “fora”, libertando aquele que se refugia nos entres das envergaduras, agenciando no sujeito uma nova configuração do ser. Em sua pluralidade, infinitas vozes dialogam, disparando um novo processo, um devir de diferença; um sujeito mais livre enquanto em movimento de devir, enquanto em processo de singularização, em entrelaçamento, junção e disjunção de si com os outros.

Trata-se (...) de ouvir as linhas de virtualidade que se anunciam e se perguntar: (...) Que agenciamentos são passíveis de trazê-los à existência, recompor um mundo, relançar o processo? (...) as escolhas são múltiplas e se fazem em função do que é melhor para a vida (...) Uma escolha ética, que é mais da ordem da arte do que do método: o que ela visa é criar formas de existência, a favor do processo vital;... (Rolnik, 1996, p. 7)

A NARRATIVA E O IMEMORIAL

Certeau (1998) trabalha sobre a narrativa como uma arte do dizer e de fazer a história, diferenciando-a da técnica de descrição: “No relato não se trata mais de ajustar-se o mais possível a uma ‘realidade’ (...) e dar credibilidade ao texto pelo ‘real’ que exibe. Ao contrário, a história narrada cria um espaço de ficção” (op. cit., 1994, p. 153). A narratividade, neste sentido, supõe uma teoria do relato indissociável de uma teoria das práticas, como sua condição mesma de existência e do modo do tempo vivido como duração, em que o passado subsiste no presente continuamente engendrando o novo (Rauter, 1988). O discurso produz efeitos ao querer dizer outra coisa do que aquilo que se diz; exerce sua estratégia por um desvio pelo passado, recorrendo à memória como uma de suas táticas geradoras de sentido.

A memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do “momento oportuno” (Kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza inquietante familiaridade torna possível uma transgressão da lei do lugar. Saindo de seus insondáveis e móveis segredos, um “golpe”, modifica a ordem local (...). (...) o passado voltando, abala os dados de uma forma hierárquica. (Certeau, 1998, p. 161)

O passado é o objeto maior das narrativas, e, a partir de uma ou outra dimensão da memória, busca seu potencial para realizar-se enquanto recordações ou imagens-lembranças. A inteligência produz recortes que introduzem em regiões de parada no devir, correspondendo a contrações do passado mais ou menos fluidas. Quanto mais fluídas, mais próximas estarão de uma dimensão virtual, da memória imemorial (Rauter, 1998). Somente através da memória se pode atingir o passado, e este, não existindo como um antigo presente, só se torna possível enquanto produção no presente, resgatado pelo imemorial. Assim, é somente a partir de hoje que se pode falar sobre o passado, e é implicado no presente e comprometido com o futuro que se faz valer o passado — um passado sempre a se refazer no presente.

A memória fica à espreita, escondida nas sombras das práticas cotidianas, que a aciona como força de intervenção. A memória se constrói no encontro com os acontecimentos, em seu instante ainda virtual, quase pronto para realizar-se. Assim, a memória consiste num meio de transformar os lugares. “A memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita. Deslocável, móvel, vem de alhures”. (Certeau, 1998, p.163)

O ato de contar resgata a memória para infinitos encontros que se realizam nas histórias. Por isto o dizer, o contar, é uma arte do fazer, uma arte de produzir e de transformar uma realidade que já existe em função do que outrora foi falado.

Talvez, a memória seja, aliás, apenas essa “rememoração”, ou chamamento pelo outro, cuja impressão se traçaria como em sobrecarga sobre um corpo há muito tempo alterado jamais sem o saber. Esta escritura originária e secreta “sairia” aos poucos, onde fosse atingida pelos toques. (...) é tocada pelas circunstâncias, como o piano que produz sons aos toques das mãos. (op. cit., 1998, p. 163)

Deste modo, a dupla contar/escutar vai tecendo uma nova rede, entrelaçando pedacinhos de tempo perdidos a uma cadeia temporal estabelecida, fixada em datas, horas e lugares, compondo uma história onde se ressuscitam fantasmas, tornando presentes as ausências. A repetição deste ato permite compor e recompor a imagem que cada geração tem das anteriores. Aciona-se a reversibilidade do tempo e com este a produção de práticas e afetos.

Destarte, trabalhar sobre a narrativa remete a uma discussão sobre o tempo, o espaço e a memória imbricados com o próprio ato de contar, sobre o conceito de invenção e ficção, de história e verdade e sobre as estratégias produzidas do que se supõe articular desde esta narrativa.

SOBRE O REGISTRO — ESCRITA

Se o contar e o escutar compõem, constituem redes de tradução em busca da criação de sentidos, também o registrar e escrever do contado podem vir a ser problematizados da mesma forma. Trabalhar a partir da escuta sobre a narrativa implica em um “dizer sobre aquilo que o outro diz de sua arte, e não um dizer dessa arte” (Certeau, 1998, p.151). “O ouvido apurado sabe discernir no dito aquilo que aí é marcado de diferente pelo ato de dizê-(lo) aqui e agora, e não se cansa de prestar atenção a estas habilidades astuciosas do contador”. (op. cit., 1998, p.166) É neste contexto que se reconhece um novo modo de análise destas narrativas enquanto produção do social desde a arte de cartografar.

A arte de cartografar antecede o ato de escrever sobre estas histórias. A cartografia, desde a ciência geográfica, registra as paisagens que se conformam, segundo sua afetação pela natureza, pelo desenho do tempo, pela vida que por ali passa, e o cartógrafo é aquele que traça ou mapeia o cartograma. Segundo Ferreira (1986, p. 360), “cartograma é o mapa em que se representam, por meio de pontos, figuras, linhas, colorido, previamente convencionados, um fenômeno quanto a sua área de ocorrência, movimentação e evolução”.

Destarte, torna-se politicamente interessante usufruir deste termo como uma ferramenta facilitadora para desencadear novos percursos científicos em favor de uma análise e de uma maior apropriação da noção de acontecimento no discurso dos sujeitos.

A partir de relatos contados se vai construindo um grande mapa, inicialmente um rabisco, no que já se anuncia a problemática a ser analisada. No mapa, traçamos a trajetória percorrida por estes sujeitos. Esta é constituída por uma ecologia social e cognitiva que significa e é ressignificada por aqueles que ali passam. O mapa, “quando o próprio objeto é movimento, confunde-se com seu próprio objeto” (Deleuze, 1997, p. 73), no caso, o trajeto percorrido e os sujeitos que o percorrem. O próprio escrever sobre estas histórias é se fazer objeto deste mapa, é fazer parte desta trajetória e constituir esta ecologia, ou seja, estar em processo de. Como refere o autor, “escrever é (...) uma passagem de vida, que atravessa o vivível e o

vivido” (op. cit., 1997, p. 11). Mas o mapa não se circunscreve a um espaço-tempo delimitado; ele é também um mapa de intensidades (op. cit., 1997, p. 77), transformável em função da constelação afetiva que o/se compõe. Por isto, o mapa é devir; ler um mapa é cartografá-lo1 1 Disciplinas que até então, em nome de uma cientificidade, se mantiveram rigorosamente distantes na produção teórica de mundos diferentes, na prática da vida encontram-se entramadas, entrelaçadas. Redes de produção de subjetividade, redes de produção de territórios. Territórios produzidos natural e socialmente. Cartografar o espaço social da Terra nos permite um retrato da nossa ecosfera, registrando os níveis de crescimento do buraco na camada de ozônio. Produção que nos remete a um hibridismo de conceitos, a uma análise das forças naturais, históricas e políticas envolvidas neste fenômeno. , é apreendê-lo sempre em uma forma outra que não aquela que supostamente lhe deu origem; é tornar-se parte dele. A tarefa do cartógrafo social é, justamente, acompanhar os movimentos, é perceber entre sons e imagens a composição e decomposição dos territórios, como e por quais manobras e estratégias se criam novas paisagens. Quais linhas predominam em sua articulação? Das linhas de fuga às linhas mais duras, qual a relação entre elas? Quanto as linhas de vida estão capturadas? Qual a força que as mantém?

O compromisso com a vida é o que consta como cláusula principal no contrato do cartógrafo/pesquisador. É somente a partir do compromisso que se possibilitam a apreensão destas conexões, a escuta dos ruídos e a visão das sombras. É no suporte à vida que se percebe quais intensidades pedem passagem, qual o índice de abertura, de devir, de acolhimento a novos encontros e a novas experiências que permitem a desterritorialização de campos inférteis, onde o único esboço de vida é o do mesmo, daquele que ainda persiste, mesmo na iminência de cair na escuridão. E, no compromisso com a vida, é também tarefa do cartógrafo social fazer deste esboço um desenho, desvendar outras linhas, potencializar novas formas. Assim refere Fromentim, citado por Deleuze (1997, p.78): “Estudei o mapa, não como geógrafo, mas como pintor. E como os trajetos não são reais, assim como os devires não são imaginários, na sua reunião existe algo de único, que só pertence à arte”. Portanto, desde esta proposta, podemos concluir que cartografar, enquanto um método de pesquisa social, está além do fazer geográfico, está também no movimento da arte.

Do mesmo modo, o “escrever é um caso de devir” (op. cit., p.11), uma matéria a se constituir no próprio ato de sua invenção. É se fazer sempre um outro da escrita, é compor uma nova paisagem a partir de novos enunciados, é traduzir em idéias as histórias que se vêem e escutam através da linguagem. Escrever está na ordem do desejo, da paixão pelo conhecimento e descobrimento de novos horizontes que só a elaboração produzida no próprio ato é capaz de revelar. Não se pode explicar o escrever, pois este só o entende o escritor, aquele que vive a experiência da transmutação pela arte de reinventar-se na palavra escrita.

Escrever-se, então, sobre as histórias contadas, ouvidas, cartografadas. Faz-se objeto de análise a trajetória de sujeitos, suas histórias e suas heranças, obras esculpidas no tempo.

As histórias escritas começam no desejo do analista cartógrafo, em seu estilo de construir e assim interferir nessas paisagens, de deixar-se envolver e emocionar como se envolvem os escritores com seus personagens. São histórias contadas por seus atores/autores e interpretadas por pesquisadores/cartógrafos... Ficção ou realidade? Responder-se-ia: o resultado de uma construção, de um trabalho realizado junto aos próprios protagonistas que, desde o seu envolvimento, possibilitam que se dê forma a estes escritos.

Recebido em 24/09/2002

Revisado em 02/10/2002

Aceito em 30/10/2002

  • Arendt, H. (1997). Entre o Passado e o Futuro São Paulo: Ed. Perspectiva.
  • Ariès, P. (1981). Historia Social da Criança e da Família 2ed. Rio de Janeiro: Guanabara.
  • Certeau, M. (1998) A Invenção de Cotidiano Rio de Janeiro: Vozes.
  • Deleuze,G. (1997). Crítica e Clínica1.ed. São Paulo: Ed. 34.
  • Ferreira, A.B.H. (1986). Novo Dicionário da Língua Portuguesa 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
  • Figueiredo, L.C. (1994). Escutar, Recordar, Dizer: encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica São Paulo: Educ/Escuta.
  • Foucault, M. (1979) Microfísica do Poder 12. ed. Rio de Janeiro: Graal.
  • Foucault, M. (1996). A Ordem do Discurso São Paulo: Loyola.
  • Mairesse, D. (2000). Empresa Familiar / Família Empresarial: (des)dobramentos da herança Dissertação de Mestrado,  Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  • Rauter, C.M.B. (1988). Clínica do Esquecimento: construção de uma superfície Tese de Doutoramento, Pontifícia Universidade Católica de  São Paulo, São Paulo.
  • Rolnik, S. (1996, setembro). Novas Figuras do Caos: mutações da subjetividade contemporânea Trabalho apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino Americano de Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de  São Paulo, São Paulo, Brasil.
  • Endereço para correspondência

    rua Vitor Hugo, 384
    CEP 90630-070, Porto Alegre – RS
    E-mail
  • 1
    Disciplinas que até então, em nome de uma cientificidade, se mantiveram rigorosamente distantes na produção teórica de mundos diferentes, na prática da vida encontram-se entramadas, entrelaçadas. Redes de produção de subjetividade, redes de produção de territórios. Territórios produzidos natural e socialmente. Cartografar o espaço social da Terra nos permite um retrato da nossa ecosfera, registrando os níveis de crescimento do buraco na camada de ozônio. Produção que nos remete a um hibridismo de conceitos, a uma análise das forças naturais, históricas e políticas envolvidas neste fenômeno.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      30 Out 2002
    • Revisado
      02 Out 2002
    • Recebido
      24 Set 2002
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